terça-feira, 15 de outubro de 2019

Manifesto "Brasil em transe"

80 TIROS!, Mazé Leite, óleo sobre tela, 70x50 cm, 2019
Somos artistas cujo pensamento pictórico busca se orientar pelo movimento da luz sobre as coisas do mundo. Nosso trabalho é reflexo do estudo técnico e da observação dos efeitos da luz sobre a realidade. Seguindo os conceitos pictóricos ensinados há muito tempo por Rembrandt, as cores que usamos e as formas que pintamos buscam se submeter às direções da luz. Mas somos artistas brasileiros vivendo em um país cuja luminosidade colorida interfere diretamente sobre nossas pinturas. Seguindo este caminho, nos inspiramos na eterna dança do claro e do escuro. Podemos comparar esse tipo de percepção ao de músicos como Hermeto Pascoal e Sivuca, retratados por mim nesta exposição, que conseguiam extrair sons musicais de qualquer coisa. Para nós, qualquer coisa é potencialmente bela, se percebemos através das aparências o deslizar dos movimentos explícitos, ou sutis, da luz.
Por isso, a realidade sempre será nossa maior e inesgotável referência. Seja a realidade física, seja a realidade de nossa existência como seres que ocupamos um determinado espaço e tempo. Na minha visão, a arte jamais esteve isolada do restante da vida, em qualquer período histórico. Quando o homem pré-histórico pinta um bisão na parede de uma caverna, está expressando um símbolo do seu mundo, mas também seu modo de vida. Quando Michelangelo pintou a Capela Sistina, ilustrou uma ideia, uma cosmologia baseada em uma visão de mundo. Eugène Delacroix, com sua “Liberdade guiando o povo”, pintou um verdadeiro manifesto, indicando um novo tempo que precisava nascer. Sim, a arte tem um papel importante no mundo: elevar o espírito humano, o que muitas vezes quer dizer, provocar deslocamentos, fazer refletir.
Por isso, as obras desta exposição são a expressão individual de cada um de nós sobre o Brasil dos dias atuais. De um lado, um país rico culturalmente, imensamente criativo, musical, expressivo, miscigenado, multicolorido. De outro, um país em transe caótico: político, econômico, ambiental, social, cultural... Os dias atuais no Brasil são de medo: da volta dos dias terríveis da censura, dos ataques à democracia, à rica cultura brasileira, ao seu povo, ao seu meio-ambiente, ao seu futuro.
Após a eleição de Bolsonaro, houve uma reação unânime entre nós artistas do Ateliê Contraponto: esta quadrilha que chegou ao poder central no Brasil é nefasta. Neste ano e meio de trabalho, enquanto pintávamos nossas telas para esta exposição, Marielle Franco foi assassinada, Lula foi preso, Bolsonaro foi eleito, o conservadorismo se aprofundou, o desrespeito aos direitos humanos também. Duas barragens de lama despejaram detritos sobre Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais. A polícia militar mata mais jovens negros do que nunca, nas periferias do Brasil. E há poucas semanas, vimos o horror da floresta amazônica pegando fogo. Isso tudo nos afeta como sociedade e, obviamente, nos afeta como artistas.
Como artistas, expressamos nossos sentimentos frente a tudo o que está acontecendo. Como lidamos com imagens, pintamos! Mas como seres humanos, e brasileiros, gritamos contra o retrocesso que estamos sofrendo, contra os conservadorismos de todos os tipos, contra todas as injustiças, incluindo a injusta prisão do presidente Lula. Lula livre!
Mazé Leite
Ateliê Contraponto de Arte Figurativa
Paris 2019

