Mostrando postagens com marcador Ilya Repin. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Ilya Repin. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

A arte russa do século XX - PARTE I

A Revolução russa de 1917, cujos ecos de seus efeitos voltam a ser ouvidos 100 anos depois, não é só a história de um poderoso movimento político que mobilizou extensas forças sociais, econômicas e mesmo ideológicas. É a história de um dos mais extraordinários movimentos de arte do século XX. Antes, durante e depois da Revolução os artistas russos expressaram, com suas obras, a intensidade dos acontecimentos que moviam seu país, a partir de sua visão pessoal e de seu mundo subjetivo profundamente conectado com seu tempo.


Ícone "A Trindade", Andrei Rublev
A história da arte russa começa no século XIV, com a pintura de ícones. Na concepção da ortodoxia cristã, o ícone não é uma simples pintura, como ocorre na arte ocidental; mais do que uma representação figurativa, é a incorporação da energia da divindade, uma espécie de teofania (revelação) do divino. Por isso, os primeiros pintores eram monges, e um deles se destacou na história: Andrei Rublev, pintor peregrino que pintava ícones para igrejas e mosteiros de diversas cidades, entre eles o mais famoso, “A Trindade”, feito por volta de 1410. A vida deste monge-pintor foi contada pelo cineasta Andrei Tarkovsky, num filme lançado em 1966 (leia mais sobre os ícones aqui).
Durante 400 anos a pintura russa era basicamente a religiosa. Em todo o território, os ícones eram parte da vida do povo, cujas casas continham seu próprio altar com seu próprio ícone, a “janela” que apontava para o mundo espiritual.
Até que em 1682, o homem que tinha mais de dois metros de altura, Pedro o Grande, tomou posse como czar do império. Em longas e extenuantes viagens a países europeus, Pedro se deparou com um mundo diferente da sua Rússia atrasada, basicamente agrícola. O czar se apaixonou pelo que viu e desde então não poupou esforços para transformar a Rússia em um país moderno, nos moldes europeus. Como parte de seu plano de modernização fundou em 1703 a cidade de São Petersburgo, como uma espécie de janela que se abria para o Ocidente. Trouxe de fora engenheiros, artesãos diversos, artistas, arquitetos e mão de obra especializada de vários países para fazer emergir, por sobre uma região pantanosa, aquela que seria a cidade-símbolo dos sonhos da nova Rússia. Domou as margens do rio Neva, recortou canais, traçou linhas retas para o curso das águas, submetendo a natureza selvagem à sua vontade de progresso e modernização.
"A rainha Catarina II", Fedor Rokotov, 1763
Oitenta anos depois, surge a figura de Catarina II, esposa de Pedro III, que assumiu o trono russo em 1762. Mas ela, através de um golpe de Estado contra o próprio marido, assumiu o poder no mesmo ano. Catarina II expandiu ainda mais o império russo, que continuou a se modernizar. Era uma mulher de visão ampla e trocava correspondências com os intelectuais iluministas da Europa Ocidental, entre eles Voltaire e Montesquieu. Sob o governo dela, os nobres adquiriram ainda mais poder e a imensa maioria da população vivia em extrema pobreza. Os senhores de terras submetiam os camponeses a condições de vida precárias e a servidão era generalizada.
Catarina, em contato com a pintura europeia, foi adquirindo muitas obras de arte, montando um acervo pessoal que depois passou à administração do Museu Estatal. A nobreza russa também passou a comprar e a encomendar pinturas aos artistas europeus ocidentais. Foi então que jovens russos começaram a ser enviados à Itália e à França para aprenderem a arte da pintura como era feita naqueles países. Voltando a seu país, eles passaram a receber encomendas dos nobres e com isso a pintura russa foi tomando outro caminho. Na sequência, Catarina II inaugurou a Academia de Belas Artes de São Petersburgo, que passou a dar uma sólida formação artística às gerações de jovens que passaram a ter cada vez mais destaque na pintura, gerando artistas do nível de Ilya Repin, por exemplo.
"Quarto do artista em Ritterstrasse",
Adolf Menzel, 1847
No Ocidente europeu, cujo desenvolvimento corria a passos largos com a Revolução Industrial e todas as mudanças que ela trouxe à vida das nações, pensadores alemães defendiam ideias que eram totalmente contrárias aos franceses do Iluminismo, defensores da racionalidade. Friedrich Schlegel, Novalis, Friedrich Schelling e outros, reunidos em torno da revista “Atheanum”, lançaram, em 1797, o movimento que ficou conhecido como Romantismo. Essas ideias se expandiram por toda a Alemanha, influenciando poetas e escritores como Goethe, e músicos como Beethoven e Brahms. O Romantismo também alcançou as artes plásticas, em especial as escolas de Berlim e Frankfurt.
O Romantismo alemão enfatizava o retorno à espontaneidade das emoções, uma poesia voltada para a natureza, humana e selvagem, um retorno às origens da tradição nacional, uma valorização da vida simples e local.
Havia chegado o tempo do reinado de Nicolau I, que havia tomado posse em 1825. Este czar, interessado em afastar da Rússia as ideias dos revolucionários franceses, considerou melhor enviar os jovens russos a estudar na Alemanha, cujas ideias - assim pensava ele - não traria risco algum ao seu poder. De fato, os jovens russos entraram em contato com essas ideias que fervilhavam em meio às ruelas de Berlim, e se entregaram a elas. Essa convicção romântica de que todo homem tinha uma missão a cumprir, criou um entusiasmo generalizado entre os intelectuais e os artistas. A paixão por essas ideias moveu esses jovens do século XIX, em um momento em que profundas mudanças estavam em gestação.
Retrato de Dostoievsky, V. Perov, 1847
Para esses intelectuais e artistas, não era possível separar a obra de arte do homem que a produziu; seria impossível que uma mesma pessoa tenha um tipo de personalidade como eleitor, outra como pintor e uma terceira como marido ou mulher. “O homem é indivisível”, diziam eles. Havia então uma radical noção de integridade, de total compromisso com as ideias, levadas às últimas consequências. Dentro desses pensamentos, o artista era uma espécie de ser sagrado, com uma alma única, um ser dotado de uma aptidão especial, com dons que o diferenciavam do restante. Por isso, ele muitas vezes se sentia um solitário.


