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sexta-feira, 19 de outubro de 2012

As cavernas, úteros da arte

Interior da caverna Paiva, no Parque Estadual Intervales, São Paulo
A primeira vez em que entrei numa caverna, foi na Paiva, lá em Intervales, reserva florestal no interior de São Paulo. Aquela entrada escura e misteriosa era apenas o começo de uma aventura que abria para mim o mundo subterrâneo. Carregando uma carbureteira que alimentava a chama de nossos capacetes, fomos, eu e uns amigos, penetrando no útero da terra. Estalactites surgiam à nossa frente, desvendados pela fraca luz que cada um de nós carregava; fraca mas suficiente para iluminar aquele mundo desconhecido. Em silêncio, ouvíamos os sons dos nossos passos, além do som de gotas de água que caem dos tetos de carvernas vivas, formando, a cada cem anos, um centímetro de estalactite. O guia, a certa altura, nos sugeriu: desliguemos nossas lanternas e chamas dos capacetes, sentemos no chão e fiquemos em silêncio... Nosso grupo obedeceu. Quietude absoluta! Não existe escuridão maior do que aquela! Nem silêncio mais profundo, quebrado apenas por pequenas gotas d’água. Talvez pela sensação de estar num lugar como aquele, nossos ouvidos foram se abrindo ainda mais e sendo capazes de alcançar o mais pequeno ruído. Um som longínquo, abafado, quase inaudível, surgiu: havia um rio subterrâneo algumas centenas de metros mais à frente... Que lugar!

Quem já entrou em uma caverna, conhece essa sensação de inquietude angustiante, esse silêncio tão profundo que torna nossa capacidade de percepção muito mais refinada. E foi exatamente dentro de lugares assim que nossos antepassados deixaram marcada sua criatividade, produzindo as nossas primeiras obras de arte.

Pintura na caverna de Lascaux, França
Lembrei muito dessa minha primeira experiência, ao ler um capítulo do livro do  professor e jornalista francês Yves Calméjane, “Histoire de Moi”, que diz que realmente as cavernas podem ser consideradas também o “útero da arte”.

Nesse texto, ele fala que os homens pré-históricos coletavam frutas e caçavam animais para se alimentar, mas também desenhavam, pintavam e esculpiam. Esses primeiros artistas estiveram particularmente ativos a partir de 35 mil anos a.C. em torno do que conhecemos hoje como o território europeu, especialmente, mas também foram encontrados traços “artísticos” feitos pelo homo sapiens no território australiano, e com datas ainda mais antigas.

Mas comecemos falando de uma das grandes descobertas dessa atividade artística do nosso passado longínquo, e que é a mais famosa: a caverna de Lascaux, região de Dordogne, ao sul da França.

No dia 12 de setembro de 1940, quatro garotos resolveram explorar uma cavidade aberta pela queda de um grande pinheiro e foi assim que depois de 17 mil anos, a gruta de Lascaux, sítio pré-histórico que se tornou patrimônio da humanidade, se abriu de novo ao mundo. Estava presente na região o padre Breuil, uma das autoridades da arqueologia da época, que visitou o local que os jovens estudantes tinham descoberto e qualificou a gruta como uma verdadeira “capela sixtina” dos tempos pré-históricos!

Pintura na caverna de Lascaux, França
Uma das primeiras imagens encontradas, intitulada “Homem ferido” é uma raridade no mundo da arte das cavernas, uma vez que a figura humana quase nunca era representada. Mas era ainda mais rara ali dentro, uma vez que as 600 pinturas e 1500 gravuras encontradas eram em sua maioria a representação de animais: cavalos, bisões, carneiros, cervos, touros, renas, etc. Um professor e pesquisador francês, Leroy-Gourhan, afirmou que em 66 sítios dessa arte pré-histórica já explorados, encontram-se 66% de representações de animais, 33% de símbolos e somente 4% de representação humana.

"Homem ferido", Lascaux
Pesquisadores da pré-história, estudando a arte das cavernas, levantaram alguns pontos em relação a esses achados artísticos: primeiro, ele observaram que uma forma de expressão artística característica, ocupou um vasto espaço e durou um longo período; segundo, que havia uma unidade no tipo de pintura nesse mesmo espaço geográfico e tempo, com algumas variações de estilo; terceiro, havia uma impressionante qualidade de execução e realismo dessa arte voltada essencialmente para a figura dos animais; notaram também que havia um relativamente pequeno número de espécies de animais representados; uma raridade da representação da figura humana, que, quando era encontrada estava sempre esquematizada e localizada no fundo das cavernas, com qualidade bem diferente das figuras de animais; também observaram a presença de numerosos signos e símbolos ainda indecifráveis.

