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segunda-feira, 15 de junho de 2015

Alonso Cano, o pintor irascível

Nu feminino, desenho de Alonso Cano, 15 x 16 cm
Alonso Cano Almansa foi um pintor, escultor e arquiteto espanhol e é considerado, pelo conjunto de sua obra, um dos mais importantes artistas do barroco daquele país. Além disso,  foi o iniciador da escola de pintura em Granada, sua terra natal, onde nasceu em 19 de março de 1601. É considerado um dos artistas mais completos do Século de Ouro espanhol, pois também foi gravador, desenhista e criador de retábulos.


Alonso Cano
Seu pai, Miguel Cano, era um conhecido carpinteiro e montador de retábulos (construção de madeira que enfeitam os altares das igrejas) e sua mãe María Almansa também desenhava bem. Alonso começou suas primeiras lições de desenho arquitetônico e de desenho de imagens com seus pais que logo perceberam o talento do filho. Por sugestão de um outro pintor espanhol, Juan del Castillo, Alonso Cano deveria ser enviado a Sevilha para aperfeiçoar seu aprendizado. Sevilha, naquela época, era um próspero centro econômico e social e muitos artistas abriram lá seus ateliês, onde recebiam muitas encomendas de pessoas locais e de outros que as enviavam ao recém-descoberto continente americano.

Seus pais resolveram, então, se mudar para Sevilha, por volta de 1614. Logo, o menino Alonso, que tinha então 13 anos, entrou para o ateliê de Francisco Pacheco, o mesmo mestre de Diego Velázquez. Os dois, Velázquez e Cano, se tornaram grandes amigos, amizade que durou até o fim de suas vidas. Alonso também estudou escultura com o mestre Juan Martínez Montañés, que lhe havia sido apresentado por Pacheco.

Em 1626, Alonso Cano recebeu o título de mestre-pintor. Ele já havia pintado um dos seus primeiros quadros, que pude ver em Sevilha, em minha viagem. A tela intitulada “São Francisco de Borja” é uma pintura de sua fase de jovem aprendiz. 


Cópia de um autorretrato perdido,
óleo sobre tela, 72 x 67 cm,
Museu de Cádiz, Espanha
Enquanto se formava nas artes, Alonso também ajudava seu pai no desenho e montagem para retábulos de igrejas locais. Alcançando a maturidade artística, foi se afirmando como um dos grandes artistas locais e acabou se casando, em 1626, com María de Figueroa, que pertencia à família de um pintor local.  Ela morreu de parto no ano seguinte. Quatro anos depois, Alonso casa-se com a sobrinha de outro pintor (Juan de Uceda), Magdalena de Uceda.

Alonso Cano se relacionou também, além de seus colegas artistas como Pacheco, Martínez Montañés, Velázquez e Zurbarán, com grandes figuras do mundo intelectual de seu tempo. Em sua biblioteca podia-se encontrar obras de autores espanhois como os poetas Luiz de Góngora e Francisco Quevedo, fazendo com que sua arte fosse alimentada com as mais diversas fontes. 

Nas décadas de 1620 e 1630 ele se dedicou à escultura e à construção e montagem de retábulos, muito mais do que à pintura. Mas presidiu, em 1630, o Grêmio de Pintores de Sevilha, uma prova de que gozava de grande prestígio entre os colegas.


"A virgem e o menino", Alonso Cano,
óleo sobre tela, 162 x 107 cm
Em 1638 foi convidado a mudar-se para Madrid para trabalhar como pintor e ajudante de câmara no palácio real. Ele não foi imediatamente, mas quando chegou em Madrid já era um mestre reconhecido dentro do ambiente artístico de Sevilha. Para ele, a vida na corte trazia promessas de uma clientela mais sofisticada, mas isso também lhe traria os encargos devidos à proteção pessoal e prestação de favor ao conde-duque Olivares. Por isso, quando seu protetor perdeu o poder no começo de 1643, a ele também foi negado o posto de mestre maior da catedral de Toledo.

Em Madrid, o estilo “tenebrista”, pintura que foi influenciada pelo italiano Caravaggio e que caracterizava a pintura sevilhana, foi sendo abandonado por ele. Quando trabalhou como restaurador dos quadros que foram prejudicados com o incêndio no palácio do Bom Retiro, em 1640, Alonso Cano foi assimilando as técnicas pictóricas flamenga e italiana. Se deixou influenciar especialmente pelos pintores venezianos do século XVI e, do lado dos pintores flamengos, pela pintura de Van Dyck.

