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terça-feira, 8 de novembro de 2011

As resistências da Arte

Uma rua de Paris, entardecendo no outono de 2011 
Quando se anda pelas ruas com um pouco de atenção, observa-se que passamos, de vez em quando, em calçadas de galerias de arte. Paramos para observar através das vitrines; ou das portas abertas. Na maioria das vezes basta uma olhada de fora, da calçada mesmo, para ter um quadro dos quadros expostos ali. São pinturas de vários estilos; pinturas de paisagem, pinturas urbanas, cenas de gênero, figurativas, até mesmo abstratas. Pinturas para todos os gostos.


Há lugar para todos em Paris. Até para os pintores menores de Montmartre, que ganham sua vida pintando retratos de turistas na Place du Tertre, lugar onde, em 1790 foi instalada a primeira prefeitura da "Commune" de Montmartre. Todos os domingos à tarde eles montam seus cavaletes, suas telas e pincéis em plena praça e ficam ali, expondo seu trabalho aos milhares de turistas que visitam aquele bairro. São pinturas, desenhos, croquis de Paris. Mas os turistas também posam para eles, que cobram uns 30 euros por retrato feito à carvão, pastel ou grafite.


Galeria Roussard, Montmartre, Paris
Mas nas galerias de arte de Montmartre, como a Galérie Roussard (que existe desde 1945), podemos encontrar pinturas não só de artistas atuais, mas de artistas do passado, como Pierre Bonnard (1867-1947) ou do aquarelista Roger Bertin (1915-2003). Pinturas, pinturas, pinturas. É preciso ressaltar que a Pìntura continua em alta em Montmartre e no mundo todo, contra aqueles que apregoam que a pintura já morreu, e que o lance do momento - e da moda - é a já absurdamente cansativa arte conceitual...


Nos salões dos Museus, multidões se espremem, se esticam nas pontas dos pés para ver as obras de arte que marcam a nossa história e a nossa vida cultural. Se admiram diante de telas  pintadas por verdadeiros gênios da humanidade, homens e mulheres que alcançaram um tal domínio de seu ofício que nos fazem parar estáticos, e emocionados! Até hoje, séculos depois de pintada, uma tela de Rembrandt arranca lágrimas de olhos mais sensíveis! As filas em volta desses museus alcançam as ruas; filas para comprar os bilhetes de entrada, filas para entrar... E filas para andar dentro desses museus. Dá para sentir a ansiedade das pessoas à nossa volta; é quase possível ouvir, através do olhar que penetra numa pintura, as emoções que vão nas almas de muitos desses que vão a esses lugares ao encontro das Belas Artes.


Multidões em busca de ver Arte e, na Arte, a História




É assim em Paris, Madrid, Barcelona, Bruxelas, Berlim, Amsterdam, Haia, Londres... É assim até nos EUA. Mas não parece ser assim em São Paulo, onde o "conceito" tornado cânone, de origem uspiana e faapiana, domina a cena artística local e impõe suas regras. E sua homogeneidade artística pobre.


Capa do livro de Domecq. A
ilustração da capa representa aquele
que produz "arte contemporânea" e
diz: "Eu não sei o que eu faço"
Falando nisso, encontrei um livro num sebo às margens do rio Sena: o título "Artistes sans art?" (Artistas sem arte?) me chamou a atenção. O autor é Jean-Philippe Domecq, escritor e ensaísta, que também publicou recentemente um outro livro, o "Misère de l'Art" (Miséria da Arte). Mal comecei a ler o primeiro, já deu para perceber que ele se junta a um outro autor francês - Jean Clair, ex-diretor do Museu Picasso de Paris - para fazer um contraponto teórico ao domínio midiático da chamada "Arte Contemporânea". Domecq diz, numa entrevista a um site francês, que essa "arte contemporânea" é, na verdade, o sintoma de "uma crise narcísica única da nossa história cultural". Ele afirma que não tem nenhuma obrigação de cultuar mitos atuais como Andy Warhol, e menos ainda aqueles que especulam com a arte atual que são capazes de "vender até vento", sustentados por uma espécie de intelectual que ele chama de "escroque", porque comete todo tipo de "fraude intelectual". Domecq - corajoso como Jean Clair, e como Affonso Romano aqui no Brasil - se dispõe à uma briga com os postulantes do credo contemporâneo que, diz ele, fazem de tudo para interditar o debate intelectual a respeito do assunto, e divide maniqueistamente o mundo da arte em dois: os que amam Marcel Duchamp e Andy Warhol (entre outros) e "os outros": que eles chamam de "reacionários", de "conservadores" porque amam as Belas Artes; e que estão com essas multidões que insistem em ir ver pintura e escultura nos museus do mundo! Mas aqueles lá não fazem mesmo arte para essas multidões! Fazem arte para especular, a arte dos iniciados em seus conceitos...


Entrei no Museu Pompidou, o Museu de Arte Moderna de Paris. Fila gigante para ver a exposição do pintor Edward Munch. Era difícil ver os quadros nas salas repletas de gente. Mas vi, observei, anotei, fotografei. Saindo de lá fui ver as salas dedicadas ao século XX. Mais dezenas de pessoas se aglomerando em frente às pinturas de Picasso, Fernand Léger, Matisse, Cézanne, André Fougeron... Cheguei, após horas dentro do Museu Pompidou, às salas da "arte contemporânea": havia mais moscas sobrevoando os objetos em seus vôos rasantes, do que gente! A famosa "A Fonte" (uma delas, porque Marcel Duchamp espertamente fez várias cópias) estava entregue aos fantasmas conceituais... Ninguém parado frente a ela, admirando aquele penico milionário! E solitário.


Manchas pretas para quem quiser apreciar,
no Museu Pompidou. Mas não tinha ninguém
- naquele momento - apreciando...
As outras "obras" dessa ala mais pareciam as de um parque de diversão. Aliás, faz algum sentido: é divertido atravessar, mexer, brincar com alguma coisa daqueles objetos expostos como arte. Penduricalhos - como uma pá de Duchamp -, amebas coloridas, manchas pretas, repetições exaustivas de tentativas do passado (de Malevitch, por exemplo), roupas velhas manchadas incluindo uma calça pendurada num varal, metais retorcidos e colorizados fazendo o papel de esculturas, poemas sem sentido esticados ou colados na parede... E NINGUÉM... ninguém andava por aquelas salas, a não ser um, ou dois, ou três, que passavam rápidos por cada coisa daquela. E eu, que estava lá com a masoquista intenção de comprovar que há um vazio sem fim nessa "arte" mercadológica atual!


Mas vi - posso dizer - dezenas de pessoas em frente às pinturas dos museus que visitei, com seus cadernos de desenho à mão, estudando, desenhando, copiando, tentando entender como os grandes pintores trabalhavam. Também vi nas ruas de Paris aqueles tais artistas "conservadores" com seu material de trabalho, desenhando e pintando. E vi, dentro do Louvre, dois pintores com seus cavaletes, copiando telas. Uma delas, o "Pequeno Mendigo" de José de Ribera.


Também vi cerca de 40 pessoas desenhando e pintando, nas duas sessões de que participei no Atelier de la Grande Chaumière, fazendo estudos, com uma modelo posando em frente a nós. Nós, esses "atrasados" que gostamos de desenhar e pintar. Nós, esses "conservadores", que consideramos fundamental nos debruçar sobre quem estudou muito no passado e que nos traz o acúmulo de suas pesquisas individuais sobre Luz, sobre Cor, sobre a química dos materiais. Porque nós, esses "artistas atrasados" não buscamos reinventar a roda! E estamos bem distantes mesmo de inventar "conceitos" de rodas...


Porque tem - entre milhares de outros pelo mundo - o Atelier Vermeer, onde duas pintoras estudam e ensinam baseadas nas telas de quem realmente sabia o que fazia: Rembrandt, Vermeer, Caravaggio, Ticiano, Rubens, Velazquez, Delacroix, Ingres, Goya, Michelângelo, Da Vinci, Botticelli, Courbet... a lista é imensa! Diante destes, multidões se espremem em todos os museus do mundo!


E também porque tem em São Paulo, aqui no Brasil, um Atelier de Arte Realista dirigido pelo pintor Maurício Takiguthi que ensina, a dezenas de seus alunos, os métodos tradicionais de desenho e pintura. Muito desenho, muito estudo individual e coletivo, muito treino técnico e teórico da relação entre os espaços, dos valores, das massas, da Luz. Tudo isto em referência com a realidade, com a inesgotabilidade do Real. Lá estou eu também, há quase três anos, num estudo intenso e muito prazeroso, à moda dos mestres. E, poderíamos dizer, à moda do método científico de estudo.