Os artistas da pré-história que decoraram abrigos e cavernas exerceram seu talento no Paleolítico superior sobre um período em torno de 25 mil anos, que vem desde o período Auriaciano (35 mil a.C.) até o Madaleniano (em torno de 13 mil anos a.C). Essa atividade, no entanto, diminuiu em torno do nono milênio a.C., período onde começa o processo de sedentarização do homem, que até então era nômade.

Pintura da caverna de Altamira, Espanha
A parte do hoje território europeu onde esses antepassados viviam se estendia da península Ibérica até o sul da Rússia. Mas as mais belas obras deixadas por eles estão concentradas nas cavernas de Altamira e Ekain, na Espanha, e em cavernas do território francês, especialmente Lascaux, Cosquer, Chauvet, Rouffignac, Les Combarelles, Font de Gaume, les Trois Frères, Gargas ou ainda a região de Vilhonneur, descoberta em 2005.

O que espanta os pesquisadores é o fato de que durante 25 mil anos esses homens, que eram coletores, caçadores e nômades praticaram sua arte utilizando basicamente as mesmas técnicas e os mesmos estilos para as mesmas representações. O conjunto todo da arte pré-histórica apresenta uma unidade. O mesmo bisão pintado na caverna de Niaux por volta de 13 mil anos (a.C.) é muito aparentado ao grande bisão da gruta Chauvet de 20 mil anos. São as mesmas patas em triângulo, o mesmo encurvamento das costas ou a mesma maneira de representar a cauda, observa Yves Calméjane. E diz ainda: durante esse espaço de tempo - dez vezes mais do que nossa era cristã - as diferenças são mínimas e quase restritas ao número de espécies de animais representados, assim como à técnica de pintura ou de gravação!

Pinturas no teto da caverna de Altamira, Espanha
Essas obras eram pintadas, gravadas ou esculpidas com verdadeira maestria na representação dos movimentos, nas atitudes e nas expressões de suas figuras. E é bom que se diga: eles praticavam essas artes em locais de acesso muito difíceis e em condições muito dificultosas. Por isso, acrescenta Calméjane, “quando o abade Breuil chama a caverna de Lascaux de “capela sixtina”, sem dúvida ele estava querendo dizer que o artista do período madaleniano possuía tanto mérito quanto Michelangelo”, o pintor do Renascimento.

Em Lascaux, por exemplo, seria impossível pintar alguns dos tetos das cavernas sem andaimes. Mas alguns pesquisadores encontraram nesses lugares perfurações na parede e restos de árvores como carvalhos, que devem ter servido como andaimes. 

Esses artistas do passado trabalhavam no silêncio das cavernas e em sua obscuridade angustiante, depois de preparar seu material, como pigmentos, pinceis, raspadores e buris feitos de sílex. Muitas vezes percorrendo centenas de metros dentro das cavernas, segurando sua tocha frágil ou sua lamparina de gordura, eles desenhavam e pintavam tetos e paredes, muitas vezes usando as saliências e os pigmentos naturais que ele adaptava à sua obra.

Caverna de Altamira
Se esses homens sabiam o que faziam e para quê, nós, ao contrário, ignoramos completamente, observa Yves Calméjane. A nós, restam as conjecturas e as teorias sobre as reais motivações daqueles primeiros seres humanos. Aquela prática artística tinha função utilitária, simbólica ou ritual?

Outras observações também impressionam os estudiosos da arte pré-histórica, trazendo ainda mais questões: não existe representação artística da flora, curiosamente não há nenhuma flor, nem frutas ou árvores; não há representação de outros elementos naturais como a água, o sol, as montanhas, as estrelas, a lua, as nuvens. Ao menos que estejam sob uma forma que não possamos perceber; o homo sapiens não sabia representar o horizonte e nada sabia sobre perspectiva; a reprodução da figura humana é rara, como falamos antes; os homens são pouco representados, mas a mulher, sobretudo retratada como reprodutora, é mais frequente nos desenhos das cavernas.

