Detalhe do quadro "Moça com brinco de pérola", Jan Vermeer |
Na quarta-feira, dia 21 de agosto, estive na PUC de São Paulo para fazer uma palestra para os alunos do professor Luís Carlos Petry, do curso de Tecnologia e Jogos Digitais. Eles já vêm estudando os mestres, neste semestre, especialmente Vermeer e Rembrandt. Assistiram aos filmes “Moça com brinco de pérolas” de Peter Webber e “A ronda noturna” de Peter Greenway. Depois do filme sobre Vermeer, eles tiveram uma palestra sobre esse filme com a pesquisadora Cristina Sisigan, da Universidade do Porto, Portugal. Na sequência, a minha palestra sobre “Desenho Pictórico e Linear” e minhas experiências de estudo da pintura de Rembrandt e Vermeer. Abaixo, um resumo do que falei para eles.
Detalhe de pintura do Paleolítico superior |
Para começar, é sempre bom lembrar da história. Há mais de 35 mil anos antes de Cristo, o ser humano começou a fazer seus primeiros desenhos nas paredes das cavernas onde viviam. Esses artistas da pré-história que decoraram abrigos e cavernas exerceram seu talento no Paleolítico superior sobre um período em torno de 25 mil anos: do Auriaciano (ou Aurignaciano - 35 mil a.C.) ao Madaleniano (em torno de 13 mil anos a.C). Desde esses primeiros desenhos e pinturas, nós temos buscado ampliar nossos conhecimentos sobre o mundo em que vivemos, e desenhamos e pintamos o que vemos desse mundo.
O ser humano inventou a linha para traçar seus desenhos, uma abstração que não existe na natureza. Mas ao traçar desenhos, seja no papel seja em outro meio qualquer, o ser humano está descrevendo também, através do desenho, o mundo que o rodeia.
Escultura de Michelangelo: David |
Mas vamos dar um salto grande da pré-história ao período do Renascimento italiano, por volta dos séc. XIV e XVI. Nessa época, se desenvolveu a arte de observação da natureza, mas que pretendia ir além da desordem das aparências para encontrar a ordem subjacente no mundo. O modelo era a antiguidade clássica da Grécia e de Roma e seus ideais de Beleza e Perfeição. Naqueles longínquos tempos, a beleza do corpo humano era um ideal a ser buscado. Os atletas se desenvolviam na cultura física, os filósofos buscavam interpretar o mundo e compreender a condição humana.
No Renascimento, o lugar do ser humano no mundo voltou a ser valorizado. Não se pintava a realidade como ela era, mas buscando nela a Beleza e a Perfeição. Os modelos humanos eram idealizados, as composições dos quadros deviam ser claras, limpas, buscando a Simetria. Tudo isso dava à arte produzida nesse período uma qualidade algo estática. As figuras, pintadas ou desenhadas, estavam encerradas entre fronteiras e obedeciam a regras rígidas ditadas pela intelligentzia da época, em geral os doutores da Igreja.
"Nascimento de Vênus", de Sandro Botticelli, cerca de 1483 |
Foi quando Sandro Botticelli, um pintor italiano, pintou o “Nascimento de Vênus”, por volta de 1483. Como se pode ver neste quadro, as figuras se encontram recortadas em relação ao fundo. Os objetos estão separados entre si. Todos se voltam para o centro, onde se encontra a deusa grega Vênus e seu corpo nu, perfeitamente imaginado. Uma prova de que novamente, mesmo em meio à moral da época, o corpo humano voltava a ocupar lugar de destaque no mundo das ideias, voltava a ter grande valor.
Neste detalhe ao lado, podemos ver as linhas traçadas por Botticelli, onde ele encerrou sua Vênus. A pintura, em sfumato, é plana. Sombras profundas, não há. A luminosidade parece deixar tudo plano, tudo parte de uma ordem que não pode ser mexida.
Mas em seguida… as sombras desceram de vez sobre a terra, para susto de alguns. Mas para os artistas, estas sombras trouxeram novas possibilidades de penetrar ainda mais fundo na realidade do mundo. No final do século XVI, com o surgimento disso que ficou depois conhecida como Arte Barroca, o artista desejou mergulhar na multiplicidade das coisas, nos fluxos da vida, no movimento.
Suas composições passaram a ser mais dinâmicas, abertas. O movimento se fazia presente nas artes, que agora mostravam uma tendência a romper com todas as fronteiras, mostrando uma variedade de formas de expressão que eram, inclusive, adaptáveis às culturas locais. O Barroco, nascido na Itália, se espalhou pela Europa e pelo mundo. Aqui no Brasil, as montanhas de Minas Gerais inspiraram o nosso maior artista barroco, o Aleijadinho.