Mas ano que vem, aqui no Brasil,  vão se espremer as multidões brasileiras: Caravaggio vem ao Brasil (Belo Horizonte e São Paulo), assim como alguns de seus seguidores, entre os quais um dos maiores: José de Ribera, pintor espanhol. Porque nem isso vai conseguir deixar de ver, essa elitezinha local que desde o passado insiste, em sua cabecinha colonizada, em que seria a "engendradora" da "modernidade" (pós-moderna hoje). Sim, porque a "arte" dessa meia dúzia, vai continuar para a meia dúzia que assim deseja.


A grande Arte, esta diante da qual todos silenciam, continuará atraindo a imensa maioria também do povo brasileiro que possa ir vê-la aonde for, porque, nela, ele se espelha, porque ela lhe diz o indizível, lhe traduz o indecifrável, lhe exprime o inexprimível...


Como este olhar, de Rembrandt, espelho do nosso próprio olhar!

Autoretrato, Rembrandt

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Vivências em ateliês de Paris

A tela original é de Jan Vermeer "Moça com brinco de pérola"
- esta é uma cópia que está sendo pintada por mim - terceiro dia de ttrabalho
Depois de 5 dias, ela está ficando assim...
Duas atividades em especial, marcam esta minha estada de quinze dias aqui em Paris. Em primeiro lugar, pintando uma cópia do "Moça com brinco de pérola" de Jan Vermeer sob a orientação de uma pintora copista do Louvre. Em segundo lugar, fazer aulas de desenho com modelo vivo na Academia de la Grande Chaumière, aqui em Montparnasse, bairro de Paris.

Há alguns meses atrás soube, em São Paulo, do Atelier de Alejandra Astorquiza em Paris, copista do Museu do Louvre. A especialidade dela é copiar grandes obras dos grandes mestres, muitas vezes em frente às próprias obras no Louvre. Como faço parte de um Atelier em São Paulo que também usa como referência as obras dos mestres da pintura, considerei que podia ser muito boa a experiência de fazer um estágio intensivo de uma semana, junto com Alejandra, e aprender diretamente dela um pouco da sua técnica de copista.

Depois de três dias inteiros, e 24 horas de trabalho intenso, minha "Moça com brinco de pérola" começa a me olhar, com seu olhar enigmático. Ainda há muito o que trabalhar no rosto dela, no olhar dela e especialmente na boca dela. Alejandra me disse que esse quadro, junto com a Monalisa de Da Vinci, trazem rostos com os sorrisos mais enigmáticos e difíceis de copiar. Ou seja, minha tarefa não é nenhum pouco fácil. Ainda tenho dois dias inteiros de trabalho, que vou concentrar no rosto dela. Todo o restante que ficar faltando, farei sozinha em meu atelier em São Paulo.


Sala centenária do atelier de la Grande Chaumière
para onde se dirigem artistas e estudantes de arte desde o começo do século XX
Mas também fui à "Grande Chaumiére".

Este atelier fica dentro de um prédio secular aqui do bairro legendário de Montparnasse, e abriga a Academia de la Grande Chaumière, uma das mais antigas de Paris, fundada em 1909.  Lá acontecem cursos livres de desenho, pintura e escultura e está aberta a qualquer um que queira vir treinar aqui. Por estes bancos e estes apoios de madeira em volta da cena principal onde posam modelos, artistas célebres ou não, sentaram e continuam sentando para praticar uma das maneiras mais antigas de estudo de pintura: modelo vivo, nus ou em representação de personagem. Os artistas fazem seus croquis com grafite, carvão, pastel, óleo, acrílica, aquarela...

Fernand Léger (1881-1955) passou por aqui, assim como André Lhote (1885-1962), Emile Antoine Bourdelle (1861-1929), todos professores, ensinando novos artistas. Alberto Giacometti (1901-1966), o grande escultor, aprendeu aqui diretamente com Bourdelle.

Esta Académie de la Grande Chaumière já atraiu artistas de muitos países, de diversas gerações, nestes cem anos, e praticantes das técnicas mais diversas. Porque a Grande Chaumière é uma academia livre, qualquer um pode desenvolver a técnica que quiser. É assim, desde que foi criada em 1901. Alexander Calder (1898-1976), norte-americano; Amedeo Modigliani (1884-1920), italiano; Joán Miró (1893-1983), pintor espanhol, todos sentaram nestes mesmos bancos que vi ao meu redor.

Também alguns artistas brasileiros vieram desenhar aqui, como Lasar Segall, Quirino Campofiorito, Antonio Bandeira, Vieira da Silva e outros.

Ontem, desenhando e pintando junto comigo, tinha umas 40 pessoas, dispostas em semi-círculo em volta de uma modelo francesa, muito simpática, que posou nua. A primeira sessão foi de 45 minutos. Pausa de uns quinze minutos para um lanche servido pela administração da escola: chás diversos, espetinhos com legumes e embutidos, pães, vinho, suco... Depois mais quatro sessões de 25 minutos cada, com pequeno intervalo de 5 minutos, quando a modelo aproveitava para descansar.

Fiquei observando as pessoas, enquanto tomava meu chá, tentando adivinhar o que faziam, se eram pintores, ilustradores ou escultores, se tinham atelier, se eram conhecidos... As madeiras onde apoiamos nossas pranchas de trabalho são as mesmas há mais de cem anos. De tão usadas já estão meio roliças. Os bancos, alguns cobertos com couro, são os mesmos bancos rústicos usados há mais de cem anos, dezenas deles de várias alturas, dependendo da posição que se toma em relação ao lugar onde está a modelo.

Ela fica na frente, numa espécie de altar onde ela é a deusa. Ou o deus, no caso dos modelos homens. Em torno desses modelos, centenas de artistas se juntaram aqui, estudando cada detalhe da anatomia de seus corpos, a direção do jato de luz lançado sobre os modelos, as projeções das sombras, os valores dessas diversas gradações entre luz e sombra... Desenhando, repetimos em nossas pranchas as formas do que vemos.

É muito bom poder viver isso pessoalmente! É muito boa essa experiência de conviver com tantos desconhecidos, de várias idades, que falam uma língua diferente da minha (e talvez outras), mas que nos unimos na mesma e universal linguagem da Arte, na qual todos nós nos compreendemos uns aos outros. Neste espaço de la Grande Chaumière, junto com essas pessoas, lembrei de uma frase de origem africana da qual gosto muito e que explica o que penso também sobre fazer Arte:

"Se você quer ir rápido, vá sozinho. Se você quiser ir longe, vá com outros!"

Ontem desenhei em meu caderno, além do corpo da modelo, toda a minha própria ventura de estar aqui...


A modelo, enquanto se preparava. Em primeiro plano, meu material de desenho. Logo atrás, a madeira que apoia o material do artista, já tão gasta de tanto uso

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Meia noite em Paris


Neste domingo tive um encontro inusitado, mas bastante satisfatório. Estava passeando entre os corredores de um lugar arborizado, quando resolvi aproveitar a oportunidade das presenças importantes ao meu redor e convocar certas pessoas para uma importante reunião.

Camille Corot, auto-retrato
O primeiro que chamei foi Camille Corot e ele me ajudou a chamar todos os outros: Jacques Louis David, Georges Seurat, Jean-Auguste Dominique Ingres e Eugène Delacroix. Marx Ernst estava ali por perto, mas como não tenho interesse nas ideias dele, deixei de fora. Estávamos todos no cemitério Père Lachaise, com mais dezenas de outras figuras importantes da história francesa.

O encontro foi no Jardim do Crematório, um lugar tranquilo, cheio de flores coloridas bem arrumadas nos canteiros. Achei que era um bom lugar para esse encontro, um lugar fértil, adubado com as cinzas de milhares que já foram incinerados neste forno, cuja chaminé escura paira poderosa ao lado da abóboda do prédio.

Ingres, auto-retrato
Tive muito trabalho, no começo, para acalmar a verdadeira balbúrdia que se instalou entre meus convidados. Ingres queria partir para cima de Delacroix, macambúzio, no seu canto, enquanto Corot queria entender porque David nunca teve coragem de abandonar o atelier e ir pintar ao ar livre, ao que David respondeu que preferia as sombras projetadas dentro de um quarto fechado do que a luz chapada do sol nos campos. "Para isso você bem podia ter sido Barroco, mas faltava arrojo e você preferiu ser o queridinho dos salões!" Deixamos os dois e encontramos Pissarro que, por sua vez, tentava convencer Modigliani de que as figuras não precisavam ser tão esguias assim, nem tão chapadas. Modigliani berrava e gesticulava em italiano, sem ouvir uma palavra do pintor francês.

Georges Seurat tentava estudar os pequenos pontos luminosos que atravessavam as folhas das árvores, dizendo a Corot que ele não precisava ter sido tão literal assim, que bastava olhar para a luz, como ela se comportava em pequenos pontos, mas Seurat, indignado, gritou com ele que esse negócio de pontilhismo é para quem não sabe nem a sombra de como se usa um pincel!

