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segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Os pintores de Skagen

Parte do grupo de pintores de Skagen, fotografia de Fritz Stoltenberg
Em minhas buscas pessoais sobre a pintura, boas surpresas vão me chegando de tempos em tempos. Desta vez vieram novamente dos gelados países escandinavos, Noruega, Dinamarca e Suécia. É bom lembrar que a Suécia é a terra do grande pintor Anders Zorn, e a Noruega é onde vive e pinta o grande Odd Nerdrum, de quem já falei aqui em outros textos.

Pintura de Christian Krohg
Mas o assunto do dia é um grupo de pintores que se reuniam todos os verões entre as décadas de 1870 e 1900, para pintar, conversar e se divertir na casa da família de Anna Brondum (ou Ana Ancher, sobre a qual já falei aqui) em Skagen, localizada numa pontinha do extremo-norte da Dinamarca, em frente ao Mar do Norte. Este grupo ficou conhecido como a Colônia de Skagen e sua pintura me atrai bastante a atenção, pelo estilo solto, dinâmico.

Skagen era um bom destino no verão, pois a localização à beira-mar e a luminosidade da estação atraíam esses artistas para pintar ao vento, ao ar livre, como o fizeram os pintores da chamada Escola de Barbizon francesa.

Os pintores escandinavos, insatisfeitos com a rígidas regras tanto da Academia Real Dinamarquesa de Belas Artes como da Real Academia Sueca de Artes, começaram a mudar seu estilo de pintura, depois de conhecerem alguns dos trabalhos dos pintores franceses que também tinham rompido com sua própria Academia.

Neste grupo estavam: Anna Ancher e Michael Ancher, Peder Severin Kroyer, Holger Drachmann, Karl Madsen, Laurits Tuxen, Marie Kroyer, Carl Locher, Viggo Johansen e Thorvald Niss da Dinamarca; Oscar Björck e Johan Krouthen da Suécia; e Christian Krohg e Eilif Peterssen da Noruega. Nomes totalmente desconhecidos pela maioria de nós que temos acesso apenas aos mesmos conhecidos pintores europeus.

"Autorretrato com Martha", Johansen Viggo
Skagen era também onde se localizava a maior comunidade de pescadores da Dinamarca e eles foram o tema mais comum para os pintores. As longas praias foram também bastante exploradas nas pinturas de paisagens, em especial por Peder Severin Kroyer, um dos mais conhecidos pintores de Skagen. A luminosidade da região o inspirou a fazer grandes telas em que mar e céu parecem se fundir opticamente, como poderão ver nas imagens que ilustram este texto.

Cada um desses pintores tinha seu próprio estilo individual, e não havia uma exigência para aderirem a uma abordagem ou expressão de grupo. Mas obviamente seu interesse comum era pintar a paisagem com seus pescadores, assim como pintavam retratos uns dos outros, suas reuniões, suas celebrações e seus jogos de cartas. Era um grupo de amigos, além de tudo.

Pintores de Skagen,
por Peder Severin Kroyer
Anna Brondum foi a única mulher integrante do grupo de Skagen que se tornou artista, em uma época em que as mulheres não podiam estudar na Academia da Dinamarca. Hoje, o Museu de Skagen, fundado na casa da sua família que era também o local de reunião desses artistas, abriga muitas de suas obras de arte, cerca de 1800 peças no total. Michael Ancher casou-se com Anna, que assumiu seu sobrenome.

O primeiro desses artistas a pintar em Skagen foi Martinus Rorbye (1803–1848), uma das figuras centrais daquele período rico da pintura dinamarquesa. Sua primeira viagem para lá foi em 1833, mas se repetiu até o final de sua vida em 1848. 

Na segunda metade do século XIX, as academias citadas acima se recusavam a mudar suas regras, insistindo que seus alunos continuassem pintando temas de história e do Neoclassicismo. 

Michael Ancher, Karl Madsen e Viggo Johansen que, no início da década de 1870,  estudavam na Real Academia Dinamarquesa, em Copenhague, começaram a se rebelar e se afastar da escola. Madsen, que já havia visitado Skagen em 1871, convidou Ancher para se juntar a ele em 1874, para pintar os pescadores locais. Ancher se tornou amigo da família Brondum, que tinha uma loja com um bar, que logo se tornou também uma hospedaria. No ano seguinte, ele retornou a Skagen com Madsen e Viggo Johansen, que já estavam fortemente influenciados pelo impressionismo francês, mas ao estilo mais realista dos pintores de Barbizon.

Entre 1876 e 1877, vários outros artistas se juntaram a eles no verão, hospedando-se todos na casa dos Brondums, onde Michael Ancher já frequentava, por causa de sua paixão por Anna, com quem se casou em 1880. 

Pintura de Anna Ancher
Anna Ancher demonstrou muito interesse em pintar, depois que esses artistas começaram a ficar na pousada de sua família, onde deixavam suas pinturas secando em seus quartos. Enquanto eles saíam para suas jornadas, ela os estudou detalhadamente. Em 1875 passou a frequentar o ateliê de Vilhelm Kyhn em Copenhague. Mais tarde, Christian Krohg lhe ensinou a arte de pintar pessoas em sua vida cotidiana e fazer pleno uso das cores. Krohg veio pela primeira vez a Skagen no verão de 1878, encorajado por Georg Brandes, que ele conheceu em Berlim e trouxe consigo muito dos novos estilos de pintar que ele havia conhecido na França e Alemanha, influenciando os outros membros do grupo. Seus encontros com a população local também exerceram forte influência em seu próprio trabalho.

Peder Severin Kroyer, que teve contatos próximos com vários artistas impressionistas em Paris, imediatamente se tornou uma espécie de líder do grupo de artistas. Em 1883, ele criou a "Academia da Noite", um grupo que se reunia para pintar e discutir o trabalho um do outro, muitas vezes aproveitando o champanhe. Em 1884, o pintor alemão Fritz Stoltenberg fotografou os artistas que comemoravam no jardim dos Anchers, logo depois que o casal se mudou para sua nova casa. Uma dessas fotos em particular inspirou Kroyer a pintar “Hip, Hip, Hurra!”, que levou quatro anos para completar.