Em Paris, a exposição-manifesto do Ateliê Contraponto

Na última sexta-feira, 4 de outubro, às 19 horas, foi inaugurada a exposição “Brasil em Transe” de pinturas a óleo, organizada pela artista plástica Mazé Leite, na Galerie Art et Societé de Paris. A mostra reúne o trabalho de 12 artistas plásticos brasileiros ligados ao Ateliê Contraponto de São Paulo e ficará na capital francesa até o próximo dia 20 de outubro.
Cerca de 150 pessoas passaram pela galeria localizada no coração do bairro do Marais, em Paris, para o vernissage da exposição que consta de 22 obras realizadas em um ano e meio de trabalho por onze alunos do Ateliê Contraponto, mais 11 pinturas de Mazé Leite. Para esta exposição, viajaram cerca de 25 brasileiros em direção a Paris. Amigos de outros países também vieram de cidades como Dublin (Irlanda), Londres (Inglaterra) e Amsterdam (Holanda). Muitos brasileiros que vivem na França também estiveram no evento, em sua maioria ligados a movimentos de brasileiros que se unem atualmente para se contrapor ao governo bolsonarista e em especial pessoas ligadas aos comitês franceses pela liberdade de Lula. Além destes, muitos franceses também vieram ao vernissage, trazidos pela divulgação solidária das redes de amigos e camaradas do PCF.
Neste ano e meio de trabalho de criação das 33 obras, cujo tema geral é “Brasil em transe”, os artistas se voltaram a retratar pictoricamente momentos e personalidades da cultura brasileira mas também temáticas mais políticas, como o drama dos rompimentos de barragens que atingem o meio-ambiente e as populações das áreas atingidas, o genocídio da juventude negra, os preconceitos sofridos pela população LGBTI, a liberação de agrotóxicos mortais em nossa agricultura, a morte de Marielle Franco, a prisão de Lula, etc. Cada artista se expressou, dentro da temática, da forma como mais se sente atingido no momento atual. O conjunto dos quadros revela aos franceses a força da arte brasileira e de seus artistas, vivendo um momento crítico da sua história.
As pinturas foram muito bem recebidas e diversas pessoas se disseram surpresas com a qualidade do trabalho do Ateliê Contraponto. Entre taças de vinho, brasileiros e franceses se misturaram, e as conversas versavam não só sobre o trabalho artístico, mas principalmente sobre a triste situação política em que o Brasil se encontra após a eleição de Bolsonaro. Todos buscavam entender todo o processo, muitos manifestando o espanto diante de quão rapidamente a extrema-direita avançou no Brasil, chegando ao poder central.
Em um determinado momento do evento, franceses e brasileiros se postaram na rua em frente à galeria, puxados pelo Comitê Lula Livre de Paris, gritando palavras de ordem pela liberdade de Lula! Foi uma reação natural, surgida dessa união entre amigos e camaradas brasileiros e franceses, todos solidários ao Brasil que passa por momento de tantas dificuldades na vida política e econômica, governando por um presidente neo-fascista. Outras atividades estão sendo pensadas pela rede de brasileiros em Paris, aproveitando a exposição, para promover atos em apoio ao povo brasileiro, contra Bolsonaro.
Como faz questão de ressaltar a artista e professora do Ateliê Contraponto, Mazé Leite, “a realidade sempre será nossa maior e inesgotável referência. Seja a realidade física, seja a realidade de nossa existência como seres que ocupamos um determinado espaço em um tempo determinado. A arte jamais esteve isolada do restante da vida, em qualquer período histórico. Quando o homem pré-histórico pinta um bisão na parede de uma caverna, está expressando um símbolo do seu mundo, mas num certo sentido, seu modo de vida. Quando Michelangelo pintou a Capela Sistina, ilustrou uma ideia, uma cosmologia baseada em uma visão de mundo. Delacroix, com sua “Liberdade guiando o povo”, pintou um verdadeiro manifesto, indicando um novo tempo que precisava nascer. Sim, a arte tem um papel importante no mundo: elevar o espírito humano, o que muitas vezes quer dizer, provocar deslocamentos, fazer refletir”.
Por isso, as obras desta exposição são a expressão individual de cada um dos sobre o Brasil dos dias atuais. “De um lado, um país rico culturalmente, imensamente criativo, musical, expressivo, miscigenado, multicolorido. De outro, um país em transe caótico: político, econômico, ambiental, social, cultural… Os dias atuais no Brasil são de medo: da volta dos dias terríveis da censura, dos ataques à democracia, à rica cultura brasileira, ao seu povo, ao seu meio-ambiente, ao seu futuro”, completa Mazé.
Após a eleição de Bolsonaro, houve uma reação unânime entre os artistas do Ateliê Contraponto: esta quadrilha que chegou ao poder central no Brasil é nefasta. Neste ano e meio de trabalho, enquanto pintavam suas telas para esta exposição de Paris, Marielle Franco foi assassinada, Lula foi preso, Bolsonaro foi eleito, o conservadorismo se aprofundou, o desrespeito aos direitos humanos também. Duas barragens de lama despejaram detritos sobre Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais. A polícia militar mata mais jovens negros do que nunca, nas periferias do Brasil. E há poucas semanas, vimos o horror da floresta amazônica pegando fogo.
“Isso tudo nos afeta como sociedade e, obviamente, nos afeta como artistas. Como artistas, expressamos nossos sentimentos frente a tudo o que está acontecendo. Como lidamos com imagens, pintamos! Mas como seres humanos, e brasileiros, gritamos contra o retrocesso que estamos sofrendo, contra os conservadorismos de todos os tipos, contra todas as injustiças, incluindo a injusta prisão do presidente Lula”, finaliza Mazé Leite.
Exposição de pinturas “Brasil em Transe”
Período: 4 a 20 de outubro de 2019
Horário: das 12h às 20h
Local: Galerie Art et Societé
19, Rue du Pont Louis-Phillipe
75004 – Paris França