- "Torturava-me então mais uma circunstância - diz o personagem do "Memórias do Subsolo", de Dostoievski - o fato de que ninguém se parecesse comigo e eu não fosse parecido com ninguém. Eu sou sozinho e eles são todos”.


Esse espírito combinava com o cenário de mudanças que se via na Rússia, não somente na vida cultural, mas também na política. Aquela efervescência de pensamentos e aquele momento de alta criatividade e produtividade artística puseram em circulação ideias destinadas a exercer efeitos cataclísmicos não só na própria Rússia, mas muito além de suas fronteiras.
O ambiente dentro da Academia de Belas Artes de São Petersburgo, assim como em todas as instituições estudantis e organizações de intelectuais, era palco do intenso debate que ocupava as mentes e as vidas da intelligentzia russa. Em 1863, treze estudantes liderados por Ivan Kramskoi abandonaram a instituição e formaram a “Associação Livre dos Artistas”. Eles rejeitavam os modelos acadêmicos, as regras e convenções da técnica ensinada naquela escola, importados da Academia Francesa. Para eles, a pintura que se ensinava lá nada tinha a ver com a realidade russa. Era o efeito da luta ideológica entre Eslavófilos e Ocidentalistas, assim como da contenda entre as ideias iluministas e românticas. E, obviamente, fruto também do ideário socialista que já havia alcançado a intelectualidade naqueles tempos.
"Autorretrato com cachimbo",
Gustave Courbet, 1849
Nesse mesmo período, em vários países europeus a pintura realista começava a abrir caminho para formas mais livres de pintura, que desaguou no movimento Impressionista. Na França, Gustave Courbet inaugurou sua exposição individual intitulada “Realismo”, como protesto contra a arte acadêmica exposta no Salão de Outono. Nos principais países europeus, pintores de alto nível técnico começaram a se destacar nas artes, como referências da pintura realista: Adolph Menzel, na Alemanha; Giovanni Boldini e os “Macchiaioli” na Itália; Mariano Fortuny, na Espanha; Anders Zorn, na Suécia; Camille Corot, Courbet e os Impressionistas, na França; John Singer Sargent, na Inglaterra...
Essa movimentação toda causava furor artístico entre aqueles pintores russos, que pensavam: se tinham que se inspirar em algum modelo europeu, era nesses realistas. Em especial citavam Courbet, Menzel, Fortuny, Zorn… O Grupo dos Treze resolveu então sair a campo, viajando pelo interior russo, levando consigo suas exposições e captando temas para seus quadros a partir da vida real que encontravam. Passaram a se intitular “Os Itinerantes”. Entre eles estava um dos mais importantes pintores realistas russos do século XIX, Ilya Repin.
Seu quadro mais famoso, “Os rebocadores do Volga”, segundo ele mesmo afirmou era a primeira e mais poderosa voz de toda a Rússia, do seu povo oprimido, cujo grito era reconhecido em cada canto onde se falava o idioma russo. Esse quadro se tornou um dos principais símbolos da opressão czarista sobre o povo.
Os Itinerantes” retratavam a vida dos camponeses pobres, mas também a beleza da paisagem rural, o dia a dia das pessoas, seu folclore, a força do caráter do homem e mulher russos. A presença do grupo na cena cultural era uma clara condenação do autoritarismo czarista e acabou sendo um meio de divulgação dos ideais democráticos, além de permitir uma educação estética para a população que podia ver de perto seu trabalho artístico.