Em 1890, a chegada da ferrovia em Skagen não apenas levou à expansão da vila, mas também atraiu um número considerável de turistas, atrapalhando as reuniões regulares de verão dos artistas, já que eles não podiam mais encontrar acomodações ou locais adequados para suas reuniões. No entanto, alguns deles compraram casas em Skagen: Kroyer em 1894, Laurits Tuxen em 1901 e Holger Drachmann em 1903.

Retrato de Marie, por Peder Severin Kroyer
Anna e Michael Ancher, Kroyer e Tuxen continuaram a pintar em Skagen até o começo do século 20. De vez em quando recebiam visitas dos outros amigos que moravam fora. Drachmann e Kroyer morreram entre 1908 e 1909, e com isso os encontros chegaram ao fim. 

Mesmo assim, outros artistas mais jovens continuaram a ir a Skagen para pintar, como Jorgen Aabye, Tupsy e Gad Frederik Clement, Ella Heide, Ludvig Karsten, Frederik Lange e Johannes Wilhjelm, alguns dos quais se estabeleceram na área até a década de 1930. 

Todos esses pintores foram atraídos pela comunidade de Skagen, suas paisagens marítimas e sua cultura, tudo muito distante dos efeitos da industrialização da vida nas cidades grandes. Todos reconheciam a luz especial que havia em Skagen, e, segundo alguns relatos, os efeitos da areia no ar. Seus estilos de pintura evoluíram da abordagem neoclássica formal da Real Academia para abraçar as tendências européias em evolução no Realismo e Impressionismo, incluindo a abordagem plein air adotada pela Escola de Barbizon. 

"Anna Ancher e Marie Kroyer passeando na praia no fim da tarde",
por Peder Severin Kroyer
Os atraía especialmente a oportunidade de pintar ao ar livre, concentrando-se nas atividades dos pescadores locais e suas modestas cabanas. Na ausência de regras dentro da colônia, os pintores desenvolveram livremente seus estilos individuais. 

Os artistas muitas vezes pagavam aos pescadores para atuar como modelos, complementando seus rendimentos modestos. As obras de Kroyer também incluíam cenas de passeios na praia, noites românticas ao luar e retratos de sua esposa Marie. Com o passar do tempo, Kroyer pintou cada vez mais obras que descreviam a atmosfera especial daquela hora em que a noite se fundia com o mar. Laurits Tuxen pintava as flores em seu jardim e Anna Ancher, por outro lado, concentrava-se nos interiores da sua casa.

Hoje, em pleno funcionamento, o Museu de Skagen - fundado em 1928 na casa da família Brondum - guarda uma grande quantidade de pinturas desse período e onde se pode ver de perto essas obras-primas.

Mais um lugar para eu conhecer, um dia.

Local onde funciona o Museu de Skagen

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

A arte russa do século XX - PARTE I

A Revolução russa de 1917, cujos ecos de seus efeitos voltam a ser ouvidos 100 anos depois, não é só a história de um poderoso movimento político que mobilizou extensas forças sociais, econômicas e mesmo ideológicas. É a história de um dos mais extraordinários movimentos de arte do século XX. Antes, durante e depois da Revolução os artistas russos expressaram, com suas obras, a intensidade dos acontecimentos que moviam seu país, a partir de sua visão pessoal e de seu mundo subjetivo profundamente conectado com seu tempo.


Ícone "A Trindade", Andrei Rublev
A história da arte russa começa no século XIV, com a pintura de ícones. Na concepção da ortodoxia cristã, o ícone não é uma simples pintura, como ocorre na arte ocidental; mais do que uma representação figurativa, é a incorporação da energia da divindade, uma espécie de teofania (revelação) do divino. Por isso, os primeiros pintores eram monges, e um deles se destacou na história: Andrei Rublev, pintor peregrino que pintava ícones para igrejas e mosteiros de diversas cidades, entre eles o mais famoso, “A Trindade”, feito por volta de 1410. A vida deste monge-pintor foi contada pelo cineasta Andrei Tarkovsky, num filme lançado em 1966 (leia mais sobre os ícones aqui).
Durante 400 anos a pintura russa era basicamente a religiosa. Em todo o território, os ícones eram parte da vida do povo, cujas casas continham seu próprio altar com seu próprio ícone, a “janela” que apontava para o mundo espiritual.
Até que em 1682, o homem que tinha mais de dois metros de altura, Pedro o Grande, tomou posse como czar do império. Em longas e extenuantes viagens a países europeus, Pedro se deparou com um mundo diferente da sua Rússia atrasada, basicamente agrícola. O czar se apaixonou pelo que viu e desde então não poupou esforços para transformar a Rússia em um país moderno, nos moldes europeus. Como parte de seu plano de modernização fundou em 1703 a cidade de São Petersburgo, como uma espécie de janela que se abria para o Ocidente. Trouxe de fora engenheiros, artesãos diversos, artistas, arquitetos e mão de obra especializada de vários países para fazer emergir, por sobre uma região pantanosa, aquela que seria a cidade-símbolo dos sonhos da nova Rússia. Domou as margens do rio Neva, recortou canais, traçou linhas retas para o curso das águas, submetendo a natureza selvagem à sua vontade de progresso e modernização.
"A rainha Catarina II", Fedor Rokotov, 1763
Oitenta anos depois, surge a figura de Catarina II, esposa de Pedro III, que assumiu o trono russo em 1762. Mas ela, através de um golpe de Estado contra o próprio marido, assumiu o poder no mesmo ano. Catarina II expandiu ainda mais o império russo, que continuou a se modernizar. Era uma mulher de visão ampla e trocava correspondências com os intelectuais iluministas da Europa Ocidental, entre eles Voltaire e Montesquieu. Sob o governo dela, os nobres adquiriram ainda mais poder e a imensa maioria da população vivia em extrema pobreza. Os senhores de terras submetiam os camponeses a condições de vida precárias e a servidão era generalizada.
Catarina, em contato com a pintura europeia, foi adquirindo muitas obras de arte, montando um acervo pessoal que depois passou à administração do Museu Estatal. A nobreza russa também passou a comprar e a encomendar pinturas aos artistas europeus ocidentais. Foi então que jovens russos começaram a ser enviados à Itália e à França para aprenderem a arte da pintura como era feita naqueles países. Voltando a seu país, eles passaram a receber encomendas dos nobres e com isso a pintura russa foi tomando outro caminho. Na sequência, Catarina II inaugurou a Academia de Belas Artes de São Petersburgo, que passou a dar uma sólida formação artística às gerações de jovens que passaram a ter cada vez mais destaque na pintura, gerando artistas do nível de Ilya Repin, por exemplo.
"Quarto do artista em Ritterstrasse",
Adolf Menzel, 1847
No Ocidente europeu, cujo desenvolvimento corria a passos largos com a Revolução Industrial e todas as mudanças que ela trouxe à vida das nações, pensadores alemães defendiam ideias que eram totalmente contrárias aos franceses do Iluminismo, defensores da racionalidade. Friedrich Schlegel, Novalis, Friedrich Schelling e outros, reunidos em torno da revista “Atheanum”, lançaram, em 1797, o movimento que ficou conhecido como Romantismo. Essas ideias se expandiram por toda a Alemanha, influenciando poetas e escritores como Goethe, e músicos como Beethoven e Brahms. O Romantismo também alcançou as artes plásticas, em especial as escolas de Berlim e Frankfurt.
O Romantismo alemão enfatizava o retorno à espontaneidade das emoções, uma poesia voltada para a natureza, humana e selvagem, um retorno às origens da tradição nacional, uma valorização da vida simples e local.
Havia chegado o tempo do reinado de Nicolau I, que havia tomado posse em 1825. Este czar, interessado em afastar da Rússia as ideias dos revolucionários franceses, considerou melhor enviar os jovens russos a estudar na Alemanha, cujas ideias - assim pensava ele - não traria risco algum ao seu poder. De fato, os jovens russos entraram em contato com essas ideias que fervilhavam em meio às ruelas de Berlim, e se entregaram a elas. Essa convicção romântica de que todo homem tinha uma missão a cumprir, criou um entusiasmo generalizado entre os intelectuais e os artistas. A paixão por essas ideias moveu esses jovens do século XIX, em um momento em que profundas mudanças estavam em gestação.
Retrato de Dostoievsky, V. Perov, 1847
Para esses intelectuais e artistas, não era possível separar a obra de arte do homem que a produziu; seria impossível que uma mesma pessoa tenha um tipo de personalidade como eleitor, outra como pintor e uma terceira como marido ou mulher. “O homem é indivisível”, diziam eles. Havia então uma radical noção de integridade, de total compromisso com as ideias, levadas às últimas consequências. Dentro desses pensamentos, o artista era uma espécie de ser sagrado, com uma alma única, um ser dotado de uma aptidão especial, com dons que o diferenciavam do restante. Por isso, ele muitas vezes se sentia um solitário.


