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quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Edgar Degas, impressionista ma non troppo

Estudo meu sobre o "Retrato de Albert
Melida", de Edgar Degas,
feito em pastel (nov. 2012)
O Museu Oscar Niemeyer de Curitiba, Paraná, inaugurou no dia 10 de novembro a exposição “Degas: Poesia geral da Ação. As esculturas - Coleção Masp”. O evento faz parte da comemoração dos 10 anos de vida do Museu, que tem a assinatura do arquiteto Oscar Niemeyer.

São 73 obras do artista francês Edgar Degas que pertencem ao Museu de Arte de São Paulo, o Masp. As esculturas são fundidas em bronze e, entre elas, a mais conhecida: “Bailarina de 14 anos” (foto abaixo). Vale ressaltar que o MASP é um dos museus onde há uma das grandes concentrações de obras de Degas, além do Metropolitan de Nova York e do Museu d'Orsay de Paris.

Recentemente fiz um estudo em pastel de uma pintura a óleo deste artista francês, o “Retrato de Albert Melida”. O método de pintura dos impressionistas é pictórico, quase sem linhas, com predominância no valor das cores de médio a alto; também não respeitam muito a forma dos objetos e as massas se fundem, se multiplicam, dando um ritmo luminoso, o que era intenção desses pintores. Alguns levaram essa técnica à radicalidade do pontilhismo, como George Seurat e Van Gogh. Ou praticamente enfatizando os efeitos luminosos das cores sob o efeito da luz, como fazia Monet. Mas não foi o caso de Degas. Ele ficou mais independente, mantendo mesmo uma certa distância do grupo dos impressionistas, mesmo que, segundo E.H. Gombrich em seu livro História da Arte, “simpatizasse com a maioria de seus propósitos”.


Autorretrato, Degas, 1857
Seu nome completo era Hilaire Germain Edgar de Gas, adotando Edgar Degas como nome artístico. Ele nasceu em 19 de julho de 1834 em Paris e foi, além de pintor, gravador, escultor e fotógrafo. Era um pouco mais velho do que Renoir e Monet e regulava de idade com Manet. Gombrich observa que Edgar Degas tinha um interesse “apaixonado” pelo desenho e era grande admirador da obra de Jean-Auguste Dominique Ingres, artista que se manteve sempre fiel à pintura acadêmica.

Degas não aderiu ao costume dos impressionistas de pintar ao ar livre. Preferia o espaço interno de seu ateliê ou as salas de aulas de balé, cujas bailarinas aparecem em muitos de seus quadros. Ele ia aos ensaios de dança para ver os corpos em movimento, que desenhava e pintava. “Via as bailarinas dançando ou repousando, e estudava o intrincado escorço e o efeito da iluminação de cena modelar a forma humana”, aponta Gombrich. Diversos desses esboços foram feitos à pastel. Mas nessas observações das bailarinas ele se comportava como seus amigos impressionistas e pintores de plein air: lhe interessava, mais do que a beleza da bailarina, os jogos de luz e sombra, as formas dos movimentos, as relações espaciais.

A maior parte de suas obras, desde que se busca classificar os pintores dentro de algum movimento, é incluída dentro do movimento impressionista, mesmo que, como vimos antes, ele não era exatamente um deles, porque as principais características do Impressionismo não são aplicáveis a Degas, que pintava dentro de seu ateliê, muitas vezes de memória. O fato dele ser incluído entre os impressionistas seria muito mais pelo fato de que, assim como aqueles, ele também não seguia as regras da Academia Francesa. Muita discussão e debate já aconteceu em torno da obra de Edgar Degas por diversos historiadores da arte, uma vez que seu trabalho como artista não podia ser classificado como impressionista em sua totalidade.


A bebedora de absinto, Degas
Edgar Degas, filho de uma família rica, era o grande burguês do bairro de Montmartre, tradicional reduto de artistas, em sua maioria pobres. Seu pai era banqueiro, e ele cresceu dentro do meio burguês, numa rua próxima do Jardim de Luxemburgo, bairro nobre de Paris. Como parte de sua formação, cursou a faculdade de Direito, por exigência paterna. Mas Degas já se interessava muito por Desenho e começou a frequentar o Gabinete das Estampas da Biblioteca Nacional, onde copiava incansavelmente as obras de Albrecht Dürer, Andrea Mantegna, Paul Veronèse, Francisco Goya e Rembrandt.

