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segunda-feira, 22 de junho de 2015

Francisco de Zurbarán, um novo olhar

Detalhe de natureza-morta de Zurbarán
Autorretrato
O Museo Thyssen-Bornemisza de Madrid, Espanha, está apresentando, desde 9 de junho, uma exposição retrospectiva da obra do pintor espanhol Francisco de Zurbarán, intitulada "Zurbarán, una nueva mirada". Ele é um dos pintores mais importantes do Século de Ouro espanhol. O museu conseguiu juntar, entre as obras expostas, aquelas que são pouco conhecidas e mesmo as que nunca haviam sido expostas na Espanha. Ele foi colega de Diego Velázquez e, junto com ele, tem sido muito reconhecido nos dias atuais pela qualidade de sua pintura e pelo seu estilo sensível de pintar.


"Santa Margarida", Zurbarán, 1631,
National Gallery de Londres
Francisco de Zurbarán nasceu em 7 de novembro de 1598, na pequena vila de Fuente de Cantos, em Badajoz, região da Extremadura.

Entre 1614 e 1617 estudou pintura em Sevilha com Pedro Díaz de Villanueva. Conheceu, no mesmo período, os famosos - na época - mestres de Diego Velázquez, Francisco Herrera e Francisco Pacheco. Fez amizade com Velázquez e Alonso Cano, seus contemporâneos, e ainda jovens aprendizes como ele. Após alguns anos de aprendizagem fecunda em diversas áreas, Zurbarán voltou para sua cidade natal, sem se submeter ao exame profissional do grêmio sevilhano de pintores. Isso acabou sendo lhe cobrado mais tarde.

Depois de um tempo em sua terra, Zurbarán mudou-se para Llerena, onde viveu de 1617 a 1628. Se casou e teve o primeiro filho ainda muito jovem. E já recebia muitas encomendas para pinturas em conventos e igrejas. Infelizmente, todas as pinturas da primeira etapa do pintor Zurbarán foram perdidas. Ele também recebeu encomendas vindas dos padres dominicanos de Sevilha, assim como de outros clérigos daquela cidade. Em duas cenas da vida de São Domingos, que está na igreja de Santa Madalena em Sevilha, os estudiosos de sua obra observam que há a presença de diversos assistentes do pintor, o que era razoavelmente comum, quando se tratava de pintar obras em formato grande.


A partir de 1629, oficialmente convidado pelo conselho municipal de Sevilha, ele se instala definitivamente naquela linda cidade da Andaluzia. No mesmo ano, pintou quatro telas importantes para o colégio de São Boaventura, telas estas que atualmente se encontram em museus da França e da Alemanha. Começo, então, o período mais rico de sua carreira. Com uma pincelada forte e expressiva e seguindo à risca os desejos dos seus clientes católicos, Zurbarán era, por isso, muito procurado para ilustrar cenas religiosas pelos clérigos da Contra-Reforma espanhola, em pleno século de ouro espanhol. Todos os clérigos da Andaluzia e Extremadura lhe procuravam: os jesuítas, os dominicanos, carmelitas, trinitários, etc. 

Com tanto prestígio, acabou sendo convidado, em 1634, para participar da decoração do grande salão do palácio do Bom Retiro em Madrid. Diz-se que talvez isto tenha sido sugerido por Velázquez, seu amigo. Lá, ele foi responsável pela pintura dos “Trabalhos de Hércules”, além de duas telas grandes com temas históricos. Estas telas estão no Museu do Prado, que pude observar de perto em minha última viagem a Madrid, neste mês de maio.


De volta a Sevilha, Zurbarán continuou seu trabalho para os padres. Quase todas as pinturas desta época estão bem conservadas e espalhadas por vários museus do mundo, dos Estados Unidos à Polônia.

Eu pude ver de perto no Museu de Belas Artes de Sevilha várias pinturas de Zurbarán, entre elas três telas que foram feitas para a sacristia da igreja de Santa Maria de las Cuevas.  A pintura de Zurbarán possui uma grande plasticidade nas formas, uma forma de distribuir as luzes de uma maneira que cria harmonia entre as diversas tonalidades. Ele foi um dos pintores que recebeu influência de José Ribera, e por isso grande parte de seu trabalho é bastante marcado por um estilo “tenebrista” (com fortes sombras bem marcadas).

Depois de 1650, Sevilha, que até então era uma cidade muito próspera que atraía comerciantes e artistas de vários lugares, passou por uma profunda crise econômica. Ainda por cima, milhares de pessoas morreram na crise da Peste de 1649. A cidade foi reduzida pela metade. O filho de Zurbarán, que era seu principal colaborador na pintura, também morre. As encomendas rarearam. Por outro lado, uma série de ordens religiosas que estavam se estabelecendo no “novo mundo”, nas Américas, começaram a lhe enviar solicitações para pinturas. Sem poder mais viver em Sevilha, Zurbarán mudou-se para Madrid em 1658. Levou com ele sua terceira esposa e a única filha sobrevivente à peste (teve três filhos). Em sua última etapa, Zurbarán pintou pequenas telas, executadas de forma muito refinada. Sempre com temas de devoção religiosa. Sua pincelada estava mais suave.


"São Francisco com a caveira nas mãos",
Zurbarán, óleo sobre tela, 1658
Envelhecido e doente, Zurbarán pintou sua última tela em 1662. Morreu em 1664 em Madrid, após uma longa enfermidade que lhe fez gastar todo o dinheiro recebido nas encomendas e que estava guardado. Deixou sua família empobrecida, mas sem nenhuma dívida.

Em sua obra nota-se que ele, mais do que nenhum outro, soube retratar a vida monástica com grande realismo e muita sensibilidade. Seus monges são de um realismo que até hoje impressionam; assim como é incrível como ele pintou monges em estado de êxtase, meninos santos, moças onde se vê seus olhares inocentes e cândidos, sem teatralidade, sem exagero, simples… Não criou espaços imaginários, não fez escorços, resolveu tudo de forma simples. Suas composições, sim, são muito bem pensadas, calculadas. A espessura dos tecidos que ele pinta são muito reais, assim como as dobras dos tecidos, que ele trabalhava paciente e majestosamente. Até mesmo suas naturezas-mortas as mais simples são profundamente poéticas, sublimes, porque ele dava a elas a mesma atenção dadas aos temas mais sagrados. Zurbarán é comovente!