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Ateliê Contraponto faz exposição em Paris

De pé, da esquerda para a direita: Roque, Ana Maria, Luciana, Taïs, Guilherme, Beto, Ana Sá, Virgínia, Sarah. Sentadas: Rubi, Mazé e Nathalia
O Ateliê Contraponto de Arte Figurativa, de São Paulo, sob a orientação de Mazé Leite, estará fazendo uma exposição na Galerie Art et Societé de Paris, de 4 a 24 de outubro próximo. A artista e onze de seus alunos levarão para a capital francesa 33 pinturas executadas em um ano e meio de trabalho. O tema da exposição "Brasil em transe" serviu como guia para a criação das obras, que resumem a visão individual de cada artista sobre nosso país, que vive tempos tão difíceis após a eleição de Jair Bolsonaro.
80 TIROS!
Mazé Leite, óleo sobre tela, 50x70 cm, 2019
A Galeria Art & Societé está localizada em um dos bairros mais culturais da capital francesa, ao lado de inúmeros museus e galerias de artes, e é reconhecida por receber artistas contemporâneos de diversos lugares do mundo, inclusive da América Latina.
A exposição, que terá sua inauguração às 19h (hora local) do dia 4 de outubro, é o resultado da curadoria e do planejamento da proprietária e professora do Ateliê Contraponto de Arte em São Paulo, Mazé Leite. Convidada pela Galeria parisiense Arte & Societé para fazer uma exposição individual, Mazé, que é uma grande entusiasta da arte figurativa no Brasil, divide essa oportunidade com 11 alunos do Ateliê que terão duas de suas obras expostas em Paris, totalizando 22 pinturas que foram executadas em um ano e meio de trabalho intenso. 
“Essas obras expressam nossas visões pessoais sobre o Brasil que vivemos, neste momento crucial de nossa história. Quando iniciamos nosso trabalho para esta exposição, não se tinha ideia dos rumos que o Brasil tomaria com a eleição de Bolsonaro. Isso nos afetou pessoalmente e deu ainda mais elementos para nosso processo de criação”, conta a artista e professora Mazé. 
"Brasil em Transe" apresentará aos visitantes uma riquíssima variedade de abordagens, que vai desde momentos que representam a cultura brasileira até temas de caráter mais político, passando por pinturas que denunciam o drama da população mineira causado pelo rompimento de barragens, o genocídio da juventude negra, os preconceitos sofridos pela população LGBTI, a liberação de agrotóxicos mortais em nossa agricultura, entre outros. A exposição também contará com obras que dão vazão a questões mais pessoais, individuais ou não, de um país cujo povo passa por grandes dificuldades neste período no qual a extrema-direita está em crescimento, gerando temores e ameaçando as conquistas sociais, econômicas e culturais de outrora. Porém, além de retratar essas barreiras e dores, as obras buscam reforçar que neste “Brasil em transe" há artistas que resistem e que ao pintar transformam seus próprios medos em arte, impingem suas próprias cores e mostram a beleza e riqueza que ainda são parte de um país que já inspirou muitos poetas.
Realismo em dança com a luz
Os trabalhos selecionados para a exposição contam com matéria-prima elementar: tinta a óleo, com uma técnica que segue um conceito fundamental, o da luz, e seus efeitos sobre a realidade observada.
Ao usar “a luz, mais abstrata que a matéria, para ir além do superficial”, segundo a curadora, os trabalhos seguem a tendência da arte figurativa, que retoma fôlego no país, mas já muito praticada em diversos países, com destaque para os EUA com artistas como David Leffel, Sherrie McGraw, Burton Silverman, etc. 
“Minha visão sobre a pintura mudou muito, desde que fui apresentada por um dos meus últimos professores, Maurício Takiguthi, a um novo modo de percepção. Desde então, me interesso cada vez mais pela aparência real das coisas e a forma de representá-la. Há 10 anos me dedico a estudar e a me aprofundar neste conceito, que também ensino em meu Ateliê”, reflete Mazé.
Os artistas, cujas obras fazem parte desta exposição, tecnicamente expressam nelas sua evolução pessoal no aprendizado deste tipo de pintura a óleo, além de dar voz a sua própria sensibilidade, ponto de vista e ideias sobre o tema proposto.
Artistas expositores:
Mazé Leite
Ana Maria de Sousa Pereira
Ana Suitsu
Beto Tozzi
Guilherme Martinez
Luciana Fortes Balam
Nathalia Lopes
Roque Magalhães
Rubi Conde Ferreira
Sarah Hounsell
Taïs Isensee
Virgínia de Morais