Além disso passava as tardes no museu do Louvre onde, com o tempo e sua evolução como artista, foi admitido como pintor copista, uma prática que ainda hoje se mantém. Ele admirava os pintores italianos, franceses e holandeses. Foi aluno, entre outros, de Louis Lamothe, que tinha estudado pintura com Ingres. O pai de Degas, homem culto e amante das artes, mas também bom comerciante, apresenta ao filho alguns dos maiores colecionadores de arte de seu tempo.


A partir de 1855 ele frequenta as aulas da Escola de Belas Artes de Paris, mas com a ideia de se aproximar da obra dos grandes mestres do passado, como Luca Signorelli, Sandro Botticelli e Rafael. Por causa desse interesse, Degas viajou várias vezes à Itália entre 1856 e 1860. Foi em Florença que ele conheceu e se tornou amigo de um outro pintor francês, Gustave Moreau, que foi um dos principais representantes da corrente simbolista na pintura francesa.

Em sua fase inicial, Degas fez diversas pinturas de inspiração neoclássica, além de ter pintado numerosos retratos de pessoas de sua família. Na guerra contra a Prússia de 1870, Degas se alista na infantaria. Entre 1874 e 1886 Degas participa das exposições dos impressionistas, empenhando-se pessoalmente na organização das mesmas. Seus contatos com outros pintores da mesma geração se estreitam, especialmente com Camille Pissarro.


As bailarinas, 1878, Degas
Edgar Degas era um frequentador ativo do bairro de Montmartre, participando de diversos círculos de amigos, de ateliês, de cafés literários e de encontros sociais organizados por outros artistas e intelectuais de sua época, reunindo-se na casa da família Manet, na da pintora Berthe Morisot e na do poeta Stephane Mallarmé. À frente de outros burgueses como ele, seus amigos íntimos, ele levava uma vida celibatária e algo arrogante. No que dizia respeito aos princípios aprendidos em sua família de origem, era intransigente, e em muitas querelas batia de frente com os amigos. Tinha uma personalidade difícil, humor mordaz, agressivo, o que afastava as pessoas de seu convívio. Mas participava ativamente das discussões que aconteciam no café Guerbois, entre artistas jovens e seu amigo Edouard Manet, cujo ateliê ficava perto, no bairro de Montmartre.

Desde 1875, a pintura foi para ele sua fonte de renda, quando ele começou a ter dificuldades financeiras. Sua família tinha entrado em falência após a morte de seu pai. De 1880 em diante, ele passa a usar mais o pastel em sua pintura, algumas vezes usando junto também tinta guache e aquarela. As telas dessa época são bastante modernas no sentido de dar maior expressão às cores. No final dos anos 1890, Degas, já quase cego, se dedica cada vez mais à escultura. Sua única exposição individual aconteceu em 1892, quando ele apresentou 26 telas com paisagens.


De 1905 em diante, cada vez mais amargurado pela cegueira que lhe acometeu, Edgar Degas se isola ainda mais dentro de seu ateliê. Morreu em setembro de 1917, com 83 anos de idade, acometido de um aneurisma cerebral. Seu corpo foi sepultado na tumba da família no cemitério de Montmartre. No ano seguinte, todas as obras acumuladas em anos de trabalho, que ele guardava em seu ateliê, foram vendidas em leilão, assim como sua importante coleção de obras de arte que ele tinha adquirido de outros artistas. Dessa coleção, dedicada especialmente à arte francesa do século XIX, se destacavam obras de Ingres e Delacroix, dois mestres por quem Degas tinha grande admiração não só por sua técnica mas também pela cultura artística que eles possuíam.