Termino mais uma vez citando o poema de Théophile Gautier, de 1845:

“Monges de Zurbarán, brancos cartuchos que, na sombra
passais silenciosos sobre as lousas dos mortos
murmurando o “Pater” e as “Ave” sem nome.
Que crime expiais para tanto tormento
fantasmas tonsurados, verdugos pálidos…
para tratá-los assim, que foi feito de teu corpo?”

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Mais algumas imagens de pinturas de Francisco de Zurbarán:


Detalhe de pintura de Zurbarán
Detalhe de pintura de Zurbarán
Natureza-morta de Zurbarán
"São Serápio", Zurbarán, 1628, Museu de Conectcut, EUA
"Defesa de Cádiz contra os ingleses", Zurbarán, 1634, Museu do Prado
"Aparição de São Pedro a São Pedro Nolasco", Zurbarán, 1629, Museu do Prado
"São Hugo no refeitório dos cartuxos", Zurbarán, 1630-35, Museu de Belas Artes de Sevilha
"Sagrada família", de Zurbarán

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Anotações finais

Final da Calle de Alcalá quando encontra com a Gran Vía, Madrid
Aos domingos, por aqui em Madrid, tem a famosa Feria del Rastro, uma feirinha enorme onde se vende de tudo o que se possa imaginar, principalmente de coisas usadas e antigas. E o preço é muito bom! Nada a ver com os altos preços da feira da Praça Benedito Calixto em São Paulo ou a do Bexiga. Aqui dá pra comprar muita coisa legal, e histórica, pagando um preço honesto. E tem de tudo mesmo!

Uma das ruas onde ocorre a
Feria del Rastro
Nestes dois dias em Madrid, depois que voltei da Andaluzia, tenho observado as pessoas. E tenho visto muitos negros de origem africana por aqui vendendo as mesmas bugigangas chinesas que eles vendem no Brasil. Muitos andando pela rua, olhar perdido, como se fossem turistas. Mas os turistas, como eu, voltarão para suas casas, para seu país. Eles não tem para onde voltar. Talvez nem por aqui, a não ser os albergues públicos. Ou las calles...

Hoje cruzei com um deles quando eu ia para o Museu do Prado. Era um homem alto, bonito, pele bem escura, e me disse, como deve ter dito para outros que passaram, arranhando seu espanhol, que precisava de algum dinheiro para comer, que estava desesperado de hambre! Dei-lhe dois euros, o pobre coitado nem conseguia me agradecer em espanhol, respondeu em francês, em seu francês africano...

Lembrei das inúmeras fotos que salvei em meu computador sobre a tragédia da travessia do mar mediterrâneo pelos africanos que fogem das guerras, da fome, das perseguições políticas em seus países do norte da África. Centenas já morreram tentando alcançar a Itália. Os que conseguem chegar ao continente europeu se espalham por aí, tentando buscar um recomeço de vida... Num lugar diferente, com gente tão diferente da sua, com culturas tão distintas. Quero tentar pintar isto.

Músicos de rua na Feria del Rastro
Olho para os que encontro aqui em Madrid e não consigo ver neles nada mais do que sobreviventes. Alguns olham para dentro de lojas, vendo os produtos. Só olhando, porque comprar por enquanto não dá... Os europeus estão reagindo a essas hordas de negros africanos invadindo seu continente. O preconceito aumenta, em especial no norte, mas também dá pra perceber, pelo menos aqui em Madrid, que o povo espanhol convive com esta situação. Compra as bugigangas chinesas, ajuda com esmolas, ajuda de algum jeito. Ou eles não estariam aqui. Ninguém melhor que os espanhóis para saber o que é contar com a ajuda dos estrangeiros, pois eles fugiram daqui, muitos para o Brasil, na época da ditadura franquista assassina.

Por falar em mendigos, só aqui eu vejo um tipo de mendigo que não vi ainda em lugar algum. Em primeiro lugar, toda igreja tem o seu mendigo na porta, esmolando, homem ou mulher. Em segundo lugar, há mendigos aqui que nunca em sua vida você identificaria como tal, não fosse o fato de eles estarem na rua e com um cartaz explicando sua situação. Como uma senhora bem vestida, alta e branca, que portava um cartaz dizendo que precisava de ajuda porque não tinha como sobreviver. Passei por vários jovens também, bonitos até, explicando que não há trabalho e eles precisam de ajuda. Já falei daquele que encontrei no primeiro dia aqui, na rua do hotel onde estou, que pedia dinheiro para wisky, cerveza ou marijuana...

Autorretrato de Anton Raphael Mengs,
uma das pinturas do Museu do Prado que me
chamou muito a atenção desta vez
Mas passei o dia hoje no Museu do Prado. Fui ver e rever as pinturas daquele lugar, que tanto encantam todos que vão lá. Ticianos, Rubens, Tintoretos, Carracis, Riberas, Goyas, Grecos, Mengs, Zurbaráns, Murillos, Fortunys, Sorollas, Velázquez... De encher os olhos!

Para minha sorte, hoje tinham vários artistas lá estudando os mestres, com seus cavaletes, pintando. Um fazia uma cópia de um José Ribera, outro de El Greco, outro de Rubens, outra de Velazquez, outro ainda de Rubens, "As três Graças". Lembrei das Três Graças que Alexandre Greghi está pintando lá em nosso Ateliê Contraponto em São Paulo, junto com um cara do grafite de rua. 

O artista daqui, que está fazendo uma cópia desta pintura de Rubens, se chama José. É jovem. Fiquei um tempão vendo ele pintar, ainda na fase da grisalha, que é uma primeira parte da pintura feita apenas com uma ou duas cores. Ele está fazendo com siena natural, sombra natural e branco. O desenho está perfeito. Quando ele parou um pouco, fui até ele conversar. Me disse que Rubens fez esta grisalha mesmo, e que ele já estava quase começando a colocar as cores. Quantos dias de trabalho até agora? Uns oito, dez dias. Mais quantos para acabar? No lo sé, me respondeu sorrindo.

Ontem dei andamento à uma pintura que comecei a fazer aqui, já dentro da busca pelos valores altos, pela luz. O quadro está ainda inacabado, mas está aqui no meu quarto, me olhando brilhantemente e eu satisfeita com ele. Fase nova... Vamos ver... Não posso dar continuidade aqui, vou acabá-lo em casa, porque a tinta não seca a tempo de eu viajar. Ou talvez nem termine, deixe como está, para registrar uma viagem que foi tão importante para mim, de tantas descobertas!