Delacroix, auto-retrato
Enquanto Ingres se inflamava cada vez mais com Delacroix, David também se achou no direito de cobrar deste uma posição política mais definida. "Como assim?", perguntou Delacroix. "Você não viu que eu pintei a maior obra prima da Revolução, A Liberdade guiando o povo?" - Sim, respondeu David, mas eu falo de ação, camarada, de ação! Ao que Delacroix respondeu: você foi tão bonapartista quanto eu! Voilà!

Bom, como vi que a coisa estava cada vez mais fora de controle, dei um berro muito alto, usando da minha autoridade de idealizadora da reunião:

- ARRÊTEZ-VOUS, S'IL VOUS PLAÎT!!! Parem já!

Assustados com meu grito feminino quase histérico, eles me olharam. Continuei:

- Chamei vocês aqui porque tenho coisas importantes a discutir, então esqueçam suas desavenças e gostos pessoais. Esta aqui é uma reunião de trabalho!

Pissarro, auto-retrato
Ingres resmungou, David que já estava mais animado por uma briga, parou estático. Os outros ficaram ali, me olhando; Pissarro com um sorriso debochado. Não liguei.

De longe, à esquerda, ouvia-se a voz de Edith Piaf cantando "Je ne regrette rien", enquanto no lado oposto, mais ao fundo, Mozart solfejava uma sinfonia... O corvo preto que tinha pousado no jardim à nossa frente, levantou vôo, pousou num galho e deu um grito. Os communards (combatentes da Comuna de Paris), aglomerados no canto direito, próximo ao muro, faziam alguma algazarra, enquanto se ouvia a Marselhesa. Também dava para se ouvir berros violentos que vinham do lado onde estava Balzac. Ele gritava à queima roupa no ouvido de Marcel Proust: - Vai conhecer a vida lá fora, irmão! Você não sabe de nada! Rien de rien!

David, auto-retrato
Paul Éluard, abraçado a Apollinaire, cambaleava, bêbado, recitando um poema.

Voltei aos meus amigos e falei:

- É o seguinte, amigos! Estamos vivendo tempos sórdidos, tempos estranhos. Eu sei que o tempo em que cada um de vocês viveram não era lá grande coisa, mas mesmo com as desavenças que havia entre os seus pares não chegava nem aos pés do isolamento em que uma grande parte dos artistas vive hoje.

David, para você ter uma ideia, desde que o conterrâneo de vocês, Marcel Duchamp, decretou que tudo é arte ("- que você tá falando?" berrou ele) Isso que você ouviu. Duchamp, que nunca ia a museu algum e que dizia que detestava pintura, acreditem, é hoje a musa principal que inspira a nova academia: a que cria dezenas de alunos que não precisam aprender a desenhar, mas vão aprendendo que uma boa ideia vale mais do que mil palavras! (- "Não estou entendendo nada", resmunga Ingres).  Pois é, amigo, nem você, nem eu, nem ninguém. E para eles quanto menos gente entender melhor. ( - "Mas como não se aprende a desenhar se o desenho é a base de tudo?", insistiu Ingres) Simplesmente porque hoje em dia se você tiver uma formação conceitual dessa academia aí, não precisa mais desenhar. Desenhar o que? Desenhar pra que, se não é preciso criar nada daí? Hoje, artista e designer é tudo a mesma coisa. Se duvidarem de mim, podemos ir agora ao Museu George Pompidou e ver as salas separadas para apresentar a arte dos anos atuais: cadeiras, móveis, enfeites, badulaques de todo tipo, penduricalhos espalhados, mais parece um grande parque de diversões! E na tal da FIAC, então? (- "Que diabo é FIAC?", perguntou Pissarro) A tal da Feira Internacional de Arte Contemporânea. Vocês vão e lá e verão: penduricalhos, badulaques, trastes, trecos pendurados... É isso, hoje a arte é para ser divertida, tocada, brincada, manipulada, ultrapassada... (- "Principalmente ultrapassada", disse Seurat) Voilà, Seurat, isso mesmo!

Túmulo de Ingres, no Père Lachaise
Agora, não para por aí não. Os quadros que vocês fizeram e que nem venderam tanto enquanto vocês estavam vivos, hoje em dia não valem nada, quase nada perto de um tubarão envidraçado ou uma caveira de diamantes! (-"Que conversa é essa?" perguntou Delacroix. "Uma pintura de um tubarão e de uma caveira, o que isso tem de valor?") Não, meu caro Delacroix. Muito pior do que você pensa: o cara pegou um tubarão morto, jogou dentro de litros de formol, fechou num aquário de vidro e vendeu por milhões de dólares! (Os pobres coitados pintores me olhavam abismados) Porque hoje sabe quem manda no que se chama de arte contemporânea? O mercado. No tempo de vocês a igreja, a nobreza ou o Estado eram grandes compradores de arte. Hoje os grandes compradores são uns caras que ganham bilhões na Bolsa de Valores e, se compram alguma pintura de valor, é para ela ficar bem guardada esperando que valorize mais... Corot, ainda bem que seu amigo Gustave Courbet não está aqui hoje. Ele ia querer fazer outra revolução!

Mas meus amigos foram murchando, se movimentando lentos, cabisbaixos. Olharam para mim com pena. Corot ainda me perguntou se valia mesmo a pena ser pintora hoje. Vale, mesmo que seja por mim, respondi. Mas eles foram voltando quietos cada um pro seu canto. Minha reunião acabou sem ter acabado.

Gritei para eles:

- Mas há os que ainda resistem!

Delacroix fez um gesto amigo com as mãos. Ingres me desejou "bonnes chances, allez-y!", boa sorte, vá em frente.

Fui embora pra Bastilha.

Praça da Bastilha, Paris

sábado, 22 de outubro de 2011

No atelier de Delacroix

Uma das últimas palhetas de Eugene Délacroix, exposta no museu
Ontem de manhã peguei o metrô aqui na Place de la Nation, em Paris, e fui em direção a Saint-Germain de Près. Meu destino era a casa onde viveu o pintor francês Eugène Delacroix, onde hoje funciona o Museu Delacroix, sustentado e organizado pela Associação dos Amigos de Eugène Delacroix.


A Rua de Furstemberg, onde fica o Museu, é uma dessas ruas tranquilas, estreitas, quase sem movimento, aqui em Paris. No meio da rua há uma espécie de mini-praça, com árvores à volta, cujas folhas estão ressecadas e caindo, por causa do outono, e do frio que já começa a queimar as folhas verdes. Essas fotos, que ilustram o texto, foram tiradas por mim ontem, nessa visita.


Cavalete onde trabalhou Eugene Délacroix
Uma moça me atendeu ao final da escada de entrada. Muito simpática, me indicou a direção por onde começa a exposição. Nem são muitos quadros dele, porque os mais importantes estão espalhados por vários museus. No Museu do Louvre está um dos seus mais conhecidos: "A Liberdade guiando o povo às barricadas", que eu já tinha visto na véspera.


No Museu Delacroix estão alguns desenhos seus, várias litogravuras, pasteis, pinturas suas e de artistas amigos, mas principalmente estão lá alguns objetos que pertenceram a Delacroix, principalmente seus material de trabalho: cavalete, mesinha onde ele guardava tintas e pincéis, uma de suas últimas palhetas, móveis diversos, e lembranças das muitas viagens que ele fez ao Marrocos.


Desci até seu atelier, no fundo do terreno, uma espécie de edícula, como conhecemos no Brasil. A janela maior dá para um jardim, com bancos diversos, sob algumas árvores. O atelier é dividido em dois compartimentos, uma salinha de entrada com uma lareira, e a sala maior, onde ele trabalhava.


Delacroix dependeu muito do mecenato oficial para viver como pintor. Mas somente na velhice ele foi reconhecido pelos que representavam oficialmente a pintura. Só em 1855, pode expor em um dos principais eventos de exposição da época, a Exposição Universal de Paris. Em 1857, foi eleito para ser membro do Instituto da França (uma instituição acadêmica francesa), com a peremptória oposição do pintor neoclássico Ingres, seu adversário de sempre. Mas mesmo sendo eleito, a academia não lhe permitiu exercer o posto de professor de Belas Artes que ele esperava.


Auto-retrato de 1837
Mas essas oposições, incluindo a de Ingres, tinha razão de ser, porque Délacroix soube ir além de sua formação clássica em nome de renovar a pintura que era feita no período, quando predominava o estilo Neoclássico, cujo representante maior, e mais genial, é mesmo Jean-Dominique Ingres.


