sexta-feira, 29 de junho de 2012

Murillo, o pintor realista de Sevilha

Murillo: A sagrada família do passarinho, 1645-1650
O Museu do Prado de Madri tem apresentado uma programação rica em grandes exposições. Neste momento, além da mostra “O jovem Rafael” (leia aqui), o Museu traz a exposição intitulada “Murillo e Justino de Neve. A arte da amizade” que apresenta um conjunto de dezessete obras da fase mais tardia do artista. Esses quadros pertencem a coleções de museus de Londres, Paris, Houston, Madrid e Sevilha, entre outras cidades.

O Museu do Prado de Madri reúne um acervo de pintura dos mais importantes da Europa, mais especialmente de pintores espanhóis cujos nomes simbolizam o que há de melhor na pintura universal, como Diego Velásquez, Francisco Goya, José Ribera e Murillo entre outros. Sem esquecer que Salvador Dali e Pablo Picasso também eram espanhóis.



Murillo: Autorretrato, 1670, óleo sobre tela
O conjunto dos quadros, segundo o portal do Museu, são “um excelente testemunho de alguns dos projetos artísticos mais importantes que aconteceram em Sevilha naquele período, que coloca o espectador dentro do coração do Barroco sevilhano e sua fusão entre arte, religiosidade e cultura”.

Além de obras que pertenceram a Justino de Neve, um cônego da igreja de Sevilha, Murillo também fez pinturas para a igreja de Santa Maria La Blanca, para a catedral e para o Hospital dos Veneráveis Sacerdotes.

Justino de Neve, além de amigo de Murillo, foi seu mecenas em algumas das pinturas mais importantes, como por exemplo as da Fundação de Santa Maria Maior, três dos quais foram restaurados para esta exposição. Também estão lá na mostra a Alegoria da primavera (A florista), e O verão, entre outras.

Justino de Neve adquiriu em sua vida pelo menos 18 quadros de Murillo, entre os quais seu retrato, executado pelo pintor. Inspirado em artistas italianos e em Van Dyck, Murillo retratou Justino de Neve com elegância e grandeza.

Murillo: retrato de Dom Justino de Neve,
óleo sobre tela
Quando estive em Paris, em 2011, pude ver de perto “O pequeno mendigo” de Murillo, justamente quando um copista do Museu do Louvre pintava uma cópia dele. Murillo possuía especial sensibilidade para pintar crianças, e nessa mostra atual em Madri, pode-se apreciar seu “São João menino com um cordeiro”, que também tinha pertencido a Justino de Neve.

Há também um autorretrato de Murillo e, segundo o texto que apresenta a exposição, é “junto ao de Velázquez em ‘As Meninas’, um dos mais sofisticados e influentes retratos de artistas da Espanha do século XVII.”

Breve biografia

Bartolomé Esteban Murillo nasceu em Sevilha (Espanha) em 1617 e faleceu a 3 de abril de 1682. Foi um pintor barroco espanhol, figurando ao lado de outros grandes mestres: Caravaggio, Rubens, Rembrandt, Vermeer e Zurbarán.

Com uma característica realista, Murillo estava imerso dentro da fase plena do Barroco, mas alguns críticos dizem que ele poderia já ser um prenúncio do futuro estilo rococó, praticado pelo francês Fragonard, muito mais tarde.

Figura central da escola de pintura de Sevilha, Murillo teve muitos discípulos e seguidores de seu estilo, levando sua influência até o século XVIII. Ele foi também o pintor espanhol melhor conhecido e mais apreciado fora de seu país, no mesmo período.

Murillo: Pequeno camponês sorrindo
no parapeito, óleo sobre tela
Murillo foi o mais novo filho de uma família de 14 irmãos. Seu pai, Gaspar Esteban, era um próspero barbeiro, que também era cirurgião, dono de alguns imóveis que foram fontes de rendas para Murillo após a morte do pai. Sua mãe, María Pérez Murillo, era de uma família de ourives e de pintores. Bartolomé acabou adotando o sobrenome da mãe em seu nome. Seus pais morreram quando ele tinha pouco mais de nove anos de idade. Sua irmã mais velha, Ana, foi quem cuidou dele desde então.

As notícias sobre seus primeiros anos de vida e sua formação como pintor são escassas. Mas admite-se que ele tivesse passado pelo ateliê do pintor Juan del Castillo, parente de sua mãe. A influência de Castillo pode ser notada na expressão amigável dos rostos das pinturas de Murillo de sua primeira fase, que era também uma característica de seu mestre.