E a saudade do Brasil só cresce! Mais dois dias e chego. E começa uma nova etapa da minha vida.

Comecei a pintar este quadro em Madrid, para terminar no Brasil.
Com o foco nos valores mais próximos da luz.
 

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Entre os mestres e suas pinturas

Frente do Museu do Prado
É claro que quando temos a oportunidade de ver tanta pintura de alta qualidade, tantos bons mestres juntos, de Rembrandt a Rubens e de Velázquez a Ribera, nascem dentro da gente muitos sentimentos, e um deles é de esperança: se nossa história humana foi permeada de eventos de grandeza em todos os sentidos, é porque trazemos latente em nossas almas essa capacidade imensa de expressão, que permanece viva porque faz parte de nós. E não, o mundo não está perdido!

"O gênio da pintura", obra de um pintor
espanhol do século XVI
Hoje no Museu do Prado, enquanto caminhava entre as centenas de pessoas que também foram para lá, de origens diversas (japoneses, franceses, chineses, alemães, brasileiros, espanhois), fiquei pensando: como é impressionante o poder da arte, que faz com que pessoas as mais diversas, de formações culturais tão diferentes, se unam em frente a um mesmo quadro abismados, curiosos, calados, contemplativos. "As Meninas" de Velázquez atrai multidões todos os dias. De crianças a adolescentes, de jovens a adultos e idosos, esta tela imensa (no tamanho e na grandeza) parece recolher dentro de si todos esses personagens. O quadro parece tomar 3 dimensões, e de repente somos parte daquela cena em torno da Infanta Margarida. O olhar do artista parece convidar a todos nós: entrem e se tornem parte da minha pintura junto com as donzelas, uma delas feia, do anão, do cachorro, de outros serviçais da corte de Felipe IV.

Homenagem a Velázquez
nos jardins do Museu do Prado
Em volta deste quadro, muitos outros. Nas salas diversas do museu, muitos quadros de Ticiano, Rubens, José Ribera, El Greco, Goya. Ahhhh Goya! Suas pinturas negras atingem o fundo da minha alma! O que são aquelas figuras escuras, feias, monstruosas algumas, inquietantes todas, que nos observam em cenas tão chocantes? O assassinato do 3 de maio, outro quadro grande de Goya, atrai nosso olhar para o rosto assustado, quase em pânico, do rapaz que vai ser fuzilado. De repente projetei neste rosto o rosto do meu sobrinho Rondineli que foi assassinado, não no dia 3 de maio, mas no dia 4 de maio deste ano! Ouvi seu grito quando o ladrão de celular atirou! E depois o silêncio... Da morte. Isto é Goya.

E El Greco de novo estava ali, muitos quadros dele. Havia um rapaz fazendo uma cópia em óleo da tela "O cavalheiro com a mão no peito". Estava lá com seu cavalete e sua palheta, que fiquei observando: branco de Titanio, amarelos de cádmio, vermelhos, terras, azuis e preto. Já tinha trabalhado bastante, se aproximava do final. Boa cópia. Atrás dele, estava me olhando um dos quadros de El Greco que eu acho de uma ternura incrível, o "Cavalheiro idoso". Que nos olha com olhar complacente, como se aguardasse que a gente falasse alguma coisa. Mas eu não queria falar nada. Hoje tive dificuldades para me manter andando nestes salões imensos, porque a gripe voltou com força. Se falasse ia tossir, incomodar o artista copista que tava tão concentrado na pintura.

Homenagem a Goya,
nos jardins do Museu do Prado
Sempre acontece que quando passo muito tempo olhando para estas preciosidades pictóricas, de repente um troço qualquer vai crescendo dentro de mim, e parece que eu cresço junto e nem vou cabendo mais de tanta vontade de correr e pintar! Hoje observei muito os negros de Velázquez e de Goya e de Greco. Mas também observei o trabalho com as carnações feitas por pintores como Rubens, por exemplo. Por outros também. Assim como os drapeados das roupas que se fazem apenas mudando o valor das cores. Vi um autorretrato de Anton Raphael Mengs, pintor alemão, que me impressionou muito o seu trabalho com contrastes quase extremos de temperatura. Numa camada anterior, um avermelhado que foi sobreposto com camadas frias de cinzas e verdes criando um efeito maravilhoso. Parecia vivo! Fiquei com vontade de experimentar isso.

Depois do almoço e de uma pequena siesta à moda espanhola, por causa da gripe, sai pra ir ver uma lojinha que tem numa rua transversal à que estou. Chama-se Calle de Peres Galdos e uma placa já tinha me chamado a atenção antes: Belas Artes. Um senhor me recebeu muito simpático e já foi me dizendo que aquelas marcas de tinta que eu estava olhando eram artesanais, feitas por sua família. Tudo tinha começado com seu pai, e a loja já tem uns 70 anos. Muitos artistas passaram por aqui, ele me disse. Até Antonio López. Dois pigmentos me chamaram a atenção: Tierra de Sevilla e Tierra de Cassel, que nunca vi para vender no Brasil mas sei que muitos pintores usaram. Mira este tierra, me disse o senhor. E pegou com o dedo um pouco do Tierra de Sevilla e completou: o vermelho inglês passa muito longe da beleza disso aqui! É muito bom para pintar a cor da pele, junto com verde terra. E com o Azul Cerúleo nosso dá uns tons belíssimos. Pronto, me convenci. Comprei. Nem eram caros, um tubo de 90 ml saiu por 9 euros, os de 60 ml por 6 euros. Comprei o Tierra de Sevilla e mais outros quatro. Ele me deu de presente um "rojo inglês". Agradeci. "Vale!" como dizem por aqui todo o tempo.

Para casa experimentar um pouco de tudo isso aí.