"Os rebocadores do Volga", Ilya Repin

------------------------
CONTINUA NA PRÓXIMA SEMANA
------------------------

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Os Itinerantes

Tempo de colheita, Grigoriy Myasoyedov, óleo sobre tela, 1887
Em 1863, um grupo de quatorze alunos decidiu deixar a Academia Imperial de Belas-Artes de São Petersburgo. Eles consideravam as regras da Academia restritivas e os professores conservadores. Também não concordavam com a separação rigorosa entre alunos com mais talento e os com menos, nem com a competição que era muito incentivada pela direção e professores. Eles defendiam que a arte deveria ser levada ao povo e deveria refletir a sociedade russa e não os padrões acadêmicos de então.

Retrato de Fyodor Dostoyevsky,
Vasily Perov, óleo sobre tela, 1872
Esses princípios da Academia ainda se regiam pelas convenções do academismo neoclássico, em grande parte inspirado pela arte italiana, assim como pela academia francesa. Para a Academia de São Petersburgo, além disso, a "grande pintura" era a histórica, gênero mais prestigiado, com temas geralmente retirados da Bíblia, da mitologia greco-romana e dos grandes eventos da história antiga. Somente se mantendo dentro destes limites é que os alunos podiam concorrer à medalha de ouro na competição anual, que dava direito a uma bolsa de estudos no exterior. Outros temas, como a paisagem e natureza-morta eram considerados menores e impróprios para o artista educado lá.

Por exemplo, dois artistas - Mikhail Shibanov e Nikolai Argunov - já haviam tentado pintar outras temáticas, como cenas com camponeses e as vilas do interior, mas encontraram a oposição de professores e da direção da Academia. Em 1840 outro artista, Pavel Fedotov, realizou estudos satíricos sobre a vida burguesa, obtendo mais sucesso que seus colegas e obrigando a Academia a fazer algumas concessões. Algumas obras nesse gênero foram premiadas, o que incentivou outros alunos a se dedicar a uma pintura do cotidiano, mas com avanços mínimos.

Mas em 1861, Vladimir Stasov levantou sua voz em defesa de mais liberdade na Academia. Ele era um influente crítico de arte e não apenas apoiou as inovações que começaram a surgir como criticou diretamente o conservadorismo dos acadêmicos. Também passou a defender que a pintura se voltasse para a realidade nacional e para temas populares.

Pintura de Ivan Kramskoi
Em 1863, veio a gota d’água que faltava para o rompimento definitivo com a Academia. Treze artistas foram selecionados para concorrer à medalha de ouro, conforme as regras do concurso. Anualmente, os jurados sempre determinavam qual seria o tema sobre o qual os artistas deveriam trabalhar. Naquele ano, diferentemente dos anteriores, os jurados resolveram deixar flexível a escolha do tema por parte dos estudantes, mas que levassem em conta seus próprios sentimentos. Vendo que os jurados alargavam seus critérios, os treze artistas solicitaram que fosse dada liberdade completa de escolha do tema. Pedido rejeitado, os jurados resolveram reagir de forma contrária e voltaram às regras antigas do concurso, com tema único, como sempre acontecera. O assunto escolhido foi: "A festa de Odin no Valhala". Revoltados, os pintores, liderados por Ivan Kramskoi, abandonaram a competição e a Academia, formando a Associação dos Artistas Livres.

Mas eles não estavam apenas se insubordinando. Sua rebeldia era também reflexo de suas convicções de que o artista deveria poder escolher seus assuntos de acordo com suas preferências e sua visão de mundo, sem ter de prestar contas disso a instâncias superiores.