"Amor vitorioso", Caravaggio, 1601 |
Caravaggio, na Itália, mergulhou profundamente nessa nova estética. Usou as sombras mais densas a favor da luz, em seus quadros. Montava suas composições em ambientes com pouca luz e era dali que fazia com que emergissem as figuras.
Até o começo do período do Barroco, nos fins do século XVI, o desenho e a pintura ocidentais seguiam o estilo linear, onde predominava o uso de linhas - mesmo na pintura - e as composições planas, luminosas. Mesmo Leonardo da Vinci que em um tratado sobre a pintura recomendava que o artista não respeitasse os limites da linha, ele mesmo pintava desta forma. Michelangelo, o grande, inquieto e pródigo artista do Renascimento também ele respeitava as linhas. O mesmo aconteceu com Sandro Botticelli, ou com Rafael di Sanzio ou com outros grandes.
Mas Ticiano… não! A Escola Veneziana, à qual ele pertencia, era a escola da pintura cheia de cor, que ousou ir mais longe do que a Escola Florentina, que praticava um desenho e uma pintura mais lineares. Ticiano foi um dos pioneiros do estilo pictórico, rompendo os limites da linha, abrindo mão de descrever os detalhes do que via em prol do que era essencial aos olhos. A importância de Ticiano na história da arte deve-se ao fato de que ele deixou para seus contemporâneos e para a posteridade uma concepção de pintura verdadeiramente revolucionária, pois foi ele quem libertou a pintura dos limites da linha e da forma, dando todo o poder às cores.
"Madalena", de Ticiano - ainda pode ser vista no CCBB de São Paulo |
Linear e Pictórico
Em seu livro “Conceitos fundamentais de história da arte”, Heinrich Wölfflin explica de forma bastante didática essas duas concepções da arte, que pode estar presente no desenho, na pintura, na escultura, na arquitetura.
Em resumo, são na verdade duas visões de mundo: uma, em que o mundo se encontra encerrado entre linhas limítrofes e com regras mais claras; a segunda, uma visão de que tudo no mundo se relaciona e há que se buscar ver a realidade como resultado de um conjunto de relações e que dá unidade a tudo.
O estilo Linear vê o mundo em linhas. O sentido do objeto é buscado primeiro no contorno dele e os olhos são conduzidos através dos limites da forma. Limites firmes, ao qual tudo se subordina.
Exemplos de pintura e desenho linear:
Estilo Pictórico
O estilo Pictórico, por seu lado, confere à forma um caráter indeterminado. Busca o movimento que ULTRAPASSA o conjunto dos objetos. As formas isoladas têm pouca importância, pois vale a Unidade do todo, o conjunto do quadro. O pictórico emancipa as massas do degradée do chiaro-oscuro e do sfumato, um jeito de pintar que alisa as tintas e cria uma sensação de profundidade através da passagem suave das sombras para a luz, ou vice-versa. No estilo Pictórico, o visível parece REAL aos olhos: o pintor reproduz a aparência do objeto / da Realidade. Mas isso não significa superficialidade, já que a aparência é o resultado de um jogo de forças distribuído em camadas em diversos níveis de profundidade. O artista pictórico vê o mundo como massas, não como linhas.
Rembrandt van Rijn (15/071606 - 4/10/1669)
Este artista holandês fez um esforço para subtrair as figuras à zona tátil e eliminar o que sobra. Para ele, os contornos não são importantes. Cada detalhe está tão ligado ao contexto maior que dá a impressão de MOVIMENTO contínuo. Rembrandt usava grossas camadas de tinta para mostrar o movimento das massas em direção à luz. Para ele quanto mais luz, mais densidade de tintas. Na medida em que ele amadurecia em idade e em produção artística, mais se tornava um exemplo de que o progresso na concepção pictórica pode caminhar paralelamente em direção a uma crescente simplicidade.
O estilo pictórico é o despertar para um novo sentido da beleza, diz Wölfflin. Quando Rembrandt pinta uma figura sobre um fundo escuro, a luminosidade do corpo parece emanar naturalmente do escuro do espaço. Franz Hals (1580 ou 1585 — 10/8/1666) não queria reproduzir mais do que o olhar apreende do conjunto. Jan Vermeer (31/10/1632 - 15/12/1675) em seu trabalho lento e meticuloso de pintor, busca expressar a fragilidade dos limites entre as formas, as suaves e profundas distinções entre a luz e a sombra.
O estilo pictórico mostra a realidade como ela é apreendida pelo olhar do artista. É a arte do “parece ser”. A pintura, em seu conjunto, tem movimento, ritmo, amplitude além da forma. O artista renuncia à ideia anterior sobre a cor local. As cores servem ao movimento. Elas são um novo ideal de beleza. A sombra já não é dominada pelo preto, mas por tons mais intensos. Luz e sombra são parte da mesma coisa.