Museu do Prado
Museu do Prado

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Tiziano poeta

Danae, Ticiano, 1551-1553, óleo sobre tela, 192x114 cm, Apsley House, Londres
Danae, Ticiano, 1565, 129x181 cm, óleo sobre tela, Museu do Prado, Espanha
Tiziano Vecellio, ou simplesmente Ticiano (em nossa língua), pintor italiano que nasceu por volta de 1477 e morreu em 1576, continua impressionando todos os que amam a pintura. Ele é considerado um dos maiores expoentes da chamada Escola Veneziana e era chamado, pelos seus próprios contemporâneos, de “o sol entre as estrelas”, por causa da sua imensa versatilidade no manejo do pincel, criando obras-primas que atravessam séculos. Ele foi um dos primeiros pintores a buscar exprimir o essencial na pintura, valorizando mais as massas de cores do que as linhas do desenho.
Na fase mais amadurecida de sua carreira, Ticiano começou a experimentar pintar sem desenhos preparatórios, de forma mais rápida e, alguns diriam, imprecisa. Imprecisa no sentido de que ele abria mão da descrição absoluta e pincelava o que era necessário para expressar-se. Queria captar a realidade no momento preciso. Por isso, não há mais contornos definidos e as pinceladas são mais soltas e mais densas, aparecendo mais. Isso era absolutamente novo na pintura daquela época, e o resultado é mais movimento, uma pintura mais viva, diferente da execução detalhada que obedecia basicamente ao desenho.
Foi exatamente nesta fase, depois de 1550, que Ticiano criou um conjunto de 6 pinturas que ele mesmo denominou de “Poesias”. São obras de temas mitológicos que ele pintou para o rei espanhol Felipe II, provavelmente encomendadas por este. Estas “Poesias” demonstram como Ticiano criou sua própria interpretação de temas mitológicos como o de Cupido e Vênus, carregando as cenas de erotismo, de valorização do feminino e mostrando a sensualidade do corpo da mulher.
Perseu e Andrômeda, Ticiano, 1556, 183x199 cm
São estas “Poesias” que o Museu do Prado, de Madrid, Espanha, está mostrando ao público desde o dia 19 de novembro de 2014 até 1º de março próximo. Trata-se de: “Danae” (Londres, Apsley House), “Vênus e Adônis” (Museu do Prado), “Perseu e Andrômeda” (Londres, Coleção Wallace), “Diana e Acteão” e “Diana e Calisto” (National Gallery, Edimburgo e Londres) e “O rapto de Europa” (Isabella Stewart Museum de Boston).
O curador da exposição, Miguel Falomir, explica que nas cartas enviadas por Ticiano a Felipe II, o pintor chamou-as de “Poesias”, pois queria reinvindicar um antigo desejo dos pintores de se assemelhar-se aos poetas. Ele mesmo deu sua interpretação aos textos antigos. Na obra “Vênus e Adonis”, exemplifica o curador, o protagonista masculino tenta se livrar do abraço de Vênus, de costas para o observador. Esta cena é uma invenção de Ticiano, pois não se encontrava em nenhum texto, e foi motivo de inspiração para muitos escritores, entre os quais William Shakespeare.
Estas obras, antes da exposição, passaram por um processo de restauração dentro do Museu do Prado, dirigido por Elisa Mora, uma das especialistas do museu. O trabalho consistiu em eliminar tudo o que interferia na leitura correta das obras, realizando uma limpeza nos vernizes que já haviam oxidado. Também foram eliminados toques de re-pintura, realizados em anos anteriores.
Diana e Acteão, Ticiano, 93x107 cm
Esta é a primeira vez que as pinturas “Danae” e “Vênus e Adonis” se mostram lado a lado. Uma outra versão de “Danae” de Ticiano, do acervo do Prado, também se encontra na mostra. É uma “Danae” posterior, de 1565, que fazia par com “Vênus e Adônis” nas chamadas abóbodas de Ticiano no antigo Alcazar madrilenho. Foi Velázquez quem a adquiriu em sua primeira viagem à Itália, e é considerada mais erótica do que a versão que se encontra em Londres, na Apsley House.

Ticiano é um dos mestres da pintura ocidental. Mesmo passados exatos 438 anos de sua morte, sua obra permanece como exemplo e referência de grande altitude, pois em sua genialidade teve coragem de enfrentar suas próprias questões técnicas e se afastar do modo padronizado de pintura do seu tempo. Assim como Velázquez, assim como outros que vieram depois em vários países. O que nos faz refletir: não importa o modismo estético da época, importa a busca individual pela perfeição pictórica e pela liberdade de expressão a que esse caminho conduz.
Abaixo, mais algumas "Poesias" de Ticiano...
Vênus de Urbino, Ticiano, 1538, óleo sobre tela, 165x119 cm, Galeria degli Uffizzi, Florença

Vênus vendando os olhos de Cupido, Ticiano, 1565,
óleo sobre tela, 185x118 cm, Galleria Borghese, Roma

Vênus recreando-se com a música, Ticiano, 1550, óleo sobre tela, 222x138cm, Museu do Prado 
Vênus recreando-se com o Amor e a Música, Ticiano,
1555, óleo sobre tela, 218x150 cm, Museu do Prado 
O rapto de Europa, Ticiano, 205x185 cm, Museu Isabella Stewart, Boston
Vênus e Adônis, Ticiano, 207x186 cm, Museu do Prado
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segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

A palheta de Velázquez

Detalhe da obra As Meninas,
onde Velázquez se retratou
Aqueles que pintam, hoje em dia sabem a quantidade enorme de cores colocadas à disposição de qualquer palheta de qualquer um, seja estudante, seja profissional. Para cada pigmento vermelho, uma infinidade de variações que chegam às minúcias de cores chamadas de “tons de pele”; para cada amarelo, variações que vão do clássico amarelo de Nápoles, passando pelos cadmios e pelos cromos, sendo que marcas como a Winsor & Newton tem seus próprios amarelos. Mas o que pode ser uma grande facilidade para os pintores de hoje, pode se transformar nos piores pesadelos - ou nas piores obras - se o encanto consumista por tanta variedade se sobrepuser ao sempre bom e necessário costume do estudo pessoal. Todo artista necessita conhecer seus materiais de trabalho, e o conhecimento técnico deles tem grande responsabilidade no êxito de sua arte.


Ariano Suassuna retratado por mim,
num exercício com a Palheta de Apeles
(Branco, Amarelo Ocre, Vermelho, Preto),
óleo sobre tela, 40x60cm, 2014
 
Tenho feito alguns estudos com palheta reduzida, ou seja, pintando com poucas cores. Fiz 3 pinturas usando a chamada "Palheta de Apeles", o pintor grego da antiguidade que usava somente Amarelo Ocre, Vermelho, Branco e Preto. Comprovei que muito se pode conseguir com pouco, pois o que importa é o aprendizado da manipulação das cores, o domínio técnico das misturas. Mas como continuo intrigada com esse assunto, resolvi pesquisar como pintava um dos meus artistas preferidos: Diego Velázquez, o pintor espanhol.

