terça-feira, 25 de novembro de 2025

Viagem nordestina - III

Vestimentas e atabaques das religiões de origem africana em São Luís

São Luís é terra que acolheu minha família, na década de 1960. É onde passei minha adolescência e primeiros anos de juventude, antes de me mudar de vez para São Paulo, fazendo o mesmo caminho de tantos nordestinos antes e depois de mim. Quando chegamos lá, o povo era quase todo preto, descendentes de escravizados que foram arrancados de vários cantos da África, Guiné Bissau, Costa da Mina, Angola. Trouxeram sua cultura, que se misturou à dos indígenas, surgindo daí um imaginário riquíssimo que vai do Tambor de Mina ao Bumba-meu-Boi. Sua religião original, lá se configurou em recortes míticos, que passaram a incluir entre seus Inquices da tradição Bantu, os Encantados, os Voduns do Tambor de Mina da tradição Jeje e as figuras nativas, de inspiração indígena, os Caboclos. Assim que chegamos a São Luís, eu e minha família, passamos a ouvir os sons dos atabaques e tambores das Casas de Mina, sons que soavam estranhos a nós, que saímos de Caruaru. Aquelas reuniões de gente preta me atraíam e me intrigavam. Queria ir ver de perto, mas meu pai, muito católico, dizia que era coisa do diabo. Nessa época, não fui; depois, desobedeci, e adorei o que vi, ouvi e senti. Mas nem a proibição inicial me impedia de sentir as emanações que vinham dos terreiros. 

Mais à frente, vieram as histórias da lenda de Ana Jansen, uma assombração que percorria de noite as ruas da cidade. Ana Jansen tinha sido uma sinhá muito rica e muito má com seus escravizados. Quando morreu, por castigo, sua alma foi condenada a vagar sem descanso. Ela aparece em uma carruagem puxada por cavalos e mulas sem cabeça, que sai do cemitério do Gavião, no bairro Belira, toda noite de quinta para sexta-feira. 

Outras lendas também me arrancavam pavores, como das ilhas encantadas e das três serpentes que habitam o subsolo da ilha de São Luís. Sentia medo ao olhar para dentro das três janelas da Fonte do Ribeirão, no centro, onde as três serpentes moravam, habitantes dos três túneis que foram escavados no centro da cidade, nas guerras contra os holandeses e franceses. Até que um dia o feitiço passou e eu brincava alegremente nos blocos de carnaval que saíam exatamente da frente do cemitério ou da Fonte… 

São Luís é uma ilha, o mar recorta a terra. Os ventos fortes fazem as areias das praias beliscar nossas pernas, enquanto ondas pequenas mas muito extensas vão se quebrando em sequência rítmica. Todos os dias o sol se põe no mesmo lugar (com alguma variação) desde a minha adolescência quando, diariamente, ia para a beira do mar ver a noite chegar, aprendendo que vida é sequência. 

Com estes pensamentos, seguimos pela estrada, em direção inversa, margeando o litoral norte do Brasil. Assistimos a uma Lua Cheia brilhante às margens do Rio Preguiça, nas bordas dos Lençóis Maranhenses para, no dia seguinte, contemplar o sol tingindo o céu de inúmeros tons de vermelho, ao se pôr sobre o mar no Delta do Parnaíba. Vida seguindo, horizontes em movimento. 

Observatório no Centro Dragão do Mar

No final do dia, nos dirigimos para o Centro de Arte e Cultura Dragão do Mar. Estamos em Fortaleza, depois de rodar quase três mil quilômetros. O Dragão do Mar é o título que se dá a Francisco José do Nascimento, jangadeiro que se alinhou ao movimento abolicionista, que fez com que a abolição da escravatura se desse primeiro no Ceará. Um herói da pátria e dos pretos. Na praia de Iracema, bebemos água de coco vendida por um homem que havia deixado sua terra e passado anos a fio “sofrendo em São Paulo”. Voltou. “Aqui a vida não é fácil, mas é minha terra, minha gente”. E a viagem chegava ao fim, mas não antes de assistir ao filme de Kleber Mendonça, O Agente Secreto, no cinema do Dragão do Mar. 

O diretor é do Recife, o filme se passa no Recife. Pernambuco indecifrável, minha terra indefinível, o Real não te comporta sem que se abram espaços que te caibam. Nos minutos finais do filme, uma catarse emocional me fez chorar até a última palavra do letreiro. O filme faz chorar? Não, o conjunto todo da obra me emocionou, e não me contive. Ter visto este filme depois de 15 dias mergulhada na cultura e na alma do meu nordeste, para mim foi o clímax, o ponto culminante de uma experiência que carregarei comigo sempre. Mas farei meus comentários sobre este impressionante filme de Kleber Mendonça, no próximo post.

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