- "Torturava-me então mais uma circunstância - diz o personagem do "Memórias do Subsolo", de Dostoievski - o fato de que ninguém se parecesse comigo e eu não fosse parecido com ninguém. Eu sou sozinho e eles são todos”.


Esse espírito combinava com o cenário de mudanças que se via na Rússia, não somente na vida cultural, mas também na política. Aquela efervescência de pensamentos e aquele momento de alta criatividade e produtividade artística puseram em circulação ideias destinadas a exercer efeitos cataclísmicos não só na própria Rússia, mas muito além de suas fronteiras.
O ambiente dentro da Academia de Belas Artes de São Petersburgo, assim como em todas as instituições estudantis e organizações de intelectuais, era palco do intenso debate que ocupava as mentes e as vidas da intelligentzia russa. Em 1863, treze estudantes liderados por Ivan Kramskoi abandonaram a instituição e formaram a “Associação Livre dos Artistas”. Eles rejeitavam os modelos acadêmicos, as regras e convenções da técnica ensinada naquela escola, importados da Academia Francesa. Para eles, a pintura que se ensinava lá nada tinha a ver com a realidade russa. Era o efeito da luta ideológica entre Eslavófilos e Ocidentalistas, assim como da contenda entre as ideias iluministas e românticas. E, obviamente, fruto também do ideário socialista que já havia alcançado a intelectualidade naqueles tempos.
"Autorretrato com cachimbo",
Gustave Courbet, 1849
Nesse mesmo período, em vários países europeus a pintura realista começava a abrir caminho para formas mais livres de pintura, que desaguou no movimento Impressionista. Na França, Gustave Courbet inaugurou sua exposição individual intitulada “Realismo”, como protesto contra a arte acadêmica exposta no Salão de Outono. Nos principais países europeus, pintores de alto nível técnico começaram a se destacar nas artes, como referências da pintura realista: Adolph Menzel, na Alemanha; Giovanni Boldini e os “Macchiaioli” na Itália; Mariano Fortuny, na Espanha; Anders Zorn, na Suécia; Camille Corot, Courbet e os Impressionistas, na França; John Singer Sargent, na Inglaterra...
Essa movimentação toda causava furor artístico entre aqueles pintores russos, que pensavam: se tinham que se inspirar em algum modelo europeu, era nesses realistas. Em especial citavam Courbet, Menzel, Fortuny, Zorn… O Grupo dos Treze resolveu então sair a campo, viajando pelo interior russo, levando consigo suas exposições e captando temas para seus quadros a partir da vida real que encontravam. Passaram a se intitular “Os Itinerantes”. Entre eles estava um dos mais importantes pintores realistas russos do século XIX, Ilya Repin.
Seu quadro mais famoso, “Os rebocadores do Volga”, segundo ele mesmo afirmou era a primeira e mais poderosa voz de toda a Rússia, do seu povo oprimido, cujo grito era reconhecido em cada canto onde se falava o idioma russo. Esse quadro se tornou um dos principais símbolos da opressão czarista sobre o povo.
Os Itinerantes” retratavam a vida dos camponeses pobres, mas também a beleza da paisagem rural, o dia a dia das pessoas, seu folclore, a força do caráter do homem e mulher russos. A presença do grupo na cena cultural era uma clara condenação do autoritarismo czarista e acabou sendo um meio de divulgação dos ideais democráticos, além de permitir uma educação estética para a população que podia ver de perto seu trabalho artístico.