Na minha busca por informações, fui ao site do Museu do Prado. Lá encontrei textos produzidos por Carmen Garrido Pérez, uma das funcionárias do museu. Ela é a chefe do Gabinete de Documentação Técnica, doutora em História da Arte pela Universidade Autônoma de Madrid e especialista em documentação físico-química para investigações técnicas sobre pinturas históricas. Escreveu vários livros e textos sobre o assunto. Um desses livros é o “Velázquez: técnica y evolución”, que se encontra esgotado. Mas encontrei também artigos publicados por ela, inclusive em PDF, que me trouxeram informações muito úteis, as quais compartilho aqui.

Uma das frases que Carmen repete em seus artigos, resume muito sobre o pintor espanhol. Diz ela: “Velázquez é um artista que pensa muito e pinta pouco, que descarta de sua arte o supérfluo para ficar sempre com o que é essencial”. E demonstra como ao longo de toda a sua vida o pintor sevilhano não usou mais dos que 16 cores em suas palhetas.

O bufão Dom Sebastião de Morra, 1645
Esta informação foi dada após muitos anos de estudos realizados sob o patrocínio do Museu do Prado, em seus laboratórios, a partir de experiências com Raios X e fotografias com luz infravermelha, além de outros instrumentos de medição científicos. O Gabinete de Documentação Técnica do Museu vem acumulando um grande arquivo, diz Carmen, de mostras de telas antigas e mais modernas e têm sido feito estudos muito aprofundados em obras de Zurbarán, Murillo e Velázquez.

Os dados recolhidos até agora, por esses estudos, abarcam cerca de 30 anos da carreira de Diego Velázquez, ainda faltando mais estudos sobre as etapas em que ele viveu em Sevilha e em sua segunda viagem à Itália. Mas, diz Carmen, as cores usadas por ele variaram pouco de um quadro a outro, incluindo o período em que residiu em Roma, de 1629 a 1631. Ela aponta ainda que há uma similaridade nos materiais artísticos usados por espanhois e holandeses, aproximando muito a prática técnica de Rembrandt com a de Velázquez.

As cores de Velázquez

Nos estudos de Carmen Garrido, baseados em micro-amostras de telas analisadas mediante dispersão de Raios X, ela identificou todas as cores que Velázquez teria usado ao longo de sua vida:

1 - Branco de Chumbo
2 - Amarelos - à base de Terras de Óxido de Ferro, Chumbo, Estanho, Antimônio e que hoje correpondem a: a) AMARELO DE CADMIO LIMÃO - b) AMARELO DE NÁPOLES (só usou uma vez) - c) AMARELO OCRE
3 - Vermelhos - foram detectados 3 nas análises, 01 de base de metal e 02 de terra: a) VERMELLION (base de Cinábrio, metal pesado de Sulfureto de Mercúrio) - hoje: VERMELHO DE CADMIO - b) TERRA DE SEVILHA - hoje: VERMELHO INGLÊS (Óxido de Ferro) - c) TERRA DE SENA QUEIMADA - base: Óxido de Ferro Laranja
4 - Marrons: a) TERRA DE SOMBRA NATURAL - b) TERRA DE SOMBRA QUEIMADA (bases: Óxido de Ferro e Manganês)
5 - Azuis - raramente Velázquez usou o Ultramarino, pois o preço do Lapislázuli era muito caro, pedra vinda do Afeganistão: a) AZUL DA PRÚSSIA (ou Azurita, base: Cianureto de Ferro) - b) AZUL DE COBALTO (Óxido de Cobalto ou de Alumínio) - c) AZUL ULTRAMAR
6 - Pretos - vários pretos extraídos da combustão de ossos e outros materiais. Hoje usamos o Preto de Marfim (Ivory Black)

Mais tarde ele também passou a usar um Terra Verde.
As meninas, 1656

No quadro mais conhecido deste pintor espanhol, se pode ver uma de suas prováveis palhetas, formada por 9 cores: Branco de Chumbo, Laranja (Vermellion de Cinabrio), Vermelho (Terra vermelha de Sevilha), Amarelo Ocre, Carmin, Sombra Queimada, Sombra Natural, Azul da Prússia, Preto de Fumo.

Entre seus pigmentos, Velázquez não introduziu substâncias químicas novas, e não aparece nenhum pigmento que ele já não tivesse usado, continua Carmen: “Sin embargo, en su manipulación de los pigmentos, se mostró un pintor ingenioso en un momento en que las novedades eran incontables a través de Europa”. E diz mais: “nos parece que uno de los aspectos más fascinantes de las prácticas de Velázquez fue su desviación de la teoría autorizada de su tiempo”.

Carmen Garrido diz que, salvo algumas exceções, Velázquez utilizou os mesmos pigmentos ao longo de toda a sua carreira, mudando apenas a maneira de misturá-los e de aplicá-los. Ele era “capaz de crear con sólo cinco o seis pigmentos una obra maestra”.


Menipo, 1639
As investigações técnicas sobre a obra de Velázquez no Museu do Prado têm revelado muito sobre a maneira de trabalhar de um dos maiores gênios da pintura mundial. A partir desses estudos, se tem visto que Velázquez escolheu cuidadosamente cada um dos materiais que usou para pintar, tanto por sua qualidade como por sua aplicação em cada momento. Assim, na medida em que sua técnica vai evoluindo, seus suportes e preparações de pigmentos também vão se modificando. “Los pigmentos, más o menos los mismos durante toda su carrera, irán variando en sus moliendas, en sus mezclas y en la manera de ser aplicados, ya que la evolución de su trazo así lo determina”, aponta Carmen.

Na época de Velázquez já era habitual para os pintores o uso das telas. Dependendo da etapa em que estava, ele escolhia como tecido o Linho ou Cânhamo com densidades diferentes. Ele sabia que estas texturas diversas alteravam a visão final da obra. De acordo com os efeitos óticos que ele desejasse, selecionava os suportes (telas), os pigmentos, a técnica e os recursos oportunos para conseguir materializar suas ideias.

Carmen Garrido, com sua experiência de décadas de trabalho em museus, diz que a maioria dos quadros que hoje vemos nesses espaços culturais já foram reentelados. Mas entre as obras de Velázquez do Museu do Prado existem oito com seus suportes originais, tal como o pintor os fez, o que possibilita uma grande quantidade de detalhes sobre seus métodos de trabalho, incluindo as pinceladas de provas, as costuras de pedaços de tecido adicionados, e as imprimações. “Además, estas pinturas conservan su capa pictórica en un estado próximo al de su ejecución, como puede verse en ‘La coronación de la Virgen’ o en el ‘Mercurio y Argos’”.