Em 1645 ele pintou treze quadros para o Convento de São Francisco, em Sevilha, onde se poderia notar, agora, uma influência de Van Dyck, Ticiano e Rubens. O sucesso desta encomenda foi tal que logo vieram outras.

No mesmo ano, Murillo se casou com Beatriz Cabrera y Villalobos, com quem teve nove filhos. Na peste de 1649, que assolou a cidade de Sevilha, quatro de seus filhos morreram. Mas mesmo com a peste, ele continuou a receber encomendas.

Murillo: O pequeno São João,
óleo sobre tela
Em 1658, Murillo foi para Madrid, onde conheceu os pintores Diego Velázquez, Francisco de Zurbarán e Alonso Cano. Nessa época, diversos bons pintores moravam em Madrid. Lá também ele conheceu a pintura flamenga e veneziana.

Mas alguns meses depois, voltou para sua terra natal. Seu reconhecimento aumentava, assim como as encomendas, lhe permitindo ter uma vida tranqüila com sua família. Contribuíam para isso as propriedades deixadas por seus pais como herança.

Em 1663 Beatriz morreu em mais um parto.

A partir de 1665, sua produtividade foi ainda maior, pois as encomendas não só continuavam como aumentavam. Assim como sua fama, fazendo de Murillo um pintor conhecido em todo o seu país. O rei Carlos II convidou Murillo a estabelecer-se em Madrid.

Em 1681 recebeu como encomenda pintar os retábulos da igreja do Convento de Santa Catalina de Cádiz. Foi aí, enquanto trabalhava, que sofreu uma grave queda, resultando em sua morte, alguns meses mais tarde, já em 1682. Seu funeral foi pleno de honrarias, e ele foi enterrado como uma pessoa muito admirada por seu povo, como também aconteceu com o pintor italiano Rafael, ao qual nos referimos anteriormente neste blog (leia aqui).

Murillo, assim como os mestres do barroco Caravaggio, Velázquez e Rembrandt, entre outros, davam um tom realista a suas pinturas. Em seus quadros, as figuras são inspiradas em modelos reais, em pessoas comuns. E em estilo pictórico, modelo inaugurado por Rafael Sanzio (1483-1520), enquanto pintava a Stanza d’Eliodoro, como ressalta Heinrich Wöllflin em Conceitos Fundamentais de História da Arte. Na sequência, ao final do século XVI, surge Caravaggio, o grande mestre do Barroco, pintor também realista, fascinado pelos efeitos da luz, que ele pintou como ninguém. E inspirou tantos outros mestres após ele, como os espanhóis Velázquez, Zurbaran, Ribera e Murillo.



Murillo: Alegoria da Primavera (A Florista), Óleo sobre tela, 1665-1670

domingo, 24 de junho de 2012

Vincent Van Gogh: seus quadros resultam de muito estudo


Detalhe de um de seus autorretratos
Vincent van Gogh, pintor holandês nascido em 30 de março de 1853 (leia mais aqui), escreveu mais de 700 cartas a seu irmão mais novo, Theo, que era negociante de arte nos Países Baixos e foi um apoio fundamental para seu irmão artista. Theo van Gogh apoiou não só financeiramente a Vincent, mas era muito presente na vida do irmão mais velho, dando apoio emocional e incentivo em sua carreira de artista. Diz-se que os dois eram tão unidos que no ano seguinte à morte de Vincent, Theo também morreu.
Mas o tema que nos interessa no momento, dentro das cartas de Vincent a Theo, é apontar como Vincent van Gogh era um estudioso de sua profissão de artista. Acho importante enfatizar isso, pois vivemos em um tempo em que o sistema artístico hegemônico atual considera que técnica não serve para nada e que o aluno não precisa mais se debruçar dias e dias, anos de sua vida, no estudo da técnica e da teoria. Prega-se a instantaneidade, a rapidez das coisas. E “gênios” são fabricados a partir daí, com todo o apoio da mídia. Hoje em dia, basta ter uma boa ideia, à moda da “Caninha 51”, como aponta Ferreira Gullar.
Terraço do café à noite, Arles, 1888
Mas os mestres, todos, estudaram muito para produzir arte. Se olhamos para um quadro com as cores vivas de Van Gogh, que não nos iludamos: aquilo ali é fruto de aplicação ao estudo, ao desenho, às anotações, à observação das cores, de como elas se comportam em um quadro, umas em relação às outras. E respeitava aqueles que vieram antes dele, sabendo que ele só alcançaria algum status nas artes se soubesse em que terreno pisava, se conhecesse o que falaram e fizeram os que vieram antes dele. Mesmo que fosse para inovar. E Van Gogh o fez.
Extraio aqui alguns trechos de cartas escritas por Vincent a Theo entre 1883 e 1885, no que diz respeito às cores. Há muito mais nesse livro, que recomendo a leitura aos interessados. Esses excertos abaixo foram retirados do livro da Editora L&PM Cartas a Theo, de 2010:
“Escrevo-lhe a respeito de uma passagem de Os artistas do meu tempo, de Charles Blanc: 