Delacroix morreu de turbeculose no dia 13 de agosto de 1863, nesta mesma casa da rua de Furstemberg, que visitei ontem. Depois que ele morreu, diversos artistas organizaram emocionantes homenagens a ele, especialmente o pintor Gustave Courbet. Delacroix é considerado um pintor dentro do estilo do Romantismo, e um dos seus principais símbolos.


Delacroix teve uma governanta, Jenny de Guillon, uma senhora que cuidou dele e de sua casa de 1835 até a morte do artista. Ela era mais do que uma servente, era uma pessoa muito próxima a ele, a quem ele considerava uma pessoa de um coração extremamente dedicado e aberto. Fez dela uma pintura a óleo e deixou para Jenny quase tudo o que possuía, incluindo móveis e objetos pessoais. Muitos desses objetos foram conservados intactos e podem ser vistos hoje no Museu Delacroix.


Sob a coordenação de um artista, o Museu dispõe de workshops semanais, na terça-feira, quando fecha para visitação pública. Essas oficinas são destinadas a adultos ou para estudantes em fase escolar. São feitas dentro da sala principal do atelier de Delacroix, em meio às suas obras. Como a sala não é muito grande, as turmas são limitadas a 20 pessoas. Lá, artistas e estudantes, podem estudar e copiar as obras do mestre, seja desenhando, seja pintando.


Vista do atelier de Delacroix, a partir do jardim de sua casa

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

As multidões do Louvre

Teto de uma das salas do interior do Louvre, ontem à tarde
Comecei a visita ao Louvre observando três afrescos do pintor italiano Botticelli, feitos mais ou menos por volta de 1483. E ao lado, mais afrescos de mais italianos importantes na história da nossa pintura ocidental: Bernardino Luini, Fra Angélico e Giotto. Também havia um ainda mais antigo, de Cimabue, de 1272.


Na sequência, fui para a sala das pinturas italianas do tempo de Philippo Lippi, Ucello, Alonso Baldovinetti. Lá estava também uma pintura de Botticelli, o "Retrato de um homem jovem".


Detalhe de uma tela de Veronese. O azul salta aos
olhos, assim como os detalhes em dourado
As pessoas passavam em grupos grandes e pequenos, algumas paravam para olhar esta sala. Como era o primeiro andar, e como no primeiro andar fica a sala 6 onde se encontra a Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, muita gente vem para ver essa obra em primeiro lugar. Não entrei nessa onda, fui observando a pintura antiga, antes e durante o Renascimento. Vi diversas obras de Rafael di Samzio, de Signorelli,de Perugino, de Antonello de Messina, cujo Cristo foi pintado com característica bastante realista, rosto marcado, expressivo, que parecia ter sido inspirado em um homem comum. Mas depois de ver dezenas de obras desse período, chama a atenção que a pintura era basicamente de temas religiosos; com o Renascimento eram pinturas com temas cristãos, mas também com temas da mitologia greco-romana, assim como retratos de pessoas ligadas ao "poder", terrestre ou celeste. Somente nos países mais ao Norte da Europa, e principalmente após a Reforma Protestante, a pintura se voltava mais para outros temas: retratos, paisagens, naturezas mortas... Lá o poder da Igreja tinha diminuído, ela que determinava as regras de tudo, inclusive da arte.


Mas é belo de ver os azuis conseguidos nas pinturas italianas! Azuis que emocionam até hoje, como o azul de uma tela de Veronese, no vestido de uma mulher. Olhando bem de perto, dá para ver que ele resolveu os detalhes da jóia dourada pendurada sobre o vestido, com pequenos toques do pincel.


Cheguei na sala 6, cheia de gente. Mas nem tanto assim, porque estamos no outono. Nos períodos de férias mais intensos, isso aqui fica completamente cheio. A "Gioconda", de Da Vinci, fica lá no centro da sala, numa parede só dela, protegida por um imenso vidro. O quadro mede 77 por 53 cm, nem é grande, mas é famoso, e milhões de pessoas já passaram por aqui para ver esta obra de Leonardo da Vinci. Impressiona ver de perto. As cores se mantém vivas, frescas. com o brilho que o pintor italiano queria dar a ela. O sorriso dela sorriu para mim também. E para um grupo de crianças entre 5 e 7 anos, que chegaram na sala, guiadas por sua professora, que as levou até a frente do grupo de pessoas.
Crianças francesas admirando a Mona Lisa
Retrato de homem com luva,
de Tiziano
Mais à frente, parei diante de Tiziano, que representa a glória de Veneza, um dos maiores retratistas da época e que inspirou tantos artistas depois, graças à sua habilidade em destacar os traços fisionômicos de suas figuras humanas. Foi ele um dos primeiros que libertou a pintura dos limites da linha e da forma e deu todo o poder à cor, às massas de cor. Isso é muito surpreendente e faz de Tiziano um dos mestres corajosos que criaram novos paradigmas. E, claro, vi duas ou três pinturas de Caravaggio, outro que provocou uma nova ruptura paradigmática na pintura, não só na técnica, mas na temática. Foi o grande inspirador dos holandeses, dos franceses, da arte Realista de Courbet, de tantos outros.


Mais à frente, encontro um artista com seu cavalete, em pleno Louvre, fazendo uma cópia de uma pintura. E mais grupos de crianças e adolescentes passeando pelas salas, parando, ouvindo as explicações de suas professoras. Exatamente em frente à "Barca da Medusa" do pintor francês Theodore Géricault, um dos representantes do Romantismo, um grupo de crianças está sentado ao chão, estudando o quadro. A professora interrogava os pequenos sobre a tela. E eles participavam, dando suas opiniões. Que rosto esse homens apresentam? perguntava ela. Um pequeno perto de mim levantou a mão e respondeu: "Ils sont malheureux" (estão infelizes). Mas um outro apontou um barco ao longe, sobre as ondas, que estava chegando para salvar aqueles homens desesperados, agarrados às taboas de seu barco que naufragou. Fiquei pensando, enquanto observava, nas crianças brasileiras que quase nenhum acesso tem aos poucos museus brasileiros, e com isso perdem ainda, em sua vida escolar, a oportunidade de pode apreciar  obras de arte e de ir criando gosto pelas artes desde pequenas...


Ainda outro grupo - o mesmo que encontrei vendo a Monalisa - sentou-se em frente à "Liberdade guiando o povo às barricadas", de Eugene Delacroix, umas das imagens que são ícones da Revolução francesa. Continuei, indo para a sala da França do Neoclassicismo: David (o que pintou "A morte de Marat"), Guerin, Girodet, Prud'hon e o grande mestre do neoclássico Jean-Dominique Ingres.


Um pintor copista do Louvre, pintando
"Pequeno mendigo" de José Ribera,
ontem à tarde, no Louvre
Fui até a ala dos pintores espanhois, pensando que iria encontra José Ribera, Velazquez, El Greco, Goya... Encontrei todos, parei diante de todos. Em frente ao quadro de Ribera, o "Pequeno mendigo", um outro artista copista do Louvre estava lá fazendo uma cópia, já bastante adiantada. Parei e fiquei vendo seu trabalho.


Na ala enorme separada para os pintores holandeses, encontrei quadros de Willem Key, Rubens, Anton van Dyck, Pieter de Hooch, Jan Lievens, além de outros. E, claro, Franz Hals (A cigana e o Palhaço com alaúde), "O Astrônomo" de Vermeer e muitos quadros, uma sala inteira, de Rembrandt.


Emociona ver de perto esses mestres... Fiquei a poucos centímetros de várias telas de Rembrandt, tentando ver como ele pintava, como ele resolvia problemas complexos como as variações das cores na luz e na sombra. Me emocionei ao enxergar a marca deixada pelo pincel de Rembrandt na tela, e que pode ser visto tantos séculos depois! Lembrei do que o estudioso de arte alemão Heinriche Wollfling falou: quando se encontra um artista como Rembrandt, você não perde ao ver o quadro muito de perto. Você ganha, porque você pode ver - pelas marcas do pincel - "o pensamento do artista". Isso diferencia a pintura linear e a pictórica. Na linear, você não vê os movimentos da tinta quando chega perto. Você vê detalhes da forma, não enxerga ali a mão do artista.


Parei em frente a um dos autoretratos de Rembrandt. Ele fez muitos autoretratos durante sua vida, observando a marca do tempo em seu rosto, as rugas que ia surgindo, as marcas de expressão. E como isso podia ser pintado cada vez com um nivel de dificuldade diferente, trazendo mais desafios ao pintor. Mas o olhar de Rembrandt é inconfundível; e ele está lá, olhando para mim enquanto eu olhava para ele. Olhar enigmático, olhar de artista, que vê o mundo de uma maneira que a imensa maioria não vê. Um olhar em profundidade, um olhar que capta qualquer réstea de luz na mais profunda sombra e que traz essa réstea de luz com sua mão vigorosa, para a tela que aguarda, em seu cavalete, o toque de seu pincel... Grande Rembrandt!


