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terça-feira, 25 de novembro de 2025

Viagem nordestina - III

Vestimentas e atabaques das religiões de origem africana em São Luís

São Luís é terra que acolheu minha família, na década de 1960. É onde passei minha adolescência e primeiros anos de juventude, antes de me mudar de vez para São Paulo, fazendo o mesmo caminho de tantos nordestinos antes e depois de mim. Quando chegamos lá, o povo era quase todo preto, descendentes de escravizados que foram arrancados de vários cantos da África, Guiné Bissau, Costa da Mina, Angola. Trouxeram sua cultura, que se misturou à dos indígenas, surgindo daí um imaginário riquíssimo que vai do Tambor de Mina ao Bumba-meu-Boi. Sua religião original, lá se configurou em recortes míticos, que passaram a incluir entre seus Inquices da tradição Bantu, os Encantados, os Voduns do Tambor de Mina da tradição Jeje e as figuras nativas, de inspiração indígena, os Caboclos. Assim que chegamos a São Luís, eu e minha família, passamos a ouvir os sons dos atabaques e tambores das Casas de Mina, sons que soavam estranhos a nós, que saímos de Caruaru. Aquelas reuniões de gente preta me atraíam e me intrigavam. Queria ir ver de perto, mas meu pai, muito católico, dizia que era coisa do diabo. Nessa época, não fui; depois, desobedeci, e adorei o que vi, ouvi e senti. Mas nem a proibição inicial me impedia de sentir as emanações que vinham dos terreiros. 

Mais à frente, vieram as histórias da lenda de Ana Jansen, uma assombração que percorria de noite as ruas da cidade. Ana Jansen tinha sido uma sinhá muito rica e muito má com seus escravizados. Quando morreu, por castigo, sua alma foi condenada a vagar sem descanso. Ela aparece em uma carruagem puxada por cavalos e mulas sem cabeça, que sai do cemitério do Gavião, no bairro Belira, toda noite de quinta para sexta-feira. 

Outras lendas também me arrancavam pavores, como das ilhas encantadas e das três serpentes que habitam o subsolo da ilha de São Luís. Sentia medo ao olhar para dentro das três janelas da Fonte do Ribeirão, no centro, onde as três serpentes moravam, habitantes dos três túneis que foram escavados no centro da cidade, nas guerras contra os holandeses e franceses. Até que um dia o feitiço passou e eu brincava alegremente nos blocos de carnaval que saíam exatamente da frente do cemitério ou da Fonte… 

São Luís é uma ilha, o mar recorta a terra. Os ventos fortes fazem as areias das praias beliscar nossas pernas, enquanto ondas pequenas mas muito extensas vão se quebrando em sequência rítmica. Todos os dias o sol se põe no mesmo lugar (com alguma variação) desde a minha adolescência quando, diariamente, ia para a beira do mar ver a noite chegar, aprendendo que vida é sequência. 

Com estes pensamentos, seguimos pela estrada, em direção inversa, margeando o litoral norte do Brasil. Assistimos a uma Lua Cheia brilhante às margens do Rio Preguiça, nas bordas dos Lençóis Maranhenses para, no dia seguinte, contemplar o sol tingindo o céu de inúmeros tons de vermelho, ao se pôr sobre o mar no Delta do Parnaíba. Vida seguindo, horizontes em movimento. 

Observatório no Centro Dragão do Mar

No final do dia, nos dirigimos para o Centro de Arte e Cultura Dragão do Mar. Estamos em Fortaleza, depois de rodar quase três mil quilômetros. O Dragão do Mar é o título que se dá a Francisco José do Nascimento, jangadeiro que se alinhou ao movimento abolicionista, que fez com que a abolição da escravatura se desse primeiro no Ceará. Um herói da pátria e dos pretos. Na praia de Iracema, bebemos água de coco vendida por um homem que havia deixado sua terra e passado anos a fio “sofrendo em São Paulo”. Voltou. “Aqui a vida não é fácil, mas é minha terra, minha gente”. E a viagem chegava ao fim, mas não antes de assistir ao filme de Kleber Mendonça, O Agente Secreto, no cinema do Dragão do Mar. 

O diretor é do Recife, o filme se passa no Recife. Pernambuco indecifrável, minha terra indefinível, o Real não te comporta sem que se abram espaços que te caibam. Nos minutos finais do filme, uma catarse emocional me fez chorar até a última palavra do letreiro. O filme faz chorar? Não, o conjunto todo da obra me emocionou, e não me contive. Ter visto este filme depois de 15 dias mergulhada na cultura e na alma do meu nordeste, para mim foi o clímax, o ponto culminante de uma experiência que carregarei comigo sempre. Mas farei meus comentários sobre este impressionante filme de Kleber Mendonça, no próximo post.