Serviço
Exposição: Brasil em Transe - Pinturas a óleo
Curadoria: Mazé Leite.
Abertura da exposição: 4 de outubro, às 19h.
Encerramento: 20 de outubro
Local: Galeria Art & Société
Endereço: 19 rue du Pont Louis Philippe 75004 / Paris, França
Entrada gratuita

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quarta-feira, 5 de junho de 2019

A solidão das multidões na obra de Lesley Oldaker

Passo a passo, Lesley Oldaker, óleo sobre papel, 2018
Em minhas constantes pesquisas sobre arte, de vez em quando as surpresas boas me aparecem. Há algum tempo, pesquisando sobre o Expressionismo alemão, me veio uma imagem, que salvei em meus arquivos, mas segui em outra direção. Hoje resolvi retomar as informações sobre aquela imagem que tinha me tocado. Resultado: as outras obras desta artista me impressionaram ainda mais.

Trata-se de Lesley Oldaker, uma artista inglesa que vive atualmente em Zurick, na Suiça. Ela já expôs suas pinturas em diversos países, como Reino Unido, EUA, Suíça, Eslováquia, Itália, Índia e China, e tem trabalhos em coleções particulares no Reino Unido, EUA, Bratislava, China, Austrália e Índia.

Seu trabalho inspira um tanto de melancolia, pois ela basicamente representa a vida na sociedade atual, nas grandes metrópoles: seres humanos perdidos, solitários em meio às multidões que correm para ganhar a vida. O clima tem um ar asfixiante, prédios comprimem o andar das multidões, aprisionam as pessoas em suas vitrines onde produtos são oferecidos permanentemente, no caos do consumismo dos tempos modernos... Dois de seus quadros, intitulados "Preso I" e "Preso II", mostram exatamente pessoas aprisionadas - quase sequestradas - por essas vitrines dos grandes prédios das grandes metrópoles...
Preso I, Lesley Oldaker,

Nos subterrâneos do metrô de Londres, há um certo olhar para cima, para fora, para respirar. Ela ultrapassa as dimensões do underground, mostrando a rua ou outros undergrounds...

Me lembra muito Käthe Kollwitz e suas pessoas tristes, solitárias e famintas em meio às duas guerras mundiais.

Me lembra muito o expressionismo alemão, com sua paleta de cores bem reduzida, densa, pesada, porque escura.

As atuais condições sociais em que vivemos - se paramos para melhor pensar - nos mostra a vida dura e difícil da luta pela sobrevivência, o ser humano cada vez mais solitário, mais jogado ao seu próprio destino em ambientes urbanos sufocantes...

Gosto do olhar de Lesley sobre este mundo. Incomoda porque é espelho de como vivemos no pesado mundo de hoje, onde o capitalismo suga mais vidas e nos empurra a um tipo de solidão onde nos sentimos permanentemente como se estrangeiros fôssemos...  E estranhos ao olhar do outro... Se é que olhar existe, direcionado que está para as redes sociais...


Preste-se atenção no título de suas obras, algumas das quais reproduzo aqui...