Saí de lá considerando que podia encerrar por hoje minha visita ao Louvre. Ainda faltava ver os pintores franceses do século XIX, mas deixei para outro dia, pois já estava há seis horas dentro do Museu! De passagem, vi algumas esculturas de Michelangelo, além de esculturas ainda mais antigas, preciosidades de várias origens.


Dentro do museu, o mundo se encontra. Ouve-se línguas de muitos lugares sendo faladas ali dentro, pessoas de culturas tão diversas, de europeus a chineses, japoneses, indianos, árabes, latinoamericanos... Multidões que se encontram no Louvre, multidões de pessoas que vêm à Paris para - além de conhecer a cidade - admirar a Arte dos que nos antecederam. Isso ninguém pode desconhecer: as Belas Artes ainda emocionam e mobilizam multidões! A Arte inspira e emociona!


A Barca da Medusa, de Theodore Géricault

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Eduard Munch: era o inferno, o que ele via?




O Museu George Pompidou de Paris apresenta de 21 de setembro de 2011 a 9 de janeiro de 2012 a exposição “Edward Munch: o olhar moderno”. Munch, pintor norueguês bastante conhecido principalmente pela sua obra “O Grito”, foi um pintor pré-expressionista. Fui ver pessoalmente esta exposição de um pintor que me interessa e me toca pessoalmente.


O Grito
Cheguei no Museu ao meio dia, não havia fila ainda. Mas muita gente já estava lá. Gente de muitos lugares diferentes, de cores diferentes, de línguas diferentes, se acotovelando dentro das salas do Museu para observar as pinturas desse intrigante pintor norueguês, cuja tela mais conhecida – O Grito – tem sido uma imagem tão recorrente nestes tempos pós-modernos.


Ele é considerado, como artista do século 19, ou pintor simbolista ou pré-expressionista. Era um artista recluso, uma alma que parecia atormentada. Edward Munch nasceu no dia 12 de dezembro de 1863. Era o segundo filho de um médico militar e teve quatro irmãos. Sua mãe, Laura Cathrine, morreu quando ele tinha só 5 anos de idade e foi sua irmã mais velha, Karen Bjolstald, quem lhe serviu de mãe. Quando cresceu, Munch entrou na faculdade de engenharia, que logo abandonou para se dedicar à pintura. Com apenas 18 anos, vende suas duas primeiras telas e aos 19 anos se junta a mais outros seis amigos e cria um atelier em Oslo.


Auto-retrato
Em 1885 ele vem a Paris, onde estuda as pinturas do Salon d’Automne e do Museu do Louvre. Fica bastante impressionado com o pintor francês Edouard Manet. Quando volta a Oslo, começa a pintar três telas muito importantes em sua carreira, duas das quais vi hoje no Pompidou: “Criança doente” e “Puberdade”. A primeira, quando foi exposta pela primeira vez em Oslo em 1886, causou indignação do público. Ele trazia uma novidade temática e estética que era demais para os olhos noruegueses acostumados a pinturas mais suaves.


Em 1889 ganha uma bolsa para estudar em Paris por três anos. Aqui, ele foi aluno, durante algum tempo, de Léon Bonnat. Seu pai morreu em novembro desse ano e ele resolve se instalar em Paris, na periferia, um lugar chamado Saint-Cloud. É dessa época a pintura “Noite”, onde ele parece expressar sua solidão e sua melancolia. Mas o que ele mais sentia prazer em Paris era em frequentar as rodas artísticas que por Paris se multiplicavam nessa época. Aliás, já era assim fazia tempo e isso também tinha atraído o pintor realista Gustave Courbet.


Criança doente
Volta a Oslo em 1892 mas recebe um convite para uma exposição em Berlim, que ele aceita. E se muda para lá. Começa a frequentar um círculo literário de Berlim, o “Schwarzer Ferkel” (Porco Negro), junto com artistas locais. Faz exposições em Dresden, Munich, Copenhagen e Berlim e é nessa época que ele começa a trabalhar na sua famosa tela “O Grito”.


Esta exposição do Geroge Pompidou, mostra as ligações de Edward Munch também com a fotografia e com o cinema, que começava a dar os primeiros passos. Mostra como ele vai sozinho experimentando a fotografia, que dá para perceber em ousados auto-retratos. "Eu aprendi muito de fotografia, diz ele. Eu tenho uma caixa velha com a qual eu tirei fotos incontáveis de mim mesmo. Isso resulta, muitas vezes surpreendente. Um dia, quando ficar velho e não tenho mais nada melhor para fazer do que escrever minha autobiografia, então todos os meus auto-retratos aparecerão em campo aberto ", disse eçe numa entrevista a Hans Torsleff em 1930.


Trabalhadores na neve
A exposição quer mostrar que Munch foi “totalmente moderno". São 140 obras, incluindo pinturas, fotografias, estampas, obras sobre papel, filmes e uma das poucas esculturas do artista. É uma das maiores exposições de Eduard Munch que já aconteceram em Paris.


Edvard Munch não é apenas o pintor da angústia interior. Grande leitor da imprensa nacional e internacional, muito de seu trabalho baseia-se na existência humana, muitas vezes difícil. Muitas pinturas são inspiradas em cenas captadas nas ruas, em incidentes que ele ouviu relatados pela imprensa ou no rádio. Ele não examinava apenas o próprio rosto – como em muitos autorretratos se vê – mas era um observador dos sentimentos humanos mais densos, mais inquietantes, mais assustadores.


Como Rembrandt, ele observava os efeitos da passagem do tempo sobre seu corpo e seu rosto. Até que na velhice, já na década de 1930, foi acometido de uma doença nos olhos, que sangravam, causando a perda súbita da visão direita. Mesmo assim, ele desenha e pinta e faz anotações diárias sobre os efeitos da cegueira.
No Museu Pompidou há uma sala somente desta fase da cegueira de Munch, onde ele fazia desenhos e pintava com o que conseguia ver do mundo. Até que ficou completamente cego em 1936.


Puberdade
Em 1937, os nazistas consideraram 92 obras suas como “arte degenerada”. Em 1940 ele vê seu país, a Noruega, ser invadida pelas forças nazistas, com quem ele recusa qualquer contato.


Eduard Munch morreu em janeiro de 1944.


Pela inquietação que provoca em nós, que observamos suas obras, fica muito questionamento sobre esse homem angustiado que abriu espaço para outros artistas inquietos que vieram a seguir, especialmente na Alemanha, que se juntaram em movimentos de resistência e foram os criadores do Expressionismo. Uma dessas herdeiras de Edward Munch, lembre-se, é Käthe Kollwitz. Artistas que viveram naqueles horrorosos tempos de guerra, quando corpos humanos eram deixados em frangalhos, em carne viva.


Tempos difíceis, angustiantes, sufocantes, vividos pelo avô do meu amigo francês Henri – que me hospeda em sua casa. Um homem que viu esses corpos humanos despedaçados, um homem que não queria ter filhos para não fornecer mais carne humana para o massacre da guerra, o avô do Henri. Mas que escreveu outra história, baseada não na morte, mas na vida: ajudou a fundar o Partido Comunista da França.


Seria esse “ovo da serpente” daqueles tempos estranhos que Munch era capaz de ver e que o teria deixado cego na velhice?


Velando a morte.

Ma vie en rose...

Paris vista hoje de cima do Museu George Pompidou - 19out2011
Estou em Paris, desde ontem e por quinze dias, de onde estarei escrevendo, neste blog, minhas impressões, minhas experiências, minhas vivências nesta cidade que atrai desde sempre tanta gente, mas principalmente os artistas.


Para todo lado que se olha por aqui na Paris antiga, tudo cheira a Arte e a História. Cada paralelepípedo destas ruas, cada esquina - de Montmartre ao Quartier Latin - é testemunha de muita história dessa cultura tão rica e tão cara a nós, brasileiros, que devemos grande parte da nossa própria cultura ao povo francês; assim como tantos outros povos do mundo. Aqui aconteceu a Revolução Francesa, aqui aconteceu a Comuna de Paris. Aqui foi onde dezenas de pintores (além de outros artistas, obviamente) lançaram ao mundo suas cores e sua maneira de pintar. Aqui nasceu a Arte Realista de Gustave Courbet, aqui os fauvistas, os impressionistas, os cubistas... tantos "istas" passaram por aqui. Terra de Poussin, de Délacroix, de Jean Dominique Ingres, de Manet, de Renoir, de Toulouse-Lautrec... Terra de Baudelaire, de Zola, de Victor Hugo, de Gustave Flaubert, de Marcel Proust... Terra de Henri Matisse, Louis Aragon e André Fougeron. Terra escolhida por Picasso e Van Gogh. Terra metafórica de todos os que sonham com um mundo bom e bonito, para a imensa maioria... "Allons enfants de la patrie, le jour de gloire est arrivé!"