sábado, 22 de novembro de 2025

Viagem nordestina - II

Entramos como num lugar sagrado, pisando seu chão devagarinho… 

Fomos nos movimentando entre as figuras que habitavam a mente e o coração de Suassuna, seu reino mágico, onde a cultura brasileira - e a nordestina - é a maior riqueza a ser resguardada por todos nós. Em todas as colunas, paredes e tetos, arabescos pintados direto por Clécio em tons vermelhos, amarelos, azuis, verdes e terras, decoram e configuram a alma do castelo. Tudo absolutamente em acordo com o criador do Movimento Armorial. Há um andar dedicado ao cangaço, com fotografias, apetrechos, chapéus e roupas dos cangaceiros, mas também dos homens da Volante, os “macacos”. Crianças de uma escola vizinha chegaram e pediram licença à monitora para entrar. Ela consentiu, mas disse pra ninguém gritar. “Todo santo dia eles querem vir aqui”, disse ela. Fiquei pensando: como crescerão essas crianças, tendo frequentado esse castelo armorial mouro em Pernambuco, com suas estórias e histórias despertando fantasias e sonhos, falando de reinos distantes, de lugares chamados de Portugal e de Espanha? Uma gárgula verde concordou comigo, enquanto dois galos azuis e brancos, irmãos siameses, se entreolharam tocando os bicos. Aqui é o lugar onde o mistério habita. 

Parte da biblioteca de Ariano está lá, em uma estante também doada por ele. Velhas espingardas, botas e chinelos que calçaram os pés de antigos pernambucanos, pendem das paredes. Clécio recolhe objetos assim por todo o sertão, tendo acumulado uma riqueza cultural histórica sobre a vida, os costumes, a indumentária, as ferramentas de trabalho dos homens e mulheres do campo. Seu irmão nos abordou na calçada do castelo e começou a nos contar sobre o cangaço, com tanta intimidade, com tamanha paixão, que nos arrancou do colo de Ariano e nos levou ao colo de Lampião, Corisco e Antonio Silvino. O sol ardia sobre nossas cabeças, Juazeiro nos esperava, já não éramos as mesmas que iniciamos esta viagem. 

Juazeiro do Norte, terra do padim padre Cícero, o renegado pela igreja católica, lá pelos idos do século XIX, porque acreditara que jorrou sangue da boca de uma mulher preta a quem ele tinha dado a hóstia consagrada em comunhão. Fomos ver a santa preta, com seu vestido azul celeste vibrante, o mesmo azul do céu sem nuvens que cobre a terra seca do nordeste. Romeiros tinham chegado, aos montes, para a romaria de finados. Missas se revezavam entre as igrejas, e os chapéus de palha ainda são em quantidade suficiente para reverberar o dourado em movimentos de saudação ao santo padroeiro. Sertanejos de tantos lugares, das Alagoas ao Rio Grande do Norte, ainda são atraídos para as promessas e para as bênçãos do santo, padrinho dos nordestinos, padre Cícero Romão Batista. 

Mas era preciso continuar a viagem. Mais de quinhentos quilômetros entre Juazeiro e Teresina, estrada difícil, farta de caminhões grandes e pequenos, que era necessário ultrapassar com cuidado sempre. A paisagem mudava de agreste e seca aos verdes dos carnaubais. No carro, ouvíamos Torquato Neto, o poeta piauiense que se suicidou aos vinte e sete anos, amigo de Caetano, dono de composições tão lindas quanto um dos hinos da minha própria vida: “mamãe, mamãe, não chore, a vida é assim mesmo eu fui embora. Mamãe, mamãe não chore, eu nunca mais vou voltar por aí…” Eu, que sempre volto a visitar minha mãe, como estou fazendo agora. 

Artesão de Teresina
Teresina tem a graça oculta pelo extremo calor; esconde grandes poetas, violonistas, artesãos e intensos compositores como Clôdo, Climério e Clésio, todos Ferreira, irmãos de sangue. Autores de várias músicas que cantamos, como “Um dia vestido, de saudade viva, faz ressuscitar… Casas mal vividas, camas repartidas, faz se revelar…”; “Teu amor é cebola cortada meu bem, que logo me faz chorar, teu amor é espinho de mandacaru, que gosta de me arranhar…” E toda uma nova geração de artistas piauienses que nunca ouvimos falar para os lados do sudeste… Mas ouvimos falar da bebida Cajuína, que Caetano fez o Brasil conhecer, após um encontro com o pai de Torquato em Teresina, que, de tão memorável, fez o artista baiano ir embora pensando na vida. “Existirmos, a que será que se destina?”

Minha mãe nos chamava, queria saber, lá de São Luís, que horas a filha e a neta iriam chegar. Lá pelas quatro da tarde, mamãe. Temos horas de estrada ainda, de Teresina a São Luís, ouvindo João do Vale, enquanto gigantescos caminhões nos cortavam, ou cortávamos, pela estrada ruim. “De Teresina a São Luís” é o nome de uma canção de João do Vale, compositor maranhense que Nara Leão levou o Brasil a ouvir, cantando - ela e Maria Bethânia - “Carcará”. Depois de ouvir tudo deste cantor, fomos ouvir Josias Sobrinho, compositor, maranhense também, que conheci pessoalmente e que me encanta quando canto suas canções, como esta “Dente de ouro”: “Se eu tivesse no peito um novelo, eu tecia com ele um caminho, com o rumo voltado pra dentro, e aberto pro mundo todinho”...