"Os rebocadores do Volga", Ilya Repin

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CONTINUA NA PRÓXIMA SEMANA
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quinta-feira, 13 de julho de 2017

Os Itinerantes

Tempo de colheita, Grigoriy Myasoyedov, óleo sobre tela, 1887
Em 1863, um grupo de quatorze alunos decidiu deixar a Academia Imperial de Belas-Artes de São Petersburgo. Eles consideravam as regras da Academia restritivas e os professores conservadores. Também não concordavam com a separação rigorosa entre alunos com mais talento e os com menos, nem com a competição que era muito incentivada pela direção e professores. Eles defendiam que a arte deveria ser levada ao povo e deveria refletir a sociedade russa e não os padrões acadêmicos de então.

Retrato de Fyodor Dostoyevsky,
Vasily Perov, óleo sobre tela, 1872
Esses princípios da Academia ainda se regiam pelas convenções do academismo neoclássico, em grande parte inspirado pela arte italiana, assim como pela academia francesa. Para a Academia de São Petersburgo, além disso, a "grande pintura" era a histórica, gênero mais prestigiado, com temas geralmente retirados da Bíblia, da mitologia greco-romana e dos grandes eventos da história antiga. Somente se mantendo dentro destes limites é que os alunos podiam concorrer à medalha de ouro na competição anual, que dava direito a uma bolsa de estudos no exterior. Outros temas, como a paisagem e natureza-morta eram considerados menores e impróprios para o artista educado lá.

Por exemplo, dois artistas - Mikhail Shibanov e Nikolai Argunov - já haviam tentado pintar outras temáticas, como cenas com camponeses e as vilas do interior, mas encontraram a oposição de professores e da direção da Academia. Em 1840 outro artista, Pavel Fedotov, realizou estudos satíricos sobre a vida burguesa, obtendo mais sucesso que seus colegas e obrigando a Academia a fazer algumas concessões. Algumas obras nesse gênero foram premiadas, o que incentivou outros alunos a se dedicar a uma pintura do cotidiano, mas com avanços mínimos.

Mas em 1861, Vladimir Stasov levantou sua voz em defesa de mais liberdade na Academia. Ele era um influente crítico de arte e não apenas apoiou as inovações que começaram a surgir como criticou diretamente o conservadorismo dos acadêmicos. Também passou a defender que a pintura se voltasse para a realidade nacional e para temas populares.

Pintura de Ivan Kramskoi
Em 1863, veio a gota d’água que faltava para o rompimento definitivo com a Academia. Treze artistas foram selecionados para concorrer à medalha de ouro, conforme as regras do concurso. Anualmente, os jurados sempre determinavam qual seria o tema sobre o qual os artistas deveriam trabalhar. Naquele ano, diferentemente dos anteriores, os jurados resolveram deixar flexível a escolha do tema por parte dos estudantes, mas que levassem em conta seus próprios sentimentos. Vendo que os jurados alargavam seus critérios, os treze artistas solicitaram que fosse dada liberdade completa de escolha do tema. Pedido rejeitado, os jurados resolveram reagir de forma contrária e voltaram às regras antigas do concurso, com tema único, como sempre acontecera. O assunto escolhido foi: "A festa de Odin no Valhala". Revoltados, os pintores, liderados por Ivan Kramskoi, abandonaram a competição e a Academia, formando a Associação dos Artistas Livres.

Mas eles não estavam apenas se insubordinando. Sua rebeldia era também reflexo de suas convicções de que o artista deveria poder escolher seus assuntos de acordo com suas preferências e sua visão de mundo, sem ter de prestar contas disso a instâncias superiores.

Em 1870, esta organização - já ampliada com a presença de outros artistas - foi denominada “Sociedade de Exposições Itinerantes de Obras de Artistas Russos” (Peredvizhniki) - ou simplesmente “Os Itinerantes”. Eles queriam dar às pessoas das províncias a chance de seguir de perto as conquistas da arte russa e ensinar as pessoas a apreciar a arte. A sociedade manteve-se independente de apoio oficial, mas recebeu incentivos da parte de industriais, como Pavel Tretyakov, um grande colecionador de obras de arte, que incentivou exposições dos trabalhos desses artistas e deu-lhes importante suporte material.

Os objetivos do grupo eram: educar o povo possibilitando que entrasse em contato com a nova arte russa, formar um novo gosto e conceito de arte, e formar um novo mercado para essa arte nova.

É bom lembrar que, em Paris, Gustave Courbet se revoltou contra a Academia Francesa e inaugurou sua exposição individual intitulada "Realismo"; que Anders Zorn, pintor realista sueco, já causava admiração por onde passava; que Mariano Fortuny, na Espanha, já implementava os conceitos realistas em sua pintura; que Giovanni Boldini, na Itália, se juntara aos Macchiaioli e era um dos líderes deste grupo; que Adolph Menzel também rompera com as regras da academia alemã e se voltava ao realismo; que John Singer Sargent, um dos maiores gênios realistas do século XIX, já encantava e intrigava a todos com sua grande qualidade técnica... Que o Realismo abria espaços amplos para as vanguardas europeias do século XX... E que exercia grande influência sobre os artistas russos, em especial Courbet, Zorn e Fortuny...

As lavadeiras, Abram Archipow,
óleo sobre tela,1901
A primeira exposição pública de "Os Itinerantes" aconteceu em 1871 na própria Academia, com grande repercussão. Foi bem recebida até mesmo por críticos contrários, como Mikhail Saltykov-Shchedrin, sensibilizado com a ideia de que esta mostra deveria não só ser apresentada em São Petersburgo e Moscou mas também deveria percorrer outras cidades do interior. Foi a primeira vez que uma exposição de arte pode ser vista por um público mais amplo, pois até então a maioria das pessoas somente conheciam as novidades da pintura vendo reproduções em jornais, catálogos e gravuras. Esta exposição também foi um sucesso comercial; a própria família imperial adquiriu muitas obras. O colecionador Pavel Tretyakov, que já apoiava o grupo, adquiriu muitas obras.