Paris dos que sonham que um dia tudo vai ser bom para todos, o mundo vai ser de todos, tudo em comum... Ou, como bem lembrou meu amigo poeta Jeosafá Gonçalves, citando a música "La Boheme":


"Je vous parle d'un temps
que les moins de vingt ans
ne peuvent pas connaître
Montmartre en ce temps là
accrochait ses lilas
jusque sous nos fenêtres..."


Allons-y!

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O Real inesgotável

Reflexões sobre o Realismo nas artes plásticas

(Mazé Leite)

Em 1855, o pintor francês Gustave Courbet, organiza em Paris, uma exposição com 40 telas sob o título “Du Réalisme”, inaugurando essa nova forma de ver e pintar o mundo. O Realismo atravessou todo o século XX e alcança o século XXI, carregado de conotações filosóficas, políticas e estéticas, em maior ou menor grau, mas que resume a tomada de consciência do que vê e do que sente o artista sobre a realidade de seu mundo.


A Liberdade guiando o Povo, Eugene Délacroix, 1830.
Óleo sobre tela,325x260cm, Museu do Louvre, Paris, França.

Antecedentes históricos

No século XIX, o mundo passava por intensas transformações sociais, econômicas, políticas e culturais, desde as revoluções burguesas do século XVIII, entre as quais a Revolução Industrial iniciada na Grã-Bretanha e a Revolução Francesa de 1789 que, inspirada pelos princípios do Iluminismo, trouxe abaixo não só o Antigo Regime que privilegiava clero e nobreza, como abriu um período de ebulição de ideias em todos os campos do pensamento.

A Revolução Industrial ocorreu quando já havia acontecido outros movimentos de ruptura com a tradição, trazendo consigo novas relações sociais, políticas e econômicas, inaugurando o Capitalismo. Ideias novas começavam a vicejar também em meio aos artistas, trazendo grandes mudanças não somente em sua forma de trabalhar e ganhar a vida, como também em suas linhas de pensamento. Os artistas, inicialmente desprezados pela elite, sofriam os mesmos preconceitos dos “tempos da Grécia antiga, quando os esnobes podiam aceitar um poeta, que trabalhava com o cérebro, mas jamais um artista que trabalhava com as próprias mãos”, como relata E. H. Gombrich, em seu livro “História da Arte”. Na Inglaterra, onde o poder do Papa não alcançava e onde o movimento da Arte Barroca não teve desenvolvimento, os pintores se voltaram a pintar retratos de gente comum, cenas da vida do povo. Foi a época de William Hogarth, de Thomas Gainsborough, de Jean-Baptiste-Siméon Chardin, e, claro, de William Blake, que além de pintor era poeta.

Na França, a Revolução de 1789 trouxera consigo o estilo Neoclássico, que valorizava os ideais de beleza grega e romana e, por isso, também ia contra o poder clerical. A pintura, que até o final do século XVIII era um ofício ensinado de mestre a discípulo nos ateliês, passou a ser uma disciplina ensinada em academias, como a Filosofia. Em Londres e Paris começaram a ser organizadas, pela primeira vez na história, exposições anuais de arte, que se converteram em verdadeiros eventos sociais.

Mas a Revolução Francesa trouxe também o gosto por temas históricos e heróicos na pintura. Em 1793, o pintor J.L David pintou “Marat assassinado”, um dos quadros que se inscreve – segundo o pesquisador e artista plástico francês Michel Dupré – “dans une orientation réaliste”. Também em 1831, Eugène Delacroix, considerado um pintor romântico, adquire um tom de contestação com seu quadro “A Liberdade guiando o povo”, num fervente apelo às revoltas populares que o poder político da época se apressou em censurar (o Estado comprou essa tela, que ficou escondida por mais de 30 anos).

Na Espanha, Francisco Goya, já tinha surgido com uma pintura diferente dos seus contemporâneos, expressando toda a “feiúra e vacuidade” daqueles que viviam na Corte. Inaugurava-se um período em que os artistas sentiam-se “livres para passar ao papel suas visões pessoais, algo que até então só os poetas costumavam fazer”, complementa Gombrich.

As revoluções burguesas também trouxeram mudanças na situação de trabalho dos artistas. A tradição do artesanato e o trabalho manual dos artesãos cedeu lugar à produção mecânica, a oficina perdeu lugar para a fábrica. A construção civil, no século XIX, teve um intenso crescimento em cidades grandes, especialmente da Inglaterra e EUA. Operários e trabalhadores em geral mantinham uma jornada de trabalho exaustivo, incluindo mulheres e crianças. O escritor inglês Charles Dyckens (1812-1870) denunciou, em seus romances, a situação de vida dos trabalhadores dessa época, em especial em “David Cooperfield” e “Oliver Twist”.

Do lado dos artistas, surgiram dois tipos de pintores: os que pintavam para agradar o gosto do freguês (que incluía agora a nova classe média que surgia nas cidades) e aqueles que se recusavam terminantemente a isso. Os artistas inconformados com essa nova situação e que não davam “uma única pincelada sem perguntar a si mesmos se ela satisfazia sua consciência artística” (Gombrich), começaram a escrever uma nova história e novas idéias começaram a vicejar.

Gustave Courbet

Os britadores de pedra, Gustave Courbet, 1849.
Óleo sobre tela, 159x259 cm, Gemäldegalerie, Dresden, Alemanha
Gustave Courbet era um jovem pintor, de origem camponesa, nascido em Ornans, interior da França. Como tantos outros, foi para Paris para fazer carreira artística, chegando na capital francesa em 1839. Paris vivia momentos de efervescência política, social e artística. Círculos de artistas e intelectuais enchiam os cafés de Paris. Courbet frequentava o grupo do poeta Charles Baudelaire, dos filósofos Proudhon e Marc Trapadoux, dos críticos de arte e escritores Champfleury e Fernand Desnoyers, entre outros, jornalistas, artistas e ativistas políticos. Reuniam-se até altas horas da noite, onde elaboravam suas teorias que posteriormente se transformavam em artigos de jornal, ou em panfletos, ou em obras de arte.

Courbet também freqüentava aulas de desenho e pintura com mestres de Paris, entre os quais François Bonvin com quem aprendeu a ir aos museus para copiar os velhos mestres, como Diego Vélazquez, Francisco de Zurbarán, Bartolomeu Esteban Murillo (da escola espanhola), assim como os artistas do Barroco e do Renascimento italianos. Caravaggio entre eles.

Courbet possuía um espírito inquieto, rebelde, de caráter e pensamento artístico semelhantes a Caravaggio, segundo afirma Michel Dupré. Bem distante dos ideais artísticos do passado ainda em voga na Europa, ele não buscava formosura, buscava a verdade. Contra os clichês de sua época, disse ele em 1854: “Espero sempre ganhar a vida com minha arte, sem me desviar um milímetro dos meus princípios, sem ter mentido à minha consciência nem por um único momento, sem pintar sequer o que pode ser coberto pela palma da mão só para agradar a alguém ou para vender mais facilmente”.

Courbet, já republicano e socialista, partilhava com seus contemporâneos a crença de que a arte podia ser uma força social. Seu ciclo de amigos desprezava os valores burgueses e defendia valores socialistas e revolucionários. Convém lembrar que, nesse período, Karl Marx e Friedrich Engels já elaboravam as teorias que eles expuseram no “Manifesto Comunista” de 1848. Esses ideais de Courbet e seus amigos aliavam-se aos apelos do povo por mudanças profundas na França. Em muitos outros países, o mesmo sentimento revolucionário gerava movimentos nacionalistas e liberais impulsionados não só pela própria burguesia que exigia governos constitucionais, como por trabalhadores e camponeses que se rebelavam contra as formas de vida impostas pelo capitalismo.

Em 1849, já interessado em pintar cenas da vida cotidiana, ele apresenta uma das primeiras de suas grandes obras realistas: “Os britadores de pedra”. Essa tela, infelizmente, foi destruída no bombardeio britânico de Dresden em 1945. Logo em seguida, Courbet começou a pintar a imensa tela “Enterro em Ornans”, com 6 metros de largura e três de altura. Não demorou para sofrer duras críticas dos conservadores: até então, telas grandes como aquela eram destinadas a expressar cenas de batalha, feitos heróicos com figuras proeminentes das classes dominantes. “Enterro em Ornans” é apenas uma cena de cemitério com figuras humanas comuns, pessoas simples da vila de Ornans.

Em 1855, Napoleão III ordenou que se construísse o Palais des Arts et de l’Industrie, com a finalidade de apresentar produtos da agricultura, da indústria e das belas artes, em reação ao governo inglês que tinha construído o Palácio de Cristal, onde iria acontecer a primeira exposição de artes realmente internacional. Mas Courbet ficou de fora da exposição de Napoleão.