(CONTINUA NO PRÓXIMO POST)

terça-feira, 18 de novembro de 2025

Viagem nordestina - I

Pernambuco não é definível, aqui a imaginação captura qualquer racionalidade. 

La Ursa
Na porta do prédio Oceania, na praia de Pina, cenário para o filme "Aquarius" do diretor Kleber Mendonça, iniciamos uma viagem dias atrás. De lá, vagueamos entre as figuras de Brennand, na ilha em frente ao marco zero do Recife. Alguns apressados em definições rápidas, diriam: é um surrealista. Não, Brennand é pernambucano. Perambulamos pela rua do Bom Jesus, olhando os prédios velhos, espremidos, de onde figuras misteriosas se avistam, e se projetam, de vez em quando, sobre os transeuntes. Até as árvores do centro velho do Recife não são eretas, desequilibram-se, torteiam-se no espaço, desenham seres de outro mundo. De outro mundo, como a Perna Cabeluda, a La Ursa e o Papangu.

No interior da antiga casa de Olinda onde ficam guardados os bonecos do carnaval, a sensação de que estamos margeando mundos fantásticos se acentua. As figuras carnavalescas nos sorriem um sorriso tão indefinível quanto a cultura de onde venho: eu é quem não ficaria sozinha ali à noite com esses bonecos que nos olham fixamente, enquanto riem!… Saindo de lá, caminhamos por ruas e casas coloridas que enfeitam o carnaval todos os anos, mas também entramos em antigas igrejas e velhos mosteiros, com seus padres-anjos, que recebem fiéis na porta do templo com abraços. Um deles nos fez um aceno de simpatia e acolhimento. Na mesma igreja onde se encontram os restos mortais de Dom Hélder Câmara... 

Caruaru é de onde vim para esta vida e foi pra lá que seguimos. Antes, entramos na casa-museu do mestre da xilogravura, J. Borges, em Bezerros. Eu tinha viajado com a obsessão de encontrar um coração, qualquer um, em minha Caruaru. Das mãos que traçava figuras do imaginário fantástico daquele pedaço de Brasil, ilustrador maior dos poetas do Cordel, do Repente e das histórias que se espalharam por todos os sertões, intensificando ainda mais o imaginário nordestino, adquiri uma pequena reprodução de uma xilogravura do mestre, estampada em azulejo: era um coração vermelho, chamejante de tons de rosas, azuis e amarelos, radiado de branco. Levei-o comigo, como uma relíquia, meu coração. 

Minha Caruaru, o que restou dela, “é só um retrato na parede, e como dói!” (plageando Drummond). Nordestinos de vários cantos, com suas demandas de comprar panos, tecidos e roupas, fez da cidade um imenso comércio. De tudo que há no mundo, de roupa, tem lá em Caruaru. Meu velho rio Ipojuca, nas margens onde brinquei tanto na minha infância, é um esgoto, cheira mal, e a casa onde nasci não existe mais. Mesmo assim, o povo permanece na mesma labuta pela existência, assim como carrega a mesma veia criativa que explode nas festas juninas todos os anos. Algum olhar apressado pode ir embora sem enxergar a pulsação que cá existe, porque nordestino é desconfiado mesmo, pois gosta de parecer o que não é, pra rir depois… 


No Alto do Moura, onde viveu outro mestre, o Vitalino, a imaginação se evidencia. Dona Nicinha arregimentou as mulheres e protagoniza um movimento feminista de criadoras de figuras feitas em barro (antes restrita aos homens). Mulher pode fazer o que quiser, mulher pode criar arte, diz ela, enquanto seu filho surge na escada, um filho adulto com síndrome de down. No ateliê dela, imagens expressivas, totêmicas, orgânicas, intensas, nos chamavam. A "Abraçadeira", escultura de mulher preta e braços muito longos, criada por ela, nos enlaçava, enquanto uma lagartixa nos mostrava a língua. "Sou discípula do mestre Galdino", faz questão de apontar. Bichos com vários chifres nos divertiam, enquanto uma pomba branca sobrevoava um par de mãos. E aquele coração que a senhora criou? - Já tem outros donos… Qualquer hora faço outros.

A estrada nos chamava novamente, e partimos em direção a São José do Egito e Itapetim, terra dos meus pais, avós, bisavós… São José me ficou oculta desta vez, mas me pregou uma peça. A casa onde nos hospedamos era quase uma entidade, começou a falar comigo, não nos queria ali, atormentou meu sono, reativou meus medos, tive que gritar que não! não quero falar com você, aquelas sombras que passavam quase me agredindo, entidades donas daquela casa que invadimos com nossas presenças, bateram a porta de alumínio nos meus dedos, gritei de dor, elas riram, nos suportaram por uma noite e se livraram de nós na manhã seguinte. E nós dela, não dormiria ali de novo. 