A pequena bailarina de 14 anos,
Degas, acervo do Masp
Ingres influenciou profundamente o jovem Degas. Ele tinha 21 anos de idade quando conheceu o mestre em seu ateliê. Em seguida, passou a copiar apaixonadamente as obras apresentadas em uma exposição retrospectiva consagrada a Ingres. O primeiro autorretrato de Degas faz referência clara ao que Ingres fez em 1804, como se pode ver neste post. O próprio Ingres lhe teria sugerido que desenhasse, que desenhasse muito, e ele seria um bom artista. Degas estava sempre com um porta-lápis à mão. Até o fim de sua vida, Degas mantinha o costume de fazer desenhos preparatórios e esboços para seus trabalhos. Praticava inclusive desenho de modelo vivo, a vida toda. Sempre respeitando o que lhe havia sugerido o grande mestre Ingres.

Em relação a Eugène Delacroix, Degas também era um admirador de sua pintura, chegando a fazer uma cópia do quadro de Delacroix “Entrada dos cruzados em Constantinopla”. Em 1889, viajou a Tanger, seguindo os passos do pintor Delacroix, que era apaixonado pela cultura do norte da África.


Um de seus inúmeros esboços
As bailarinas azuis, 1899, Edgar Degas
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Serviço:

“Degas: Poesia geral da ação. As esculturas – Coleção MASP”
De 10 de novembro de 2012 a janeiro de 2013
Museu Oscar Niemeyer
Curitiba - Paraná

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Meia noite em Paris


Neste domingo tive um encontro inusitado, mas bastante satisfatório. Estava passeando entre os corredores de um lugar arborizado, quando resolvi aproveitar a oportunidade das presenças importantes ao meu redor e convocar certas pessoas para uma importante reunião.

Camille Corot, auto-retrato
O primeiro que chamei foi Camille Corot e ele me ajudou a chamar todos os outros: Jacques Louis David, Georges Seurat, Jean-Auguste Dominique Ingres e Eugène Delacroix. Marx Ernst estava ali por perto, mas como não tenho interesse nas ideias dele, deixei de fora. Estávamos todos no cemitério Père Lachaise, com mais dezenas de outras figuras importantes da história francesa.

O encontro foi no Jardim do Crematório, um lugar tranquilo, cheio de flores coloridas bem arrumadas nos canteiros. Achei que era um bom lugar para esse encontro, um lugar fértil, adubado com as cinzas de milhares que já foram incinerados neste forno, cuja chaminé escura paira poderosa ao lado da abóboda do prédio.

Ingres, auto-retrato
Tive muito trabalho, no começo, para acalmar a verdadeira balbúrdia que se instalou entre meus convidados. Ingres queria partir para cima de Delacroix, macambúzio, no seu canto, enquanto Corot queria entender porque David nunca teve coragem de abandonar o atelier e ir pintar ao ar livre, ao que David respondeu que preferia as sombras projetadas dentro de um quarto fechado do que a luz chapada do sol nos campos. "Para isso você bem podia ter sido Barroco, mas faltava arrojo e você preferiu ser o queridinho dos salões!" Deixamos os dois e encontramos Pissarro que, por sua vez, tentava convencer Modigliani de que as figuras não precisavam ser tão esguias assim, nem tão chapadas. Modigliani berrava e gesticulava em italiano, sem ouvir uma palavra do pintor francês.

Georges Seurat tentava estudar os pequenos pontos luminosos que atravessavam as folhas das árvores, dizendo a Corot que ele não precisava ter sido tão literal assim, que bastava olhar para a luz, como ela se comportava em pequenos pontos, mas Seurat, indignado, gritou com ele que esse negócio de pontilhismo é para quem não sabe nem a sombra de como se usa um pincel!

Delacroix, auto-retrato
Enquanto Ingres se inflamava cada vez mais com Delacroix, David também se achou no direito de cobrar deste uma posição política mais definida. "Como assim?", perguntou Delacroix. "Você não viu que eu pintei a maior obra prima da Revolução, A Liberdade guiando o povo?" - Sim, respondeu David, mas eu falo de ação, camarada, de ação! Ao que Delacroix respondeu: você foi tão bonapartista quanto eu! Voilà!