‘Três meses aproximadamente antes da morte de Eugène Delacroix, nós o reencontramos, Paul Chenavard e eu, nas galerias do Palais-Royal, às dez horas da noite. Foi à saída de um grande jantar onde se havia discutido questões de arte, e a conversação sobre este mesmo assunto tinha se prolongado entre nós dois, com aquela vivacidade, aquele calor que dispensamos sobretudo às discussões inúteis. Falávamos sobre a cor, e eu dizia:
- ‘Para mim os grandes coloristas são aqueles que não pintam a cor local’. E eu ia desenvolver meu tema quando percebemos Eugène Delacroix na galeria da Rotunda.
‘Ele veio a nós exclamando: tenho certeza de que eles estão discutindo pintura! Com efeito, disse-lhe eu (...), eu dizia que os grandes coloristas não pintam a cor local, e convosco certamente não precisarei ir além.  
‘Eugène Delacroix deu dois passos para trás piscando um olho segundo seu hábito: ‘Isto é perfeitamente verdadeiro, disse ele, veja um tom, por exemplo (e indicava com o dedo o tom cinza e sujo do chão): pois bem, se disséssemos a Paolo Veronese (pintor italiano do Renascimento): pinte-me uma bela mulher loira cuja pele tenha este tom, ele a pintaria, e a mulher seria uma loira em seu quadro’.
A noite estrelada sobre o rio Rhone, 1888
Van Gogh continua:
“A respeito de ‘cores pobres’, não se deve, no meu entender, considerar as cores de um quadro por si mesmas; uma ‘cor pobre’ pode muito bem exprimir o verde tênue e vigoroso de uma campina ou de um trigal quando, por exemplo, estiver sustentada por um castanho-vermelho, um azul-escuro ou um verde-oliva."
“(...) Uma cor escura pode parecer, ou melhor, produzir claridade; isto no fundo é mais uma questão de tom."
 “Mas, então, no que diz respeito à cor propriamente dita, um vermelho-cinza, relativamente pouco vermelho, parecerá mais ou menos vermelho em função das cores que lhe dão vizinhança."
“Assim como o azul e o amarelo. Basta colocar um pouquinho de amarelo numa cor para fazê-la tornar-se muito amarela, quando colocamos esta cor num – ou ao lado de um – violeta ou lilás."
Autorretrato, 1888
“Lembro-me como alguém se esforçava em reproduzir um telhado vermelho sobre o qual batia a luz, por meio do vermelhão e do amarelo-cromo, etc... Não funcionava."
(...) “Li com muito prazer Os mestres de outrora, de Fromentin. Vi tratadas nesse livro , em diversas passagens, as mesmas questões que me preocupavam muito nestes últimos tempos e nos quais penso continuamente... (...)”
“Faz muito tempo, Theo, que estou desgostoso com certos pintores atuais, que nos privam do bistre e do betume*, com os quais se pintaram tantas coisas magníficas e que, bem utilizados, dão sabor, riqueza e generosidade ao colorido, sendo sempre tão distintos. E que possuem propriedades tão notáveis e específicas.”
 “Aliás, também exigem esforço para que se aprenda a utilizá-los, pois deve-se usá-los de forma diferente que as cores ordinárias, e acho muito provável que mais de uma pessoa tenha ficado assustada com as tentativas que é preciso fazer no início e que, naturalmente, não dão certo logo ao primeiro dia em que se começa a utilizá-los.”
Estudo para Marguerite Gachet ao piano, 1890
“(...) Quando encontrar boas obras como, por exemplo, o livro de Fromentin sobre os pintores holandeses, ou se você se lembrar de uma delas (obras), não se esqueça que eu desejo muito que você compre algumas, deduzindo do que você costuma me enviar,desde que tratem de técnica. Tenho a intenção de aprender seriamente a teoria; não considero isso de forma alguma inútil, e acredito que frequentemente o que sentimos ou o que pressentimos instintivamente torna-se claro e certo quando somos guiados por alguns textos que tenham um real sentido prático."
“Quando ouço dizer que ‘na natureza não há preto’, penso que na realidade o preto também não existe na cor.”
“Sobretudo não se deve cair no erro de acreditar que os coloristas não empregam o preto, pois não é preciso dizer que desde que o preto entre em composição com elementos azuis, vermelhos ou amarelos, estes tornam-se cinzas, seja vermelho-escuro, amarelo ou azul-cinzento. Acho especialmente muito interessante o que Charles Blanc no Os Artistas de meu tempo diz sobre a técnica de Velázquez, cujas sombras e semitons consistem, na maioria das vezes, em cinzas frios e incolores, em que o preto e um pouco de branco são os elementos de base. Neste meio neutro e incolor, a menor nuvenzinha, por exemplo, já é muito expressiva.”
E mais à frente:
“(...) Sei entretanto e muito bem quem são os artistas verdadeiros e originais em torno dos quais girarão, como ao redor de um eixo, os paisagistas e os pintores de camponeses. Delacroix, Millet, Corot e o resto. Isto é o que eu sinto, embora mal expresso.”
“Quero dizer com isto que, mais que as pessoas, existem regras, princípios ou verdades fundamentais, tanto para o desenho quanto para a cor, aos quais é preciso recorrer quando se encontra algo de verdadeiro.”
“(...) Quero portanto assegurar a Portier nesta carta que minha crença em Eugène Delacroix e nestas pessoas antigas é muito exata e correta.”
“E enquanto trabalho num quadro em que não se veem claridades de uma lâmpada (...) talvez não seja inútil observar que uma das coisas mais belas dos pintores do nosso século foi pintar a obscuridade, que apesar de tudo é cor.”
“... Como é correto e verdadeiro. E como é importante poder fazer em sua palheta essas cores que não sabemos como chamar e que formam a base de tudo.”
Os comedores de batata, 1885
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* Bistre – bistre é uma tonalidade marrom escuro acinzentado com tom amarelado, feito a partir de fuligem.  Muitos mestres antigos usaram o bistre para seus desenhos. Betume – decomposição de origem animal ou vegetal, de cor escura como o petróleo, serve de base também para a pintura, usando-se por exemplo para dar impressão de envelhecimento a alguma base.
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Se quiser mais informações sobre o pintor, acesse o site do Museu Van Gogh de Amsterdam, Holanda:


Van Gogh Museum - em espanhol

quinta-feira, 14 de junho de 2012

A grandiosidade de Rafael Sanzio

A Stanza della Segnatura, no Vaticano, onde se encontram os afrescos de Rafael. Vê-se na parede da direita
"A Escola de Atenas" e na da esquerda "O Parnassus".
Neste último dia 12 de junho, o Museu do Prado de Madri, na Espanha, inaugurou aquela que, segundo seus organizadores, é uma das exposições mais importantes, até esta data, da obra de Rafael Sanzio. Também é a primeira delas que se concentra no período mais tardio de sua produção que o converteu em um dos pintores mais influentes da arte ocidental.

Organizada em colaboração com o Museu do Louvre, de Paris – que receberá a exposição na sequência desta -  a mostra traz mais de setenta obras, sendo quarenta pinturas e trinta desenhos, de acordo com uma cronologia que abarca os últimos sete anos de vida do pintor. A seleção das obras que estão expostas em Madri incluirá quadros célebres como o do altar de Santa Cecília (de Bolonha, Pinacoteca Nazionale), ou o retrato de Baldassare Castiglione, do Louvre. Também vai destacar a ampla representação de obras de seus principais discípulos: Giulio Romano (1499-1546) e Giovanni Francesco Penni (1488-1528), que, sob o controle estrito de Rafael, participaram ativamente dos últimos trabalhos do ateliê do mestre.

Sorte do público espanhol, que pode ir ver de perto a obra de um dos maiores mestres de todos os tempos.

Sobre o mestre

Rafael: Autorretrato, cerca de 1506
Rafael Sanzio nasceu em 28 de março de 1483, em Urbino, Itália. Era filho de Giovanni Sanzio, pintor da corte do duque de Urbino. Seu pai era também ourives, escultor, poeta e negociante de cereais. Urbino era, então, um importante centro cultural e ele teve uma educação refinada, que fez dele um homem culto e de modos elegantes. Segundo o historiador das artes italianas do século XVI, Giorgio Vasari, Rafael foi iniciado no ateliê de seu pai, onde ele aprendeu as bases técnicas de sua arte. Mas seu pai morreu por volta de 1494, três anos após a morte da esposa. Rafael tinha onze anos quando se viu órfão de pai e mãe.