“Os Itinerantes” foram influenciados pelas ideias de intelectuais como Vissarion Belinsky e Nikolai Chernyshevsky, críticos literários que defendiam idéias liberais. Belinsky dizia que a literatura e a arte deveriam ter responsabilidade social e moral. Como a maioria dos eslavófilos - movimento que defendia a tradição e a cultura russa - Chernyshevsky apoiou ardentemente a emancipação dos servos realizada em 1861. Na época, haviam 20 milhões de pessoas vivendo como servos. Para ele, a servidão, a censura da imprensa e a pena de morte eram influências ocidentais. Ele mesmo tinha sido censurado em seus escritos, por causa de seu ativismo político. Chernyshevsky era considerado um socialista utópico. Escreveu bastante sobre o papel da arte, o que influenciou os artistas Itinerantes.

“Os Itinerantes” retrataram aspectos multifacetados da vida social, muitas vezes criticando as injustiças. Pintavam  não apenas os temas da pobreza, mas também a beleza do estilo de vida do povo; não só seu sofrimento, mas também a força de seus personagens. “Os Itinerantes” condenavam o poder aristocrático e o governo autocrático em sua arte humanista. Retrataram os movimentos de emancipação, a vida social-urbana e, mais tarde, usaram a arte histórica para retratar as pessoas comuns. Tiveram seu apogeu entre 1870 e 1880.

Em seu período de formação (1870-1890), “Os Itinerantes” desenvolveram um ponto de vista amplo para suas pinturas, com imagens realistas, mais naturais. Em contraste com a paleta escura tradicional de seus tempos de estudante da Academia, escolheram uma paleta mais leve, com uma maneira mais livre em sua técnica. “Os Itinerantes” eram a sociedade que unia os artistas mais talentosos do país, que incluía artistas da Ucrânia, Letônia e Armênia.

Numa rua de Moscou, Vasily Polenov,
óleo sobre tela, 1878
Entre os temas de “Os Itinerantes”, estava a pintura de paisagem, que floresceu nos anos 1870 e 1880. “Os Itinerantes” pintavam paisagens próximas; alguns entre eles, como Polenov, usava a técnica de plein-air (pintura ao ar livre). Dois pintores, Ivan Shishkin e Isaak Levitan, pintaram apenas paisagens da Rússia. Shishkin - outro paisagista - é considerado o "cantor da floresta" russa, mas as paisagens de Isaac Levitan são mais famosas e expressam seus intensos sentimentos de artista. Os pintores paisagistas russos desejavam explorar a beleza de seu próprio país e incentivar as pessoas comuns a amar e a preservar seus lugares. Levitan disse uma vez: "Só imagino tal graça em nossa terra russa, esses rios transbordantes que trazem tudo de volta à vida. Não há um país mais bonito do que a Rússia! Só pode haver paisagistas na Rússia". “Os Itinerantes” deram este caráter nacional para as paisagens, inclusive permitindo que pessoas de outras nações pudessem conhecer como era a paisagem russa. Estas paisagens são a concretização simbólica da nacionalidade russa. Após “Os Itinerantes”, a paisagem russa ganhou importância como uma espécie de ícone nacional.

Ao longo dos anos, a quantidade de pessoas que viam as exposições de “Os Itinerantes” cresceu muito na população do interior da Rússia. Mas não só, pois elas atraíram também a atenção dos mais acostumados a frequentar exposições, assim como da elite urbana. Fotógrafos criaram as primeiras reproduções das pinturas de “Os Itinerantes”, ajudando a popularizar as obras, que poderiam ser compradas. Revistas, como a Niva, também publicavam artigos ilustrados sobre as exposições.

A origem de seus membros era variada; alguns eram camponeses, outros da burguesia urbana, e havia até nobres, mas todos se moviam com o objetivo comum de mostrar a vida em seu país. Associavam assim um estilo basicamente realista, de qual foram os principais divulgadores, com uma base ideológica de fortes traços românticos, idealistas e nacionalistas.

Velho camponês, Vasily Perov,
óleo sobre tela, 1870
Encaravam seu trabalho como uma missão sagrada. Vladimir Stasov, um dos mais ardentes incentivadores do grupo, disse que "os artistas que desejavam se unir para reformar sua sociedade não o estavam fazendo com o propósito de criar belas pinturas e estátuas com a finalidade única de ganhar dinheiro. Estavam tentando criar um alimento para as mentes e os sentimentos do povo".

Com o sucesso do grupo, que em pouco tempo aglutinou a maioria dos melhores talentos da pintura russa de sua época, a academia já não podia mais ignorá-los, e não só sua influência estética se fez sentir no meio acadêmico, mas também diversos deles foram contratados como professores, como Ilya Repin.

Muitos deles haviam ingressado no grupo porque acreditavam que a arte precisava alcançar um público mais vasto, e que deveria servir como uma força para o avanço social e o combate às injustiças e preconceitos. Mas quando seus ideais foram abraçados pela academia, começou a perder a vitalidade contestadora dos primeiros anos e as pesquisas mais arrojadas começaram a ser banidas pelo próprio grupo, que fora, em sua origem, uma vanguarda rejeitada pela oficialidade. O ciclo se repetia. Então diversos membros deixaram o grupo para prosseguir de forma individual, com mais liberdade. Com o passar dos anos, a arte dos Itinerantes já não espelhava os novos tempos e as mudanças na sociedade, e seu realismo de cunho social foi suplantado pelo decorativismo art nouveau do grupo Mundo da Arte e pelas vanguardas abstratas do modernismo.

Mesmo assim sua proposta original voltou a ser prestigiada quando o governo revolucionário assumiu o poder e estabeleceu as diretrizes para a formação do Realismo Socialista, do qual os Itinerantes foram um precursor, e onde diversos de seus representantes encontraram espaço para continuar em atividade. O Realismo Socialista resgatou as ideias iniciais de “Os Itinerantes”, quando estes artistas estavam convencidos de seu papel social como artistas em um país onde tudo estava em processo de transformação. Da arte à política.

“Os Itinerantes”, ao longo dos anos, produziram mais de 3.500 pinturas que foram vistas por mais de um milhão de pessoas em um grande número de cidades. O grupo durou até 1923, quando muitos de seus membros passaram a integrar a Associação de Artistas da Rússia Revolucionária (AKhRR, sigla em russo).