Quem sou eu?, Lesley Oldaker, óleo sobre tela, 2018
Diálogo perdido, Lesley Oldaker, óleo sobre tela, 2017
Fale comigo, Lesley Oldaker, óleo sobre tela, 2018
Só na noite, Lesley Oldaker, óleo sobre tela, 2016
Outsider, Lesley Oldaker, óleo sobre tela, 2017
A arena, Lesley Oldaker, óleo sobre tela, 2018
Despercebido, Lesley Oldaker, óleo sobre tela, 2018

Direção diferente, Lesley Oldaker, óleo sobre tela

Futuro incerto, Lesley Oldaker, técnica mista

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Leonardo da Vinci, o pintor-filósofo

"Última ceia", Leonardo da Vinci
Neste ano de 2019, diversas atividades ao redor do mundo estão reunindo milhões de pessoas em torno de um mesmo nome: Leonardo da Vinci. O motivo: neste 2 de maio completaram-se 500 anos após a morte deste gênio da humanidade. Um homem que se destacou em diversas áreas do conhecimento, entre elas a pintura.

Leonardo nasceu na pequena aldeia de Vinci, perto de Florença, na Itália. Ele foi, além de pintor, cientista, engenheiro, inventor, escultor, arquiteto, anatomista, urbanista, botânico, músico, poeta, filósofo e escritor. Mas este texto pretende se focar em Leonardo da Vinci pintor.

"Madona e o cravo", Leonardo da Vinci
Leonardo nasceu em 15 de abril de 1452. Sua mãe, Caterina, era uma camponesa e engravidou de uma relação amorosa com um nobre descendente de uma rica família florentina. O menino viveu seus cinco primeiros anos com a mãe e foi batizado apenas como “Leonardo”, prática comum no registro de nascimento de pessoas de origem humilde. Somente as famílias ricas possuíam um sobrenome. Por isso, “Da Vinci” foi acrescentado depois, apontando seu local de nascimento.

Quando ele tinha 5 anos, sua mãe casa-se com um camponês e ele vai viver com seu pai, Piero, mas, mesmo crescendo e sendo educado longe de sua mãe, registros mostram que Leonardo a ajudou financeiramente até à morte dela, em 1495.

Seu tio por parte de pai, Francesco, desempenhou um papel importante em sua formação, assim como seu avô Antonio, que incentivava o garoto a observar a natureza. Dizem que seu avô vivia lhe repetindo: “Abra os olhos!” Leonardo frequentou a escola só na adolescência, mas de forma irregular, aprendendo o básico da leitura e da aritmética. Somente aos 40 anos ele foi aprender as línguas dos eruditos e homens cultos, o grego e o latim. 

Em consequência do seu crescente interesse por desenho, seu pai o enviou para estudar no ateliê do pintor e escultor florentino Andrea del Verrocchio a partir de 1469. Este ateliê era um dos mais prestigiados da Florença Renascentista.

Verrocchio era um artista famoso e tinha uma formação que ia de ourives e ferreiro a pintor e escultor. Ele recebia muitas encomendas, as quais eram realizadas com a participação também de seus alunos. Leonardo, enquanto limpava os pinceis de seu mestre e fazia outras pequenas tarefas, foi aprendendo as técnicas praticadas em uma oficina tradicional de arte da época. Ele aprendeu também os conceitos básicos de química, metalurgia, trabalho em couro e gesso, mecânica e carpintaria. E, claro, técnicas de desenho artístico, pintura e escultura em mármore e bronze. Além disso, aprendeu a preparar as cores, misturando pigmentos em pó com óleo de linhaça. Também a técnica da gravura e a pintura de afrescos. E foi se destacando de tal forma que Verrocchio lhe passou a tarefa de terminar suas pinturas. 

"Dama com o arminho", Leonardo da Vinci
E. H. Gombrich em seu livro “A história da Arte” complementa dizendo que na oficina de Verrocchio, Leonardo também “aprendeu a estudar plantas e animais curiosos para incluir em seus quadros e recebeu fundamentos básicos sobre a ótica da perspectiva e o uso de cores.” E diz que qualquer outro rapaz com talento sairia da oficina do mestre como um respeitável artista, mas Leonardo ia além: “era mais do que um jovem talentoso. Era um gênio cujo intelecto poderoso será eternamente objeto de assombro e admiração para os mortais comuns”.