Indignado, e com o apoio do mecenas Alfred Bruyas, Gustave Courbet resolveu fazer uma exposição paralela, num galpão construído para este fim, bem ao lado de onde iria acontecer a exposição oficial. Quarenta quadros foram expostos aos visitantes, que também podiam adquirir um pequeno folheto onde estavam impressas as idéias básicas de Courbet. O título da exposição-manifesto era: DU RÉALISME. “Ser capaz de traduzir os costumes, as ideias, os aspectos de minha época, ser não somente um pintor, mais ainda um homem; em uma palavra, fazer uma arte viva, tal é meu objetivo”, dizia ele no folheto.

Durante os quarenta dias do governo revolucionário conhecido como a Comuna de Paris, em 1871, Gustave Courbet ocupou o cargo de Presidente da Comissão para as Artes. Derrotado o governo revolucionário após um verdadeiro banho de sangue nas ruas de Paris, sob o comando do governo de Thiers e suas tropas, Courbet foi preso. Depois de solto e ainda perseguido politicamente, exilou-se em Genebra, onde morreu em 1877.

Retrato de Carolus-Duran, John Singer Sargent, 1879.
Óleo sobre tela, 116,96 cm,  Francine and Sterling Clark Art Institute, EUA.

Novas Realidades

Como fruto dos movimentos revolucionários que escreveram uma nova história no mundo, o Realismo trazia consigo dois traços constantes: a importância dada à temática, que se distinguia dos métodos tradicionais de pintura, e nesse sentido inspirada nos grandes mestres do passado, como Rembrandt, Vélazquez e Caravaggio; e o interesse despertado na questão da fronteira entre Arte e vida.

No século XIX, quando os artistas se deparavam com a nova realidade criada pelos acontecimentos, muitas vezes seguindo rumos inesperados e frustrantes, eles perceberam – como Baudelaire – que o movimento de uma realidade que parece escapar soa como um chamado à sua reconquista. A história da arte do século XIX mostra esse movimento dos artistas em procurar expressar em suas obras a realidade fugidia de seu tempo. Tempo de choques brutais e acelerados nos ideais revolucionários. A frustração gerada pelas ilusões republicanas, as mudanças súbitas de poder (a Comuna de Paris durou poucos dias), os embates sangrentos, a repressão brutal desconhecida até então, tudo isso trouxe aos artistas a consciência de uma realidade que era também brutal. “Enterro em Ornans”, de Courbet, parece transmitir toda a violência daquele período, expressada nas cores, na temática, e nos rostos das mulheres à direita do quadro, em estado de profunda lamentação.

Enterro em Ornans, Gustave Courbet. 1850. 600x300cm, Museu D'Orsai, Paris, França.

Mas a arte Realista, que nascera em meio à riqueza histórica do século XIX, iria atravessar todo o século XX como uma corrente de pensamento que trouxe intensos debates e gerou diversos movimentos de vanguarda em inúmeros lugares do mundo. Como observa Michel Dupré, a palavra Realismo foi objeto de uma “inflation” surpreendente. Numerosos pintores, nestes últimos 156 anos desde a exposição de Courbet, se autoproclamaram "realistas", mesmo seguindo cada um seu modo de ser mais próximo ou não ao Realismo, como Fernand Léger, Malevitch, Rodchenko, Siqueiros, Orozco, Rivera, Lucien Freud, Edward Hopper, Grant Wood, John Singer Sargent, entre inúmeros outros. Michel Dupré sugere que Realismo parece designar sobretudo uma postura, que é tanto prática quanto teórica.

Seguindo os parâmetros de sua história inicial, a arte Realista esteve presente de forma intensa em todo o século XX. Antes e durante a I Guerra Mundial, artistas realistas começaram a surgir de forma bastante intensa na Inglaterra. Envoltos pelas energias densas da 1a Guerra, os artistas ingleses reagiam, como Paul Nash: “Não sou mais um artista interessado e curioso, sou um mensageiro que irá trazer a palavra dos homens que estão lutando àqueles que desejam eternizar a guerra.” Cristopher Nevinson pintou imagens de desolação e mesmo John Singer Sargent, retratista por excelência, em 1918, pintou o quadro “Envenenados por gás”, uma tela gigante que mostra uma fila de soldados estropiados caminhando entre dezenas de mortos e feridos.

Nos EUA, desde o final do século XIX, a arte realista teve a adesão de um grande número de artistas. Seus expoentes iniciais foram Thomas H. Benton, John S. Currey e Grant Wood. Ao lado destes mais regionalistas, surgiram também, nas primeiras décadas do século XX, artistas que se voltavam para o que ficou conhecido como Realismo Social, com muitos deles se filiando ao Partido Comunista criado em 1919. Esses pintores foram bastante influenciados pelos muralistas mexicanos, especialmente Rivera, Orozco e Siqueiros, que, no dizer de James Malpas (em seu livro Realismo), “constituem um dos fenômenos mais intrigantes da pintura do século XX”. Por Realismo Social, diz Brendan Prendeville em “Peinture Réaliste au XXe siècle”, entenda-se um termo que foi usado desde então para descrever uma grande variedade de práticas pictóricas de artistas cujo denominador comum, crítico ou humanista, era o desejo de mudança da sociedade. Entre esses artistas, destacam-se Reginald Marsh, Isabel Bishop, Raphael Soyer e Philip Evergood.

Na Alemanha de entre guerras, os artistas buscavam se organizar em movimentos, ligas e associações, com o objetivo de contribuir para uma renovação artística e para uma mudança dos valores da sociedade. Um desses grupos ficou conhecido como Secessão de Dresden – Grupo 1919, que mantinha o mesmo ideal de uma arte interiormente verdadeira e preocupada em expressar os problemas sociais daquele período. Eram fundamentalmente expressionistas, mas Kate Kollwitz, uma artista dessa época, apresenta gravuras e desenhos de um realismo tocante e é uma artista das que mais representam aquele período da história alemã.

A Rússia, que desde o século XIX passava por mudanças profundas em sua história, assistiu a um fervilhar de movimentos artísticos de diversos matizes plenamente integrados às transformações que a sociedade russa ia tomando.  Programas e manifestos surgiam a partir de grupos e associações de artistas, em meio à nascente intelligentsia russa. Aquele momento de alta criatividade e produtividade artística pôs em circulação idéias que exerceram “efeitos cataclísmicos não só na própria Rússia, mas muito além de suas fronteiras”, como observa Isaiah Berlin em “O Nascimento da Intelligentsia russa”.

A chamada Vanguarda Russa teve importante papel na direção que tomaram as artes de vanguarda em todo o mundo. Maliévitch, Rodchenko, Tatlin, Chagal e Kandinski foram alguns dos artistas russos que grandes modificações trouxeram ao mundo das artes. O foco de seu trabalho estava na representação do mundo como um mundo em mudança, que as artes tinham que representar. Nesse sentido, as formas geométricas de Maliévitch eram, para ele, seu modo pessoal de ter uma leitura realista do mundo. Kandinski, por outro lado, criava a arte abstrata que buscava representar o mundo subjetivo, como uma arte distante das impurezas do real.
Tambores, Pavel Filonov, 1935.
Óleo sobre tela, 72x82cm, Museu de São Petersburgo, Rússia.

Anos mais tarde, a estética realista foi admitida como a que mais papel poderia exercer na educação do povo russo na direção de uma sociedade e uma cultura socialistas. Surge o que ficou conhecido como Realismo Socialista, que foi germinado a partir de debates entre os artistas e os construtores da nova sociedade soviética a partir da revolução de 1917. Sem entrar aqui na questão do pensamento ainda dominante atualmente sobre o tema, cabe apontar que Realismo Socialista é uma coisa, Jdanovismo é outra. Andrei Jdanov foi o articulador principal do controle estético e ideológico da arte russa durante o período de 1934 a 1954, sob o poder de Stalin. Defensor ferrenho do Realismo Socialista, Jdanov impôs aos artistas da época seus parâmetros ideológicos e estéticos de uma rigidez sufocante. Da mesma forma que o mercado e o sistema de arte atual que, de uma forma mascarada, oculta, subjacente e não explicitada, impõe a estética que serve à pós-modernidade e ao neoliberalismo, fechando espaços para a arte que não reze nessa cartilha. Com a única diferença, talvez, que a aparente permissividade atual do sistema não ameace diretamente os artistas, apenas relegue-os ao ostracismo...