Itapetim é a terra onde os poetas do Cordel e do Repente brotam em abundância, da forma mais natural. De lá são meus pais, registrados em cartório. No centro da praça da matriz, duas estátuas nos chamavam para abraçá-las: Padre João Leite, um antigo vigário que pregava que o povo tinha que se libertar da exploração, tinha que lutar e criar outro mundo, de justiça. O sertão vai virar mar! Um pouco mais atrás dele, o poeta Rogaciano Leite, com o braço esquerdo estendido, recitava um poema, enquanto concordava com o padre João. Rogaciano tem um poema - Os trabalhadores - inscrito numa pedra na Praça Vermelha, em Moscou. São nossos primos. Mas ainda tem nosso bisavô, Jovino Leite, que virou nome de rua em Itapetim. Ele era uma espécie de médico, misto, talvez, de curandeiro, pois atraía doentes de todos os lugares, de Pernambuco, Ceará, Paraíba, que o procuravam para se queixar - e se curar - de algum problema de saúde, nos idos dos primeiros anos do século XX… Isso bem antes do Padim Cícero e de Frei Damião…

Novamente a estrada se abriu, o sol andava alto, iluminado e quente, e no asfalto nos enganava com sugestões, quase delirantes, de alagamento no pavimento. Até o sol não é definível no sertão; lá ele também brinca com nossas certezas, nos faz ver o que não existe, pois o que não existe existe tanto quanto o que existe… Sorriso. Um portal à nossa frente, São José do Belmonte nos convida a entrar nas ruas da pequena cidade. E entrar no Castelo Armorial de Ariano Suassuna, feito por Clécio Novaes, no meio do sertão. Olhando assim, Belmonte é uma cidadezinha pequena comum; olhando assado, um universo de figuras míticas, místicas, misturadas a cangaceiros, profetas, reis e rainhas e a… Dom Sebastião, o rei de Portugal que nunca ninguém viu seu corpo morto e, por isso costuma renascer pelos recantos do Brasil. Iluminando o surgimento de figuras messiânicas como Antonio Conselheiro, de Canudos, e João Ferreira, da Pedra do Reino. O mar vai virar sertão!

(CONTINUA NO PRÓXIMO POST)

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

A poeira do Tempo - final

Máscaras da Commedia dell'Arte
Enquanto François Villon (1431-1463) (ver final do post anterior) escrevia seus poemas de morte ("Balada dos Tempos Perdidos", "Balada dos Enforcados" e outros) no final da Idade Média, na Itália foram se gestando as sementes dos futuros teatros populares e de improvisação, como a Commedia dell'Arte (leia mais aqui). Atores populares iam encenando textos numa linguagem mais próxima do povo, como reação à comédia erudita literária, que o povo não compreendia, de autores como Maquiavel, Ariosto, etc.

O personagem Polichinelo
  • Este teatro popular nascido no século XVI na Itália, especialmente em Veneza, retomava os conceitos do Carnaval, a festa onde se permitia comer carne e aproveitar os prazeres da vida, antes que chegasse a Quaresma, os 40 dias onde se lembra a morte de Cristo; enquanto seus personagens se escondiam atrás de máscaras, iam passando e repassando as intrigas reais e inventadas da sociedade local, arrancando risadas ou choro do populacho que se reunia em torno destes atores, os primeiros improvisadores, que podemos ver também como os antecessores dos nossos cantadores nordestinos e de nosso MC’s… 
  • Naqueles tempos também havia as rinhas de atores, as disputas e querelas, como ocorre com os repentistas do nordeste e com as atuais rinhas de MC's nas periferias de São Paulo...
  • Os personagens da Commedia dell'Arte usavam máscaras, ou tinham seu rosto pintado de branco, como Pedrolino, que na França ficou conhecido como Pierrot. Este era o mais triste dos personagens, com uma lágrima desenhada sob um dos olhos. Arlequim, que disputava com Pierrot o amor de Colombina, tem em seu nome uma origem que vem de duas culturas: ou deriva de Hellequin (chefe dos diabos no teatro medieval francês) ou de Eln Köining (chefe dos gnomos da cultura escandinava). Já Polichinelo, teria tido um nascimento um tanto estranho, pois teria aparecido num berço ao lado de um gato preto e uma ave de agouro, como se também descendesse do diabo... 
Tudo isso recolhido do rico imaginário popular que vinha desde a Alta Idade Média... E atravessou os tempos, como podemos ver a seguir.

"Inferno", pintura de
Hieronymus Bosch, cerca de 1490
  • Mas, ainda no século XVI, exatamente em 1517, é encenada pela primeira vez a peça “Auto da Barca do Inferno”, do português Gil Vicente. Os personagens discutem com o Diabo, comandante de uma das três barcas, e com o Anjo, comandante de outra, em qual delas vão entrar. No final, a maioria entra mesmo é na Barca do Inferno. Nesta peça, Gil Vicente tece duras críticas à sociedade da época.
Enquanto isso, na pintura abundavam registros de reflexão ascética de santos, eremitas, mártires ou monges contemplativos, como São Jerônimo, Maria Madalena, São Francisco de Assis, Santo Antão, etc. Vi inúmeros quadros pintados com cenas envolvendo estes santos, em minha viagem à Espanha deste ano.