Em 1870, esta organização - já ampliada com a presença de outros artistas - foi denominada “Sociedade de Exposições Itinerantes de Obras de Artistas Russos” (Peredvizhniki) - ou simplesmente “Os Itinerantes”. Eles queriam dar às pessoas das províncias a chance de seguir de perto as conquistas da arte russa e ensinar as pessoas a apreciar a arte. A sociedade manteve-se independente de apoio oficial, mas recebeu incentivos da parte de industriais, como Pavel Tretyakov, um grande colecionador de obras de arte, que incentivou exposições dos trabalhos desses artistas e deu-lhes importante suporte material.

Os objetivos do grupo eram: educar o povo possibilitando que entrasse em contato com a nova arte russa, formar um novo gosto e conceito de arte, e formar um novo mercado para essa arte nova.

É bom lembrar que, em Paris, Gustave Courbet se revoltou contra a Academia Francesa e inaugurou sua exposição individual intitulada "Realismo"; que Anders Zorn, pintor realista sueco, já causava admiração por onde passava; que Mariano Fortuny, na Espanha, já implementava os conceitos realistas em sua pintura; que Giovanni Boldini, na Itália, se juntara aos Macchiaioli e era um dos líderes deste grupo; que Adolph Menzel também rompera com as regras da academia alemã e se voltava ao realismo; que John Singer Sargent, um dos maiores gênios realistas do século XIX, já encantava e intrigava a todos com sua grande qualidade técnica... Que o Realismo abria espaços amplos para as vanguardas europeias do século XX... E que exercia grande influência sobre os artistas russos, em especial Courbet, Zorn e Fortuny...

As lavadeiras, Abram Archipow,
óleo sobre tela,1901
A primeira exposição pública de "Os Itinerantes" aconteceu em 1871 na própria Academia, com grande repercussão. Foi bem recebida até mesmo por críticos contrários, como Mikhail Saltykov-Shchedrin, sensibilizado com a ideia de que esta mostra deveria não só ser apresentada em São Petersburgo e Moscou mas também deveria percorrer outras cidades do interior. Foi a primeira vez que uma exposição de arte pode ser vista por um público mais amplo, pois até então a maioria das pessoas somente conheciam as novidades da pintura vendo reproduções em jornais, catálogos e gravuras. Esta exposição também foi um sucesso comercial; a própria família imperial adquiriu muitas obras. O colecionador Pavel Tretyakov, que já apoiava o grupo, adquiriu muitas obras.

“Os Itinerantes” foram influenciados pelas ideias de intelectuais como Vissarion Belinsky e Nikolai Chernyshevsky, críticos literários que defendiam idéias liberais. Belinsky dizia que a literatura e a arte deveriam ter responsabilidade social e moral. Como a maioria dos eslavófilos - movimento que defendia a tradição e a cultura russa - Chernyshevsky apoiou ardentemente a emancipação dos servos realizada em 1861. Na época, haviam 20 milhões de pessoas vivendo como servos. Para ele, a servidão, a censura da imprensa e a pena de morte eram influências ocidentais. Ele mesmo tinha sido censurado em seus escritos, por causa de seu ativismo político. Chernyshevsky era considerado um socialista utópico. Escreveu bastante sobre o papel da arte, o que influenciou os artistas Itinerantes.

“Os Itinerantes” retrataram aspectos multifacetados da vida social, muitas vezes criticando as injustiças. Pintavam  não apenas os temas da pobreza, mas também a beleza do estilo de vida do povo; não só seu sofrimento, mas também a força de seus personagens. “Os Itinerantes” condenavam o poder aristocrático e o governo autocrático em sua arte humanista. Retrataram os movimentos de emancipação, a vida social-urbana e, mais tarde, usaram a arte histórica para retratar as pessoas comuns. Tiveram seu apogeu entre 1870 e 1880.

Em seu período de formação (1870-1890), “Os Itinerantes” desenvolveram um ponto de vista amplo para suas pinturas, com imagens realistas, mais naturais. Em contraste com a paleta escura tradicional de seus tempos de estudante da Academia, escolheram uma paleta mais leve, com uma maneira mais livre em sua técnica. “Os Itinerantes” eram a sociedade que unia os artistas mais talentosos do país, que incluía artistas da Ucrânia, Letônia e Armênia.