Bom, como vi que a coisa estava cada vez mais fora de controle, dei um berro muito alto, usando da minha autoridade de idealizadora da reunião:

- ARRÊTEZ-VOUS, S'IL VOUS PLAÎT!!! Parem já!

Assustados com meu grito feminino quase histérico, eles me olharam. Continuei:

- Chamei vocês aqui porque tenho coisas importantes a discutir, então esqueçam suas desavenças e gostos pessoais. Esta aqui é uma reunião de trabalho!

Pissarro, auto-retrato
Ingres resmungou, David que já estava mais animado por uma briga, parou estático. Os outros ficaram ali, me olhando; Pissarro com um sorriso debochado. Não liguei.

De longe, à esquerda, ouvia-se a voz de Edith Piaf cantando "Je ne regrette rien", enquanto no lado oposto, mais ao fundo, Mozart solfejava uma sinfonia... O corvo preto que tinha pousado no jardim à nossa frente, levantou vôo, pousou num galho e deu um grito. Os communards (combatentes da Comuna de Paris), aglomerados no canto direito, próximo ao muro, faziam alguma algazarra, enquanto se ouvia a Marselhesa. Também dava para se ouvir berros violentos que vinham do lado onde estava Balzac. Ele gritava à queima roupa no ouvido de Marcel Proust: - Vai conhecer a vida lá fora, irmão! Você não sabe de nada! Rien de rien!

David, auto-retrato
Paul Éluard, abraçado a Apollinaire, cambaleava, bêbado, recitando um poema.

Voltei aos meus amigos e falei:

- É o seguinte, amigos! Estamos vivendo tempos sórdidos, tempos estranhos. Eu sei que o tempo em que cada um de vocês viveram não era lá grande coisa, mas mesmo com as desavenças que havia entre os seus pares não chegava nem aos pés do isolamento em que uma grande parte dos artistas vive hoje.

David, para você ter uma ideia, desde que o conterrâneo de vocês, Marcel Duchamp, decretou que tudo é arte ("- que você tá falando?" berrou ele) Isso que você ouviu. Duchamp, que nunca ia a museu algum e que dizia que detestava pintura, acreditem, é hoje a musa principal que inspira a nova academia: a que cria dezenas de alunos que não precisam aprender a desenhar, mas vão aprendendo que uma boa ideia vale mais do que mil palavras! (- "Não estou entendendo nada", resmunga Ingres).  Pois é, amigo, nem você, nem eu, nem ninguém. E para eles quanto menos gente entender melhor. ( - "Mas como não se aprende a desenhar se o desenho é a base de tudo?", insistiu Ingres) Simplesmente porque hoje em dia se você tiver uma formação conceitual dessa academia aí, não precisa mais desenhar. Desenhar o que? Desenhar pra que, se não é preciso criar nada daí? Hoje, artista e designer é tudo a mesma coisa. Se duvidarem de mim, podemos ir agora ao Museu George Pompidou e ver as salas separadas para apresentar a arte dos anos atuais: cadeiras, móveis, enfeites, badulaques de todo tipo, penduricalhos espalhados, mais parece um grande parque de diversões! E na tal da FIAC, então? (- "Que diabo é FIAC?", perguntou Pissarro) A tal da Feira Internacional de Arte Contemporânea. Vocês vão e lá e verão: penduricalhos, badulaques, trastes, trecos pendurados... É isso, hoje a arte é para ser divertida, tocada, brincada, manipulada, ultrapassada... (- "Principalmente ultrapassada", disse Seurat) Voilà, Seurat, isso mesmo!