Abaixo, algumas das obras representativas de "Os Itinerantes":

Os rebocadores do Volga, Ilya Repin, óleo sobre tela, 1870-73

Procissão religiosa na província de Kursk, Ilya Repin, óleo sobre tela, 1880–83

Resposta dos cossacos de Zaporozhian, Ilya Repin, óleo sobre tela, 1880-91
Vigília, Arkhip Kuindzhi, óleo sobre tela, 1905-1908
Sessão do Tsar Michael I com a Duma Boyarda, Andrei Ryabushkin, óleo sobre tela, 1893
Procissão de Páscoa, Illarion Pryanishnikov, óleo sobre tela, 1893
Campo de centeio, Ivan Shishkin, óleo sobre tela, 1878
Chuva na floresta, Ivan Shishkin, 1891
Sonhos, Vasily Polenov, óleo sobre tela, 1895
Retrato de Isaac Levitan, Valentin Serov, óleo sobre tela, 1893
Ponte na floresta, Rafail Levitsky, óleo sobre tela, 1895-96
Pobres recolhendo carvão, Nikolay Kasatkin, óleo sobre tela, 1894
Retrato de Vladimir Solovyov, Nikolai Yaroshenko, óleo sobre tela, 1892
Os cegos, Nikolai Yaroshenko, óleo sobre tela, 1879
Consertando a estrada, Konstantin Savitsky, óleo sobre tela, 1874
Cristo no deserto, Ivan Kramskoi, óleo sobre tela, 1872
Retrato de uma desconhecida, Ivan Kramskoi, óleo sobre tela, 1883

terça-feira, 13 de junho de 2017

Do pensamento simbolista, surge o ‘Mundo da Arte’


"Membros do movimento Mundo da Arte", pintura de Boris Kustodiev, 1916-1920
O grupo de artistas e intelectuais que se uniu no que ficou conhecido como “Mundo da Arte” (Mir Iskusstva, em russo), foi contemporâneo e bastante semelhante aos pintores simbolistas franceses, conhecido como “Les Nabis”. É o que aponta a pesquisadora Camilla Gray em seu livro “O grande experimento. Arte russa.”, que também narra:

“Emergiu de uma sociedade de colegiais, o ‘Pickwickianos do Neva’, que se tinha transformado numa ‘sociedade para a auto-educação’ sob a liderança de Alexander Benois em fins de 1880. A escola que todos frequentavam, o Colégio May, era uma instituição privada de classe média alta para os filhos da intelligentsia abastada de São Petersburgo, muitos dos quais de ascendência estrangeira”.

Era este o perfil dos membros do grupo que surgiu como um movimento no começo dos anos 1890, também paralelo ao movimento “Art-Nouveau” europeu. Eles desejavam representar “a vanguarda artística na Rússia” no final do século XIX e começo do XX. Era uma sociedade, que organizava exposições e depois editou uma revista.

Os artistas deste grupo - desenhistas, escritores, poetas e pintores - queriam influenciar a sociedade “e inspirar nela uma atitude desejável para com a arte - arte entendida em seu sentido mais amplo, o que vale dizer: incluindo literatura e música”.

"Alexander Benois", por Leon Bakst, 1898
Um de seus principais líderes foi Alexander Benois (1870-1960), desenhista teatral, produtor, crítico e historiador de arte. Nasceu em São Petersburgo, de família com ascendência alemã, francesa e italiana, e que pertencia a uma colônia estrangeira em São Petersburgo, criada na época em que o czar Pedro, o Grande, tinha trazido artistas do Ocidente para a Rússia, com o fim de ocidentalizar a cultura local, no século XVII.

A família Benois teve uma sucessão de artistas talentosos (incluindo arquitetos) que haviam dado uma grande contribuição à ocidentalização da Rússia. Os Benois não simpatizavam com as ideias de valorizar a cultura russa original, que consideravam bárbara e provinciana “e ao contrário de seus contemporâneos, seus membros não se desligaram do Ocidente”. Pelo contrário, por suas origens europeias, acompanhavam as ideias contemporâneas francesas e alemãs, assim como as italianas. Benois frequentou por apenas um ano as aulas de desenho - seu único aprendizado em arte - na Academia de Belas-Artes de São Petersburgo. 

Esta faceta internacional era a característica básica de o Mundo da Arte. Traziam a ideia da “arte como salvação da humanidade, o artista como sacerdote dedicado, e sua arte o caminho da verdade e beleza eternos.” O Mundo da Arte queria restaurar na Rússia a cultura que havia se perdido durante o período em que o movimento “Os Itinerantes”  (leia mais aqui) influenciou artistas e intelectuais russos. 

“Seu alvo era criar na Rússia um centro essencialmente internacional que contribuiria, pela primeira vez, com a corrente principal da cultura Ocidental.”

Retomaram o estudo das ideias alemãs, francesas e inglesas e fizeram uma reaproximação com o legado das reformas feitas por Pedro o Grande e por Catarina, que tinha sido totalmente desprezado pelos “Os Itinerantes”. 

Entre os “Pickwicknianos do Neva” (os fundadores do Mundo da Arte), estavam Dmitri Filosofov, Konstantin Somov e Walter Nuvel. Dmitri “Filosofov era um rapaz bonito e elegante”, filho de um importante membro do governo, um aristocrata - “era escritor, mas não muito criativo” - apresentou ao grupo o escritor Dimitri Merezhkovsky, “pensador religioso simbolista que contribuiu com a veia mística para as discussões do grupo.” Os membros do grupo se reuniam quase todos os dias, após as aulas, na casa de Benois. 

Revezavam-se em palestras, interrompidas por constantes risadas e gracejos, que as frequentes chamadas à ordem de Benois, sacudindo o sino de bronze da mãe, não conseguiam dominar totalmente”. Falava-se especialmente sobre artistas alemães, de Dürer a Liebermann e Corinth. Benois escreveu mais tarde que, nessa época, os impressionistas franceses não eram conhecidos na Rússia, sendo introduzidos somente após as exposições do Mundo da Arte no começo do século XX. Ele dizia que o livro de Émile Zola “A obra”, publicado em 1918, foi a primeira fonte de ideias impressionistas na Rússia.