Em 1500, com apenas dezessete anos ele deixa sua cidade natal e parte para a Perúgia, região da Úmbria, onde também vivia o pintor Pietro Vannucci, conhecido como Perugino, que acabara de terminar seus afrescos na Capela Sistina. Perugino possuía um estilo fluido e gracioso e as primeiras obras de Rafael seguem o estilo do mestre. Mas Rafael já não era mais um aprendiz e nesse mesmo ano já é citado como “mestre”, por causa da realização do retábulo “O Coroamento do bem-aventurado Nicolas de Tolentino”, um eremita canonizado em 1406, pela igreja de Santo Agostinho da Cidade de Castello. Rafael executa esse quadro com a ajuda de Evangelista da Pian de Meleto, velho assistente de seu pai.

Na condição de mestre, ele agora tinha seu próprio ateliê e seus próprios assistentes e discípulos. Sua reputação crescia. Mudou-se para Florença, aonde Michelangelo e Leonardo da Vinci disparavam suas pesquisas individuais que ultrapassavam os limites da época. Rafael morou em Florença por quatro anos e nesse tempo pintou algumas das mais conhecidas imagens de Maria. De Michelangelo, ele emprestava seus estudos de anatomia e de Leonardo da Vinci, as composições piramidais e a iluminação, bem como sua técnica do sfumato. Mas com isso em mãos, Rafael criou seu próprio estilo.

Um estudo feito quando era adolescente
A partir de 1508, Rafael começa sua carreira de pintor do papa. Naquela época, Roma era a cidade que mais atraía artistas de todos os cantos, em busca de trabalho e, mesmo, de reconhecimento. Bispos, cardeais e papas foram grandes mecenas das artes, transformando a cidade de Roma num verdadeiro canteiro de obras artísticas. Pintores, escultores, arquitetos, artesãos trabalharam em Roma durante décadas.

O papa que chamou Rafael a Roma foi Julio II. Rafael logo obteve reconhecimento público e nessa cidade ele morou até o fim da vida. Era famoso não só por ser artista, mas sua beleza e sua personalidade encantavam a todos. Giorgio Vasari, que escreveu sobre a vida dos artistas de sua época, disse que Rafael “era tão talentoso quanto bondoso... e ainda com modos afáveis e agradáveis.” Tinha uma saúde frágil, em especial os pulmões, era franzino e pálido, mas tinha uns olhos brilhantes, como observa Carlos Cavalcanti no livro Conheça os estilos de pintura. Parecia que sua vida era sustentada por um fio.

Entre sua maiores obras estão os afrescos pintados dentro do Vaticano, entre eles o mais conhecido, "A Escola de Atenas" (1510-1512). As figuras criadas por Rafael são a expressão da beleza ideal, dentro dos parâmetros da época, mas de atitudes simples e graciosas, como observa também Cavalcanti. O papa Júlio II lhe encomendou a decoração de todos os apartamentos da residência papal – conhecidos como Stanze – para cujo trabalho Rafael contou com a ajuda de ajudantes e de discípulos. Enquanto isso, Michelangelo iniciava a decoração da Capela Sistina, por encomenda do mesmo papa.

Retrato do papa Júlio II, que em 1650 irá inspirar
Diego Velázquez a pintar na mesma posição o "Retrato
do papa Inocêncio X
O primeiro ambiente que ele pintou foi a Câmara da Assinatura, local onde o papa costumava assinar bulas e documentos. Numa parede, pintou a "Escola de Atenas"; em outra, em frente àquela, compôs "A Disputa do Santíssimo Sacramento", opondo a antiga sabedoria grega às ideias do cristianismo. Cavalcanti diz que Rafael deve ter contado com a assessoria de teólogos e humanistas para compor toda a sala, onde misturou elementos da cultura grega, as musas, os poetas, os filósofos, assim como figuras do cristianismo.

Ainda seguindo Cavalcanti: “Na Escola de Atenas, por exemplo, o tema é justamente a glorificação da sabedoria grega. Sob majestoso pórtico bramantesco, cercado de pensadores, poetas e artistas da Grécia, Idade Média e Renascença, avançam conversando Platão e Aristóteles. Platão está com o ‘Timeo’ na mão.” O quadro é, de fato, grandioso e nele o próprio Rafael se autorretrata.