É deste período também o surgimento deste ícone universal que é a imagem da Morte com um manto negro, portando uma foice com a qual vai ceifando vidas. É esta imagem que surge no baralho de Tarôt sob o número 13, o número do azar. Que, acrescenta Luís Calheiros, propõe como reflexão ao consultante um questionamento sobre “vícios e defeitos, propõe o arrependimento, o desprendimento, o aperfeiçoamento e a transformação radical e superação de tudo o que está ultrapassado, obsoleto e decadente”.

Enquanto o mundo se expandia, no começo do século XVI também nascia o Brasil.

Valeria a pena uma profunda pesquisa, Brasil a dentro, de como essas ideias nos atingiram em cheio desde os primeiros movimentos de construção do nosso país. Devagar, estou iniciando uma pesquisa em direção a isto, o que levará muito tempo, anos talvez. Mas a título de elucubrações iniciais, fico pensando na construção da nossa cultura baseada nestas três fontes distintas: aqueles europeus, os nossos indígenas e os africanos (sobre o assunto, Darcy Ribeiro escreveu o livro "O povo brasileiro"). Cada qual com sua cosmologia, sua visão de mundo, de vida e de morte.

Xilogravura do artista popular
pernambucano J. Borges,
"A briga da onça com a serpente"
De vida e de morte foi feita a nossa história. Nossos índios foram sendo dizimados ao longo dos séculos. Nossos afro-descendentes, para usar um termo atual, ainda não saíram de todo da Senzala porque a Casa Grande teima em não permitir… As tentativas de resistência, em nossa história, foram abatidas à bala, como aconteceu com a Canudos de Antonio Conselheiro, com Zumbi dos Palmares…

Estamos revivendo os períodos de maior violência da história da cultura brasileira, nestes tempos de 2015. De um lado, a perene vida difícil dos pobres nas periferias do Brasil - são “quase todos pretos”, como canta Caetano Veloso. São eles as maiores vítimas das redes de tráfico de drogas, pois por séculos de descaso de políticas públicas tornam-se reféns, e mesmo colaboradores dos verdadeiros bandidos. A expectativa de vida nas favelas e nas periferias das grandes cidades só diminui, por conta da violência policial e do tráfico de drogas. Em 2014, as pesquisas apontam que a violência da Polícia Militar cresceu 111%. Em 2015 deve ser muito maior, pois de uma vez só a PM de São Paulo matou 19 pessoas recentemente em Osasco. Segundo dados do mapa da violência no Brasil, um jovem negro tem 139% a mais de chance de ser morto na rua do que um jovem branco. 

A morte impera na vida dos moradores de periferia no Brasil. Passa a ser até “natural”, faz “parte da vida”, como podemos ler - ou ouvir - nas canções de rappers e MC’s como Emicida, Criolo, Sabotage…

“No pé que as coisas vão, Jão
Doidera, daqui a pouco,
resta madeira nem pros caixão.
Era neblina, hoje é poluição
Asfalto quente queima os pés no chão
Carros em profusão, confusão
Água em escassez, bem na nossa vez!
Assim não resta nem as barata...
Injustos fazem leis, e o que resta procês?
Escolher qual veneno te mata!

Pois somos tipo passarinhos
Soltos a voar dispostos a achar um ninho
Nem que seja no peito um do outro” 

(do rapper Emicida, "Passarinhos")

Cena do filme "Que horas ela volta?"
A morte ronda cada vez mais de perto as nossas vidas, sejamos ou não moradores das periferias. Todos somos vítimas da violência, é certo! Mas a Casa Grande não se incomoda se a Foice da Morte se restringir às favelas, aos pretos, aos pobres. A Casa Grande tem gerado campanhas de ódio, tem treinado aprendizes de fascistas como "justiceiros", tem batido freneticamente suas panelas enquanto de suas bocas escorrem babas de ódio contra os aeroportos e aviões repletos de gente pobre viajando, contra os filhos da empregada e do porteiro do prédio se formando nas mesmas universidades que seus filhos (saudações ao belo filme "Que horas ela volta?" de Ana Muylaert!). Para a Casa Grande, a Senzala deve se ligar de que seu lugar é onde sempre foi desde que o Brasil é Brasil: na sua inferioridade de classe.

Vanitas, vanitatum et omnia vanitas...

No nordeste - no meu - meu conterrâneo João Cabral de Melo Neto já impingira na cara do Brasil o poema onde conta o que acontecia naquele agreste ardente com as vidas ceifadas pela seca, pela fome, pelas injustiças sociais, da qual são vítimas todos os severinos do nordeste, “Morte e vida severina”:

“Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta”.

Severinos migraram para São Paulo ao longo de décadas. E moram, em sua maioria, nas mesmas favelas mortíferas de hoje. A saga do poema de João Cabral, que se passa em Pernambuco, pode muito bem ser replicada nas ruelas estreitas e tortas das Quebradas de São Paulo:

“— E foi morrida essa morte, irmão das almas,
essa foi morte morrida ou foi matada?