Túmulo de Ingres, no Père Lachaise
Agora, não para por aí não. Os quadros que vocês fizeram e que nem venderam tanto enquanto vocês estavam vivos, hoje em dia não valem nada, quase nada perto de um tubarão envidraçado ou uma caveira de diamantes! (-"Que conversa é essa?" perguntou Delacroix. "Uma pintura de um tubarão e de uma caveira, o que isso tem de valor?") Não, meu caro Delacroix. Muito pior do que você pensa: o cara pegou um tubarão morto, jogou dentro de litros de formol, fechou num aquário de vidro e vendeu por milhões de dólares! (Os pobres coitados pintores me olhavam abismados) Porque hoje sabe quem manda no que se chama de arte contemporânea? O mercado. No tempo de vocês a igreja, a nobreza ou o Estado eram grandes compradores de arte. Hoje os grandes compradores são uns caras que ganham bilhões na Bolsa de Valores e, se compram alguma pintura de valor, é para ela ficar bem guardada esperando que valorize mais... Corot, ainda bem que seu amigo Gustave Courbet não está aqui hoje. Ele ia querer fazer outra revolução!

Mas meus amigos foram murchando, se movimentando lentos, cabisbaixos. Olharam para mim com pena. Corot ainda me perguntou se valia mesmo a pena ser pintora hoje. Vale, mesmo que seja por mim, respondi. Mas eles foram voltando quietos cada um pro seu canto. Minha reunião acabou sem ter acabado.

Gritei para eles:

- Mas há os que ainda resistem!

Delacroix fez um gesto amigo com as mãos. Ingres me desejou "bonnes chances, allez-y!", boa sorte, vá em frente.

Fui embora pra Bastilha.

Praça da Bastilha, Paris

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

As ideias e os artistas


Detalhe da pintura "Marat Assassinado", de David, 1793
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A força das ideias vai gerando a história, movimentando os povos, mudando os sistemas. Nas artes, vai alinhando ou desalinhando artistas. E ninguém fica incólume ao que acontece em seu próprio tempo. Assim foi, assim é. Mas essas ideias não surgem do nada; não surgem da mente de algum ser genial. Surgem dessa dialética entre a realidade concreta e a observação que o ser humano vai fazendo dela, enquanto constrói seu caminho no mundo.

Estou lendo o livro de Walter Friedlaender intitulado “De David a Delacroix” que faz um recorte  na história da arte francesa, onde podemos observar o quanto ideias e arte estão em consonância. Esse livro foi publicado pela primeira vez em 1930, na Alemanha, e era destinado ao uso em escolas e universidades. Aborda principalmente dois grandes pintores franceses – David e Delacroix – mas os localiza num período histórico dos mais importantes da história.

A França do século XVII era o país mais poderoso da Europa e o que possuía a maior população. German Bazin (em outro livro que acabei de ler, o “Barroco e Rococó”) mostra que a França era o país que assimilou “com maior êxito o espírito do Renascimento italiano”, que trouxera muitas novidades em todos os campos da vida humana, assim como as ideias de uma classe em ascensão, a burguesia. No século XVIII – onde vamos nos concentrar aqui – ideias contraditórias disputavam espaço numa sociedade onde “financistas conviviam com as velhas noblesse d’épée e noblesse de robe”, ou seja, burgueses e aristocratas disputando espaços políticos e econômicos, além de filosóficos, dentro de um sistema em evolução.


"Marat assassinado", de Jacques Louis David, 1793
Essas ideias que competiam entre si, movimentavam a história. Uns agarrados ferrenhamente ao passado; outros, onde os mais pobres foram incluídos, carregavam novas bandeiras que balançavam ao sopro dos ventos de um mundo novo.

A Revolução Francesa (um período que vai de 1789 até o golpe de estado conhecido como o 18º Brumário de Luís Bonaparte, 1799) marcou o fim do Ancien Régime e dos privilégios da realeza e do clero. Até então o rei era o centro de toda a vida política e social na França. Os impostos cobrados ao povo eram extorsivos. A imensa maioria vivia na miséria, enquanto os membros da corte e do clero se refestelavam nos palácios. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, proclamou a igualdade dos direitos de todos diante da lei, além de defender direitos básicos dos cidadãos. Essa Revolução de 1789 marcou o início da era moderna e influenciou todos os recantos do mundo.

Dentro de tudo isso, correntes de pensamento influenciavam também a Pintura. Os ventos do Renascimento haviam trazido o pensamento racional, que predominou durante todo o século XVII e chegava ao século XVIII trazendo as ideias de influentes pensadores franceses, como Descartes e Corneille.