Pintura na caverna de Altamira
Observando-se o “Homem-bisão” da gruta de Villars, ou o “Homem-pássaro” de Lascaux ou o “Mago chifrudo” da caverna “Trois Frères”, vê-se um contraste gritante entre os desenhos de animais e de pessoas. Somente no período Madaleniano, por volta de 13 mil anos a.C., é que encontramos figuras humanas pintadas com mais realismo, como em “Angles-sur-l’Anglin” e “La Marche”, por exemplo. Ali estão as primeiras tentativas do homem de se auto-representar de forma realista.

Na caverna “Angles-sur-l’Anglin”, no interior da França, há a representação de um rosto humano, bastante realista, de perfil, e que sorri com certa docilidade. Enquanto olhamos para ele, enfatiza o professor francês, nos admiramos com esse que pode ser o primeiro sorriso da história da arte e nos faz pensar ainda mais sobre qual motivo havia para que o homem pré-histórico desse um tratamento tão diferente para as figuras de animais e de seres humanos? Seria por não ter ainda consciência de si mesmo? Por não ser capaz de observar um semelhante como eram capazes de observar os animais?

Mas Yves Calméjane também fala sobre uma outra região do mundo, na Austrália.

Pesquisadores franceses na ilha de Borneu
Na região de Ubbir, naquele continente, as representações artísticas são feitas sem interrupção desde 40 mil anos atrás até hoje, pelos aborígenes! Eles continuam a pintar como seus ancestrais, observa o professor. Entre eles, o ensinamento é transmitido por via oral e através das pinturas rituais feitas em cascas de árvores, onde eles representam seus grandes mitos, que eles chamam de “Sonhos”. Esses mitos têm sido pintados ou gravados também sobre paredes rochosas há 40 mil anos!

Naquela região é muito frequente a representação das mãos humanas, uma forma de comunicação com os espíritos, diz Calméjane. São feitos por homens, mulheres e crianças, enquanto que a maior parte das outras pinturas é feita exclusivamente pelos homens. Mulheres e crianças se expressam, então, fazendo traços e pinturas com as próprias mãos, usando-as como estêncil.

Mas essa prática de pintar as mãos se estende por muitos outros lugares do mundo. Na Argentina, por exemplo, tem a Cueva de las Manos Pintadas. Na França, ela está presente nas cavernas Cosquer e Chauvet. No norte da África e na Indonésia se encontram figuras de mãos - negativas ou positivas - pintadas. E Yves Calméjane afirma: “são uma espécie de testemunha de que o homem a partir daí (13 mil anos) começa a tomar consciência de si”.

Descobertas mais recentes, em 1992, na ilha de Borneo, na Indonésia, feitas pela equipe coordenada pelos espeleólogos e arqueólogos Luc-Henri Fage e Jean-Michel Chazine, trouxeram à luz surpreendentes pinturas pré-históricas. Encontraram centenas dessas mãos pintadas em negativo.

Pintura pré-histórica na serra da Capivara, Piauí
Aqui no Brasil, as pinturas e gravuras mais antigas, que chegam a ter 12.000 anos, foram encontradas no Parque Nacional da Serra da Capivara, região de São Raimundo Nonato (Piauí). São desenhos e esboços de animais, pessoas, plantas e objetos. Muitas vezes mostram cenas da vida cotidiana e cerimônias de culto. Mas podemos encontrar arte rupestre em diversos outros lugares no Brasil.

Nessa região próxima ao município piauiense de São Raimundo Nonato, vem ocorrendo importantes pesquisas arqueológicas e antropológicas sobre as origens do homem americano, especialmente sob a coordenação da pesquisadora Niède Guidon. Ela nasceu em 1933, em São Paulo, e se formou em História Natural pela USP. Estudou arqueologia na Sorbonne de Paris. Desde 1963 ela sabia da existência de um sítio arqueológico no Piauí e a partir de 1973 ela passou a trabalhar na região. Em 1986 ela fundou lá na região o Museu do Homem Americano, da qual é ainda diretora.

Serra da Capivara, Piauí
Nessas pesquisas arqueológicas, Niède encontrou pinturas feitas em pedras, ossos, pedaços de cerâmica, ferramentas, além das encontradas nas paredes de pedra das montanhas da região. Usando o método do carbono 14 para datar alguns ossos humanos lá encontrados, ela e outros pesquisadores chegaram à conclusão de que eles tinham 12 mil anos de idade.

Nossos antepassados brasileiros tinham também seus artistas e, convivendo no mesmo período (o madaleniano de 13 mil anos a.C) que os outros humanos espalhados em diversas regiões do planeta, começaram a desenhar e a pintar mais frequentemente a figura humana. Sejam em forma de estatuetas, sejam em forma de gravura, desenho ou pintura, os artistas registraram esse salto evolutivo da humanidade.