— Até que não foi morrida, irmão das almas,
esta foi morte matada, numa emboscada.

— E o que guardava a emboscada, irmão das almas,
e com que foi que o mataram, com faca ou bala?

— Este foi morto de bala, irmão das almas,
mais garantido de bala, mais longe vara.

— E quem foi que o emboscou, irmãos das almas,
quem contra ele soltou essa ave-bala?

— Ali é difícil dizer, irmão das almas,
sempre há uma bala voando, desocupada”.

Belo-triste encontro semiótico entre a ave-bala de João Cabral e as balas-passarinhos de Emicida...

"Os retirantes", pintura de Candido Portinari
E em ressonância com João Cabral, Candido Portinari pinta um dos mais representativos quadros desta tragédia, “Os Retirantes”. Tintas carregadas no escuro, corpos deformados, verdadeiros espectros humanos, mal se sustentam em seus próprios pés, enquanto aves de rapina fazem seus vôos rasantes aguardando o trabalho da Morte…

E Ariano Suassuna escreve seu “Auto da Compadecida”, onde narra o drama do nordeste, misturando elementos da cultura popular, como a literatura de cordel, com o catolicismo barroco do nosso povo. A peça já começa com o enterro de um cachorro. O que nos leva, por livre associação, à Baleia, a cadela do conto de Graciliano Ramos que trata exatamente de… vida e morte: “Vidas secas”.

Mas em Suassuna ainda, lembramos que o último ato da peça traz o julgamento dos que foram mortos pelo capanga Severino de Aracaju, que também foi morto por uma facada de João Grilo. No alto de tudo, a Compadecida, Nossa Senhora - aquela que também habitava os altares e o imaginário medieval como a Alentadora, a Mãe que se compadece dos pecadores e os leva à salvação. Depois que a morte fez seu trabalho...

Ainda em nossa literatura, o grande romance nacional “Grande sertão, veredas”, de Guimarães Rosa, nada mais é do que a confissão do começo ao fim do capanga Riobaldo que viveu e viu a morte de perto, assim como pressentia o “Tinhoso” com quem fez um pacto, mas não impediu que fosse morta a sua amada Diadorim. Neste romance, Guimarães Rosa mostra como era a vida nos sertões brasileiros, a luta de vida e morte dos caboclos em suas taperas, ameaçados por jagunços armados por fazendeiros. 

"A Roda da Fortuna", Edward Burne Jones
“Viver é muito perigoso”, repete Riobaldo o tempo inteiro… “Porque aprender a viver é que é o viver mesmo... Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e abaixa... “

Finalizando, porque é preciso por um fim a um assunto sem fim…

Há poucos anos atrás, o poeta Afonso Romano de Sant’Anna disse, sobre nossos tempos e nossa arte atual: desde a obra mítica do urinol de Marcel Duchamp, vem se falando na morte da arte. Na década de 1980, Francis Fukuyama, pensador norte-americano neoliberal, apregoou a morte da História. 

“Falou-se muito de morte no século XX, sem esquecer o banho de sangue provocado pelas duas guerras mundiais mortíferas”, reflete ele. Pensemos na bomba de Hiroshima e Nagasaki que deixaram rastros de “crianças mudas, telepáticas”, como disse outro poeta, Vinícius de Moraes. 

Neste sentido, complementa Afonso Romano habitamos um cemitério onde a teoria perambulou como um zumbi entre o sentido e o não sentido, e teorizar sobre a morte de certas categorias, e mesmo de ideias, parece que explica um pouco o caos contemporâneo”.

Enquanto isso as madames e suas panelas areadas, plenas de vaidade, se agarram às suas marcas carésimas, a seus mitos consumistas, a seus sonhos ilusórios, a seu vazio de classe. Se vendo ameaçadas, blindam seus carros, suas casas, seus filhos, suas vidas…

E nos agarramos - todos - ao consumismo frenético de bens necessários e desnecessários vendidos pela propaganda, que diariamente gesta novas formas de vender coisas cada vez mais e em mais larga escala... “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade…” soam em “lúgubres responsos” os sinos do Eclesiastes, ainda mais atual em 2015.

Mas a Roda da Fortuna continua seu giro “separando implacavelmente os poderosos, que tudo possuem, dos expoliados que nada têm de seu, morrendo igualmente todos, e tudo deixando”, diz o professor português. Quem tem muito, muito deixa; nada, os que nada possuem.

"Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no sexto dia e sim no sétimo", diz o poema "Dia da criação" de Vinícius de Moraes...

E pra finalizar e por via das dúvidas: Senhor, livrai-nos de todo o mal, amém!

"Fast food", vanitas, fotografia de Laurent Meynier, 2014

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Pernambuco, primeiro retrato do Brasil

Tereza Costa Rêgo ao lado de sua tela "Batalha dos Guararapes"
Nesta quarta-feira, 12 de agosto, o Centro Cultural dos Correios, no Rio de Janeiro, abre uma exposição retrospectiva sobre a pintura pernambucana que alcança do século XVII até os dias atuais. Intitulada “Pernambuco, primeiro retrato do Brasil”, a mostra trará desde obras de Frans Post, o holandês que fez os primeiros retratos do Brasil, em Pernambuco, até Tereza Costa Rêgo, pintora atual, que já entrevistamos neste Blog (leia aqui).