Não havia nenhuma forma de conhecimento humano da época que não atraísse seu interesse: seus papeis com anotações e desenhos são milhares de páginas, produzidos a partir de suas leituras. Ele projetava escrever livros sobre diversos assuntos. Neste sentido, Gombrich faz uma observação bastante interessante: Leonardo era um artista florentino e não um acadêmico erudito: “Considerava ele que a função do artista era explorar o mundo visível, tal como seus predecessores tinham feito, só que de maneira mais abrangente e com maior intensidade e precisão”. Ele sempre estava querendo verificar com seus próprios olhos, aquilo que havia lido de algum autor. Por isso, entre outros inúmeros experimentos que ele fez em várias áreas, chegou a dissecar cerca de 30 cadáveres, para estudar a anatomia do corpo humano.

“Passou anos observando o vôo de insetos e pássaros” e observava atentamente a forma de pedras e nuvens, “o efeito da atmosfera sobre a cor de objetos distantes”, assim como a harmonia dos sons. Ele não somente era admirado como pintor, mas também como “esplêndido músico”. Era canhoto, e por isso escrevia da direita para a esquerda. Para ler seus escritos é preciso se utilizar um espelho. Sua insaciável curiosidade o levou a estudar inúmeras áreas; mas “resolvido um problema” perdia todo o interesse por ele “já que existiam outros mistérios a se desvendar”, observa ainda Gombrich.   

Giorgio Vasari, um artista do Renascimento e que escreveu a célebre obra “Vida dos melhores pintores, escultores e arquitetos”, afirma, na parte em que trata de Leonardo da Vinci, que ele tinha tanta facilidade para aprender qualquer coisa, que muitas vezes, com seus questionamentos, confundia seus professores. E acrescenta que talvez por isso, fosse “tão volúvel e instável” porque “começava a aprender muitas coisas e depois as abandonava”. Dedicou-se algum tempo a aprender Música e a tocar Lira e cantava “divinamente” bem. Mas o desenho e a escultura “despertavam mais seu interesse do que qualquer outra coisa”. 

Em 1472, com 20 anos de idade, ele foi aceito como membro da Guilda de São Lucas, a famosa guilda de pintores e praticantes de medicina, em Florença. Uma observação: toda a química que envolve o ofício da pintura naquela época era adquirida no mesmo lugar, a botica, onde os médicos também adquiriam seus produtos. Por isso, São Lucas é o mesmo patrono de pintores e médicos. As guildas eram um tipo de associação, durante a Idade Média, que juntava indivíduos que praticavam o mesmo ofício ou tinham os mesmos interesses.  

"A Virgem das rochas",
Leonardo da Vinci
Sua carreira como pintor começa já executando obras de alto nível pictórico. Leonardo aperfeiçoa a técnica do sfumato a um ponto de refinamento nunca alcançado antes dele. Mas seus variados campos de interesse e atividades que envolviam sua vida prática, fez com que ele não tivesse feito muitas pinturas: há pouco mais de uma dezena de sua autoria e algumas outras atribuídas a ele. Sua primeira pintura teria sido a  “Madona com o cravo”, de 1476.

Mas E.H. Gombrich afirma que toda a curiosidade e profundo interesse que Leonardo desenvolvia com o mundo a seu redor tinha um motivo muito importante para ele: sua arte. Ele queria - com toda a sabedoria adquirida - elevar a arte da pintura, que era “um ofício humilde” na época, a um patamar mais alto, mais nobre e prestigioso.

Desde Aristóteles, certas artes - as chamadas Artes Liberais (Gramática, Retórica, Lógica e Geometria) eram apontadas como de caráter mais “nobre”, enquanto que as artes manuais, que implicavam trabalho manual, estavam “abaixo da dignidade de um cavaleiro”. Por isso - segundo Gombrich - Leonardo queria mesmo era alçar a Pintura às Artes Liberais e mostrar que o trabalho do pintor não era menor do que o do poeta, que escreve suas poesias. Consciente do valor do seu ofício, muitas vezes Leonardo recusou encomendas e entrava em disputa com seus clientes que não o valorizassem como ele gostaria. Também iniciou várias pinturas que nunca terminou, apesar das reclamações dos clientes. “Além disso, insistia obviamente em que só a ele cabia decidir quando uma obra estava terminada e recusava-se a entregá-la enquanto não se considerasse satisfeito com ela”, aponta Gombrich.

Com seu espírito inquieto e sedento de conhecimento, não parava de viajar entre Milão e Florença. Também viajou para Roma, Veneza e para a França, onde morreu em 1519.