Benois conheceu na Academia o estudante de arte Lev Rosenberg, que era pintor e desenhista teatral, mas cujo nome artístico ficou Leon Bakst, em homenagem ao avô. Apesar de ser o único que tinha origem mais pobre, Bakst se tornou líder do grupo e seu primeiro artista profissional - era dos “mais ferrenhos propagandistas do anti-academicismo, pois havia experimentado em primeira mão o frequente preconceito acadêmico contra qualquer coisa que ultrapassasse a fórmula tradicional”. 

Antes, ele também tinha sido aluno de Pavel Chistyakov e estava plenamente convencido do valor do realismo na pintura. Havia feito uma madona como uma velha de olhos vermelhos, vertendo lágrimas sobre o filho morto. Esta tela estava participando de um concurso com o tema “Pietá”. Quando Bakst foi chamado pelo júri, viu sua tela riscada com duas linhas de giz. Ficou furioso! Resolveu, depois disso, se juntar ao grupo Mundo da Arte por sua posição radical contra a Academia (mas que também era contra “Os Itinerantes”).

No final dos anos 1890, chegou a São Petersburgo um primo de Filosofov, Sergei Diaghilev, que logo foi apresentado ao grupo, com o qual não se identificou de imediato, comparecendo às reuniões com pouca frequência.

Após a formação escolar no Colégio May, a maioria dos alunos, como era de costume, foi para a Europa passar um ano, antes de entrar na Universidade de São Petersburgo: Benois tinha ido para a Alemanha, para se familiarizar com a arte contemporânea de Munique; Filosofov e Diaghilev tinham ido para Paris e voltaram bastante impressionados com as obras de Zuloaga, Puvis de Chavannes e do pintor escandinavo Anders Zorn.

Em 1893, um diplomata francês, Charles Birlé, que estava a serviço do consulado francês em São Petersburgo, foi apresentado aos “Pickwicknianos do Neva”, com quem ficou durante um ano e apresentou a eles os impressionistas franceses, em especial Gauguin, Seurat e Van Gogh.

Sergei Diaghilev era o menos criativo de todos do grupo, mas o mais prático. Por isso, logo que surgiu a ideia de publicar uma revista, como nenhum dos outros tinha aptidão prática para coordenar uma empresa como esta, o escolhido foi Diaghilev, que também era o responsável pela organização das exposições de arte. Em 1895 ele havia ido ao exterior e adquirido muitas pinturas para sua coleção.

O ano de 1896 foi um ano de dispersão do grupo. Benois, formado na universidade e casado, mudou-se para Paris, assim como outros que também foram para o estrangeiro.

Mas em 1897, Diaghilev retomou o grupo e organizou duas exposições: “Aquarelas inglesas e alemãs” e “Pintores escandinavos”. Em 1898 organizou a “Mostra de pintores russos e finlandeses”. Estas exposições foram grandes eventos artísticos e marcaram o Mundo da Arte como uma “sociedade de exposições”. 

Resolveram que era chegada a hora de ter uma revista, também intitulada Mundo da Arte. Mais uma vez o papel de organizador principal coube a Sergei Diaghilev, que, aliás, não era artista. Mas como o custo de produção era muito alto, procuraram o apoio da princesa Tenisheva, que tinha um centro de artes instalado em sua propriedade e era muito amiga de Benois; assim como o de Sava Mamontov, que havia se recuperado da falência e dirigia uma indústria cerâmica. O primeiro número de Mundo da Arte saiu em 1898, uma edição caprichada, que levou um ano para ser produzida, com clichés feitos na Alemanha.

Benois havia voltado de Paris e escreveu dois artigos iniciais: sobre os impressionistas franceses e sobre o pintor alemão medieval Pieter Brueghel. Este último artigo foi recusado, por não ser “suficientemente moderno”.

O grupo já havia se dividido em duas visões distintas: uma de esquerda, que “eram pelo ‘novo’ acima de tudo, e que, por princípio, atacavam tudo o que consideravam limitado, provinciano ou antiquado”; outros membros se posicionavam mais à direita, eram conservadores.

Na revista, Filosofov também publicou textos de representantes da primeira geração de simbolistas da literatura russa. 

Capa da revista Mundo da Arte, 1899,
por Jelena Dmitrijewna Polenowa
O Mundo da Arte, observa Gray, “inspirava-se na ideia de uma arte que existisse autonomamente, não subserviente a um tema de propaganda religioso, político ou social. (...) A Arte era vista como uma forma de experiência mística, um meio através do qual a beleza eterna poderia ser expressa e comunicada - quase um tipo novo de religião.”

O Simbolismo estava em alta em vários países da Europa Ocidental, como a França, e também tinha alcançado a Rússia. Na literatura, os escritores religiosos Merezhkovsky e Rosanov eram comparados aos franceses Baudelaire, Verlaine e Mallarmé.

No primeiro número da revista, incluiu-se ilustrações dos artistas do “Art-Nouveau” de vários países. Entre eles, os franceses Puvis de Chavannes (que teve muitos seguidores na Rússia), Monet e Degas. 

No último ano de publicação da revista, em 1904, ela se voltou mais para os artistas franceses, publicando-se nela imagens de obras pós-impressionistas. Mas os membros do grupo também nutriam ainda mais simpatia para com os artistas secessionistas de Viena, Böcklin e da Escola de Munique. O grupo publicou o último número da revista Mundo da Arte com a certeza de que havia cumprido o papel de restabelecer contato com a vanguarda artística europeia ocidental, preparando o terreno para uma “cultura internacional” na Rússia. 

Eles também haviam se voltado para a moda francesa recente de admirar a arte folclórica e primitiva, coisa que já havia atraído o interesse dos artistas do Círculo de Mamontov

“Contatos entre o movimento nativo de Moscou e o trabalho de Gauguin, Cézanne, Picasso e Matisse começaram em 1904 e continuando até 1914. Seu trabalho foi marcado por uma sucessão de exposições históricas, continuação lógica do movimento Mundo da Arte”.