Uma vez colocado o tecido no chassi de madeira, era feita a preparação do tecido (muitas com cola de origem animal, para proteger o tecido da química dos pigmentos) e a imprimação. O objetivo da imprimação é o de servir de “fundo ótico” para o quadro e aos efeitos coloridos da pintura. Segundo Francisco Pacheco (pintor, escritor e sogro de Velázquez), na primeira etapa de sua carreira ele utilizava “Terra de Sevilha”, um Terra de tom ocre médio, como imprimação.

Já em Madrid, para onde se mudou em 1623, nosso pintor abandona os materiais sevilhanos e começa a trabalhar com um tecido com diferentes tipos de densidades e um trançado mais fino. Sobre ele, aplicava uma dupla camada de base, a primeira na cor branca e depois uma imprimação feita com Terra Vermelha, chamada “tierra de Esquivias” pelos pintores da escola madrilenha. Mas ele também adotou a forma italiana das preparações de tela brancas mais ou menos manchadas com cinzas ou em ocre, o que dava uma combinação perfeita para conseguir os efeitos de superfície, de luminosidade dos fundos e de suas cores.

Ainda segundo Carmen Garrido Pérez, durante a primeira viagem à Itália, Velázquez pintou dois grandes quadros: “A túnica de José” e “A Forja de Vulcano”. O primero, que se encontra no Real Monasterio del Escorial, é uma obra de experimentação com relação às telas (tela napolitana pavimentosa), os fundos (Terra napolitana) e a introdução de alguns pigmentos, como o Amarelo de Nápoles, que Velázquez não usou nunca mais. 


A Forja de Vulcano (1630), cuja imprimação
Velázquez fez só com Branco de Chumbo
Mas foi em “A Forja de Vulcano” que o pintor encontrou o caminho por onde seguirá desenvolvendo sua pintura nos anos posteriores. Sua preparação, continua descrevendo Carmen, foi aplicada com uma espátula e o Branco de Chumbo substituiu as imprimações anteriores feitas com os Terras. O Branco de Chumbo é muito opaco e denso, criando com isso um efeito ótico muito luminoso, observa ela. Velázquez dava muita importância a esses fundos bem preparados, o que se pode ver através desses exames radiográficos que mostram a evolução do pintor, tanto com os materiais como com a forma de aplicá-los, o que lhe dá uma identidade pessoal.

Carmen também observou, a partir de seus estudos técnicos, que salvo uma ou outra exceção, Velázquez nunca volta atrás em sua evolução. Quando adota um novo tipo de tela, algum material ou uma forma concreta de aplicá-los, “deixa de utilizar o anterior”. Por sobre as imprimações, ele fazia um esboço com poucas linhas para situar a composição, que também apareceu após os exames com reflectografia infravermelha. Além disso, ele "pinta siempre a la “prima”, aunque en su mente ha desarrollado con anterioridad la idea de lo que quiere llevar al lienzo. Si algún detalle no le satisface, lo corrige superponiendo el cambio en su trabajo directo sobre el cuadro”.

O espelho de Vênus, 1650
A pesquisadora espanhola também observa que os pintores do século XVII fabricavam suas cores misturando pigmentos de origem orgânica, como as lacas, ou os de origem inorgânico, como os minerais, com aglutinantes proteicos e substancias oleaginosas. As moagens e as misturas eram feitas nos ateliês,  procurando sempre a máxima estabilidade dos materiais. Velázquez sempre empregou pigmentos de boa qualidade e óleos preparados e depurados. Em vista desse cuidado, suas pinturas, apesar do tempo passado, não amarelaram e nem escureceram em excesso, conservando sua transparência e colorido. Em suas misturas, a proporção de aglutinantes como colas ou ovos, e dos óleos, eram determinadas pelas transparências que ele queria alcançar. 

A pintura de Velázquez é resultado “de un largo proceso intelectual”, afirma a pesquisadora. “Cada vez, con menos materia hacía más. Pensaba mucho y pintaba poco, veía el mundo con ojos nuevos y sólo una técnica original como la suya puede transmitirnos su original visión de las cosas, por esto es un gran innovador del arte de la pintura”. 

Como disse Rafael Mengs, no século XVIII, “Velázquez não pintava com os pincéis, pintava com a intençao”. Era um pensador, sobretudo.


Cores prováveis usadas por Velázquez, em sua denominação atualizada (o Branco de
Chumbo foi substituído pelo de Titanio, por causa da alta toxicidade do pigmento,
assim como hoje em dia é mais usado o Preto de Marfim. Os Cadmios são pigmentos
mais modernos, mas equivalentes aos usados no passado)

terça-feira, 25 de março de 2014

El Greco de Toledo

"Vista de Toledo", 1596-1600, Metropolitan Museum of Art, Nova York

Neste ano de 2014, a arte espanhola rememora os 400 anos da morte de um de seus artistas mais importantes, dentre os muitos pintores espanhois: El Greco. Será feita na cidade de Toledo, Espanha, a maior exposição de sua obra em todos os tempos, com mais de 100 trabalhos de El Greco provenientes de mais de 29 cidades do mundo.

Um provável autorretrato de 1503
Domenikos Theotokopoulos, que ficou conhecido para o mundo da arte como El Greco, nasceu na cidade grega de Creta em 1541 onde viveu até os 26 anos de idade. Nesta ilha grega ele era um pintor de ícones pós-binzantinos. Após esse período, viajou à Itália onde viveu por 10 anos, primeiro em Veneza e depois em Roma. A partir de 1577, mudou-se difinitivamente para a cidade espanhola de Toledo, perto de Madrid.

Sua formação pictórica foi bastante ampla. Desde as primeiras lições sobre a arte bizantina até a passagem dele por Veneza, onde conheceu a obra dos maiores mestres do Renascimento, em especial a de Tiziano. Em Veneza ele aprendeu a dominar a técnica da pintura a óleo e sua gama de cores. Depois, em Roma, conheceu a obra de Michelangelo. Sua obra, pode-se dizer assim, é o resumo da influência recebida nesses lugares, e que traz uma característica bastante pessoal, com suas figuras alongadas e suas cores densas.