Suas obras chegaram até nós em péssimo estado de conservação. O mural “A Última Ceia”, pintado para o refeitório de um convento de monges de Santa Maria delle Grazie, em Milão, está muito afetado pela ação do tempo e pelo desgaste da parede onde foi pintado. Mesmo assim, esta obra é uma das mais visitadas por milhões de pessoas desde que foi pintada. A fila de espera, nos dias atuais, é longa; leva-se meses para se adquirir o ingresso vara ir ver a “Última Ceia” em Milão.

Este tema já havia sido retratado por outros pintores, mas a pintura de Leonardo foi algo absolutamente novo naquele tempo. Era muito diferente de todas as outras. “Há nela drama, teatralidade, excitação”. Na versão de Leonardo, Cristo acabara de pronunciar palavras trágicas (“Um dentre vós me trairá”). Os apóstolos a seu lado estão horrorizados, alguns protestam, outros discutem. Judas não está afastado dos outros apóstolos mas é o único que não gesticula. Cristo, no centro da mesa, parece resignado e calmo, em meio ao alvoroço. Toda a composição do quadro é impressionantemente realista: foi pintada por um homem que também observava a psicologia humana, sua natureza mais íntima e seu comportamento. 

Diz-se que um homem que acompanhou Leonardo trabalhando nesta pintura, teria testemunhado que ele “subia no andaime e aí ficava ereto por dias inteiros, os braços cruzados, apenas olhando com o olho crítico o que já tinha feito, antes de aplicar outra pincelada”.

"Mona Lisa", Leonardo da Vinci
O historiador de arte E.H. Gombrich, afirma que, até ser pintada a “Mona Lisa” de Leonardo, as figuras humanas pintadas por outros artistas tinham algo de duro, parecido como se fossem figuras de madeira. A grande sacada deste artista imenso foi a de que não se deve descrever o todo de uma figura. “O pintor deve deixar ao espectador algo para adivinhar”. Não há necessidade de traçar todos os detalhes, de descrever absolutamente tudo. Há que se deixar formas indefinidas, bordas mais suaves, massas de luz e cor que ultrapassam nariz, boca, olhos, por exemplo. Nesta obra, Leonardo caprichou ainda mais no sfumato, técnica que suaviza a transição entre a luz e as sombras.

Esta pintura é conhecida, em particular, pelo sorriso indescritível no rosto da mulher, cujos olhos parecem nos seguir, quando a vemos de perto no Museu do Louvre em Paris. O sfumato sutilmente “cria” os contornos da boca, nariz e olhos, de tal modo que dá um certo mistério a esse sorriso, que já foi tão estudado ao longo dos anos. Giorgio Vasari escreveu que "o sorriso é tão bom que parece mais divino do que humano; aqueles que o viram ficaram muito surpresos ao descobrir que ele parece tão vivo quanto o original". 

Como desenhista, Leonardo encheu seus diários com esboços e desenhos detalhados para acompanhar tudo o que chamava sua atenção. Além de anotações, há muitos estudos para pinturas, algumas das quais podem ser consideradas preparatórias para obras como “A Adoração dos Magos” e a “Última Ceia”. Seu primeiro desenho datado é uma paisagem, “Paisagem do Vale do Arno” de 1473. 

Mas seu desenho mais famoso é o “Homem Vitruviano”, um estudo das proporções humanas.

Outros desenhos incluem muitos estudos geralmente chamados de "caricaturas" porque, embora exagerados, parecem basear-se na observação de modelos vivos. Giorgio Vasari relata que, se Leonardo encontrava uma pessoa que tinha um rosto interessante, ele a seguia o dia todo para observá-la. Há muitos estudos de homens jovens e bonitos, frequentemente associados a Andrea Salaí, que teria sido seu amante. Salaí também é frequentemente representado em fantasias e adereços.

Leonardo da Vinci morreu na antiga vila de Clos Lucé, no vale do Loire, na França. Ele havia se tornado grande amigo do rei francês Francisco I e Vasari relata que Leonardo teria morrido em seus braços. Cerca de 20 anos após sua morte, o mesmo rei teria falado, segundo o escultor Benvenuto Cellini:

“Nunca nasceu no mundo outro homem que soubesse tanto quanto Leonardo, nem tanto por seus conhecimentos de pintura, escultura e arquitetura, mas por ele ter sido um grande filósofo”.

Filósofo que nasceu naqueles dias em que seu avô Antonio lhe repetia o tempo todo para estar de olhos abertos para o mundo...

"Anunciação", Leonardo da Vinci