Segundo o portal do Jornal do Comércio de Pernambuco, “enquanto o modernismo, no mundo e no Brasil, começou a insistir de maneira quase autônoma em imperativos como o construtivismo, os pintores pernambucanos torciam o nariz para ditaduras estéticas”. Seus artistas locais continuaram pintando as paisagens brasileiras do nordeste. Pernambuco foi o local onde se inaugurou, no continente sul americano, a pintura de paisagens, com os pintores holandeses que vieram para cá a convite de Maurício de Nassau, em especial Frans Post.

Marcos Lontra, crítico e historiador da arte, afirma que Frans Post foi o primeiro artista a pintar a paisagem brasileira “mais de um século antes da chegada da Missão Artística Francesa ao Brasil, em 1816”. Ele diz ainda que “a pintura pernambucana foi fundamental para  a formação de um olhar na pintura brasileira, que se estrutura com Post, se espraia com acadêmicos como Telles Jr, fundamentando-se com Cícero Dias no Modernismo brasileiro”. Marcos Lontra é o curador desta exposição.

"Paisagem brasileira", pintura de Frans Post, séc. XVII
“A paisagem pernambucana é um dos grandes temas da paisagem brasileira. O Brasil ainda precisa entender e reconhecer melhor a contribuição de Pernambuco para a arte contemporânea do Brasil. Quando se fala do modernismo, repetimos quase sempre o discurso hegemônico paulista. No caso pernambucano, o modernismo tem uma relação direta com o Movimento Regionalista (liderado por Gilberto Freyre). Não é uma questão de primazia, de dizer o que é melhor ou pior, mas de especificidade do Modernismo pernambucano. Através dos diálogos com a Europa, por meio das famílias ricas, o moderno é sempre pensado em diálogo com o regional”, apontou Marcos Lontra ao Diário do Comércio.

Esta mostra traz obras de cinco séculos de artistas pernambucanos: de Frans Post a Albert Eckout, de Telles Júnior a Cícero Dias, de Francisco Brennand a Tereza Costa Rêgo, que participa com um de seus grandes paineis sobre a Batalha dos Guararapes. “Tereza é uma pintora quem tem a coragem de enfrentar questões históricas com trabalhos violentos”, observou o curador, que também ressaltou o caráter cultural de formação de identidade nos paisagistas pernambucanos.

Pernambuco, lugar da mais rica tradição cultural, sempre teve altíssima produção artística, ainda não devidamente reconhecida, por causa da visão hegemônica que recai praticamente só sobre a produção sudeste, em especial São Paulo e Rio. Mas em Pernambuco, poetas, pintores, fotógrafos, cartunistas, arquitetos, dramaturgos, editores, escultores, músicos, dançarinos, cantadores, cineastas, pensadores, escritores (sem falar na imensa quantidade de artistas mais ligados às tradições populares da cultura pernambucana) foram sempre os responsáveis pela efervescência cultural do meu Estado, onde se destacam nomes como os Vicente do Rego Monteiro, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Aloísio Magalhães, Ariano Suassuna, Abelardo da Hora, Kleber Mendonça Filho, Tereza Costa Rêgo, Antonio Nóbrega, etc.

Abelardo da Hora, escultor pernambucano falecido em 2014, com uma de suas esculturas

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Tenho por mim

Hoje encontrei este desenho do poeta cubano Nicolás Guillén, que fiz há algum tempo. Porque recebi hoje este poema dele, que reproduzo abaixo, em tradução livre minha do espanhol. Quando terminei de ler o poema, lembrei dos rostos que já desenhei e que caberiam dentro desta poesia. Assim como me lembrei de muitos rostos do meu povo, o brasileiro.

O momento atual no Brasil é preocupante: a elite brasileira, a velha, aquela rançosa, cheia de nhém-nhém-nhéns, mais uma vez quer se apossar do poder político brasileiro pra fazer a gente brasileira voltar para sua senzala, suas favelas, sua pobreza, sua cabeça-baixa, seu nordeste sofrido, sua inferioridade... de onde nunca deveria ter saído! Segundo esta elite vingativa.

Mas todos tinham começado já a se levantar depois de séculos de abandono! 

Ah elite brasileira retrógrada, incapaz de enxergar mais longe... 

("Garoa do meu São Paulo - timbre triste de martírios (...) São sempre brancos e ricos. Garoa sai dos meus olhos!", no dizer de outro poeta, Mário de Andrade.)

Ah Euclides da Cunha, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado, Florestan Fernandes, Mário de Andrade! Ah Ariano Suassuna, Antonio Nóbrega, Rolando Boldrim, Chico Buarque, Marieta Severo, Gilberto Gil! Ah amantes todos do Brasil, do seu povo e sua cultura! 