Em 1639 recebeu a encomenda de pintar 16 retratos de reis medievais espanhois, que ele deveria fazer de forma imaginária. Quase todos os quadros foram destruídos no incêndio de 1734, que aconteceu no Alcázar de Madrid, com exceção de dois: “Um rei da Espanha” e “Dois reis da Espanha”, que se encontram no Museu do Prado. Nestes dois quadros pode ser comprovado seu interesse pelos efeitos da cor e da transparência, que ele admirava em Van Dyck.


"São Francisco de Borja", pintura
feita em sua juventude
Em 1644, sua segunda esposa foi assassinada. Era o período em que ele estava mais próspero, trabalhando bastante e ganhando bem por isso. Esta morte acabou com sua paz e foi um duro golpe  em sua carreira. A justiça da época imputou o assassinato de Magdalena a um oficial italiano que Alonso hospedava em sua casa e que havia roubado grande parte de seu dinheiro e desaparecido. Mas os juízes começaram a culpar ao próprio Cano e a perseguição começou. Ele foi torturado por seus acusadores, para arrancar uma confissão, mas, por ordem do rei, não tocaram em seu braço direito. De caráter irascível, Cano sofreu todas as torturas sem um gemido sequer. No fim, foi inocentado e voltou a trabalhar para Felipe IV.

Em Madrid até 1652, ele produziu de forma intensa numerosas obras. Sua pincelada estava mais solta e ele continuava usando o esquema de veladuras dos venezianos e a luminosidade de Van Dyck. Todas as pinturas deste período, avaliam os especialistas, foram executadas com maestria por Alonso Cano.

Em 1652, resolveu voltar para sua cidade natal, Granada. Tornou-se, por influência do rei Felipe IV, o mestre-pintor da catedral daquela cidade, que eu também pude conhecer neste último mês de maio. Cano fez uma série de pinturas com temas em Maria, mãe de Jesus, para a capela maior da catedral e uma “Virgem do Rosário” para a catedral de Málaga. Naquele tempo, os pintores viviam basicamente de pinturas religiosas ou de pinturas da aristocracia. Era a forma de sobreviver e tinham sorte aqueles que o conseguiam. Mas a convivência de Alonso Cano com os clérigos da catedral era péssima, pois ele se negava a seguir os parâmetros que eles lhe queriam impor.


Um de seus desenhos
de arquitetura
Ele era de espírito briguento, se envolvia em duelos, para defender quem ele achava que estava certo. Além disso, mesmo ganhando bastante dinheiro, vivia com muitas dívidas, chegando mesmo a ser preso por causa disso. Gênio indomável, não se submetia a nenhuma doutrina, a nenhum mestre, e seguia somente seus impulsos pessoais. 

Teimoso, irritadiço e extravagante, não tinha muita paciência no trato com as pessoas. Nunca perdoava uma ofensa feita. Por exemplo: certa vez um Ouvidor disputava com ele o preço de uma escultura que lhe havia encomendado, dizendo que escultores ganhavam mais que ouvidores. Cano irritado responde que os Ouvidores são como poeira e dá um empurrão na estátua, que cai em pedaços.

Por outro lado, dizem seu biógrafos, este homem tão implacável e tão duro se comovia com a miséria e sempre estava ajudando e socorrendo aos pobres, dando generosas esmolas aos mendigos que encontrava pelas ruas das cidades por onde passou.

No período em Granada, Alonso Cano fez as que são consideradas suas obras mais comoventes. 

Entre 1657 e 1660 voltou a Madrid, onde pintou “São Bento e a visão do globo e os três anjos” e “São Bernardo e a Virgem”.

Voltando a Granada, sua relação com o poder eclesiástico ia de mal a pior. Ele já estava velho e doente. Mesmo assim foi desalojado de seu ateliê na torre da catedral.

Sua obra, muito grande e variada, hoje se encontra dispersa em vários lugares e muitas delas mal-conservadas. Ao longo do tempo, incêndios, guerras, saques e roubos atingiram grande parte de seu legado, tão rico e tão variado, uma vez que ele pintava e esculpia, além de ter criado obras relevantes de arquitetura. Alonso Cano preencheu Granada, Málaga e Sevilha de obras e monumentos de alto nível em todas as técnicas que dominava: pintura, escultura e arquitetura.

Morreu em 3 de outubro de 1667 e seus restos mortais foram enterrados na Catedral de Granada.


São Francisco de Assis e a Porciúncula, Alonso Cano, 1659, 300 x 273cm
"São Bernardo e a Virgem", Alonso Cano,
Museu do Prado, 185 x 267 cm
"Um rei espanhol", Alonso Cano

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Arte e Vida

Crianças no Museu de Belas Artes de Sevilha
Diálogo número um:

Um grupo de crianças de uns 4 a 5 anos de idade estava visitando o Museu de Belas Artes de Sevilla com sua professora. Paravam em frente a alguns dos quadros, sentavam-se no chão e a professora ia fazendo os pequenos observarem os detalhes de cada quadro.

- que ser és este con alas?

Uma das belas salas do
Museu de Belas Artes de Sevilha
Uma menininha respondeu:

- un pájaro!

Um menino de óculos azuis do lado corrigiu:

-Non! És un Angel!

Si, un Angel, confirmou a professora. E dai em diante foi conduzindo os moleques para dentro de um quadro que representava as escolhas da vida humana pelo bem ou pelo mal. Do lado do bem, anjos alados e luminosos encaminhavam as pessoas de bem para o céu. Do outro lado, à direita, uma grande cabeça de serpente com olhos ameaçadores ia engolindo aqueles malvados que o diabo ia recolhendo. Ao ver a cabeça do diabo um dos pequenos perguntou à professora: É o lobo mau? Si, ela respondeu, só que se chama Diabo. E de que cores são os demônios? Vários responderam que eram verdes e brancos, ou azuis. Eles eram mesmo meio azulados, meio metálicos. Isto é uma pintura do século XVI. Terminado o exame desta tela, a professora chamou os pequenos e lhes disse que agora iam ver outro diabo, mas que desta vez ele era vermelho.

Eles foram e eu fiquei aqui na sala do quadro do Bem e do Mal refletindo sobre esta cena. Pensando em como é tão importante para as crianças poder ter acesso a este tipo de experiência logo cedo em suas vidas! Não a experiência de ser catequizados no maniqueismo do mundo, mas o de aprender a ver, a observar, a perceber de forma profunda o que há por trás de uma obra de arte. Pode-se imaginar o que é crescer acostumado a ver obras de José Ribera, Zurbarán, Murillo, Leonardo da Vinci, Courbet, Degas?

Diálogo número dois, pelo messenger do Facebook, poucas horas depois:

- Pão Borracha te manda um abraço, professora!

Eu: - quem é Pão Borracha?

Do outro lado, Walter Maresia, que conheci quando também era um menino, em São Luís do Maranhão. Sem pais, pobre, abandonado na rua. Seu apelido era Pão Borracha. E tinha também o Neguinho, o Tico, o Toinho, o Porquinho e muitos outros meninos como estes pequenos espanhóis que vi hoje no museu, mas em condição totalmente adversa de vida. Eu e um grupo de amigos ajudamos o padre Marcos Passerini a cuidar destes meninos. Pão Borracha me respondeu pelo messenger:

Pintura de José García Ramos,
pintor sevilhano do século XIX
- Quando muitos me regeitavam! vc com seus pinceis me acolhia. Voce me deu uma coisa que não custava e não custa nada, que é atenção, carinho abraços. E isso me fez uma pessoa melhor. Quero te abraçar e dizer que não te ver mais me fez muita falta. Minha participação no movimento negro me faz entender a minha condição de vida e hoje trabalho na Secretaria da Igualdade Racial.

Meus olhos marejaram... Puxa vida! Eu, aqui tão longe do meu país, e meu país tão dentro de mim! Como não comparar? No mesmo dia, com poucas horas de diferença entre um diálogo e outro, a vida vem e me toca deste jeito!

Pedi notícias dos outros meninos, que, claro, hoje são todos homens maduros. A maioria morreu, alguns se perderam por aí, outros três vivem de forma bem difícil. Mas ele, Walter Maresia, vive uma vida digna e luta pelos seus, por sua mulher, por seus filhos, por seus amigos e por todos os desconhecidos, negros como ele, que sofrem as injustiças do mundo. Petronio é advogado bem sucedido. Porquinho? Cadê ele? Ainda continua vigiando carros em frente à igreja de São João... E isso me fez lembrar uma canção de João do Vale, compositor maranhense...

E me levou de volta ao Museu de Belas Artes de Sevilla. E a Bartolomé Estebán Murillo e seu quadro "O jovem Mendigo", pintado entre 1645-1650, que me tocou desde que o vi pela primeira vez no Museu do Louvre em Paris. E a relembrar de tudo o que vi hoje neste lindo museu sevilhano, dedicado praticamente aos seus pintores locais, começando desde o século XV. Muitos deles, incluindo Diego da Silva Velázquez, deixaram pintados em seus quadros os rostos, os olhares, as mãos e as condições de vida dos seres humanos mais injustiçados do mundo. E mostraram sua dignidade! Como exemplo, vejamos os anões e bobos da corte pintados pelo maior de todos os sevilhanos, Velázquez.

Naquela luta entre Bem e Mal, professora, há um aspecto muito importante a ser observado: muitas vezes isto não é uma escolha, é condição imposta pela vida num sistema desigual. Que o diga meu amigo e parceiro de ateliê, o pintor Alexandre Greghi, que hoje dá aulas de desenho para meninos da Fundação Casa em São Paulo. Sim, meninos, não bandidos, como os ignorantes da vida e os egoístas de sempre gostam de dizer. Eles roubaram, traficaram, mataram? Eles e suas famílias já estão sendo roubados e mortos secularmente! É desculpa para roubar? Não, amigo, mas que sirva de "desculpa" para que sejam ajudados a dar um passo fora da boca da serpente.

Para mim, arte é isto: Vida!

A pesca de atum, pintura a óleo de Joaquín Sorolla
E ainda dizem que o pescado é caro, pintura a óleo de Joaquín Sorolla
No pátio interno do Museu de Belas Artes de Sevilha

Los Venerables

Frente do Hospital de los Venerables,
onde fica o Centro Velázquez
Nos meses de primavera, que estamos vivendo aqui, e os do verão próximo, que começa no final de junho, há luz do sol derramada por todas partes da Andaluzia, desde as seis da manhã até as dez da noite. De manhã cedo sopra um ventinho fresco, mas depois do meio dia é muito quente, especialmente por causa do sol. Lembra muito o sol nordestino, ardente, incandescente. Todas as fotografias ficam estouradas com tanta luz.

Como isso não faria parte da alma de Velázquez? Por isso ele abandonou o modo caravagesco de pintar, com suas tiniebras. No hay tiniebras acá. Há sol em abundância, luz para iluminar o que for preciso! É interessante, porque eu já intuía isto, quando olhava para as pinturas dele. É muito bom comprovar que aqui na terra de Velázquez há uma intensa luminosidade, que não poderia deixar de estar presente em sua pintura! Assim como a de Sorolla, de outro jeito, uma forma mais atual de pintar a luz de Valência, das praias espanholas, da pele avermelhada de sol de seu povo.

Ontem, lá pelas dez da noite, quando eu voltava ao hostal depois de ter ido ver o espetáculo do poente sobre o rio Guadalquivir, ainda com o resto de luz do dia, passei por uma exposição de fotografias de Sebastião Salgado! O Brasil está aqui! Uma mostra de fotos da série Gênesis que ele anda apresentando ao mundo, onde mostra cenas de vida nos mais incríveis cantos da terra, uma grande parte dela em terras brasileiras. Muito bom ver os turistas de países diversos examinando cada uma dela.

Mas de manhã meu dia começou aqui mesmo pelo Barrio de Santa Cruz, onde estou hospedada e fica bem no coração do casco antigo. Fui ver o Centro Velázquez, organizado dentro de um prédio do século XVII, o Hospital de los Venerables Sacerdotes. Já falei num post anterior que não é mais um hospital, mas o nome ficou. E também já disse que os três quadros de Velázquez que estão lá, foram para uma exposição em Paris. Mas resolvi entrar assim mesmo, é um prédio histórico e tem outras obras em seu acervo, incluindo Murillo.

Corredor dentro do prédio
O Hospital de los Venerables Sacerdotes foi construído inicialmente como residência para os padres velhos e doentes da cidade. Ocorre que no ano de 1649 a epidemia de peste matou 50% dos moradores da cidade! Uma população que girava em torno das 120 mil pessoas. Naquele ano havia tido uma primavera muito chuvosa, as ruas estavam enlameadas, o rio Guadalquivir tinha invadido partes da cidade. Bairros inteiros foram alagados. As pessoas morriam às dezenas diariamente e se tiveram que fazer grandes covas para enterrar a todos. Foi neste período que o Hospital de los Venerables começou a receber parte dessa gente doente, que fazia filas imensas em volta de todos os hospitais e casas de caridade da cidade.

Nesta epidemia de peste, morreu o escultor Juan Martínez Montañés, em 18 de junho de 1649. Ele é bem conhecido aqui na Espanha e tem trabalhos seus em vários museus. Diego Velázquez já morava em Madrid.

Dentro do prédio, que no século XIX também foi uma fábrica de tecidos, tem um salão com pinturas de artistas e as de Velazquez, um pátio andaluz no centro, com uma fonte no meio rodeada de flores e uma igreja, muito bonita por dentro, com um órgão de tubos lindo, feito por um alemão no século XVIII. Ainda funciona e de vez em quando há eventos de música clássica com este órgão. Ele toca de tudo: música religiosa, Bach, Beethoven, Mozart.

Pátio interno do Hospital de los Venerables
Na sala de exposições não há muitas pinturas, mas algumas muito boas, como a de Murillo e de Zurbarán. Várias de Francisco Herrera e de Francisco Pacheco, que foram mestres de Velázquez, em especial este ultimo. Dá para comprovar que realmente a capacidade do discípulo superou em muito a de seus mestres. Também foi bom ver de perto as pinturas deles!

Na saída, vi um grupo de quatro rapazes com roupas características daqui da região, negras, cada um com seu violão. Nunca tinha visto tanto violão quanto há aqui em Sevilla, não só na mão de músicos de rua, mas pessoas passando com eles, alguns tocando. Passei na porta da oficina de um luthier, que tinha vários violões expostos na vitrine. Não sei avaliar a qualidade, mas o preço achei bem bom, em torno de uns 500 euros, alguns um pouco mais, se compra um violão feito à mão. Olhei, olhei, vi um pouco sua oficina e segui meu caminho. Um amigo brasileiro violonista ia gostar de ver isto aqui!

O sol estava ardendo de novo. Resolvi aderir à siesta e fui para o hostal descansar, depois de almoçar. Afinal o dia acaba aqui lá pelas dez da noite! E preciso curar os restos da minha amigdalite, que já está sendo vencida.

O programa do último dia em Sevilla é voltar ao Museu de Belas Artes que já estará todo aberto.
O órgão da igreja de los Venerables
Altar-mor igreja de los Venerables
Uma pintura em um dos tetos da igreja de los Venerables

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Pobre Anteu!

"A terra, ou o combate de Hércules e Anteu", pintura decorativa do teto de uma das salas
do Museu do Louvre em Paris, de Auguste Couder (1790-1873)
 Estou quase concluindo a leitura de um livro do poeta francês Paul Valéry, intitulado “Degas danse dessin” (Degas dança desenho), publicado em 1938 em Paris. Valéry escreve sobre seu amigo o pintor Edgar Degas, o célebre pintor das bailarinas. De tão importante, farei um próximo post sobre este livro aqui neste Blog, pois Degas é um dos grandes mestres franceses, pela vida e pela obra.

Mas antes vou falar de Anteu, porque Anteu me tocou, ao ler o que dele falou Paul Valéry. 


Vaso grego antigo, representando
a luta dos dois gigantes
Dá para falar deste gigante da mitologia grega sob diversas formas e vou me focar na que mais me toca: ele não podia ser separado de sua mãe, a Terra; precisava ter seus pés todo o tempo tocando o chão, sob pena de morrer.

Na lenda grega Anteu era filho de Poseidon (o Oceano) e de Gaia (a Terra). Ele habitava os desertos da Líbia, em uma caverna em cima de um monte, na região de Irasa, próximo ao Estreito de Gibraltar. Anteu havia prometido a seu pai, Poseidon, construir em sua honra um templo feito com todos os crânios dos humanos que atravessassem suas terras. Qualquer um que se aproximasse dele era vencido, pois Anteu possuía uma enorme força. Em suas lutas, cada vez que seu corpo era lançado contra a terra ele se levantava ainda mais firme, porque a Terra lhe restituía as forças.


Hércules e Anteu, gravura de
Gabriel Salmon (1485-1535), de 1528
Um belo dia surge em sua frente um outro gigante, Hércules. Na luta entre os dois, Anteu caiu três vezes por terra, mas isso só lhe fazia ainda mais forte. Hércules percebeu que quando Anteu caía, recuperava o vigor. O gigante, então, segurou Anteu pela cintura elevando-o para que não tocasse mais a terra. Com isso, Hércules manteve Anteu erguido no alto até que ele parasse de respirar. E ele morreu sem seu chão… Depois Hércules tomou para si a esposa do gigante morto.

Anteu foi sepultado na cidade de Tingis, que havia fundado, embaixo de um monte de terra. Conta a lenda que cada vez que se retirava alguma porção de terra da cova de Anteu logo começava a chover sem parar até que o buraco fosse fechado.

Essa lenda inspirou artistas ao longo da história, desde a antiga Grécia onde a luta entre os dois gigantes decoravam vasos e taças; na Idade Média, muitos desenhos foram feitos inspirados nessa fábula. E no século XVII o pintor espanhol Francisco de Zurbarán pintou um grande quadro intitulado “Hércules lutando com Anteu”.


"Hércules e Anteu", pintura
de Gregorio di Ferrari (1647-1726)
Para minha interpretação pessoal, essa é a história de todos os que são separados de sua terra, de todos os migrantes, dos quais faço parte, pois fui levada embora de Caruaru quando tinha 12 anos. Sair da terra natal para nunca mais voltar é a história de milhões de pessoas pelo mundo e de brasileiros como eu; e como eu sentem que uma parte de nós ficou para trás, de forma irrecuperável, enquanto carregamos dentro de nossas almas essa eterna sensação de deslocamento, de não-pertencimento a lugar nenhum, a gente alguma. 

Algo dentro de nós nos torna melancólicos por causa dessa separação que não tem volta. Mesmo se voltamos à nossa terra, já não somos nós, já não é ela a mãe, que agora se juntou a outro marido, o tempo que passou, que na lenda é o gigante Hércules. Quantas e quantas poesias, cordéis e canções foram feitas pelos meus conterrâneos nordestinos com esse tema da separação da terra natal! Desde a canção cantada por Luiz Gonzaga que vaticina: “Quem sai da terra natal em outro canto não para!” até o “Lamento sertanejo” de Dominguinhos, cujo refrão é cruelmente o retrato do que sentimos nós, os exilados: “Sou como rês desgarrada nesta multidão, boiada caminhando a esmo…” E o grande Graciliano Ramos que expressou os sentimentos inexpressáveis de quem vai embora, em seu livro “Vidas Secas”. 

Não, ninguém que não tenha vivido esta experiência é capaz de compreender profundamente a fábula de Anteu! Exatamente no momento em que ele é erguido e segurado acima do chão, separado de sua terra, e vai aos poucos vendo sua vida se esvair nessa agonia imensa de querer voltar a se sentir com os pés firmes sobre o chão, e sem poder…. esse momento de agonia, retratado no rosto da pintura de Gregório di Ferrari acima, é a agonia que toma conta do coração da gente que foi embora para sempre de sua terra… Esse sentimento permanece lá num recanto qualquer de nosso ser, como uma agonia. Eu saí de Caruaru; Caruaru não saiu de mim… Voltar jamais seria uma solução, pois o corte irremediável já foi feito!

E o mito se renova...


"Hércules lutando com Anteu", Francisco de Zurbarán, 136 x 153 cm, 1634

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Zurbarán, mestre da idade de ouro espanhola

"Santa Cacilda", 1635, óleo sobre tela, 171 x 107 cm
O Palácio de Belas Artes de Bruxelas, Bélgica, apresenta atualmente uma exposição de obras do pintor espanhol Francisco de Zurbarán (1598-1664), um dos mestres do período conhecido como “século de ouro” espanhol. Esta é a primeira exposição na Bélgica de obras deste pintor.

"São Gabriel", 1631-1632
ost,146.5 x 61.5 cm
Francisco de Zurbarán é um dos grandes pintores do Barroco espanhol, assim como Diego Velázquez e Bartolomé Esteban Murillo. Sua obra, com tema de caráter essencialmente religioso, se caracteriza por seu realismo e sensibilidade poética. Considerado como um dos artistas pintores da “contra-reforma”, Zurbarán apresenta em suas telas a nova mentalidade que surgiu após o Concílio de Trento (1545-1563) que levou para a Espanha católica dos séculos XVI e XVII um vento de mudança, atingindo não somente as belas artes, mas também o teatro, a literatura e a música. Por isso, ao lado dessa mostra de obras de Zurbarán, o Palais de Beaux Arts de Bruxelas também está apresentando uma série de concertos musicais com composições da época.

A exposição faz um percurso cronológico da obra de Francisco de Zurbarán desde sua juventude em Sevilha até suas últimas pinturas realizadas em Madrid, mostrando como sua obra deu grande contribuição à história do Barroco espanhol. São 50 telas que vão de naturezas-mortas a grandes retratos de santos, dos quais quatro foram recentemente descobertos e seis foram restaurados há pouco tempo. É uma ocasião rara, dessas que não temos nunca aqui pelo Brasil, para se ver a obra de um dos grandes mestres espanhois, ao lado de Velázquez e Murillo.

A Contra-Reforma, movimento católico que se interpunha à Reforma Protestante iniciada por Martinho Lutero, impunha aos artistas a maneira como eles deveriam fazer sua pintura: “simples, diretas, exaltantes”. Era necessário trazer de volta a fé dos católicos que se via ameaçada pelas contestações da Reforma. Alguns padres diziam que era preciso representar Jesus e Maria com corpos perfeitos. Zurbarán foi obediente a estes ditames ao mesmo tempo em que expressava todo o seu prazer de pintar.

"Agnus Dei", 1635-1640, óleo sobre tela, 35x52cm
Alguns estudiosos de sua obra dizem que ele realmente pintava para que os fiéis retomassem seu fervor cristão, mas ao mesmo tempo há uma sensualidade impressa em seu trabalho.  Deus está nos detalhes: nas naturezas-mortas de extrema simplicidade onde parece ressoar uma presença, no rosto de sua Virgem em glória, na espessura dos tecidos e na complexidade infinita de suas dobras, na transparência de uma pele cor de leite, ou na cor de sangue do rosto de um santo, em um cabelo encaracolado e até mesmo na luz vermelha que emana da ferida de São Francisco de Assis. O pintor dá a mesma atenção a cada elemento de qualquer uma de suas pinturas, misturando, em paradoxo, os objetos simples de suas naturezas-mortas com os temas mais sagrados.

"Frei Jeronimo Perez", 1632-34,
ost, 193x122 cm
Francisco de Zurbarán nasceu em 7 de novembro de 1598, na pequena vila de Fuente de Cantos, em Badajoz, Espanha. Deve ter iniciado seus estudos de pintura ainda criança na oficina de Juan de Roelas, antes de ingressar no ateliê de Pedro Díaz de Villanueva em Sevilha, em 1614. Estudou lá até 1617, ano em que se casou e concluiu seus estudos. Mudou-se de Sevilha para Llerena, onde nasceram seus três filhos: Maria, Juan e Isabel. Juan foi pintor, como o pai. Em 1622 já era um pintor reconhecido em sua terra.

Quando viveu em Sevilha, esta cidade contava com 53 conventos, que foram os grandes mecenas dos pintores. Em geral eram muito rígidos com relação à composição e à qualidade das obras que contratavam. Exigiam até que se não estivessem de acordo com o agrado dos religiosos, os quadros seriam devolvidos. Nessa época, padres e freiras espanhois estavam convencidos de que a beleza era um estimulante para a elevação da alma. Eram pessoas em geral cultas e eruditas com gostos bastante refinados para as obras de arte.

Zurbarán foi contemporâneo e amigo de Velázquez, e se inspirava muito nas pinturas de Caravaggio. Aos 29 anos já era considerado um mestre e era tratado como o “Caravaggio espanhol”. Conta-se que nas invasões napoleônicas na Espanha, muitos de seus quadros foram levados para a França. Sobre esse pintor tenebroso de fé atormentada, escreveu o poeta francês Théophile Gautier, em 1845:

“Monges de Zurbarán, brancos cartuchos que, na sombra
passais silenciosos sobre as lousas dos mortos
murmurando o “Pater” e as “Ave” sem nome
Que crime expiais para tanto tormento?
Fantasmas tonsurados, verdugos pálidos…
Para tratá-los assim que foi feito de teu corpo?”

"São Francisco de Assis fora da sepultura", 1635,
óleo sobre tela, 205 x 113 cm 
"Copo de água com rosa", 1630, óleo sobre tela, 21 x 30cm

"Taças e vasos", 1633, óleo sobre tela, 46x84 cm