Mas uma corrente de pensamento “irracional”, mesmo que inconstante e com menos influência, “se manifesta de forma mais exuberante na primeira metade do século XVIII”, diz Walter Friedlaender. Essas duas formas de pensamento, conflitantes entre si, podem ser encontradas, segundo ele, “na complexa estrutura da pintura francesa do século XIX”. E posteriormente.

Os pastores da Arcadia, de Nicolas Poussin, 1638-1640

O pensamento racional dentro da obra de arte tinha, segundo o autor alemão, “um viés moralizante”. Estava preocupado com o conteúdo ético e didático da obra, muito influenciado pela visão de Nicolas Poussin (1594-1665), um pintor francês que se mudou para Roma, onde voltou seus estudos técnicos e teóricos para o classicismo de Rafael e dos pintores venezianos. Poussin, em seu metodismo e racionalismo, detestava a pintura de Caravaggio! Seu desejo era “reviver a antiguidade”, como afirma German Bazin. A pintura de Poussin que pode ser considerada um manifesto do que ele pensava é o “Os pastores da Arcádia”, pintado entre 1638-40.

As ideias estéticas predominantes em todo esse período pré-revolucionário vinham sendo construídas com base na razão e na moralidade, o bon sens. Eram ideias também de Pierre Corneille, o grande autor de peças como El Cid e Horácio, que se baseava também no classicismo. Corneille nasceu em 1606, numa família da nascente burguesia. Também se junta a esse campo do pensamento, o filósofo francês René Descartes, que morreu em 1650. Além de filósofo, o grande teórico racionalista era físico e matemático. Foi ele que desenvolveu o pensamento que ficou conhecido como o método cartesiano.

Mas, convivendo com essas ideias, havia uma corrente que se opunha àquela visão de mundo racional. Para ela mais valia o gosto pessoal do que a razão. Esse gosto podia ser traduzido para “fineza”, “delicadeza” e uma visão de mundo mais subjetiva. “Coeur e esprit eram as palavras de ordem dos salões literários que existiam por volta de 1720”, diz Friedlaender. Surgia “uma mentalidade artística, livre do peso da tradição acadêmica e moral”.

Mas tudo combinava com a alma francesa.


"A leitora", de Jean Honoré Fragonard, 1770-72
O refinamento e a elegância dos salões e da Corte de Paris ajudaram a desenvolver uma forma de pintura decorativa, de pintores como Watteau, Lancret, Pater, De Troy e outros. Mas nessas altas rodas aristocráticas, representando a burguesia, estavam sempre presentes os financistas. Os mesmos que mandam no mundo capitalista em crise de hoje.

Nas primeiras décadas do século XVIII houve um grande desenvolvimento das artes na França e muitos colecionavam pinturas. Era o tempo de Madame de Pompadour, amante do rei Luís XV e, em seguida, o tempo da rainha Maria Antonieta, a rainha fútil, que adorava moda e que foi guilhotinada pela Revolução Francesa.

Esse conflito de ideias que unia, de um lado, “a melodia jovial e espontânea” do povo francês e, do outro, a “predominante e persistente nota racional” fez com que se desenvolvesse a arte francesa. Aparentemente, diz Friedlaender, no meio dos artistas as discussões pareciam se resumir a questões técnicas e visuais: “desenho versus cor, placidez versus movimento, ação concentrada em poucas figuras versus dispersão das figuras”. Mas no fundo representavam a verdadeira luta de ideias entre disciplina e moral, de um lado, e, do outro, um certo amoralismo, rejeição a normas e irracionalismo subjetivo. Que evoluíram para as ideias defendidas mais tarde pelos Românticos.