El Greco compôs desde grandes quadros para os altares de igrejas, assim como pinturas para conventos e mosteiros, e também retratos, que são considerados como de alto nível. Na primeira fase de sua vida na Espanha, na pequenina cidade de Toledo, nota-se bastante a influência dos mestres italianos. Mas aos poucos, El Greco foi evoluindo para um estilo pessoal muito próprio: figuras delgadas e afinadas, uma iluminação intensa, figuras de grande expressão. Durante muito tempo sua obra foi esquecida e tratada como de “menor” qualidade, e ele mesmo tratado como um excêntrico, quase marginal na história da arte. Até que foi redescoberto no século XIX e ser hoje considerado como um dos grandes pintores do mundo.

Detalhe de "Cristo abraçado à cruz", 1580-85
Apesar de El Greco ter vivido a maior parte de sua vida em Toledo, nunca foi feita uma mostra de sua obra nesta cidade. Em 1902 foi feita uma primeira exposição sobre sua obra no Museu do Prado, em Madrid, sendo seguida depois por inúmeras exposições feitas em vários lugares do mundo. Mas em Toledo, esta é a primeira vez.

A mostra, intitulada “El Greco de Toledo” terá como sede principal o Museu de Santa Cruz, mas se espalhará por vários lugares da cidadezinha, conhecidos como “Espaços Greco”: a sacristia da Catedral de Toledo, a Capela São José, o convento Santo Domingo el Antiguo, a Igreja de São Tomé e o Hospital Tavera. Todos esses lugares conservam as telas originais do pintor, permitindo que esta exposição tenha um caráter singular e irrepetível fora de Toledo.

A mostra vai percorrer a atividade de El Greco desde Candia, em Creta, passando por Roma e Veneza. Na parte que concerne à influência recebida dos pintores italianos, em especial Tiziano e Tintoretto, será dada ênfase ao tratamento dado à luz e à sombra.

Também mostrará seu trabalho como retratista, o único que lhe deu reconhecimento e fama daqueles que viveram em seu próprio tempo, mesmo que já se diferenciasse do tipo de retratos que eram pintados na Espanha dos tempos do rei Felipe II.
Mas a exposição também traz de diversos países e museus, as obras de El Greco que foram sendo adquiridas e levadas para fora da Espanha: Entre elas: Vista de Toledo (Nova York, EUA  - The Metropolitan Museum of Art), São Martin e o mendigo (Washington, EUA - The National Gallery), Cristo na Cruz com dois ladrões (Paris, França - Museu do Louvre), São Lucas pintando a Virgem (Atenas, Grécia - Benaki Museum), A Adoração dos pastores (Roma, Itália - Galleria Nazionale d´Arte antica Palazzo Barberini), São Pedro e São Paulo (São Petersburgo, Rússia - The State Hermitage Museum) e o Retrato de um escultor (Genebra, Suiça - Coleção particular), entre outros.

"Cavalheiro com a mão no peito", cerca de 1580
El Greco se instalou em Toledo a partir de 1585. No mesmo ano, um teórico da arte italiano , Federico Zuccaro, vai visitar o pintor e leva para ele de presente uma cópia do livro de Giorgio Vasari “Vida dos pintores”. Neste livro, El Greco fez diversas anotações de seu próprio punho e vê-se que foi objeto de muitas de suas reflexões sobre a pintura.

El Greco morava numa casa que tinha sido emprestada a ele pelo Marquês de Villema. Na verdade, uma mansão enorme, que lhe dava muitos gastos na manutenção. Seu ateliê mantinha uma produção contínua e ele sempre recebia muitas encomendas, especialmente para decorar igrejas, conventos e palácios. Muitos retratos foram encomendados a ele. Seu filho, Jorge Manuel, era seu assistente e também pintor. Na mesma mansão moravam, além do pai e do filho, a mãe dele - Jerônima de las Cuevas - assim como diversos ajudantes de seus ateliê. A casa era frequentada por um grupo mais restrito de seus amigos e de eruditos e humanistas da cidade, professores da universidade de Toledo, muitos deles retratados por El Greco. Poucos deles eram ligados à nobreza.

"A fábula", cerca de 1600
Atualmente, uma das grandes especialistas na obra de El Greco é Maria Leticia Ruiz Gómez, chefe do Departamento de Pintura Espanhola Anterior a 1700 do Museu do Prado. Ela está à frente de todo esse trabalho de mostrar ao mundo a importância deste pintor, sendo uma dos curadores da maioria da exposições que acontecerão este ano na Espanha. Em um dos textos de divulgação de uma das mostras, intitulada “El Greco: Arte e Ofício”, Leticia Ruiz Gómez diz:

“El Greco é, sem dúvida, um caso único de personalidade artística em contínua evolução, um imenso criador cuja profunda originalidade está presente em sua capacidade para absorver fórmulas e modelos de outros até convertê-los em ícones únicos e inesquecíveis.

Porém, além de conceber a Arte com letra maiúscula, a essência mesma da criação artística, Domenikos Theotokopoulos foi mestre de um ateliê complexo que precisava dar saída comercial a boa parte das encomendas de uma numerosa e heterogênea clientela, para fazer sua arte rentável.

A abertura de um ateliê estável na própria casa do pintor o obrigou a uma dinâmica criação pictórica complexa, da qual El Greco se ocupou pessoalmente das obras mais importantes, assim como fazer estudos para as composições mais solicitadas, intervendo na elaboração de réplicas e de cópias, participando em diversos graus do trabalho em seu ateliê.

Alem disso, teve que lutar para conseguir a autonomia que gozavam os artistas em Creta e na Itália, numa Espanha onde as práticas artísticas ainda estavam ligadas ao mundo artesanal, com restrições que sempre lhe chocavam.

Refletir e mostrar esse complexo sistema de criação artística, englobando as obras mais importantes de toda a produção do ateliê de El Greco, é o propósito desta mostra”.

Domenikos Theotokopoulos - El Greco - morreu em Toledo em 1614.

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Site com toda a programação de exposições na Espanha para 2014:

http://www.elgreco2014.com/

"A morte de Laocoonte", interpretação de El Greco com Toledo ao fundo, 1614

sexta-feira, 7 de março de 2014

Uma trilha sonora para o inferno?

Jardim das Delícias, Hieronymus Bosch, 1503-1504, Museu do Prado, Madrid, Espanha


Retrato de Hieronymus Bosch,
anônimo, pintado por volta de 1575
Hieronymus Bosch, célebre pintor do Renascimento, tem sido citado diversas vezes nos últimos dias depois que uma estudante da Universidade Cristã de Oklahoma, EUA, resolveu decifrar as notas musicais que o pintor inscreveu na bunda de uma de suas figuras contidas no célebre quadro “Jardim das Delícias”.