Numa rua de Moscou, Vasily Polenov,
óleo sobre tela, 1878
Entre os temas de “Os Itinerantes”, estava a pintura de paisagem, que floresceu nos anos 1870 e 1880. “Os Itinerantes” pintavam paisagens próximas; alguns entre eles, como Polenov, usava a técnica de plein-air (pintura ao ar livre). Dois pintores, Ivan Shishkin e Isaak Levitan, pintaram apenas paisagens da Rússia. Shishkin - outro paisagista - é considerado o "cantor da floresta" russa, mas as paisagens de Isaac Levitan são mais famosas e expressam seus intensos sentimentos de artista. Os pintores paisagistas russos desejavam explorar a beleza de seu próprio país e incentivar as pessoas comuns a amar e a preservar seus lugares. Levitan disse uma vez: "Só imagino tal graça em nossa terra russa, esses rios transbordantes que trazem tudo de volta à vida. Não há um país mais bonito do que a Rússia! Só pode haver paisagistas na Rússia". “Os Itinerantes” deram este caráter nacional para as paisagens, inclusive permitindo que pessoas de outras nações pudessem conhecer como era a paisagem russa. Estas paisagens são a concretização simbólica da nacionalidade russa. Após “Os Itinerantes”, a paisagem russa ganhou importância como uma espécie de ícone nacional.

Ao longo dos anos, a quantidade de pessoas que viam as exposições de “Os Itinerantes” cresceu muito na população do interior da Rússia. Mas não só, pois elas atraíram também a atenção dos mais acostumados a frequentar exposições, assim como da elite urbana. Fotógrafos criaram as primeiras reproduções das pinturas de “Os Itinerantes”, ajudando a popularizar as obras, que poderiam ser compradas. Revistas, como a Niva, também publicavam artigos ilustrados sobre as exposições.

A origem de seus membros era variada; alguns eram camponeses, outros da burguesia urbana, e havia até nobres, mas todos se moviam com o objetivo comum de mostrar a vida em seu país. Associavam assim um estilo basicamente realista, de qual foram os principais divulgadores, com uma base ideológica de fortes traços românticos, idealistas e nacionalistas.

Velho camponês, Vasily Perov,
óleo sobre tela, 1870
Encaravam seu trabalho como uma missão sagrada. Vladimir Stasov, um dos mais ardentes incentivadores do grupo, disse que "os artistas que desejavam se unir para reformar sua sociedade não o estavam fazendo com o propósito de criar belas pinturas e estátuas com a finalidade única de ganhar dinheiro. Estavam tentando criar um alimento para as mentes e os sentimentos do povo".

Com o sucesso do grupo, que em pouco tempo aglutinou a maioria dos melhores talentos da pintura russa de sua época, a academia já não podia mais ignorá-los, e não só sua influência estética se fez sentir no meio acadêmico, mas também diversos deles foram contratados como professores, como Ilya Repin.

Muitos deles haviam ingressado no grupo porque acreditavam que a arte precisava alcançar um público mais vasto, e que deveria servir como uma força para o avanço social e o combate às injustiças e preconceitos. Mas quando seus ideais foram abraçados pela academia, começou a perder a vitalidade contestadora dos primeiros anos e as pesquisas mais arrojadas começaram a ser banidas pelo próprio grupo, que fora, em sua origem, uma vanguarda rejeitada pela oficialidade. O ciclo se repetia. Então diversos membros deixaram o grupo para prosseguir de forma individual, com mais liberdade. Com o passar dos anos, a arte dos Itinerantes já não espelhava os novos tempos e as mudanças na sociedade, e seu realismo de cunho social foi suplantado pelo decorativismo art nouveau do grupo Mundo da Arte e pelas vanguardas abstratas do modernismo.

Mesmo assim sua proposta original voltou a ser prestigiada quando o governo revolucionário assumiu o poder e estabeleceu as diretrizes para a formação do Realismo Socialista, do qual os Itinerantes foram um precursor, e onde diversos de seus representantes encontraram espaço para continuar em atividade. O Realismo Socialista resgatou as ideias iniciais de “Os Itinerantes”, quando estes artistas estavam convencidos de seu papel social como artistas em um país onde tudo estava em processo de transformação. Da arte à política.

“Os Itinerantes”, ao longo dos anos, produziram mais de 3.500 pinturas que foram vistas por mais de um milhão de pessoas em um grande número de cidades. O grupo durou até 1923, quando muitos de seus membros passaram a integrar a Associação de Artistas da Rússia Revolucionária (AKhRR, sigla em russo).