No topo disso se desenvolveu a famosa inimizade entre dois grandes pintores franceses: Jean Auguste-Dominique Ingres (1780-1867) e Eugène Delacroix  (1798-1863). Ingres era neoclássico. Delacroix era romântico. Delacroix era colorista, Ingres encarnava a pintura linear e clássica. Conta-se que certa vez Ingres encontrou Delacroix em um salão e teria dito: “Tem cheiro de enxofre”…

Pois Friedlaender diz que a Pintura Linear no século XVIII encarnava “algo pleno de significado moral”. A pintura romântica, colorista era uma verdadeira “heresia” e até mesmo considerada uma “falha moral”.  Ingres era muito rígido em suas ideias. Delacroix também.

Era esse o nível dos debates ideológicos dentro da Pintura francesa do século pré e pós-revolucionário.
Mas bem antes deles, esses pensamentos se deixavam impregnar uns pelos outros. Friedlaender esclarece que o “mais subjetivo artista francês, tanto em seus aspectos técnicos, como de composição, deixou-se parcialmente subordinar pela razão e mesmo pela Academia”.

A visão mais subjetiva refletia-se no estilo mais livre nas artes, especialmente a partir dos primórdios do século XVIII. Artistas contrários ao pensamento racional dominante reagiam com uma pintura mais “colorista” e com pinturas de gênero. Mas havia muito de superficial na pintura do período que vai de Jean Antoine Watteau (1684-1721) – um dos criadores do estilo Rococó – a François Boucher (1703-1770).  No entanto, foi Jean-Honoré Fragonard (1732-1806) quem melhor representou a arte decorativa desse período.

Após 50 anos de predomínio do estilo Rococó, onde reinava um certo amoralismo na vida social, o pensamento racionalista retorna em meados do século XVIII com toda sua força, no movimento neoclássico. A ideia era resgatar a “norma dos antigos”, ressalta Friedlaender.

No entanto, o período de domínio da irracionalidade Rococó tinha deixado sua marca e o Neoclassicismo surgia considerando a Antiguidade de uma forma mais relativizada. Já não se buscavam as soluções formais do período clássico (Grécia e Roma), mas sim seus valores éticos. “O heróico, agora, se associava ao virtuoso”, enfatiza o autor alemão. O herói deveria agora possuir, além de força, “todas as virtudes humanas”.

E esses valores deveriam ser seguidos também pelos reis. O que Friedlaender chama de “classicismo ético” passou a ter um caráter “eminentemente político” que influenciou os debates da época e preparou o caminho da Revolução.
"O julgamento dos Horácios", de Jacques Louis David, 1784

Em meio a essas ideias, surge Jacques Louis David (1748-1825), como o representante da pintura clássica por excelência. David atinge seu auge com a pintura “O Juramento dos Horácios” pintado em 1784. Ele seguia a regra – neopoussinista, no dizer de Freadlaender – de focar sua pintura no essencial: a Ação, retirando qualquer elemento que distraísse a atenção da cena principal do quadro.

Mas David nunca teve uma atitude anticolorista, pois admirava demais o pintor flamengo Rubens. E também não se rendeu ao pensamento clássico. Teria dito: “A arte antiga não me seduzirá: falta-lhe ação, falta-lhe movimento”.  Estava apegado teoricamente ao passado, mas era homem do seu próprio tempo.

Envolvido totalmente com a Revolução Francesa de 1789, David pôs seu talento de pintor a serviço das causas revolucionárias, assim como foi fiel ao período napoleônico, declaradamente favorável a Napoleão Bonaparte. Mas na Revolução de 1789 alinhou-se aos jacobinos, a ala esquerda. Em 1793 apresentou o depois famoso quadro “Marat assassinado”, onde denunciava o assassinato do revolucionário e seu amigo Jean-Paul Marat.

"A barca de Dante", de Delacroix, 1822
Eugène Delacroix (1798-1863), que já nasceu numa França renovada pela Revolução, tomou outro caminho pictórico, mas também era plugado a seu tempo, até mesmo pelo romantismo que o inspirava.

Contemporâneo de Jean Auguste-Dominique Ingres, um abismo separava suas telas da deste grande pintor acadêmico. Seguidor da vertente artística aberta por Rubens, enquanto Ingres admirava Poussin, Delacroix voltava seus pinceis e tintas na direção que dava mais ênfase à cor e ao movimento. Friedlaender o posiciona no estilo do alto barroco.