Se não tomarmos cuidado hoje, a roda volta a girar para trás de novo...



TENHO POR MIM


Nicolás Guillén

Quando me vejo e toco
eu, João sem Nada ontem
e hoje João com Tudo
e hoje com tudo
volto meus olhos e miro
me vejo e toco
e me pergunto como isso pode ser.

Tenho por mim, vamos a ver,
eu tenho o gosto de andar por meu país
dono de quanto existe nele
olhando bem de perto o que antes
não tive e não podia ter.


Safra posso dizer,
monte posso dizer,
cidade posso dizer,
exército dizer,
agora meus para sempre, e teus, nossos
e um amplo esplendor
de raio, estrela, flor.

Tenho por mim, vamos a ver,
tenho o gosto de ir
eu, campesino, operário, gente simples,
tenho o gosto de ir
- quereis um exemplo? -
a um banco e falar com o administrador,
não em inglês,
não falando “senhor”,
mas dizendo “compañero”, como se diz em espanhol.


Tenho por mim, vamos a ver,
que sendo um negro
ninguém pode me deter
à porta de uma festa ou de um bar.
E nem no carpete de um hotel
gritar-me que não tem quarto,
um mínimo quarto, e não um quarto enorme,
um pequeno quarto onde eu possa descansar.

Tenho por mim, vamos a ver,
que não há guarda rural
que me agarre e me prenda em um quartel,
nem me arranque e me expulse de minha terra
no meio do caminho real.


Tenho por mim que como tenho a terra, tenho o mar,
não “country”,
não “jailáif”,
não tênis e não “yatch”,
a não ser de praia em praia e onda em onda,
gigante azul aberto democrático:
enfim, o mar.


Tenho por mim, vamos a ver,
que já aprendi a ler,
a contar,
tenho por mim que já aprendi a escrever
e a pensar
e a rir.

Tenho por mim que já tenho
onde trabalhar
e ganhar
o que preciso para viver.

Tenho por mim, vamos a ver,
tenho o que eu teria que ter.












quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Sucesso? Ou êxito?

Velazquez vai continuar sempre vivo na memória artística do mundo. Esta pintura "Toillette de Vênus" é uma das que representa o êxito de Velazquez como artista
Nos dias atuais, busca-se o sucesso como nunca. Qualquer um quer ter sucesso, seu quinhão de fama, seus vinte minutos de celebridade. Em contrapartida, o sucesso dura o que dura a moda. 


Ilustração para o livro "Dom Quixote"
de Miguel de Cervantes, feita por Portinari.
Dois artistas que tiveram êxito.
Mas o Êxito, o resultado final de anos de trabalho, de estudo, de pesquisa, de concentração sobre um tema ou assunto que desafie o artista, o êxito, uma vez instalado, ele fica para sempre. Se isso traz sucesso, é o que menos importa. Se isso torna o artista conhecido por todos, é um fator muito menor do que a satisfação que o verdadeiro artista sente de ter suplantado seus limites.


Fui ver no Dicionário Etimológico qual o significado da palavra êxito. Ei-lo: "êxito sm. resultado, consequência, efeito. Do latim exitus". Diante dessa informação, podemos concluir que êxito representa um caminho em determinada direção, um movimento realizado com o sentido de se suplantar algum limite, pequeno ou grande.


Estava assistindo, no Youtube, uma das aulas-espetáculos do grande escritor brasileiro Ariano Suassuna (autor de "Auto da Compadecida" e "A Pedra do Reino", por exemplo). Lá pelas tantas, ele toca exatamente neste assunto. Transcrevo o que ele diz: 


Ariano Suassuna, escritor brasileiro, dramaturgo,
poeta, professor
"Você pega a banda Sepultura ou a banda Calypso. Elas têm muito mais sucesso do que Euclides da Cunha. Muito mais. Se você anunciar uma conferência sobre Euclides da Cunha, se forem 40 pessoas já serão muitas. Já a banda tem público de milhares de pessoas em cada espetáculo. Então, eles têm sucesso. Mas me diga qual é o êxito maior? É "Os Sertões" (livro escrito por Euclides da Cunha). Todo ano sai uma publicação. E mesmo os brasileiros que nunca tenham lido sabem que existe um livro chamado "Os Sertões" que é fundamental para o nosso país. Do mesmo jeito que "Dom Quixote" (de Miguel de Cervantes) é fundamental para a Espanha. Enquanto existir o livro "Dom Quixote", você pode invadir militarmente a Espanha, você pode dominá-la economicamente, mas a Espanha vai ficar viva porque tem um livro chamado "Dom Quixote". A mesma coisa eu digo de "Os Sertões". Podem desmoralizar, descaracterizar, vender, mas, enquanto existir "Os Sertões", sabe-se que existiu um país chamado Brasil e que aquele era um livro fundamental. Aquilo é êxito. Sei que todo artista verdadeiro o busca".


É isso aí.


Zé Celso Martinez Correa e os atores do Teatro Oficina encenando "Os Sertões" de Euclides da Cunha