Podemos dizer – ao observar essas manifestações do homem da pré-história – que a arte não era algo à parte das outras atividades da vida de então. Ela tinha um lugar e um papel fundamental. Muito provavelmente as manifestações artísticas do homem ao longo da história dos últimos 50 mil anos vêm cumprindo um papel primordial em nossa evolução intelectual assim como em nosso processo civilizacional. 

"Bouquet de mãos", localizada no teto a 7 metros de altura, descoberta por Luc-Henri Fage e Michel Chazine,
na ilha de Borneu, com idade de 12 mil anos a.C.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Ferreira Gullar falando de arte

ENTREVISTA COM FERREIRA GULLAR

Ferreira Gullar
Ferreira Gullar, um dos mais importantes críticos de arte da atualidade, além de poeta, concedeu esta entrevista abaixo em 2007 ao Jornal de Brasília, que transcrevo, pela sua atualidade e importantes observações sobre o mundo das artes plásticas hoje. Uma pena que, à medida em que envelhece, este poeta vai ficando cada vez mais retrógrado em sua visão de mundo...

É importante lembrar que Ferreira Gullar e Hélio Oiticica, artista plástico brasileiro, participaram juntos da criação do Neoconcretismo, no final dos anos 50. Em 1959, Gullar escreveu o Manifesto Neoconcreto, que influenciou decisivamente o desenvolvimento da obra de Oiticica. Em seguida, Gullar formulou sua Teoria do Não-objeto, a partir da observação do processo criativo de Lygia Clark. Depois, ele fez autocrítica dessas posições anteriores.

Jornal de Brasília - No que consiste e o que induziu a esta situação de mistificação no território das artes?

Ferreira Gullar - A questão é que as tendências mais radicais da arte contemporânea levaram a uma destruição das linguagens artísticas. Por falta de coragem, não se faz a crítica deste processo, no momento em que as propostas radicais da vanguarda chegaram a um ponto de exaustão, chegaram a um ponto onde não tem mais nada a ver com a arte.

J.B. - Como isto se torna possível?

Gullar - Por um lado existe uma crítica omissa, conivente e conveniente, por outro lado existem instituições que, de alguma maneira, dependem desta situação para sobreviver. Você tem o exemplo de uma exposição de renome internacional como a Bienal de Kassel, que teve como curador um sujeito que declarou que não sabia mais o que era a arte. Ele selecionou os nomes dos artistas. Claro que não é possível definir cientificamente o que é arte. Mas se uma pessoa não sabe o que é arte não tem condições de organizar uma Bienal.
J.B. - Qual o alcance da crítica que dirige a Marcel Duchamp? Até que ponto nega Duchamp? Ele não ampliou o repertório, os materiais e os limites da arte?

Gullar - É preciso colocar as coisas em seu devido lugar. Eu não nego a importância de Marcel Duchamp. Mas ele é apenas um dos que ampliaram o campo da arte para as novas formas como objeto. O caminho de ruptura com as formas tradicionais já havia sido aberto pelos dadaístas. E o próprio caminho que Duchamp
segue é uma conseqüência de papier collé cubista. A utilização da estopa, areia e prego nos quadros cubistas já prenuncia o abandono da tela e a incorporação do objeto como matéria da arte. Duchamp não nasceu do nada. A diferença está entre o que Duchamp fez no tempo dele e no que se quer fazer hoje.

J.B. - Em que sentido?

Urinol, de Duchamp
Gullar -  Quando Duchamp enviou um urinol a um salão estava realizando um gesto de alto inconformismo e denunciando uma série de imposições que envolviam a arte naquele momento. O urinol não é obra de arte. Quando ele fez isto o seu gesto era rebeldia, mas hoje seria puro conformismo. As instituições já assimilaram este gesto. Esta atitude de denúncia e de arte sem linguagem já se exauriu. Em Duchamp esta atitude era significativa de uma postura ética. Mas por outro lado contribui para a destruição da obra de arte. Duchamp sacrificou a sua obra em razão desta atitude ética. A obra de Duchamp é datada.

J.B. - Em entrevista, você afirmou que Lygia Clark e Hélio Oiticica eram excessivamente cerebrais. Mas a busca dos dois não era precisamente do sensorial?