Desde a exposição de 1900, as mostras de arte do grupo se voltaram mais para os artistas russos. Mas “havia duas tendências nesse estilo novo que poderiam ser, grosso modo, definidas como as escolas de S. Petersburgo e a de Moscou: a escola da linha e a escola da cor.” Falaremos delas mais abaixo.

Da escola de São Petersburgo, com artistas mais jovens, estavam: Benois, Somov, Lanseray, Dobuzhinsky e Bakst. Da escola de Moscou: Igor Grabar, Pavel Kusnetsov, Utkin, os irmãos Miliuti Sapunov e os líderes da futura vanguarda da década seguinte Larionov e Goncharova, que participaram pela primeira vez de uma exposição do Mundo da Arte em 1906. 

Tendo saído do movimento, Sergei Diaghilev a partir de 1905 passou a organizar por conta própria eventos que elevassem a arte e a cultura russa ao status merecido, dentro e fora da Rússia. Realizou em primeiro lugar uma exposição de pinturas de retratos do século XVIII, “o que significava recolher e juntar obras de arte completamente esquecidas e desprezadas, de remotas casas de campo do país inteiro.” Foi o que ele fez. O resultado foi brilhante. A exposição aconteceu no Palácio Taurida em São Petersburgo, e na inauguração estava o czar Nicolau II (lembremos que este foi o ano da primeira grande revolução que abalou o Império russo, e terminou com o assassinato em massa de uma manifestação de trabalhadores, executado pelas forças czaristas. O episódio ficou conhecido como “domingo sangrento”. Camilla Gray se cala sobre isso...)

Em 1906, Diaghilev organizou a seção de arte russa no Salon d’Automne em Paris, no Grand Palais. Eram 12 salas dedicadas à arte e cultura russas e a montagem foi organizada por Bakst. Foi uma mostra bastante ampla, apresentando desde a pintura de ícones a exemplos de todos os períodos da arte russa - com exceção das obras dos artistas do grupo “Os Itinerantes”. Foi desta exposição que participaram Mikhail Larionov e Natalia Goncharova.

Diaghilev também levou para Paris uma apresentação do “Balé russo” em 1909, que se apresentou no Teatro Châtelet e teve grande sucesso. Até 1914, Diaghilev levou anualmente a Paris alguma mostra ou apresentação musical:

“em que se pode localizar os vários temperamentos e linguagens que iriam compor o ‘Mundo da Arte’: o ressurgimento clássico favorecido por Benois; Roerich e a evocação de remotas culturas pagãs por Igor Stravinsky; o ressurgimento helenístico, refletido nos desenhos de Bakst (...); o impressionismo ornamental-decorativo de Golovin na tradição de Vrubel; os desenhos impressionistas de Korovin; e nos últimos desenhos de Larionov e Goncharova que, não só recuperam, em seus coloridos brilhantes e motivos formais, o retorno à arte folclórica dos artistas de Abramtsevo, mas antecipam o movimento futurista na pintura do qual eles foram os pioneiros na Rússia”
"O fantasma", Victor Borissov-Mussatov, 1903
O pintor mais importante desse período inicial da arte moderna russa, depois de Vrubel, foi Victor Borissov-Mussatov (1870-1905). Natural de Saratov, no Volga oriental, que era o principal centro de arte de província desta época até 1920. O Museu de Saratov ostentava uma coleção bastante erudita para a época e Mussatov , ainda criança, passou a frequentar as aulas de desenho no Museu. Foi depois para a Faculdade de Pintura, Escultura e Arquitetura de Moscou. Em 1891 transferiu-se para a Academia de Belas Artes de São Petersburgo, sendo um dos últimos alunos a estudar com Pavel Chistyakov.

Em 1895 foi para Paris, trabalhando durante 4 anos no estúdio de Gustave Moreau “famoso por sua breve acolhida aos futuros pintores ‘fauves’”. Mas seu interesse principal foi pela obra de Puvis de Chavannes e por causa dele,Mussatov passou a trabalhar num estilo “historicista”: seu fascínio pelo passado foi uma constante em seu trabalho, “o momento irrecuperavelmente perdido do qual ele parece lamentar-se para sempre”. Ele tornou a figura humana mais distante e misteriosa “uma visão secreta e ensimesmada da existência.”

Em 1895, morre Gustave Moreau e Mussatov volta à Rússia, indo para sua terra natal, Saratov. Um proprietário de terras cedeu a ele um parque abandonado com uma casa velha de estilo clássico, com colunas brancas e cúpulas arrendondadas, que aparecem várias vezes em seu trabalho. “Os azuis suaves e os verdes acinzentados, que Mussatov sempre usou, são as cores dos simbolistas por excelência”, observa Camilla Gray.

Os estilos pictóricos de São Petersburgo e Moscou

SÃO PETERSBURGO
MOSCOU
Ênfase na linha
Ênfase na cor
Influência dos cenários do teatro sobre a pintura de cavalete
Novas maneiras de criar o espaço, sem se ligar na perspectiva
Passaram das formas fechadas a formas abertas, rejeitando a modelagem tradicional
Sentimento simbolista
O sentido da distância se sobrepunha ao explícito senso de distância entre o espectador e o mundo
“o intangível, o misterioso, e não o defnido e compreendido, representam a realidade mais profunda”

O uso de silhuetas mais exageradas, que se pareciam mais a caricaturas do que figuras humanas, exibidas de perfil ou de costas para o espectador
Influência dos impressionistas franceses
Redução da figura humana a uma forma apenas ornamental-decorativa
Uso de cores lisas em tudo, como na pintura de ícones
Eloquência da linha divorciada da cor e da forma
distanciamento do realismo na cor e na forma
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Referência bibliográfica:
Gray, Camilla. O grande experimento. Arte russa. 1863-1922. São Paulo: Worldwhitewall Editora Ltda, 2004

"A senhora na cadeira de balanço" (esboço para um filme não realizado),
Mussatov, 1897
"A carta de amor", Konstantin Somov, 1911
"Tipos da cidade", Mstislav Dobuzhinsky, 1915 
"Nemetskaya", Alexander Benois, 1911
"Elizabeth Petrovna", Eugene Lanceray, 1905