"A criação de Adão", Michelangelo, 280 x 570 cm, 1508-12, teto da Capela Sixtina, Roma, Itália |
Nossa civilização ocidental foi enriquecida com obras de arte maravilhosas, que nos inspiram e elevam. Ticiano, Caravaggio, Velázquez, Sorolla, Vermeer, Rembrandt, Anders Zorn, Ilya Repin, Sargent e tantos outros mestres, nos brindam com os mais altos padrões de excelência alcançado em sua arte. Podemos dizer que alcançaram, através de seu esforço pessoal, a mais alta qualidade possível! Os pintores que se seguiam estudavam os anteriores, e a qualidade se mantinha, muitas vezes ultrapassando a geração anterior.
Estudo sobre desenho de Silverman, Mazé Leite |
Mas o que faz de um mestre um mestre? Pode ter certeza que a receita principal são horas diárias de estudo, de pesquisa, de treino, de exercício. É estudar os grandes pintores e suas grandes pinturas. É conhecer o tempo em que se vive. É fazer da sua arte o seu ofício, é se tornar artesão, pensador, interpretador da realidade, criador. Para isso, não há atalho algum que nos permita dar um salto direto para alta qualidade a não ser dispensando muito tempo de nossas vidas a conhecer o mais profundamente possível os instrumentos de que precisamos para nos expressar.
Por isso, eu, meu ateliê e muitos outros artistas contemporâneos, insistimos em seguir este caminho. Em nosso caso significa desenhar, pintar, desenhar… e pintar. Estudar os instrumentos, saber das potencialidades de cada material, estudar a cor, a luz, os valores, as massas, as tintas, a combinação de temperaturas de cor, os pincéis, os mediuns, os carvões, os grafites, os papeis, as telas.
Na música, esta é uma prática absolutamente indispensável. Não se pode dominar um instrumento sem diariamente abraçá-lo algumas horas, estudando-o. Isto é questão incontestável entre os músicos. E por que não entre os artistas plásticos? Porque desde que se inventou que a expressão pessoal é “natural” e que não requer domínio técnico nenhum, rebaixou-se o valor do treinamento! Numa sociedade altamente individualizada como a nossa, é quase uma apostasia se dizer que não existe expressão pessoal sem domínio técnico. Quando é exatamente o contrário: o grau da minha expressão pessoal está diretamente vinculado ao conhecimento técnico que me permitiu adquirir repertórios de criação.
Estudo para pintura "O clown", Mazé Leite |
O conhecimento técnico vem do exercício e da familiaridade que se vai adquirindo aos poucos com os instrumentos de trabalho. Para isso, se requer esforço, físico e mental.
Físico, porque há o gasto de energia do corpo. Esforço mental porque a mente tem que estar absolutamente focada. Conta-se que o violinista Nathan Milstein perguntou uma vez ao seu professor Leopold Auer quantas horas por dia ele deveria praticar. Auer respondeu dizendo: “Pratique com seus dedos e você precisará do dia inteiro. Pratique com sua mente e terá feito o mesmo tanto em uma hora e meia”.
A atitude de quem caminha os caminhos da arte é de se submeter a uma prática deliberada de estudo, o que significa estar focado no momento em que se estuda, em que se exercita. Focado nos conceitos, nos materiais, no ato de desenhar/pintar. Em nosso caso, no conceito das massas, do movimento da luz, no ritmo, na composição… A prática deliberada do desenho é uma atividade sistemática e altamente estruturada. Ao invés da tentativa e erro desatenta, é um processo ativo e profundo de experimentação com foco nos conceitos. Ela é um processo lento, que envolve esforço, que é cansativa, pois exige de nós uma quantidade grande de energia para manter a atenção completa na tarefa.
Estudo, Mazé Leite |
Mas os ganhos são imensos! Na minha experiência pessoal, que venho mantendo há 8 anos o foco numa linha de pensamento pictórica, meus avanços neste tempo são impressionantes, mesmo que eu saiba o quanto ainda tenho a me aperfeiçoar! Muitas vezes acontece de terminar um desenho e ver que ele não está saindo do jeito que quero, mas isso só significa que preciso praticar mais. Sempre desenhei, desde criança, com alguns longos intervalos em que tive que parar. Mas meus avanços verdadeiros vieram desde que iniciei meus estudos com um professor (Maurício Takiguthi) que ensina a desenhar dentro de um conceito e não de forma aleatória. É desenho, mas desenho que não segue a forma, não se prende no detalhe, mas no movimento das linhas e massas. Desta forma eu também ensino a meus alunos no Ateliê Contraponto.