Mesmo distante da pintura de Poussin, Delacroix se aproximava do seu antecessor e compatriota em termos do interesse pelo estudo da teoria “para tornar mais claras as próprias intenções”.  Ele escrevia sobre arte e até começou a escrever um Dicionário Filosófico de Belas-Artes, que não terminou.

Com apenas 24 anos de idade pintou seu primeiro grande quadro: “A barca de Dante”, inspirado no Inferno da Divina Comédia de Dante Alighieri. Friedlaender diz que o arranjo temático derivava diretamente da pintura “A barca da medusa” de Theodore Géricault, outro pintor francês da época, e amigo de Delacroix. Mais tarde o poeta Charles Baudelaire teria dito de Delacroix que ele “fut grand dès as jeunesse, dès sés premières productions” (foi grande desde a juventude, desde seus primeiros trabalhos).

Delacroix participou dos movimentos revolucionários de seu tempo ao pintar “A Liberdade guiando o povo às barricadas”. Diferentemente de Ingres, ele não se isolou de seu tempo e quando a Revolução de julho de 1830 estourou, ele não ficou indiferente. A mulher que representa a Liberdade em sua tela é uma mulher do povo, com o peito nu e os cabelos ao vento. Friedlaender observa a respeito dessa pintura: “De todas as obras de Delacroix, foi a única em que um conceito original e um verdadeiro sentimento contemporâneo se completaram de forma vigorosa”.

Dois pintores de escolas diferentes resumem todo o caudal de ideias que iam se gestando desde o século XVI e o começo do capitalismo mercantilista.

Na Itália, muito antes da França, essa mesma luta de ideias já se passara. O Renascimento italiano tinha trazido as ideias greco-romanas também para as artes e foi lá onde primeiro se deu a passagem de uma arte severa para uma mais livre e informal. Foi contra a rigidez estética clássica que se insurgiram pintores como Caravaggio, um dos maiores representantes da pintura do Barroco.

"Joana d'Arc na Coroação de Carlos VII", de Jean Dominique Ingres, 1854

Naquele tempo, segundo o também estudioso de arte Heinrich Wölfflin, o Barroco não surgiu com uma teoria, mas logo causou diversos adjetivos, entre os quais “capriccioso” (bizarro, extravagante). Trazia em si o prazer pelo raro, queria ir além das regras. No começo era pesado, severo, contraído; com o tempo se torna mais leve, alegre. E ocupou cerca de 200 anos de história.

Foram as ideias barrocas de Caravaggio que o fizeram usar como modelos pessoas comuns, prostitutas, vagabundos. Num tempo em que a Igreja Católica era a dona do mundo e os artistas vendiam sua força de trabalho para produzirem a propaganda da Igreja, Caravaggio não foi diferente, não podia ser, ou morria de fome. Mas usava suas amigas e amantes como modelos para a Virgem Maria e para os santos. Como Delacroix usou uma mulher do povo para representar a força simbólica da Liberdade que o povo deveria conquistar na França revolucionária.

A Liberdade de Delacroix era uma mistura das ideias que vinham desde Caravaggio (e que tinham atingido também David), com os ideais clássicos: força, valentia, coragem, disposição de espírito. Esses ideais traziam da antiguidade a figura do Herói não somente como alguém que realizava grandes feitos, que possuía força muscular admirável. “Ele era, antes de mais nada alguém (…) cujo nobre corpo revestia alma resplandescente de virtude e cujas realizações podiam servir de exemplo como um ideal a ser atingido” (Friedlaender).

E esses aspectos foram enaltecidos pelo Romantismo dos séculos XVIII e XIX. Vem daí a ideia do revolucionário como o herói do povo. Vem daí a ideia do artista como aquele cara excêntrico. Dessa mistura de ideias que vicejavam na Europa a partir do século XVIII, especialmente pós-Revolução Francesa, foi que surgiu a Modernidade. Daí veio inspiração para todas as revoluções do século XX.

"A Liberdade guiando o povo às barricadas", Eugène Delacroix, 1830