Abaixo, algumas das obras representativas de "Os Itinerantes":

Os rebocadores do Volga, Ilya Repin, óleo sobre tela, 1870-73

Procissão religiosa na província de Kursk, Ilya Repin, óleo sobre tela, 1880–83

Resposta dos cossacos de Zaporozhian, Ilya Repin, óleo sobre tela, 1880-91
Vigília, Arkhip Kuindzhi, óleo sobre tela, 1905-1908
Sessão do Tsar Michael I com a Duma Boyarda, Andrei Ryabushkin, óleo sobre tela, 1893
Procissão de Páscoa, Illarion Pryanishnikov, óleo sobre tela, 1893
Campo de centeio, Ivan Shishkin, óleo sobre tela, 1878
Chuva na floresta, Ivan Shishkin, 1891
Sonhos, Vasily Polenov, óleo sobre tela, 1895
Retrato de Isaac Levitan, Valentin Serov, óleo sobre tela, 1893
Ponte na floresta, Rafail Levitsky, óleo sobre tela, 1895-96
Pobres recolhendo carvão, Nikolay Kasatkin, óleo sobre tela, 1894
Retrato de Vladimir Solovyov, Nikolai Yaroshenko, óleo sobre tela, 1892
Os cegos, Nikolai Yaroshenko, óleo sobre tela, 1879
Consertando a estrada, Konstantin Savitsky, óleo sobre tela, 1874
Cristo no deserto, Ivan Kramskoi, óleo sobre tela, 1872
Retrato de uma desconhecida, Ivan Kramskoi, óleo sobre tela, 1883

terça-feira, 9 de maio de 2017

O retratista Valentin Serov

"A menina com pêssegos", Valentin Serov, 1887, óleo sobre tela, 91 x 85 cm
Autorretrato, 1880
Valentin Serov nasceu em São Petersburgo, em 19 de janeiro de 1865. Seus pais eram músicos: Aleksander Serov era compositor e crítico musical, um admirador da obra de Richard Wagner; Valentina Bergman, de origem alemã, também era compositora e estava sempre ocupada organizando festas e musicais. Ele foi o único filho do casal.

Serov, então, teve uma infância impregnada pela atmosfera artística, não somente por causa dos pais músicos, mas pelos amigos da família, escultores e pintores, como Mark Antokolsky e Ilya Repin, que sempre visitavam sua casa. Precocemente observador, logo o talento de Valentin para o desenho atraiu a atenção de todos.

Seu pai morreu quando o menino tinha seis anos. Sua mãe, assim que percebeu o talento do filho para o desenho decidiu ir a Paris, que na época era o centro principal da arte. Lá também já residia Ilya Repin, que ela conhecia bem e pensou nele para orientar a educação artística do filho. Foi Repin quem iniciou Valentin Serov no caminho da pintura.

Mas lembramos que em 1874, o casal Savva Mamontov (leia aqui) passou por Paris, vindos da Itália, e de lá trouxeram de volta para a Rússia Ilya Repin, assim como Valentina Bergman e seu pequeno filho de 9 anos de idade. Foram todos viver na mansão de Abramtsevo, propriedade do mecenas. Foi nessa comunidade de artistas e intelectuais que Valentin Serov cresceu e se desenvolveu como artista.

Ilya Repin por Serov
Valentin continuou seus estudos com Repin e conheceu outros artistas que frequentavam aquela residência, onde as atividades comunitárias incluíam leituras em grupo nas noites de domingo. Inicialmente liam-se os clássicos, mas isso logo evoluiu para “representações de pantomima” que se tornaram, por volta de 1881, produções teatrais que Savva Mamontov encenava nos invernos da mansão de Moscou. Ele mesmo escrevia os roteiros das peças, baseados em contos do folclore russo ou em algum episódio da história.

Para a montagem dessas peças, todos participavam. Victor Vasnetsov, assim como Korovin, Roerich, Golovin e Isaac Levitan, pintaram as cenografias das peças. Estes pintores trabalhavam nas produções teatrais da “ópera particular” de Mamontov. Na sequência, outros espaços teatrais começaram a seguir também o costume iniciado pelo mecenas de contratar pintores profissionais para pintar cenários. Isto acabou gerando o costume europeu de decoração teatral realística, pois antes os “panos de fundo” das salas de teatro eram apenas decorativos. “Isso provocou, por sua vez, uma revolução na ideia de teatro”, diz Camilla Gray. “A produção passou a ser vista como um todo e o ator teve de subordinar seu desempenho aos outros elementos: cenário, figurino, postura, música, linguagem. Assim uma síntese emergiu, uma unidade dramática.”

Com isso, o teatro atraiu as novas gerações de pintores. Vassily Polenov trouxe dois jovens estudantes da Faculdade de Moscou, Isaac Levitan e Konstantin Korovin (1861-1939). Este último, observa Gray, “foi o primeiro artista russo a refletir a arte dos impressionistas franceses”. Korovin havia ido a Paris em 1885 e tinha conhecido alguns dos pintores impressionistas daquela cidade. Dele teria sido a responsabilidade de revolucionar o desenho teatral.