Diego Velázquez ( 31/10/1632-15/12/1675):
Retrato de Juan Pareja, 1650
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À distância, tudo está completo. Próximo, só podemos enxergar as pinceladas do artista. As raízes do Impressionismo do século XIX na França já tinham sido lançadas pelos artistas holandeses. Eles já haviam descoberto o caráter pictórico da Natureza: a beleza das roupas rotas de um mendigo, de uma casa em ruínas, das águas inquietas de praias e cachoeiras, das nuvens em perene autocriação, das multidões se movimentando nas feiras e praças…
As ideias de Heinrich Wölfflin se refletem também nas do pintor realista norte-americano David Leffel, que complementa: o pintor não pinta “coisas”, pinta a luz nas coisas. Ele não vê seu modelo como um conjunto de detalhes separados, mas em termos de movimentos de massa. Não pensa em características especificas como “boca”, “nariz”, ou “olhos”; mas vê massas movendo-se para dentro e para fora. Vê movimento entre a luz e a sombra, que vai dando materialidade ao modelo. A realidade é a referência permanente do artista. Ele não pinta o que não está lá, ou o que ele não vê, mas aquilo que para ele é significativo da sua observação do mundo. Através do seu olhar, ele mostra como “pensa” o mundo, qual é sua atitude, sua capacidade de ver e de sintetizar o que vê
Estudo sobre pintura de Rembrandt feita com carvão e lápis-carvão, em 2011 |
Para finalizar a conversa com os estudantes da PUC-SP, falei da minha própria experiência no estudo destes mestres, especialmente Rembrandt e Vermeer. Dois artistas holandeses que foram contemporâneos, mas que não se conheceram, e eram tão diferentes entre si. Um, voltado para o mundo externo, que adorava o teatro e produzia intensamente. O outro, Vermeer, mais lento, mais quieto, que usava pinceis pequenos para quadros pequenos que pintava durante meses de trabalho. Chegou a pintar pouco mais de 40 pinturas em toda sua vida, enquanto Rembrandt deixou centenas de telas que hoje estão espalhadas por diversos museus do mundo.
Estudei e pintei algumas pinturas de Rembrandt no Atelier de Arte Realista de Maurício Takiguthi, onde ainda estudo aqui em São Paulo. Para compreender como ele, Rembrandt, movimentava suas massas, trabalhava a incidência da luz naquilo que tocava. Mostrei aos alunos do professor Petry dois estudos meus: um em carvão e o outro em pastel.
Mas também fiz uma cópia do “Moça com brinco de Pérola”, de Jan Vermeer. Trabalhei nesse pequeno quadro durante umas 45 horas, no Atelier Vermeer em Paris. Somente para captar um pouco da concepção dos movimentos das cores que definem a boca e o nariz da “Moça”, devo ter trabalhado dois dias inteiros, num total de umas 18 horas.
Estudo meu em óleo sobre tela sobre o original de Vermeer "Moça com brinco de pérola" - Paris 2011 |
No momento, a pintura realista retoma um fôlego muito importante em diversos lugares do mundo. Só para citar alguns, do meu conhecimento e experiência: Rússia, França, Espanha e Estados Unidos. Nos EUA, onde ainda se pratica a pintura acadêmica e começa a criar grande força o Hiperrealismo, a pintura realista conta hoje com os mais importantes mestres, o que não deixa de ser curioso, uma vez que a Guerra Fria produziu lá o Expressionismo Abstrato em contraposição ao Realismo. Muitos destes velhos artistas norte-americanos, que ainda estão vivos e produzindo muito, passaram por toda aquela fase de perseguição do macarthismo que identificava pintura realista com comunismo.
A pintura realista e pictórica toma como referência a realidade, que é inesgotável. Enquanto nos fixamos nas formas das coisas do mundo, vamos penetrando cada vez mais em camadas de conhecimento que nos surpreendem a cada momento. Após cada coisa apreendida, cada conquista feita, algo surge lá como novidade, mostrando o fluxo das massas de cores, os pequenos toques que configuram um olho, por exemplo, num jogo de valores que vão da luz às sombras mais densas.
O prazer de enxergar a possibilidade de romper os limites, de ir além das formas, de ultrapassar as bordas do mundo, de buscar o que há mais lá dentro, no fundo, escondido dos olhos dos apressados, é o que me move.
Para romper limites, é preciso coragem! Inclusive para nadar contra a maré do mercado de arte atual e dos pensadores da arte dita "contemporânea".
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Bibliografia:
- Wölfflin, Heinrich. Conceitos Fundamentais de História da Arte. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2006
- Bazin, German. Barroco e Rococó. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2010