Gullar -  O Hélio era um cara de um indiscutível talento e que levou ao ponto extremo as experiências do neo-concretismo do qual eu era o teórico. E digo mesmo que houve uma influência recíproca dos artistas plásticos sobre a minha poesia e da minha poesia sobre os artistas plásticos. O meu Poema Enterrado influenciou os trabalhos de Hélio. Então eu não estou falando de fora. Nós pegamos a linguagem concreta e altamente intelectualizada e colocamos uma nova substância nela. A Lygia tem uma trajetória de uma enorme coerência, desde o momento em que os quadros delas incorporaram a moldura como espaço de expressão até a série Bichos, inovadora e verdadeira.
Mas, ao invés de aprofundar o desenvolvimento desta linguagem, ela resolveu seguir adiante, destruindo a própria linguagem. Quando coloca sacos de papel na parede ou fios de nylon na boca, reduz a experiência estética a algo meramente sensorial. Acaba com a dimensão reflexiva e espiritual da obra de arte. E consequentemente o homem se torna um bicho.
E agora respondo a sua pergunta: o excesso de intelectualismo levou ao puro sensorial.

J.B. - Mas você faria esta mesma avaliação do trabalho de Hélio Oiticica?

Gullar - O último trabalho que vi do Hélio era uma instalação no Hotel Meridien. Era um espaço com água e pedrinhas. Você tinha de retirar o sapato para sentir a água e as pedra. Olha só aonde leva este cerebralismo: a idéia de recriar a natureza dentro de um hotel. Francamente, se é para sentir a natureza acho melhor ir para Mauá.
E, ao invés de colocar as implicações deste tipo de atitude, a crítica fica louvando. Quem criticar isto é careta ou reacionário. Outro dia eu tive uma discussão com uma amiga minha e ela citou Andy Warhol que dizia que uma atitude podia ser uma obra de arte. Mas quem é Andy Warhol? É o papa? É deus? Ele era um artista interessante que se rendeu ao comercialismo. Como teórico para mim era um babaca.

J.B. - Não haveria, por exemplo, sintonia entre os parangolés de Hélio Oiticica e os mantos de Arthur Bispo do Rosário?

Obra de Bispo do Rosário
Gullar -  Não tem nada a ver. Os parangolés surgiram a partir do momento em que Hélio Oiticica passou a freqüentar a escola de samba da Mangueira. É algo muito pobre se você comparar com a roupa de uma porta-bandeira, colorida, barroca, popular. É uma arte que remonta ao século 17. Aí o Hélio botava a roupa em um passista e pedia para o cara rodar e falava que isto ele estabelecia uma relação da forma com o espaço e a luz. É pura teoria. Qualquer objeto rodando mantém uma relação com o espaço e a luz.

J.B. - Mas a incorporação que o Bispo faz dos objetos não evoca a procedimentos da arte moderna?

Gullar -  O Bispo é exatamente o contrário da arte moderna. Em seu delírio, ele quer salvar os objetos do mundo. Ele começou a desfiar o próprio uniforme de interno para bordar um manto sagrado. A sua busca é busca do sagrado. Não tem nada a ver com a sofisticação vazia da arte moderna. Só um louco se entrega totalmente a esta missão de salvar os objetos do mundo. É uma loucura que imprime esta força interior aos objetos do Bispo.
A arte moderna é de decadência, de cerebralismo, de sofisticação exaurida. O que a arte precisa é de paixão e não de cerebralismo. No contexto pretensioso desta arte moderna todos se acham gênios.
O Leonardo da Vinci, quando pediram a ele uma escultura, realizou um estudo reunindo todos os escultores que admirava no passado. Hoje o sujeito enrola três tijolos com arame, manda para a Bienal e diz que é arte. Na Bienal de Veneza, eles aceitaram um açougueiro que tinha cortado uns pedaços de tubarão. Agora não é mais necessário aprendizagem artística. Nas bienais nós temos açougueiros, marceneiros, eletricistas, cineastas. Li que Almodóvar expôs na Bienal de Veneza. Eu queria perguntar a ele se para ser cineasta não é preciso aprender a linguagem do cinema.

J.B. - E, agora, que perspectivas vê para a arte diante do mundo?

Gullar -  Acho que o que a arte tem de fazer é parar de falar sobre ela mesma e começar a falar do mundo. Nós temos 40 mil anos de arte falando do mundo e dos problemas do  homem no mundo. A arte deve voltar a falar da vida.

Arte pré-histórica