Isaac Levitan, por Serov
Serov era um comediante natural e gostava de entreter os convidados de Mamontov. Em Abramtsevo, chegou a participar das peças e outras performances, fazendo os convidados se divertirem.

Além dessas pantomimas, Serov adorava artesanato, especialmente cerâmica. O prato de cerâmica que aparece na pintura "A Menina com pêssegos" foi feito à mão pelo próprio artista, que nos anos 1890 chegou até mesmo a montar uma cerâmica.

Valentin Serov também pintou de paisagens, pois havia estudado com Isaac Levitan.

Em 1890, Serov apresenta a Mamontov seu amigo Mikhail Vrubel (leia aqui), que vinha da Academia de Belas-Artes de São Petersburgo, onde havia ingressado em 1880 e também tinha sido aluno de Chistyakov.

A formação artística de Serov foi então bastante influenciada pela vida em Abramtsevo. Ele amava passear pelo campo, com seus bosques e espaços cercados por ravinas e aldeias. Em 1880, Serov entrou para a Academia de Belas-Artes de São Petersburgo, onde foi aluno de Pavel Chistyakov, que havia ensinado pintura também a Mikhail Vrubel, Surikov, Polenov e Repin. Mas cinco anos depois, Serov decidiu que seus estudos na Academia estavam encerrados. Se sentia “entediado".

Na segunda metade da década de 1880, Valentin Serov resolveu viajar para o exterior e, com isso, conheceu os impressionistas franceses. Começou a usar as cores vivas dos Impressionistas em seus trabalhos. Suas obras "A menina com pêssegos" (1887) e "A menina sob a luz solar" (1888) logo o fizeram conhecido e admirado. Nessas duas pinturas pode-se observar que Serov aplica nelas alguns dos conceitos pictóricos impressionistas, como a luminosidade das cores e uma forma mais solta de usar o pincel. O retrato de Konstantin Korovin, feito em 1891, mostra uma certa influência de Edgar Degas, cujas obras Serov pode ter visto em Paris.

Sacha e Yuri Serov
Com estas pinturas, Serov recebeu um prêmio da Sociedade de Arte de Moscou, sendo que a segunda foi imediatamente comprada pelo empresário russo Pavel Tretyakov, patrono de artistas, colecionador e filantropo, cujo nome ilustra a Galeria Tretyakov em Moscou.

Em 1887, Serov casou-se com Olga Trubnikova, com quem teve vários filhos. Ele era um pai amoroso e gostava de pintar seus filhos. O retrato "Crianças" de 1899, é um dos quais ele mostra seus filhos Yury e Sasha. Mas eles apareceram em outros de seus desenhos e pinturas.

A partir de 1890, o retrato tornou-se o gênero básico na arte de Serov. Foi neste campo que ele mais se destacou, pois foi um excelente retratista, conseguindo captar as características psicológicas de seus modelos. Logo conquistou a reputação de ser um dos melhores retratistas de sua época, ao mesmo tempo que Repin, seu antigo professor.

Serov passou a receber muitas encomendas para retratos. Em 1892, recomendado por Repin, Serov recebeu uma encomenda para pintar um retrato grande do imperador Alexander III e de sua família. Serov levou quase três anos para terminar a peça, pois tinha que pintar a partir de uma fotografia, pois somente uma única vez teve a chance de ver o soberano pessoalmente!

Os historiadores contam um caso curioso que ocorreu com o retratista Serov: ele foi encarregado de pintar o retrato de Nicolau II. A imperatriz acompanhou de perto o trabalho do artista, examinando cada pincelada que era dada. Imediatamente apontava o que ela via como “furos” do artista. Serov ouviu silenciosamente por um período de tempo, mas em determinado momento entregou a palheta e os pincéis para a imperatriz e lhe disse: “então é melhor a senhora mesmo fazer”! Felizmente Nicolau II saiu em sua defesa e pediu desculpas pelas interferências da esposa...

Nicolau II, por Serov
Valentin era muito exigente quando se tratava de pintar seus modelos, um trabalho que muitas vezes levava meses para concluir, em sessões ao vivo onde os modelos tinham que ficar horas imóveis. O menor movimento causava descontentamento ao artista. Alguns tinham até um pouco de medo de sentar-se para Serov pintar seus retratos, de tão rigoroso que ele se tornara. Mesmo assim, sempre havia muitos que queriam ser retratados por ele. Serov nunca falhava com seus clientes: sempre receberam belos e elegantes retratos dos quais poderiam se orgulhar.