E. H. Gombrich diz em História da Arte que para “apreciar toda a beleza dessas obras, é necessário passar algum tempo nessas salas e sentir a harmonia e diversidade do plano total, em que um movimento responde a um movimento, e uma forma a outra forma.”

Exatamente nesse período, Rafael conhece aquela que será o grande amor de sua vida: “La Fornarina”, denominada assim porque ela era a filha de um padeiro. Diz-se que depois de certa época um estilo novo de beleza feminina começa a aparecer em seus quadros. Diz-se também que ela era muito bela e foi com ela que Rafael viveu até seus últimos dias. Quatro meses após a morte dele, Catarina ainda inconsolável, resolveu se internar num convento. Carlos Cavalcanti conta que ainda existe em Roma, numa casa que pertenceu à família Sassi, uma placa onde se diz que ali viveu “La Fornarina”, a paixão de Rafael.

Em 1513, morreu o papa Júlio II, quando Rafael ainda trabalhava nos afrescos do palácio. Mas o papa que veio a seguir, Leão X, pertencia à família Médicis, tradicional família italiana ligada às artes e às letras. Também o novo papa é admirador de Rafael, que vivia cercado de admiradores e de discípulos dispostos a aprender com o mestre.

O enorme afresco "A Escola de Atenas", na Stanza della Segnatura, Vaticano, 1508-1511. No centro do quadro, Platão e Aristóteles. No grupo de figuras à direita, o próprio Rafael se autorretrata em meio a outras personagens.
Rafael foi um dos maiores influenciadores das artes e um dos maiores modelos italianos para artistas de outras terras. Era grande retratista. Em suas composições, os “sentimentos de ordem, segurança e harmonia que nos comunica – diz Carlos Cavalcanti – resultam em grande parte do modo por que interpretava o espaço, sempre amplo e luminoso, conferindo-lhe inesperadas sugestões líricas”.

Rafael viveu numa época que passou para a história conhecida como “Il Cinquecento”, o mais rico período da arte italiana e de todos os tempos. “Foi a época de Leonardo da Vinci e Michelangelo, de Rafael e Ticiano, de Correggio e Giorgione, de Dürer e Holbein no Norte, e de muitos outros mestres famosos”, diz E. H. Gombrich em A História da Arte, que acrescenta: “É-se tentado a perguntar por que todos esses grandes mestres nasceram no mesmo período, mas tais perguntas são mais fáceis de fazer do que de responder”. Resta-nos mais apreciar o gênio desses grandes nomes das artes italianas, que surgiram em meio a um período de efervescência das ideias, quando o mundo passava por mudanças profundas, quando o capitalismo já se instaurara como um sistema moderno.

Sua amada Caterina,
 La Fornarina, cerca de 1518-19
Rafael possuía uma grande capacidade de trabalho, apesar de sua compleição frágil. Fez inúmeros retratos, composições gigantes, afrescos, quadros de encomenda. Atingiu um tão alto nível em sua técnica que diz Gombrich: “Assim como se considerou que Michelangelo atingiu o zênite no domínio do corpo humano, Rafael foi considerado o artista que realizou o que a geração mais antiga se esforçara em conseguir: a perfeita e harmoniosa composição de figuras movimentando-se livremente”.

Delacroix certa vez teria dito que “o mero nome de Rafael traz à mente tudo o que é mais elevado na pintura”. Ingres durante toda a sua vida cultuou Rafael, tanto em seu estilo, próximo do mestre renascentista, mas também nas homenagens recorrentes que fez ao pintor de Urbino em seu próprio trabalho.

Rafael Sanzio morreu aos 37 anos de idade, em 6 de abril de 1520, em Roma. Era tão reverenciado que seu sepultamento se deu em meio a muitas honrarias e pompas. Carlos Cavalcanti afirma que depois da morte de Rafael “o povo de Roma o tinha na conta de um anjo que Deus enviara à terra para fazer bonitas Nossas Senhoras e lindos meninos Jesus...” Gombrich conta que um dos mais famosos humanistas de seu tempo, o cardeal Bembo, escreveu para o túmulo de Rafael este epitáfio:

“Aqui jaz Rafael; 
enquanto viveu, a Mãe Natureza temia ser por ele vencida; 
agora que está morto, ela receia morrer também”.