Ainda sobre o Realismo Socialista – tema que ainda assusta a muitos e, como diz Michel Dupré, é muito pouco conhecido em sua essência (inclusive porque há uma recusa em conhecê-lo) – há uma observação a ser feita no que diz respeito ao caráter mesmo do Realismo, que foi levantada por Dupré em seu livro “Réalisme(s)”, publicado em 2009. Uma das críticas fundamentais e atuais que se faz em relação à arte soviética – observa ele – é a de que existiria uma irredutível contradição entre arte e política, que seriam dois mundos incompatíveis e que toda verdadeira criação está livre organicamente sob o sacrossanto princípio da liberdade de criação (grifo dele). E que esses críticos dizem que a arte da URSS peca pela mediocridade, pela necessidade esclerosante de representar os políticos e a política, que não deixa espaço para a criação dos artistas, etc. Isso de um lado. Do outro, diz Dupré, os mesmos críticos se maravilham com o desenvolvimento das artes “du monde libre”, onde os EUA são modelo tão emblemático e onde a “liberdade de criação” paira tão democrática sobre a cabeça de todos os artistas do mundo...

Retrato de Anna Achmatova, Kuzma Petrov-Vodkin, 1925.
Galeria Estatal Tretiakov, Moscou.
Na França daquela mesma época, os movimentos de vanguarda também estavam em plena ebulição. Foi o período de surgimento de muitos ismos nas artes: impressionismo, expressionismo, dadaísmo, construtivismo, cubismo, surrealismo... Inúmeros movimentos forjaram o que ficou conhecida como Arte Moderna, que unia desde aqueles que defendiam a “arte pela arte” até aqueles que defendiam que num mundo em transição a arte cumpria um papel que ia além da manifestação estética. Fernand Léger, André Fougeron, o poeta Louis Aragon, e mesmo Pablo Picasso, com sua pintura cubista, aderiram ao Partido Comunista Francês, em períodos diversos de suas vidas. Muitos tomavam o caminho da abstração e muitos que tinham ido para a abstração retornavam à arte figurativa, como Jean Hélion, em 1939, quando escreveu que “não podia mais viver oito horas do dia de uma maneira e viver as horas restantes de outra maneira”. A realidade chamava.

Sabemos que esses movimentos e debates que ocorriam na Europa, tanto na Rússia quanto na França, tiveram grande influência nos ideais representados pela Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, movimento que se amplificou nos anos seguintes, influenciando enormemente as artes plásticas brasileiras, com nomes como o de Portinari, Di Cavalcante, Carlos Scliar, os artistas do Grupo Santa Helena, entre outros.
Retorno do Mercado, André Fougeron, 1953.
Óleo sobre tela, Tate Gallery, Londres, Inglaterra. 

Atualidades do pensamento Realista

A Beleza, como a Verdade, é relativa aos tempos em que cada um vive e a todo indivíduo capaz de o compreender”, dizia Gustave Courbet. E como “criador de beleza” – no dizer do artista e comunista português Álvaro Cunhal – o pintor pode até negar qualquer influência externa na sua obra e na sua criação artística, mas não pode estar separado do meio e do tempo em que vive. Por mais abstrata e mais conceitual que seja uma obra de arte, por vezes uma surpreendente evidência de realidade se mostra.

Estudo em branco e preto,
Burton Silverman, 2005.
Óleo sobre tela,
coleção privada, EUA
O que não poderia ser de outro modo, mesmo a contragosto das idéias de um Vassili Kandinski, por exemplo, para quem a arte deve ser purificada de qualquer vínculo com o real, deixando prevalecer o mundo subjetivo do artista. Mesmo que se viu depois, como observa Pierre Daix, que as formas puras dos quadros de Kandinski não estavam tão longe da realidade assim, quando se observam fotografias do mundo microscópico da biologia e da botânica.

Com efeito, o Real é inesgotável e fonte permanente de inspiração para o artista. Como observa Ariano Suassuna em Iniciação à Estética, “mesmo que a realidade não fosse inesgotável, bastaria a necessidade que tem cada geração, e mesmo cada um de nós, de resolver por si só cada problema em nossa própria linguagem, para tornar o conhecimento aquilo que ele é por natureza: a tentativa incessantemente renovada de explicar o homem e o mundo”. E mais à frente ele diz que “se a pintura abstrata é mais pura do que a figurativa, esta é mais humana, rica e variada, possibilitando um campo muito maior à invenção e à imaginação”.

Nessa preocupação maior em aproximar-se do Real está o pensamento de que a relação do homem com a realidade é sempre uma relação de movimento em que a consciência humana é permanentemente afetada por esta. Lembrando Karl Marx: “Não é a consciência dos homens que determina a realidade: é, ao contrário, a realidade social que determina a consciência” (Crítica da Economia Política).

Realidade que justapõe permanentemente uns indivíduos em relação aos outros, em todos os aspectos, incluindo o aspecto de classe social, cujas relações acontecem em meio aos fenômenos da vida que geram o processo histórico. Ao longo da história, a história da arte reflete também a da vida em sociedade e a história mesma da luta de classes. A arte, como um sistema de sinais e, portanto, como um tipo de linguagem universal, é o móvel que nos permite compreender a enorme cadeia de relações que se foram criando, ao longo do tempo, não só na sociedade humana em todos os seus aspectos, sejam econômicos, políticos, culturais e sociais, mas também no que diz respeito a como esta sociedade se reflete no indivíduo humano, em seu papel social e mesmo em sua psicologia. Com seu caráter universalizante, a arte realista permite essa linguagem comum que é capaz de ser compreendida em qualquer lugar, pelo mesmo sujeito histórico submetido às mesmas condições de existência.

A interpretação dos fatos da vida (vida muitas vezes exaustiva, como a do período em que estamos vivendo neste momento) por parte do artista que transforma o Real que vê e percebe em uma obra de arte que encanta e produz emoção estética, é um verdadeiro ato de “humanização do tumulto”, como fala o sociólogo Roger Bastide. A arte que torna mais humanizada a realidade que nos cerca, nos une, nos consola e mesmo nos fortalece.

A visão do artista capta do Real aquilo que é sua essência e eleva esse momento percebido ao status de Poesia, de Inspiração, o que aumenta a nossa dimensão e consciência. Diz o pensador russo do século XX, A. Ziss: "O artista, perante os fenômenos da vida, procura compreendê-los e, para isso,separa o essencial do secundário, o geral do particular, o necessário do fortuito. Diferentemente dos acontecimentos vividos, os fatos com os quais opera a autêntica arte realista não comportam nada de supérfluo. O artista "liberta", de algum modo, o fenômeno retido do contingente e parcial que obscurece a essência. Reproduz não toda a plenitude do real vivido, mas apenas os traços dominantes que encerram a "alma viva".”

A seleção operada pelo artista na matéria vivencial representada é o que torna uma obra de arte um bem que pertence, ao final das contas, a toda a sociedade e que é ilustrativa da sua história. Obras como “Os síndicos dos tecelões” de Rembrandt, como “As Meninas” de Vélazquez, como o “David” de Michelângelo, como “Narciso” da Caravaggio, como “Enterro em Ornans” de Courbet, como o “Pensador” de Rodin, ilustram facetas da vida captada pelo olhar desses artistas que continuam extasiando nossos olhos e nos mostrando como somos.
O Real se apresenta muitas vezes como os animais ferozes que são acalmados pela música da lira de Orfeu. Ele é a imagem do artista que se coloca entre a realidade e o indivíduo, com quem cria um diálogo de ser humano a ser humano, na linguagem universal que a arte proporciona.

O Real que nos solicita movimento é um desses infinitos aspectos de que é constituído e que permite mil modos de enxergar, de traduzir, de falar, de perceber, de pintar. A realidade é a potencialidade de tudo acontecer. Quando o artista cria uma obra de arte, ele está fornecendo uma parte do real vista por ele, que apresenta à visão do público, a quem se liga, mesmo que silenciosamente. É como se a obra do artista fosse uma espécie de janela para ver o real, ou o que Joel Birman chama de "irrupção do real", que se dá através da obra.

O atelier realista pratica todo o tempo esse exercício de olhar para enxergar na realidade aquilo que foge ao olhar comum, para devolver ao espectador esse momento essencial que muitas vezes nos inspira e move. Em 1789, o filósofo e poeta romântico Novalis escrevera: “Nós buscamos, acima de tudo, o Absoluto, e sempre encontramos apenas coisas”. Para a arte Realista, são exatamente essas “coisas” que se tornam o objeto de busca dos artistas, que conseguem ir além das aparências e da simples busca do Belo.

As coisas como elas são, o mundo como ele é, traz em si uma nova beleza, com todas as assimetrias possíveis, que o artista primeiro vê, depois se move, pincel em direção à tela, retratando nela com toda sua humanidade criativa aquele momento especial que ele deseja mostrar a seus semelhantes.


Velho mineiro, Mauríco Takiguthi, 2008.
Óleo sobre tela, coleção privada, São Paulo, Brasil.

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Bibliografia:
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