Tendo ganhado larga popularidade, em 1894 Valentin Serov se juntou ao “Os Itinerantes”, grupo de artistas realistas russos que, em protesto às restrições acadêmicas, formaram uma cooperativa que também promovia exposições de obras de seus membros. Esta sociedade foi formada em 1870 em São Petersburgo, sob a liderança de Ivan Kramskoy. Ele e mais Grigory Myasoedov, Nikolay Ghe e Vasily Perov resolveram abandonar a Academia de Arte, naquele evento que se tornou conhecido como “A Revolta dos quatorze”.

De 1897 a 1909, Valentin Serov passou a ensinar na Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura de Moscou. Em 1900 mudou-se para São Petersburgo para participar do grupo “Mundo da Arte”, uma nova associação de artistas russos que estavam insatisfeitos com “Os Itinerantes”. Eles tinham também uma revista com o mesmo título, onde expunham suas ideias. Assim como seu amigo Korovin, Serov contribuia com textos para a revista, assim como para as exposições organizadas pelo grupo. Foi este grupo "Mundo da Arte" que organizou em 1907 a apresentação de um balé baseado no estilo dos "Contos de Horfmann", escritor alemão. O coreógrafo, Michel Fokine, apresentou um bailarino que havia sido seu aluno como sugestão para que ele atuasse nesse balé. Era Vaslav Nijinsky, que depois se tornou mundialmente conhecido como um dos maiores, senão o maior, bailarino de toda a história do balé mundial!

No começo do século XX, Serov se torna cada vez mais modernista, abandonando o estilo impressionista. Mas mantinha-se fiel à sua compreensão realista da natureza. Nesta época fez vários retratos, que continham alguma dramaticidade, de pintores, músicos, escritores e atores, como o retrato do escritor Maximo Gorki que vemos aqui.
Retrato de Maximo Gorki, por Serov

Valentin Serov também participava ativamente dos movimentos democráticos russos que culminaram com a Revolução de 1905. Ele chegou a fazer várias ilustrações satirizando figuras da vida política. Ele era uma espécie de membro consultor da Academia de Artes de São Petersburgo desde 1903, mas em 1905 renunciou a esse cargo em protesto contra a execução dos trabalhadores em greve, no episódio que ficou conhecido como “domingo sangrento”. Também executou algumas pinturas históricas. 

Em 1907, junto com Leon Bakst (pintor e cenógrafo russo, além de figurinista) viajou para a Grécia, para a ilha de Creta, onde os dois artistas estudaram as ruínas do Castelo de Knoss. Depois de voltar para casa, Serov começou a fazer esboços do antigo castelo e temas da mitologia clássica. É dessa época "O Rapto de Europa" pintado em 1910 (veja abaixo). Também nesta época pintou cenários para a ópera “Judith” no teatro Mariinsky.

O artista deixou uma grande quantidade de obras, que vão desde a pintura de paisagem a retratos e pinturas de eventos históricos. Seu nome se junta aos dos maiores da arte realista russa, mas ao mesmo tempo mostra que, assim como Vrubel, ele foi um dos artistas que inspiraram os posteriores modernistas russos.

Valentin Serov morreu de problemas cardíacos em 5 de dezembro de 1911, com 46 anos de idade. Foi enterrado no Cemitério Novodevichy, de Moscou.

-----------------------------

"O rapto de Europa", Valentin Serov, 1910, óleo sobre tela, 71 x 98 cm, Galeria Tretyakov
"Retrato de Olga Tamara", Valentin Serov, 1892
"Ida Rubistein", Valentin Serov, óleo sobre tela, 1910, 147 x 230 cm
"Camponesa na carroça", Valentin Serov, 1896
"Retrato de Praskovya Mamontov", Valentin Serov, 1889

"Retrato de Semion Petrovitch Chokolov", Valentin Serov, 1887
"Sasha estudando", Valentin Serov, aquarela, 1897

"Alexander Puchkin no parque Bench", Valentin Serov, aguada, 1899

"Retrato de Sophia Botkina", Valentin Serov, óleo sobre tela, 1899

"Retrato de Sophia Dragomirova", Valentin Serov, oléo s/ tela, 1889

"Retrato de Nicolau Posniakov", Valentin Serov, óleo sobre tela, 1910
"Retrato da princesa Olga Orlova", Valentin Serov

"Retrato de Nicolau Rimsky-Korsakov", Valentin Serov, 1898, 94 x 11 cm