Há um mito que se espalhou pela sociedade: somente são possíveis de aprender a desenhar aquelas pessoas que nasceram com o “dom”, como algo vindo de Deus, o doador de dons… Mas desfazendo esse mito, na prática acontece que qualquer pessoa com um mínimo de inteligência é capaz de aprender a desenhar! Qualquer pessoa, repito. Se a pessoa consegue aprender a escrever, também consegue aprender a desenhar. Simples assim…
Os dois lados do cérebro
Há décadas, neurologistas pesquisam as diferenças entre os dois hemisférios do nosso cérebro, o esquerdo e o direito. Vou forçar aqui uma simplificação sobre a imensa complexidade do nosso cérebro (até porque precisaria de muito espaço aqui para aprofundar este assunto, o que não é o caso), mas a ideia básica é que a pesquisa neurológica diz que os hemisférios esquerdo e direito funcionam de forma independente um do outro: o lado esquerdo do cérebro é associado à lógica, à racionalidade, ao pensamento linear, à análise, à crítica, às regras, aos detalhes, ao planejamento e ao julgamento. Por seu turno, o lado direito do cérebro está associado à intuição, a sons, a imagens, a padrões de entrada cinestésica ou sensorial, às emoções, à "grande figura" (o todo), à associação livre e à criatividade.
Com base nesta informação, o modo de “pensar” (hemisfério esquerdo) parece mais propício para desenhar e pintar?
Criolo, Mazé Leite |
Experimente desenhar inundado pela racionalidade do seu lado esquerdo do cérebro com toda sua capacidade analítica... Você pode até conseguir seu desenho, mas ele irá mostrar de que ponto de vista você partiu. Se você está desenhando um olho, sua mente crítica vai dizendo o tempo inteiro em que direção tem que ir pra ser um olho. Agora tente desenhar a partir do lado direito de seu cérebro: não importa se é um olho, uma casa, um animal, uma pedra: você verá as relações espaciais, os movimentos e direção de linhas e massas, os efeitos da luz. O resultado final será um olho, uma casa, uma pedra. Mas não importa muito o ponto de chegada, o processo é que é altamente importante! E, como resultado, compare os dois desenhos e responda: qual deles parece mais elegante, mais vivo, mais solto, com mais movimento?
O lado direito do cérebro nos faz funcionar em “fluxo”, percebendo o todo, mergulhando nas infinitas questões que vão surgindo ao longo do aperfeiçoamento como um campo de conhecimento novo que vai se abrindo na medida em que avançamos. “Aprender a desenhar é aprender a ver”, diz Beth Edwards, autora do livro “Desenhando com o lado direito do cérebro”, livro que nos inspira neste caminho.
Menino imigrante, Mazé Leite |
Enquanto pratica, tente manter-se centrado no lado direito, evitando pensamentos que distraiam, mantendo o foco. Dá trabalho? Dá! Mas é assim que se consegue avançar. Não se preocupe com o resultado final: ele virá ao final do processo. O que importa é o caminho e não o objetivo final. Em geral, pessoas muito ansiosas precisam fazer um esforço imenso para se focar no processo e esquecer o resultado. Querem chegar lá de qualquer jeito e com isso atrapalham/atropelam o processo. Mas não existe atalho algum para se chegar lá! Há que se caminhar, um passo de cada vez, para alcançar o que se pretende. Mas o estudante que se mantém focado no processo é exatamente aquele que dará saltos de qualidade que podem parecer “mágicos”, que pode parecer que o cara tem o “dom”, que é mais “talentoso” e essas coisas que costumamos ouvir das pessoas leigas. Não há mágica! Se o artista é bom, ele sabe o quanto caminhou para chegar até ali! Ele sabe todo o empenho envolvido para alcançar um bom resultado!
É muito melhor curtir o processo, o caminho que se percorre em um desenho. Porque o trabalho final mostrará exatamente se a pessoa estava com seu foco no fluxo e não no ponto final. Uma pessoa focada no fluxo mostrará um desenho com movimento, com leveza, com elegância. Outra focada no objetivo final, em geral ansiosa, mostrará um desenho mais “duro”, mais travado, com interrupções de leitura...
"Atirou por que?", Mazé Leite |
Uma dica boa para começar (em especial para os mais afobados): respire profundamente algumas vezes. Isto inverte a resposta do corpo ao estresse. Quando sob estresse, respiramos mais rápido, mais superficialmente. Quando respiramos (uma meia dúzia de vezes apenas) de forma profunda, enchendo completamente o corpo com o ar, expirando-o calmamente também, ativamos o que é chamado de sistema nervoso parassimpático, que estimula o organismo a responder às situações com calma, com a desaceleração dos batimentos cardíacos, a diminuição da pressão arterial, da adrenalina. O corpo e a mente se acalmam. A tensão muscular diminui, a pessoa se sente mais centrada, o que por si só já traz mais conforto e menos ansiedade. Quando estamos em estado de muito nervosismo, estresse, cansaço, ansiedade, é quando nos prendemos ainda mais às minúcias e aos detalhes. Nada mais descartável para um bom desenho! O bom desenho é resultado da visão do todo, da relação entre as diversas partes, externas e internas.
No momento em que nos permitimos esse estado de percepção mais total das coisas, nosso estado mental está propício para realizar o seu melhor, canalizando nossa energia para um desempenho dinâmico e inspirado. Esta é a forma como usamos nossa energia mental e física a nosso favor, e não contra nós.
A chave para o desenvolvimento pessoal como artista é: disciplina, persistência no treino, foco no processo. É como estar na praia: você não pode parar o movimento das ondas, mas você pode aprender a nadar, a surfar. Isto é FLUXO, isto é processo, isto é caminhar. Como diz um velho ditado: “O caminho se constrói caminhando”...