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quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Então é Natal?

As colunas do Templo de Saturno em Roma
A data de 25 de dezembro está simbolicamente ligada a festividades e rituais que datam de milhares e milhares de anos. Não, o espírito natalino não foi inventado por católicos, mas adaptado de rituais pagãos antigos. Este período se relaciona também, astronomicamente, ao fenômeno do Solstício de Verão (ou de Inverno, de acordo com o hemisfério).

A palavra “solstício” vem da junção de duas palavras em latim: Sol + Sistere (o que não se move). Solstitius, portanto, significa "ponto onde a trajetória do sol aparenta não se deslocar". Em astronomia, é o ponto exato em que o Sol se encontra numa inclinação de 23,5º em relação ao Equador. No Solstício de Verão, cuja entrada se dá exatamente neste 21 de dezembro aqui no Hemisfério Sul, ocorre o dia mais longo do ano. Ao contrário, no Hemisfério Norte, o Solstício de Inverno apresenta um dia mais curto e uma mais longa noite. Este fenômeno ocorre por causa dos movimentos de rotação e translação da Terra. A luz é distribuída de forma desigual no planeta. Luz e escuridão em contraponto...

Este período teve grande importância para muitas culturas desde tempos remotos, tanto no mundo ocidental quanto no oriental, como é o caso da China antiga. Muitos povos da Antiguidade realizavam grandes festivais, envolvendo toda a comunidade, para celebrar a mudança de tempo. O monumento de Stonehenge, por exemplo, um histórico agrupamento de pedras localizado no Reino Unido e erigido por volta de 2.500 anos a.C, está construído de forma a receber os últimos raios do sol do solstício de inverno ou os primeiros raios do solstício de verão. Esses habitantes do continente europeu dos primeiros séculos da Era Cristã - denominados de pagãos pelos católicos - realizavam grandes rituais e festivais ligados à agricultura e à mudança de período.

O monumento de pedras de Stonehenge, Reino Unido
Um dos festivais mais importantes ocorreu na antiga Roma, a Saturnália. O nome é uma homenagem ao deus Saturno (Cronos, na mitologia grega). O festival durava até sete dias. Os romanos celebravam a data em especial no Fórum Romano e no Templo de Saturno, localizados no Capitólio. Realizavam-se banquetes e festas onde todos os cidadãos podiam participar, durante as vinte e quatro horas destes sete dias, ininterruptamente. O jogo era permitido, assim como todas as normas sociais eram suspensas, senhores e servos trocando de papéis. E claro que sempre desembocavam em grandes orgias. O poeta Catulo dizia que esses eram “o melhor dos dias”.

Saturno, o deus da mitologia romana, é ligado à agricultura e seu símbolo é a foice. Deus da Colheita, ele ensinou ao homem a arte do cultivo da terra, que recompensa o trabalho com seus frutos. A Saturnália era, então, por uma lado, a comemoração de um ano bom de colheita e, do outro, o final de um período e início de outro, onde as esperanças se renovavam. Eles mantinham vivas as lembranças dos tempos míticos da “idade de ouro” quando Saturno reinava e havia abundância, fartura, igualdade, paz. Lembremos que o principal meio de subsistência naqueles tempos vinha do trabalho dos camponeses, que também geravam renda aos poderosos da época.

Durante a Saturnália se realizavam sacrifícios a Saturno. As festas e divertimentos envolviam toda a sociedade. Além dos banquetes e jogos, os romanos bebiam, faziam piadas e participavam de jogos de azar, o que era proibido nos outros meses do ano. Também era costume a visita aos amigos e a troca de presentes, pequenas figuras em terracota ou prata e velas de cera, que representavam a luz que ilumina a escuridão.

"Saturnália", Ernesto Biondi, escultura, 1909
Muitos estudiosos do tema da Saturnália apontam que todos os homens, escravos ou senhores, no período destas festas ficavam em pé de igualdade. Escravos não trabalhavam, podiam usar a mesma roupa que seus senhores, comer com eles, jogar dados… Não se realizavam atividades “sérias” durante o festival. Ninguém trabalhava, a não ser os cozinheiros. Os direitos eram iguais para todos, pobres e ricos; todos podiam participar de tudo referente ao festival. O mal-humor estava proibido (segundo Luciano de Samósata), assim como as brigas, as ameaças, as auditorias… Toda a zombaria estava liberada! Era proibido não ser feliz!

Também era o período gelado do ano, mas os corpos se aqueciam com as festas e com o vinho. “Estamos em dezembro, mas a cidade toda está coberta de suor”, escreveu o filósofo Sêneca em uma de suas cartas. Todos celebravam. Os escravos até mesmo aproveitavam o período para zombar de seus senhores. Podiam dizer o que queriam em tom de piada e os senhores eram obrigados a achar graça. Os que não conseguissem rir de si mesmos, eram forçados a pular de cabeça dentro d’água. O poeta Horácio conta, em um de seus textos, um diálogo de um escravo com seu senhor:

- “Quem sabe não é você o mais tolo de nós dois? […] Você, que tem controle sobre mim, é sujeito a tantas outras coisas; e é guiado como uma marionete, por fios e cabos que não domina”.

Mas outras festas pagãs, ao longo da história, também homenageavam outros deuses e conduziam outros rituais nessa mesma época onde ocorria o Solstício de Inverno. Muitas delas em homenagem direta ao deus Sol que, em Roma, foi oficializada pelo imperador Aureliano no ano 270. O Sol Invictus era agora a divindade número um do Império, cujo culto perdurou até à adesão de Roma ao cristianismo, com a conversão do imperador Constantino. Este monarca tinha o Sol Invicto cunhado em seu brasão oficial.

Por volta do século IV, exatamente no ano 354, foi que se oficializou o dia 25 de dezembro como a grande data do calendário religioso cristão. Ocorre que na Pérsia, muito antes disso, o deus Mitra era homenageado com uma festa denominada “Natalis Solis Invicti” (nascimento do sol invencível). A igreja da época se apoderou dessas festas pagãs, assim como de seus conceitos, e inventou o Natal, determinando que Jesus Cristo teria nascido nesta data. Ocorre que o simbolismo do Sol carrega forte representatividade. Então era preciso que a luz do dia se recolhesse cedo trazendo a longa noite do Solstício de Inverno, para que um outro Sol pudesse brilhar, para que a Terra assistisse ao nascimento da Luz maior, surgida naquele ponto da Terra para onde a luz de Vênus, a Estrela-Dalva, apontava: o nascimento do Menino que viria para salvar todos os seres. Ao longo da história, enquanto se espalhava pelo mundo e dominava povos bárbaros e pagãos, a Igreja foi criando o Natal, mantendo algo daquele espírito festivo original… Ainda hoje visitamos e compartilhamos o banquete com amigos e parentes; trocamos presentes, festejamos...

Mas algo do espírito original das festas pagãs chegou até nós no período do Carnaval, aqueles três dias onde a Igreja faz vistas-grossas aos prazeres do corpo. Foi no tempo do Papa Gregório Magno (590-604) que o espírito da Saturnália migrou de vez para a festa do “dominica ad carnes levandas”, o nosso Carnaval, uma combinação de desfiles, festas, bebidas, comidas, sexo, fantasias, que se estende até o primeiro dia da Quaresma, a Quarta-Feira de Cinzas. Desta forma, as saturnálias romanas se mantém nesse espírito orgiástico e alegre, quando também assistimos a troca de papéis: o rei se veste de mendigo e o mendigo, de rei… Mas este é um outro tempo...

Por enquanto é Natal...

E já que temos que terminar, desejando um Ano Bom - de colheitas, como antigamente - aqui desejo que os raios do sol deste Solstício de Verão no Hemisfério Sul iluminem nossos dias e nosso Brasil, afastando para longe a longa noite que parece se anunciar… Que o “Sol Invencível” que ilumina nosso futuro nos alcance logo com seus raios!

"Saturnália", Lawrence Alma-Tadema, óleo sobre tela, 1880

terça-feira, 29 de março de 2016

O ferreiro

"A forja de Vulcano", Diego Velázquez, óleo sobre tela, 223 x 290 cm, 1630, Museu do Prado
O ferreiro aquece o ferro no fogo alto, o ferro se avermelha, ele o leva até à bigorna e martela ritmado, alternando a martelada com a martelada do companheiro. O trabalho na oficina é sempre intenso. Marcado pelo ritmo das marteladas alternadas. O som se propaga ao redor; a vizinhança já se acostumou à música que vem da oficina do ferreiro.

Mas um visitante chega na oficina de Vulcano, o ferreiro. Lhe faz uma revelação terrível!

Velázquez estava na Itália, em sua primeira visita àquele país. Tinha ido adquirir obras de arte para o rei Felipe IV e aproveitado para conhecer a arte pictórica dos italianos. Em algum momento mais tranquilo, deve ter lido as “Metamorfoses” de Ovídio e deve ter parado, quieto, com alguma ideia pairando no ar e lhe trazendo vontade de fazer algo com aquele instante em que os homens sabem da notícia chocante que o deus Apolo lhes trouxe. Era preciso captar o instante, pegá-lo com as mãos, fazer dele uma pintura.

Há quase um ano, em Madrid, eu parei diante deste quadro, pura poesia. Poesia pintada pelo maior de todos os pintores, Diego da Silva Velázquez. Ele se colocou no lugar de Vulcano? De Apolo? De cada um dos homens que fazem parte da cena? Sim, com certeza! Era preciso dar realidade e poesia àquele momento revelador.

Na atitude de cada um dos componentes do quadro, vê-se o impacto da surpreendente revelação. Conta Ovídio em suas “Metamorfoses” que Apolo, resplandecente de sol, foi até o ateliê do ferreiro dos deuses do Olimpo, Vulcano, para lhe dar a humilhante notícia de que sua mulher, Vênus, estava traindo-o com o deus Marte. No quadro de Velázquez vemos o ar estupefacto e atordoado de Vulcano, assim como de seus solidários companheiros. Na história contada por Ovídio, os colegas de trabalho de Vulcano eram ciclopes míticos, seres meio monstruosos, gigantes com um único olho na testa. Mas Velázquez os pintou como operários comuns. Ele resolveu abrir mão dos elementos sobrenaturais da história de Ovídio para dar a esta cena o realismo que desejava. A ele interessava muito mais captar um momento crítico de alta carga emocional e com isso dar a estes personagens uma variedade de atitudes e gestos.

Velázquez - segundo radiografias feitas recentemente nesse quadro - modificou as cabeças de Vulcano e de um de seus ajudantes, intensificando sua atitude de surpresa e ira de marido enganado. Este quadro é um grande exercício de expressão pictórica das paixões humanas: os efeitos do ciúme e da traição sobre um ser humano, o poder da palavra sobre nossos sentimentos e ações e, como também dizem alguns estudiosos desta pintura e de Velázquez, o poder e superioridade da mente sobre o trabalho manual, teoria que movia Velázquez a defender a nobreza da pintura acima dos outros ofícios artesanais e mecânicos.

Em “Vida y obras de don Diego Velázquez” Jacinto Octavio Picón, um estudioso do século XIX, diz que esta cena aparece disposta de uma forma em que vemos a “graciosísima ironía muy andaluza”  que tinha pouco respeito aos deuses imortais. Velázquez, como dissemos acima, ao invés de figuras mitológicas colocou quatro robustos rapazes que foram testemunhas da cena. Eles estavam trabalhando em seu ofício de ferreiros quando surge Apolo, também representado por Velázquez como um jovem bonito, coroado por um laurel e em cuja cabeça está circundada por uma claridade “intensa reveladora de su celeste orígen”. 

Apolo, o deus da Poesia, procura o deus do Inferno, Vulcano, para lhe dar uma notícia muito desagradável: enquanto o ferreiro se esmera em forjar uma armadura para Marte, este está “pegando” sua mulher, Vênus. Apolo conta isso sem nenhum rodeio e sem nem mesmo levar em conta que há mais quatro pessoas em volta que irão ouvir a história. No rosto de todos os homens, há estupefação e assombro. O trabalho é suspenso. Os ajudantes de Vulcano parecem mais curiosos do que surpresos. O olhar de Vulcano demonstra tremenda raiva. “Cada figura y cada parte de ella esta iluminada según el sitio que ocupa, ya por la claridad del día a que da entrada un ventanón abierto a la izquierda sobre cuyo vano destaca Apolo, ya por el resplandor que aureola la cabeza de éste” ou por causa das brasas vermelhas do fogo que arde. O local é uma humilde oficina, e pelo chão podemos ver peças de armadura e instrumentos de trabalho.

Para criar “A forja de Vulcano”, Velázquez usou como modelo a oficina de um ferreiro humilde dos subúrbios de Roma. Ele dava seu recado: já que os deuses imortais se comportavam como os comuns mortais, haviam que ser tratados como homens. Com exceção da cabeça de Apolo rodeada de um halo de luz, o resto da cena nada tem de divino ou de heroico. “Velázquez respirando a atmosfera da Roma papal do Renascimento, rodeado por concepções pictóricas onde prevaleceram o elemento literário, como resultado de uma cultura clássica extraordinária”, ao invés de tomar o caminho do tratamento grandioso que dariam a esta cena artistas como Dominichino, Guercino, Poussin, Albano e Guido Reni, preferiu reafirmar sua abordagem realista. Era como dizer: na simplicidade das coisas habita o sublime e o belo. Todos aqueles artistas poderiam ser mais poetas que Velázquez, mas “ninguno tan pintor”, afirma Jacinto Picón!

Era um tempo em que o humanismo do passado remoto era retomado. Os valores clássicos podia ser avaliados na obra de inúmeros artistas da época, entre eles o mais radical de todos Nicolas Poussin. Mas Poussin não era realista. Seu amor aos conceitos clássicos, fazia com que ele pintasse as cenas bucólicas dos tempos idos da velha Grécia, com seus heróis e deuses. Velázquez não. Velázquez preferia aproximar esses conceitos clássicos do homem comum de seu tempo. Se havia que abordar os temas em voga, baseados na relação entre os deuses e os homens, havia que lhes dar uma poesia nova, numa nova abordagem pictórica. 

Em seu senso de humanismo, Diego da Silva preferiu pintar pessoas comuns, os trabalhadores da Corte como ele, as pessoas mais simples, feias, os anões, os bufões, as serventes. E lhes deu um tremendo valor, o valor mais alto, ao colocar essas pessoas humildes como personagens centrais de seus quadros.

A oficina do ferreiro romano que lhe serviu de modelo está expressa nessa obra diante da qual a gente se cala, respeitosamente, diante da grandiosa humanidade desse pintor andaluz e sevilhano.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Tiziano poeta

Danae, Ticiano, 1551-1553, óleo sobre tela, 192x114 cm, Apsley House, Londres
Danae, Ticiano, 1565, 129x181 cm, óleo sobre tela, Museu do Prado, Espanha
Tiziano Vecellio, ou simplesmente Ticiano (em nossa língua), pintor italiano que nasceu por volta de 1477 e morreu em 1576, continua impressionando todos os que amam a pintura. Ele é considerado um dos maiores expoentes da chamada Escola Veneziana e era chamado, pelos seus próprios contemporâneos, de “o sol entre as estrelas”, por causa da sua imensa versatilidade no manejo do pincel, criando obras-primas que atravessam séculos. Ele foi um dos primeiros pintores a buscar exprimir o essencial na pintura, valorizando mais as massas de cores do que as linhas do desenho.
Na fase mais amadurecida de sua carreira, Ticiano começou a experimentar pintar sem desenhos preparatórios, de forma mais rápida e, alguns diriam, imprecisa. Imprecisa no sentido de que ele abria mão da descrição absoluta e pincelava o que era necessário para expressar-se. Queria captar a realidade no momento preciso. Por isso, não há mais contornos definidos e as pinceladas são mais soltas e mais densas, aparecendo mais. Isso era absolutamente novo na pintura daquela época, e o resultado é mais movimento, uma pintura mais viva, diferente da execução detalhada que obedecia basicamente ao desenho.
Foi exatamente nesta fase, depois de 1550, que Ticiano criou um conjunto de 6 pinturas que ele mesmo denominou de “Poesias”. São obras de temas mitológicos que ele pintou para o rei espanhol Felipe II, provavelmente encomendadas por este. Estas “Poesias” demonstram como Ticiano criou sua própria interpretação de temas mitológicos como o de Cupido e Vênus, carregando as cenas de erotismo, de valorização do feminino e mostrando a sensualidade do corpo da mulher.
Perseu e Andrômeda, Ticiano, 1556, 183x199 cm
São estas “Poesias” que o Museu do Prado, de Madrid, Espanha, está mostrando ao público desde o dia 19 de novembro de 2014 até 1º de março próximo. Trata-se de: “Danae” (Londres, Apsley House), “Vênus e Adônis” (Museu do Prado), “Perseu e Andrômeda” (Londres, Coleção Wallace), “Diana e Acteão” e “Diana e Calisto” (National Gallery, Edimburgo e Londres) e “O rapto de Europa” (Isabella Stewart Museum de Boston).
O curador da exposição, Miguel Falomir, explica que nas cartas enviadas por Ticiano a Felipe II, o pintor chamou-as de “Poesias”, pois queria reinvindicar um antigo desejo dos pintores de se assemelhar-se aos poetas. Ele mesmo deu sua interpretação aos textos antigos. Na obra “Vênus e Adonis”, exemplifica o curador, o protagonista masculino tenta se livrar do abraço de Vênus, de costas para o observador. Esta cena é uma invenção de Ticiano, pois não se encontrava em nenhum texto, e foi motivo de inspiração para muitos escritores, entre os quais William Shakespeare.
Estas obras, antes da exposição, passaram por um processo de restauração dentro do Museu do Prado, dirigido por Elisa Mora, uma das especialistas do museu. O trabalho consistiu em eliminar tudo o que interferia na leitura correta das obras, realizando uma limpeza nos vernizes que já haviam oxidado. Também foram eliminados toques de re-pintura, realizados em anos anteriores.
Diana e Acteão, Ticiano, 93x107 cm
Esta é a primeira vez que as pinturas “Danae” e “Vênus e Adonis” se mostram lado a lado. Uma outra versão de “Danae” de Ticiano, do acervo do Prado, também se encontra na mostra. É uma “Danae” posterior, de 1565, que fazia par com “Vênus e Adônis” nas chamadas abóbodas de Ticiano no antigo Alcazar madrilenho. Foi Velázquez quem a adquiriu em sua primeira viagem à Itália, e é considerada mais erótica do que a versão que se encontra em Londres, na Apsley House.

Ticiano é um dos mestres da pintura ocidental. Mesmo passados exatos 438 anos de sua morte, sua obra permanece como exemplo e referência de grande altitude, pois em sua genialidade teve coragem de enfrentar suas próprias questões técnicas e se afastar do modo padronizado de pintura do seu tempo. Assim como Velázquez, assim como outros que vieram depois em vários países. O que nos faz refletir: não importa o modismo estético da época, importa a busca individual pela perfeição pictórica e pela liberdade de expressão a que esse caminho conduz.
Abaixo, mais algumas "Poesias" de Ticiano...
Vênus de Urbino, Ticiano, 1538, óleo sobre tela, 165x119 cm, Galeria degli Uffizzi, Florença

Vênus vendando os olhos de Cupido, Ticiano, 1565,
óleo sobre tela, 185x118 cm, Galleria Borghese, Roma

Vênus recreando-se com a música, Ticiano, 1550, óleo sobre tela, 222x138cm, Museu do Prado 
Vênus recreando-se com o Amor e a Música, Ticiano,
1555, óleo sobre tela, 218x150 cm, Museu do Prado 
O rapto de Europa, Ticiano, 205x185 cm, Museu Isabella Stewart, Boston
Vênus e Adônis, Ticiano, 207x186 cm, Museu do Prado
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quarta-feira, 16 de julho de 2014

Pobre Anteu!

"A terra, ou o combate de Hércules e Anteu", pintura decorativa do teto de uma das salas
do Museu do Louvre em Paris, de Auguste Couder (1790-1873)
 Estou quase concluindo a leitura de um livro do poeta francês Paul Valéry, intitulado “Degas danse dessin” (Degas dança desenho), publicado em 1938 em Paris. Valéry escreve sobre seu amigo o pintor Edgar Degas, o célebre pintor das bailarinas. De tão importante, farei um próximo post sobre este livro aqui neste Blog, pois Degas é um dos grandes mestres franceses, pela vida e pela obra.

Mas antes vou falar de Anteu, porque Anteu me tocou, ao ler o que dele falou Paul Valéry. 


Vaso grego antigo, representando
a luta dos dois gigantes
Dá para falar deste gigante da mitologia grega sob diversas formas e vou me focar na que mais me toca: ele não podia ser separado de sua mãe, a Terra; precisava ter seus pés todo o tempo tocando o chão, sob pena de morrer.

Na lenda grega Anteu era filho de Poseidon (o Oceano) e de Gaia (a Terra). Ele habitava os desertos da Líbia, em uma caverna em cima de um monte, na região de Irasa, próximo ao Estreito de Gibraltar. Anteu havia prometido a seu pai, Poseidon, construir em sua honra um templo feito com todos os crânios dos humanos que atravessassem suas terras. Qualquer um que se aproximasse dele era vencido, pois Anteu possuía uma enorme força. Em suas lutas, cada vez que seu corpo era lançado contra a terra ele se levantava ainda mais firme, porque a Terra lhe restituía as forças.


Hércules e Anteu, gravura de
Gabriel Salmon (1485-1535), de 1528
Um belo dia surge em sua frente um outro gigante, Hércules. Na luta entre os dois, Anteu caiu três vezes por terra, mas isso só lhe fazia ainda mais forte. Hércules percebeu que quando Anteu caía, recuperava o vigor. O gigante, então, segurou Anteu pela cintura elevando-o para que não tocasse mais a terra. Com isso, Hércules manteve Anteu erguido no alto até que ele parasse de respirar. E ele morreu sem seu chão… Depois Hércules tomou para si a esposa do gigante morto.

Anteu foi sepultado na cidade de Tingis, que havia fundado, embaixo de um monte de terra. Conta a lenda que cada vez que se retirava alguma porção de terra da cova de Anteu logo começava a chover sem parar até que o buraco fosse fechado.

Essa lenda inspirou artistas ao longo da história, desde a antiga Grécia onde a luta entre os dois gigantes decoravam vasos e taças; na Idade Média, muitos desenhos foram feitos inspirados nessa fábula. E no século XVII o pintor espanhol Francisco de Zurbarán pintou um grande quadro intitulado “Hércules lutando com Anteu”.


"Hércules e Anteu", pintura
de Gregorio di Ferrari (1647-1726)
Para minha interpretação pessoal, essa é a história de todos os que são separados de sua terra, de todos os migrantes, dos quais faço parte, pois fui levada embora de Caruaru quando tinha 12 anos. Sair da terra natal para nunca mais voltar é a história de milhões de pessoas pelo mundo e de brasileiros como eu; e como eu sentem que uma parte de nós ficou para trás, de forma irrecuperável, enquanto carregamos dentro de nossas almas essa eterna sensação de deslocamento, de não-pertencimento a lugar nenhum, a gente alguma. 

Algo dentro de nós nos torna melancólicos por causa dessa separação que não tem volta. Mesmo se voltamos à nossa terra, já não somos nós, já não é ela a mãe, que agora se juntou a outro marido, o tempo que passou, que na lenda é o gigante Hércules. Quantas e quantas poesias, cordéis e canções foram feitas pelos meus conterrâneos nordestinos com esse tema da separação da terra natal! Desde a canção cantada por Luiz Gonzaga que vaticina: “Quem sai da terra natal em outro canto não para!” até o “Lamento sertanejo” de Dominguinhos, cujo refrão é cruelmente o retrato do que sentimos nós, os exilados: “Sou como rês desgarrada nesta multidão, boiada caminhando a esmo…” E o grande Graciliano Ramos que expressou os sentimentos inexpressáveis de quem vai embora, em seu livro “Vidas Secas”. 

Não, ninguém que não tenha vivido esta experiência é capaz de compreender profundamente a fábula de Anteu! Exatamente no momento em que ele é erguido e segurado acima do chão, separado de sua terra, e vai aos poucos vendo sua vida se esvair nessa agonia imensa de querer voltar a se sentir com os pés firmes sobre o chão, e sem poder…. esse momento de agonia, retratado no rosto da pintura de Gregório di Ferrari acima, é a agonia que toma conta do coração da gente que foi embora para sempre de sua terra… Esse sentimento permanece lá num recanto qualquer de nosso ser, como uma agonia. Eu saí de Caruaru; Caruaru não saiu de mim… Voltar jamais seria uma solução, pois o corte irremediável já foi feito!

E o mito se renova...


"Hércules lutando com Anteu", Francisco de Zurbarán, 136 x 153 cm, 1634

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Trabalho inútil? - Uma defesa da repetição

Sísifo, de Tiziano, pintura de 1549
Nestes dias, minhas tarefas como membro de um atelier de arte realista têm-me suscitado reflexões e angústias. Há uma luta que travo com o que desenho, luta livre entre eu e a forma que teima em me dominar. E eu que teimo em dominá-la. Nessa dialética, olho para o mundo à minha volta. E quando olho, acho que devo voltar ao meu desenho.

Viver atualmente, especialmente nas grandes metrópoles, é submeter-se a padrões de vida estonteantes. A velocidade da máquina desse sistema formado pela tecnologia e pela informação, parece impor às pessoas a necessidade de uma rapidez de mesma intensidade. Transformando os indivíduos em frenéticas partículas mantenedoras do sistema maior, o capitalismo contemporâneo.

Com isso, temos uma sociedade ansiosa, pautada pelo efêmero, que parece repudiar o que é lento, sistemático, metódico. Num tempo em que a superficialidade predomina e onde reina a estética pessoal que incentiva o individualismo, há ainda, mesmo assim, os que resistem.

Falo agora de Arte.

A chamada Arte Contemporânea é, assim como o sistema todo atual, efêmera, passageira. Criar, hoje, é  ter uma ideia instantânea; seu produto é um objeto construído em instantes, para uma observação apenas superficial. O “produto” desse ato criador não necessariamente precisa ser mais do que um simples arrazoado escrito ou transformado em vídeo. Ou qualquer coisa.

Há ainda, mesmo assim, os que resistem.

Desenhar – um ato que não se pratica mais no sistema de arte atual – é um trabalho lento, moroso, doloroso até. Dura talvez meses, talvez anos, talvez uma vida inteira. O artista fica lá, arqueado sobre uma folha de papel, ou sobre uma tela, repetindo movimentos, extraindo formas, linhas, massas, numa árdua tarefa de buscar a perfeição que faz o Mestre. Coisa mais “fora de moda”, para o sistema acima, não pode ter...

Lembro de uma entrevista com meu amigo, o artista Rubens Ianelli que recorreu a um dito do pintor Van Gogh onde este comparou o ato de desenhar ao trabalho de abrir um buraco numa chapa de ferro, usando-se apenas uma lima... Porque é isso, porque há um poder intrínseco à repetição... Como diz o poeta Affonso Romano de Sant’Anna, Poesia (num sentido amplo) é repetição. Acrescento: Música é repetição, Pintura é repetição...

Penso no mito grego de Sísifo, o que desafiou os deuses. Por sua afronta, foi condenado a, por toda a eternidade, empurrar uma pedra montanha acima, até o topo. Chegando perto do topo, a pedra rolava para baixo e ele tinha que recomeçar tudo. A vida do artista se assemelha muito ao trabalho de Sísifo. Aparentemente inútil, aparentemente uma condenação. Albert Camus, escritor franco-argelino disse certa vez que Sísifo é a imagem daquele que vive sua vida ao máximo e que mesmo que outros não vejam sentido no que faz, ele continua executando sua tarefa diária. E compara esse mito com a vida dos trabalhadores: "O operário de hoje trabalha todos os dias em sua vida, faz as mesmas tarefas. Esse destino não é menos absurdo, mas é trágico quando em apenas nos raros momentos ele se torna consciente", diz ele. Mas diz também, e tão bem, o poeta Vinícius de Moraes em Operário em Construção: “O operário faz a coisa e a coisa faz o operário”... Nessa aparente falta de sentido de seu trabalho, oculta-se a genialidade.

E o domínio técnico, que transforma simples mortais em gênios. A repetição cria o mestre. Cria também calos nas mãos, marcas no corpo e na alma. Assim como cria vícios, acomodamentos e dores. Porque há momentos em que o artista necessita se recriar, rolar de novo a pedra montanha acima. Recomeçar. Nunca mais do zero, pois a experiência anterior joga a seu favor.

Ainda bem que a vida não se resume à tensão masoquista pós-moderna. Há ainda o trabalho lento, metódico, de bordadeiras, de rendeiras, de artesãos, de poetas, de pescadores solitários lançando sua rede, de agricultores silenciosos lançando sementes ao solo. E de músicos. Há o trabalho diário do violonista, sentado horas e horas diante da partitura, violão abraçado ao peito, dedilhando acordes fáceis e complexos, num ritual sagrado de repetição em busca da perfeição, do domínio absoluto do instrumento, do seu violão que vai tocar aquela sonata que irá enlevar a alma dos que o irão ouvir...

Ou o trabalho solitário e silencioso do pintor em seu atelier, anos a fio debruçado sobre uma folha em branco, ou sobre uma tela, trabalhando o desenho, achando a proporção certa, dada pela observação dos movimentos da luz. Trabalho quieto de olhar para as coisas do mundo e ver na realidade o que a maioria não vê. E transformar o que vê no desenho ou na pintura perfeitos. Não uma mímese perfeita do real, mas a captação do momento pictórico tornado perfeito. Tornada perfeita a expressão dos movimentos da luz que incide sobre o mundo, em suas infinitas gradações que vão da sombra mais profunda à luminosidade mais incandescente...

Sim, é necessário empurrar a pedra morro acima, diariamente. Repetição é movimento e movimento é Vida.