Amelia Hamrick (nome da estudante) resolveu analisar o tríptico pintado por Bosch e viu que em uma das figuras dispostas no local onde seria o “inferno” havia uma inscrição de notas musicais. Ela resolveu transcrever essas notas e tocá-las para ver o resultado, que pode ser ouvido num vídeo divulgado no Youtube (veja abaixo).


Detalhe do "Jardim das Delícias"
Curiosidades e brincadeiras à parte, o pintor que teria pensado numa música para o reino de Hades, era muito sério. Este quadro - “Jardim das Delícias” - se encontra no acervo do Museu do Prado em Madrid. Foi pintado em 1504 e descreve a história da criação e os reinos dos céus e dos infernos. Mas essa pintura também representa simbolicamente as angústias e superstições das pessoas que viviam na mesma época do pintor holandês. Ele é o maior dos quadros pintados por Bosch e o mais intrigante. É composto de três partes, por isso chamado de tríptico.


Ampliação do detalhe
A primeira parte representa o Paraíso, expresso em cores claras em tons de verde, azul, amarelo e ocre. Tudo parece tranquilo, harmonioso. A parte central é uma verdadeira explosão de cores vivas e de figuras nuas, parecendo mostrar um paraíso um pouco mais voluptuoso. Na terceira parte do tríptico, as cores são mais escuras como preto, azul escuro e cinza, e diversos instrumentos musicais surgem como se fossem instrumentos de tortura, em meio a cenas de crimes, de guerras e de incêndio, a própria imagem do caos. Numa das figurinhas que se encontram embaixo de uma espécie de violoncelo e de uma harpa, Bosch tatuou em sua bunda uma anotação musical.

Vamos ver quem foi esse pintor que há 600 anos apresentava uma pintura tão intrigante.

Seu nome verdadeiro era Jeroen Anthonissen van Aeken e nasceu em 1450 na Holanda, num lugar chamado Hertogenbosch, numa família modesta, cujo pai e avô foram também pintores. Quase todos os membros de sua família foram pintores, incluindo seu irmão mais velho Goessen. Por isso acredita-se que ele tenha recebido sua formação no próprio estúdio do pai ou do avô.


"Julgamento", 1476-1516
Mas Bosch se casou com uma moça da rica aristocracia em 1478, e por causa disso foi aceito como “membro notável” da Confraria de Nossa Senhora, uma sociedade religiosa fundada em 1318, que era dedicada ao culto da Virgem Maria. Bosch vivia então uma vida tranquila, entre sua casa, seu ateliê e a Confraria. Logo seu nome passou a ser conhecido longe de sua terra natal.

Desde 1490 ele passou a assinar seus quadros como “Hieronymus Bosch”, sendo que o “Bosch” seria uma referência à sua terra de nascimento, Hertogenbosch.

A partir de suas leituras da Bíblia e dentro da atmosfera de misticismo que reinava em toda a Idade Média, Bosch abandonou a iconografia tradicional desde o começo de sua pintura para buscar representar coisas que seriam “sacrílegas” e pecaminosas. A danação infernal era um tema de grande inspiração para ele. Mas tudo se misturava, céus e infernos, e ele também não deixou de satirizar a moral da época. Bosch parecia se preocupar com a ideia da condenação eterna para a humanidade que vivia em pecado. Além do “Jardim das Delícias”, onde ele pintou o inferno, fez também o “Os sete pecados capitais” entre 1475-1480.


"Dois monstros", desenho feito por Bosch
com pena e tinta marrona sobre papel
No começo do século XVI, Hieronymus Bosch fez uma viagem à cidade italiana de Veneza, que lhe influencia no sentido de passar a pintar quadros com mais espaços e paisagens, que ele inseriu em suas telas representando a vida de santos. Por volta de 1510 havia surgido uma nova forma de pintar figuras nos quadros: aquelas que apareciam com somente a metade dos corpos, inclusive em primeiro plano.

O estilo de Bosch é basicamente caracterizado por apresentar personagens caricaturizados e figuras que pertenciam ao repertório imaginativo da Idade Média. Seu estilo foi imitado depois por vários artistas, incluindo Pieter Brueghel, o Velho, além de ter influenciado até mesmo a pintura expressionista do começo do século XX, assim como os surrealistas.

Por outro lado, pintores alemães como Martin Schongauer, Matthias Grünewald e Albrecht Dürer influenciaram a obra de Bosch.

Além de sua religiosidade voltada ao culto de Maria, especula-se também que ele teria participado de seitas que se dedicavam à prática do ocultismo. Mas não se tem prova disso porque pouco se conhece sobre sua vida. Mas em alguns de seus quadros se encontram símbolos ligados à alquimia, assim como cenas que parecem ter sido retiradas de seus sonhos ou pesadelos. Vale lembrar também que o ano de 1500 representava para as pessoas do século XV o ano do fim do mundo, quando a besta do Apocalipse seria solta sobre a terra e Deus iria julgar os bons e os maus, enviando estes últimos para queimar eternamente nas chamas do inferno.

O Museu do Prado possui a maior coleção das pinturas de Bosch, pelo fato do rei Filipe II da Espanha ter sido um ávido admirador e colecionador de obras do pintor holandês. Isso é muito curioso, pois parece combinar muito com a cultura e o espírito espanhol que gerou um Miguel de Cervantes e artistas como Francisco Goya, El Greco e mesmo Salvador Dali. No Prado podem ser encontradas obras como “O carro de feno”, “O jardim das Delícias”, “Os sete pecados capitais”. Em nosso Masp - Museu de Arte de São Paulo - podemos ver um suposto estudo seu para o quadro “As tentações de Santo Antão”, cujo original se encontra em Lisboa, no Museu Nacional de Arte Antiga. Na Espanha, Bosch é também conhecido como “El Bosco”.

Bosch entrou para a história como “criador de demônios” e pintor satírico. Mas sua importância é particularmente importante por ter inovado a pintura de seu tempo, criando novas composições.

Hieronymus Bosch morreu em agosto de 1516.


"As tentações de Santo Antão", Bosch, óleo sobre madeira, entre 1495-1515


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Ouça a música "copiada" por Amelia Hamrick: