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segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Vida e Arte

Estudo sobre pintura de Joaquín Sorolla,
por Mazé Leite, outubro de 2013 - óleo sobre papel telado

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Em lugar de me entregar ao status quo e às unanimidades que permeiam as mentes daqueles que querem seus quinze minutos de fama, vou fazendo meu trabalho silencioso, no meu canto em meu atelier, sabendo que enquanto pinto a vida fica menos triste, as tristezas menos cinzas, as dores menos opacas, as decepções menos frias.

Arte é resistir. Inclusive às dores da vida, como já disse aquele filósofo da maldição da vida, o Friedrich Nietzsche, que disse que "a arte existe para que a realidade não nos destrua". Repito: para que a realidade não nos destrua. Às vezes a realidade é dura! E muitas vezes me machuca...

E mais Nietzsche: "A Arte e nada mais do que a Arte! Ela é a grande possibilitadora da vida, a grande aliciadora da vida, o grande estimulante da vida".

Eu completaria: o grande alívio para a vida!

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Estudo sobre pintura de Joaquín Sorolla,
por Mazé Leite, agosto de 2013 - óleo sobre tela

terça-feira, 12 de novembro de 2013

O pensamento do artista Álvaro Cunhal

Álvaro Cunhal
“A arte é uma expressão do Belo e o artista um seu criador”. Assim Álvaro Cunhal começa o seu ensaio “A Arte,  o Artista e a Sociedade”, publicado em junho de 1996, pela Editorial Caminho, de Lisboa, Portugal. Líder revolucionário do povo português, membro do Partido Comunista, Álvaro Cunhal foi também um pensador da Arte e um artista. No ensaio em questão, ele aborda uma série de temas muito relevantes não só dentro do campo artístico, mas também no âmbito da filosofia, da cultura, da sociedade.


Álvaro Barreirinhas Cunhal nasceu em Coimbra, Portugal, em 10 de novembro de 1913. O centenário de seu nascimento tem tido muitas comemorações em Portugal neste ano.

Logo no começo do ensaio, Cunhal dedica todo um capítulo ao tema do Belo na arte, um conceito que tem sido estudado longa e profundamente ao longo da história, desde os filósofos gregos, passando pelos pensadores da Idade Média, os do Renascimento, do Iluminismo, da filosofia alemã, entre os quais se destacam Hegel e Schelling. Álvaro Cunhal diz que, a respeito do Belo, há muito mais perguntas do que respostas. Desde sempre se busca estabelecer que critérios podemos utilizar para considerar bela alguma coisa, inclusive critérios dentro do “conhecimento científico” que também tem tentado estabelecer uma origem “objetiva, fixa e imutável do Belo”.


Um dos muitos desenhos que ele fez
na prisão, por causa de suas convicções
comunistas
Mas Cunhal também diz que alguns outros filósofos “pretenderam conformar o conceito às coisas”, procurando saber como surge essa qualidade da Beleza nas coisas. Questiona ele: “Coisas ‘belas’ onde, para quem, para que classe, em que época, em que país?” Por trás desse questionamento, sua visão de que conceitos como estes não são absolutos no tempo, espaço e lugar. Como queria, por exemplo, Diderot, o pensador francês da Enciclopédia que mais tarde foi forçado a rever suas opiniões em suas “ulteriores críticas de arte”. E como pensava também Charles Darwin que, segundo Cunhal, em uma obra anterior à sua Origem das Espécies, considerava a beleza como uma “qualidade objetiva inalterável, fixa, universal e eterna das coisas”. Mas em seu livro mais conhecido, e posterior, Darwin admitiu que “a ideia do Belo não é inata e nem inalterável”.


Mas, diz Cunhal, mesmo assim essas teorias - por vezes tomadas como verdades absolutas - trazem “elementos válidos de reflexão”. Há obras de arte de valor estético universal e incontestável, que ultrapassam séculos, milênios. Ultrapassam inclusive as mais “profundas transformações sociais”, pois continuam sendo reconhecidas em seu valor. Pois há valores comuns nas coisas belas, enfatiza ele. O ser humano reage com agrado a determinados eventos e acontecimentos, com traços da reação “dos seus sentidos e das suas emoções que perduram e ultrapassam as épocas históricas”. Por isso, a beleza das coisas existe em íntima interação com a alma humana, que as aprecia. Diz Cunhal: “Beleza é um critério e um juízo humano”. Pois o mundo é belo PARA quem o observa.

Mesmo na filosofia idealista, continua o artista português, quando se fala do Belo se fala em relação à realidade. A invocação do sobrenatural por trás do Belo é feita em geral pelas religiões, procurando encontrar uma origem sobrenatural do Belo absoluto. Da filosofia escolástica, sabemos que a Beleza estava diretamente relacionada com a divindade e os filósofos cristãos deram até uma definição do Belo como ligado ao Bem e à Verdade, acrescentando uma conotação moral ao conceito.

Pintura em óleo sobre tela, Álvaro Cunhal



Mas voltando ao ensaio de Álvaro Cunhal. Numa linha de investigação oposta à idealista, o pensamento materialista “investiga a ligação do Belo com a sociedade e a sua evolução. Aponta a experiência histórica da relatividade da definição” do Belo. Essa visão materialista busca localizar a apreciação do Belo nas várias épocas históricas, nas diversas sociedades e culturas, nas circunstâncias objetivas do mundo. Diversas coisas, por serem úteis, tornaram-se belas, acrescenta. O ser humano, ao fabricar seus instrumentos de trabalho, suas moradias, seus meios de locomoção, seus ambientes, vem buscando não só aperfeiçoá-los, do ponto de vista técnico, mas também torná-los belos. Por outro lado, a arte surge como uma criação humana que dá prazer à alma:

“Seja qual for a origem que se lhe atribua, a noção do Belo é um elemento essencial do valor estético. A outra, é a beleza criada pelo homem. O artista é um criador de beleza.”


Outro "desenho da prisão"
Álvaro Cunhal diz também que complexidade, contradição e controvérsia também estão presentes quando se definem os elementos do valor estético. Ao longo do tempo, filósofos, críticos e artistas também mudam os valores estéticos de obras de arte, mesmo que haja aquelas que atravessam os séculos sendo admiradas por todos. E muitas vezes eles entram em confronto de ideias sobre valores estéticos de determinados períodos. Uma dessas grandes controvérsias tem acontecido em volta da questão “forma x conteúdo”. Muitos artistas levam mais em conta os processos formais de uma obra de arte. Outros, além da forma, também se preocupam com o “conteúdo” de seu trabalho, ou seja, que ele expresse a mensagem que ele quer transmitir, que provoque reação e sentimentos nos outros e na sociedade da qual faz parte. Muitas vezes, destaca Cunhal, os primeiros radicalizaram sua posição em defesa da forma, diminuindo o sentido e o significado do que faziam; e os segundos, por seu lado, menosprezando a forma, consideraram o conteúdo - a “mensagem” - como único valor a ser levado em conta.


Mas considerar a “forma” como valor estético é uma tautologia, diz ele, pois a forma em si já é beleza criada pelo artista. Só que o valor estético não pára aí: ele também se acha presente “naquilo que a obra de arte transmite, na mensagem que conduz, nos sentimentos que provoca”. Ambos - forma e conteúdo - são, juntos, elementos integrantes do valor artístico. E dá um exemplo:


Desenho de Álvaro Cunhal, na prisão
“Só um dogmatismo ideológico primário pode pretender que a mensagem de liberdade não é um elemento integrante do valor estético da 5ª Sinfonia ou da 9ª Sinfonia de Beethoven, a mensagem humanista no valor estético da Ressurreição de Tolstoi, a mensagem da história de libertação de um povo nos murais de Rivera e de Siqueiros.”


Ao longo desse longo ensaio de 203 páginas, ricamente ilustrado com imagens de obras de arte e de inúmeros exemplos que Álvaro Cunhal, em seu pródigo conhecimento sobre arte, retirou da pintura, da escultura, mas também da literatura, do teatro e da música, ele vai traçando um longo raciocínio sobre o papel da arte e do artista no mundo.


Vale muito a pena a leitura desse ensaio, assim como mais comentários sobre os diversos aspectos abordados por ele, coisa que pretendo ir fazendo, pela riqueza de temas que Álvaro Cunhal levanta. Por exemplo, dizendo que o que faz o entusiasmo e a entrega plena à criação por parte do artista vem de um “apelo interior”, pois isso tudo, mais do que uma opção de vida, é uma “vontade natural irreprimível” de criar, “um gosto, uma alegria”. Quem é artista sabe do que Álvaro Cunhal está falando…


Para finalizar este primeiro artigo sobre o ensaio “A Arte, o Artista e a Sociedade”:


“Arte é liberdade. É imaginação, é fantasia, é descoberta e é sonho. É criação e recriação da beleza pelo ser humano e não apenas imitação da beleza que o ser humano considera descobrir na realidade que o cerca.”

Álvaro Cunhal, óleo sobre tela

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Os Macchiaioli - realismo impressionista na Itália

MARIANO FORTUNY: Curral de touros, 1866

A Fundação Mapfre abriu em Madrid, Espanha, uma exposição, no mês de setembro, que leva àquela cidade cerca de 100 obras dos pintores italianos conhecidos como Il Macchiaioli. Os Macchiaioli foram artistas rebeldes que viveram na Florença do século XIX, especificamente por volta de 1855, todos de origem toscana, mas também haviam aqueles que vinham de Veneza e Nápoles.


GIOVANNI BOLDINI: Retrato de Diego Martelli, 1865 
Macchiaioli significa exatamente “manchista”, uma designação de cunho pejorativo que foi usado para designar o que eram esses pintores rebeldes à academia. O termo foi cunhado em 1862 por um jornalista da “Gazzetta del Popolo”, com o sentido de zombar desses artistas anti-acadêmicos da pintura italiana. Depois eles mesmos adotaram esse título e o utilizavam para designar-se. Estes artistas representaram uma renovação na pintura italiana, pois em sua poética realista romperam com o neoclassicismo e com o romantismo que dominavam as academias e ateliês italianos. Os Macchiaioli são considerados, na Itália, os iniciadores da pintura moderna italiana.


O Museu d’Orsay, de Paris, fez uma primeira mostra desses artistas italianos, contemporâneos dos impressionistas franceses. E a partir do mês de outubro indo até janeiro de 2014, esta mostra se encontra na cidade de Madrid, Espanha, patrocinada pela Fundação Mapfre.

ODOARDO BORRANI: Carroça vermelha em Castiglioncello, 1865-66


Foi no Caffè Michelangelo em Florença que um grupo de pintores, reunidos em torno do crítico Diego Martelli, deu início ao movimento. A preocupação desses artistas era com a renovação da pintura italiana. Eles criticavam fortemente o purismo acadêmico dos pintores neoclássicos e românticos, e defendiam que a imagem do real deveria ser apresentada como um contraste de cores, de sombra e de luz. Por ironia do destino, o Caffè Michelangelo ficava a poucos metros da Academia Florentina de Belas Artes, que foi recebendo pouco a pouco - da parte dos jovens macchiaioli - apelidos como “quartel de inválidos”, “semeador de mediocridade”, “cemitério da arte”, etc.


FEDERICO ZANDOMENEGHI:
Retrato de Diego Martelli com gorro vermelho, 1879
Nesse Café - diz o catálogo da exposição de Madrid - se reuniam os mais “turbulentos da cidade. Os realistas irrompiam com ímpeto desde a Via de Pucci - onde haviam comido pouco e mal na taberna de Gigi Porco - e entravam ruidosamente na Via Larga em direção ao Caffè Michelangelo. Para seus estômagos, acostumados à lenta e pesada digestão de burro cozido, e para seus nervos à flor da pele, até o café se tornava uma bebida insípida. Em agitação coletiva, misturavam rum ao café, bebida que tinha virado moda entre jovens pobres. Os alunos da Academia atravessavam a rua para não ter que cruzar com eles”.

Os jovens frequentadores do Café não só conheciam as ideias que fermentavam naquela Itália em mudança, como participavam ativamente de todo o processo, muitos deles com sacrifícios pessoais. E à mudança que eles reclamavam na estrutura da sociedade era a mudança que queriam implementar no campo da arte. Alguns deles participaram como voluntários em 1848 na Batalha de Curtatone, por exemplo. E Telêmaco Signorini, um destes pintores rebeldes, se alistou como voluntário na artilharia, em 1859. Mas em 1862, enquanto seguia a Garibaldi na tomada de Aspromonte, seu pai faleceu. Signorini escreveu em seu diário: “Aspromonte. Morre meu pai de câncer, precisamente quando eu pensava em ir para Gênova com Garibaldi. Deixo o ateliê e a casa com minha mãe e meu irmão de 11 anos. Volto a ter um ateliê na Via Salvestrina e casa fora da Porta da Cruz, na Torre Guelfa. Faço um curso em Arno com Lega, Langlade e Madier. Fundamos a Escola de Pergentina e pinto o quadro ‘Ditosas são as galinhas que não vão ao colégio’”.

TELÊMACO SIGNORINI: La sirga, 1864


Assim como ele, diversos outros foram voluntários na artilharia e participaram ativamente das campanhas de unificação da Itália. Mas passadas as batalhas e uma vez a Itália sendo unificada, esses pintores desejavam agora representar a nova Itália, como um país que se descobre a si mesmo, sua própria força, sua tradição.


SILVESTRO LEGA:
Cantando uma canção, 1867
Com a unificação da Itália como um país, o que ocorreu no século XIX, foi feita uma Exposição Nacional em Florença. Nesse período, ficou clara a divisão entre a escola acadêmica e os macchiaioli. A polêmica se estabeleceu entre eles, não só do ponto de vista artístico, mas que abrangia toda uma visão cultural e política. Para os bravos macchiaioli, não podia haver diferença entre pintar quadros e derramar sangue nos campos de batalha. Esses jovens pintores sonhavam com uma nova Itália.


A palavra “tradição” - diz a apresentação do catálogo da exposição de Madrid - podia soar como uma blasfêmia para os ouvidos dos macchiaioli. Eles consideravam que a juventude de toda a Europa deveria erradicar todos os velhos sistemas políticos, educacionais e militares, para substitui-los através da construção e do advento de uma nova era. Giuseppe Mazzini, um dos líderes e pensadores desses movimentos de rebeldia que inspiravam os macchiaioli, chegou a criar uma organização chamada “Jovem Europa”, à qual não podiam pertencer pessoas com mais de 30 anos de idade. Essa organização, mais tarde, aglutinou em torno de si as melhores inteligências democráticas, que intentavam destruir o status quo, não somente do ponto de vista de uma revolução nacional, mas sobretudo internacional. Claro que os conservadores de todas as classes detestavam essas ideias e esse líder dos jovens italianos. (Giuseppe Mazzini foi um revolucionário e patriota italiano, fervoroso republicano e combatente pela unificação da Itália, assim como Giuseppe Garibaldi.)


GIUSEPPE ABBATI: Interior do claustro de Santa Cruz em Florença, 1861-62
Mas os macchiaioli viveram e morreram na pobreza. Mantendo-se coerentes por toda a vida, eles sempre se mantiveram críticos em relação ao mundo.


Capítulo à parte merece a velha disputa sobre a relação entre eles e os impressionistas franceses, destaca o catálogo. A verdade é que eles mantiveram uma estreita, fecunda e contínua relação. O texto da exposição madrilenha complementa: “Foi talvez o destino diferente de seus itinerários que fez a diferença real entre os impressionistas franceses e os macchiaioli”. Por parte da França, um reconhecimento grande de seus artistas; da parte da Itália, o esquecimento dos macchiaioli. Enquanto esta escola foi se extinguindo, no Grand Café du Boulevard des Capucines - outro café! - em Paris, os irmãos Lumière já faziam as primeiras experiências com o cinema. Vale salientar que a pintura dos Macchiaioli teve bastante influência em cineastas italianos, como Luccino Visconti e Mauro Bolognini, que encontraram nela uma inspiração iconográfica e uma linguagem especial da imagem.


GIOVANNI FATTORI: Soldados franceses de 1859, 1859
GIOVANNI BOLDINI: Autorretrato, 1892
Participavam desse grupo dos Macchiaioli: Serafino di Tivoli, Eugenio Cecconi, Edward Borrani, Sernesi Raphael, Nicholas Cannicci, Egisto Ferroni, Adriano Cecioni, Giuseppe Abbati, Eugenio Prati, Veronese Vincenzo Cabianca, Domenico Caligo, Giovanni Fattori, Silvestro Lega e Telêmaco Signorini. Em seguida, juntaram-se nesta direção os pintores John Bartolena, Leonetto Cappiello, Vittorio Matteo Corcos, Michele Paris, Oscar Ghiglia, Francesco Gioli, Luigi Gioli, Ulvi Liege, Guglielmo Micheli, Alfredo Müller, Plinio Nomellini, Simi Filadelfo, Adolfo Tommasi, Angiolo Tommasi, Ludovico Tommasi, Lorenzo Viani, Llewelyn Lloyd e Raphael Gambogi.


Além deles, Giovanni Boldini. Em 1862, retratista já conhecido, ele se instala em Florença para completar seus estudos na Academia. Mas ele logo entra em contato com os macchiaioli e também se junta ao grupo em torno do crítico Diego Martelli, que contribuiu para popularizar na Itália os princípios do impressionismo francês.


A mostra intitulada “Os Macchiaioli - realismo impressionista na Itália”, está sendo co-produzida pela Fundação Mapfre e pelos Museus parisienses d’Orsay e de L’Orangerie. As 100 obras são procedentes de coleções públicas e particulares italianas. É a primeira exposição realizada na Espanha em torno do movimento dos Macchiaioli, que também influenciaram a pintura espanhola do final do século XIX. Entre eles, o pintor espanhol Mariano Fortuny, que terá algumas de suas obras nesta exposição.

MARIANO FORTUNY: Velho desnudo ao sol, 1863

sábado, 7 de setembro de 2013

Edward Hopper

"Nighthawks" (Aves noturnas), Edward Hopper, 1941, óleo sobre tela, 152 x 84 cm

“Nighthawks, aves noturnas, falcões notívagos, gaviões da noite, essa gente que, como nós, se distrai e é engolida pelo vazio em uma noite deslocada do tempo, em que tudo pode acontecer, inclusive nada.
(...)
- Vai ver foi. Numa noite dessas, não descreio de nada, nem de alçapões, nem de vazios emolientes, nem de mortos que pintam vazios às altas horas da madrugada.”

O trecho acima foi extraído do livro do meu amigo escritor Jeosafá Gonçalves “Era uma vez no meu bairro - Zona Sul”. No capítulo 9 do romance há um diálogo que parece sair da tela do pintor realista norte-americano Edward Hopper “Nighthawks” (tela acima). Pintada em 1942, logo após o ataque japonês a Pearl Harbor, no final de 1941. Era o começo do envolvimento dos EUA na II Guerra Mundial.


Um de seus desenhos expostos
no Whitney Museum
Mas nestes meses atuais, até 6 de outubro, o Museu Whitney de Arte Americana, de Nova York, Estados Unidos, está fazendo uma exposição concentrada nos desenhos e no processo criativo de Edward Hopper. Esses desenhos revelam sua evolução e seu interesse permanente nos espaços: ruas, cinemas, escritórios, quartos, estradas. São parte de uma coleção do museu com mais de 2.500 desenhos doados por sua viúva, Josephine Hopper. Muitos deles nunca foram expostos antes. 

Edward Hopper foi um pintor realista norte-americano. Mais conhecido por suas pinturas a óleo, ele também foi aquarelista e gravador. Em suas cenas urbanas e rurais, e também nas pessoas solitárias de muitos de seus quadros, vemos refletida a sua visão pessoal da vida moderna. Aquela melancolia de fim de tarde, até certo ponto "aliviada" pelos encontros sociais após o expediente (os happy-hours), o peso na alma, a angústia que às vezes faz doer o corpo físico, coisas assim estão presentes na obra deste taciturno artista norte-americano que se manteve fiel ao realismo até o fim da vida. 

Para quem quisesse compreender qual era o motor que lhe inspirava a pintar, Edward um dia respondeu: “A resposta toda está lá na tela.” 

Quem foi Edward Hopper


Autorretrato, 1925-30, óleo s/ tela
Edward Hopper nasceu em Nova York, EUA, no dia 22 de julho de 1882. Seus pais, de descendência holandesa, foram Elizabeth Griffiths Smith e Garret Henry Hopper, um comerciante de secos e molhados. Teve uma vida até certo ponto confortável, como uma família de classe média. Edward e sua única irmã Marion estudaram tanto em escolas públicas quanto privadas e tiveram uma educação rígida. Seus pais eram da igreja Batista. Hoje, a casa onde viveram os Hopper é um centro cultural, a Edward Hopper House Art Center, aberta à comunidade, sem fins lucrativos, com exposições, workshops, palestras e eventos especiais.

Hopper foi um aluno aplicado e mostrou talento para o desenho desde cedo. Recebeu muita influência de seu pai, um intelectual que amava as culturas russa e francesa. Desde cedo, seus pais encorajaram a sua arte, fornecendo-lhes materiais artísticos, revistas e livros de arte. Na adolescência, Hopper já trabalhava bastante, desenhando com materiais diversos, como carvão, e pintando aquarelas e quadros a óleo. Também já fazia charges políticas. Com apenas 13 anos, em 1895, assinou sua primeira pintura a óleo, que ele intitulou “Barco a remo em Rocky Cove”. Nessa época ele já se interessava muito pelos temas marítimos. Chegou mesmo a pensar em seguir uma carreira ligada à marinha, mas logo após sua formatura resolveu seguir carreira artística.


Desenho de Edward Hopper
Hopper começou seus estudos de arte em um curso por correspondência em 1899. Logo, porém, ele foi transferido para o Instituto de Arte e Design de Nova York. Estudou nesta escola durante 6 anos, tendo também como professor o pintor William Merritt Chase, que o instruiu na pintura a óleo.

Outro de seus professores foi o também artista realista Robert Henri, que dizia que arte e vida devem caminhar juntos. Henri incentivava seus alunos a usar sua arte para "agitar o mundo". E dizia: "Não é o tema que conta, mas o que você sente a respeito dele". Dessa maneira, Hopper foi sendo influenciado por seus mestres, que incluiram também os notáveis ​​artistas George Bellows e Rockwell Kent. Alguns deles, incluindo o próprio Robert Henri, se tornaram membros da "The Eight", também conhecida como Escola Ashcan de Arte Americana.

A Escola Ashcan foi um movimento artístico no Estados Unidos do início do século XX, conhecida por retratar as cenas do cotidiano em New York, principalmente a vida nos bairros mais pobres da cidade. Os artistas mais famosos que trabalharam neste estilo incluía Robert Henri (1865-1929), George Luks (1867-1933), William Glackens (1870-1938), John Sloan (1871-1951), e Everett Shinn (1876-1953), alguns dos quais se conheceram estudando juntos sob a orientação do renomado pintor realista Thomas Anshutz na Academia Pensilvania de Belas Artes. Outros deles se reuniam na redação do jornal da Filadélfia, onde trabalharam como ilustradores.


Estudo para "Nighthawks"
Os artistas da Escola de Ashcan não emitiram manifestos, até porque não eram um grupo unificado com idênticas intenções e objetivos. Alguns eram politizados, e outros não. O que os unia era o desejo de mostrar a verdade sobre o viver na cidade e sobre a vida moderna. Robert Henri, um dos líderes principais deste movimento, queria que a arte fosse semelhante ao jornalismo. Ele queria pintar e ser “tão real quanto a lama, como o cocô dos cavalos congelados pela neve no inverno”. Ele dizia a seus amigos e alunos que deviam se inspirar no espírito de seu poeta favorito Walt Whitman, e "não ter medo de ofender o gosto contemporâneo". E acrescentava que a vida da classe trabalhadora e da classe média forneciam temas muito mais interessantes para pintar do que a vida e os salões da burguesia.

Hopper, portanto, amadureceu como pintor em meio a essas ideias. Durante seus anos como estudante, ele pintou dezenas de nus, estudos de natureza-morta, paisagens e retratos, incluindo seus autorretratos. 


"Sombras da noite", gravura de Edward Hopper
Em 1905, conseguiu um emprego temporário numa agência de publicidade, onde criou desenhos para capas de revistas. Depois dessa experiência, Hopper passou a detestar ilustração. Mesmo assim dependia disso para se manter.

Hopper fez três viagens à Europa, concentrando-se em Paris, onde ele queria aprofundar seus estudos de pintura, assim como o fizeram dezenas de outros seus conterrâneos antes e depois dele. Mas lá estudava sozinho e não parecia muito influenciado pelas novidades da arte daquele período. Mais tarde, ele disse que não se lembrava de ter ouvido falar de Picasso nenhuma vez. Mas tinha ficado muito impressionado com Rembrandt, principalmente pelo quadro “Ronda noturna” que ele disse que foi "a coisa mais maravilhosa que já tinha visto”.

Após esse contato com as telas de Rembrandt, Hopper começou a pintar cenas urbanas usando uma paleta com tons escuros. Ainda experimentou uma paleta clara como as dos impressionistas, mas voltou às cores escuras, com as quais ele se sentia mais confortável. Hopper passou a maior parte de seu tempo em Paris desenhando ruas e cenas nos cafés. Também ia ao teatro. Diferentemente de muitos de seus contemporâneos que imitavam as abstrações cubistas, ele escolheu continuar na linha da arte realista.


"Soir bleu", Edward Hopper, óleo sobre tela
Depois de retornar de sua última viagem à Europa, alugou um pequeno studio em Nova York, e começou a trabalhar para definir seu próprio estilo. Mesmo contra a vontade, voltou -se para a ilustração. Sendo free-lancer, foi obrigado a correr atrás de trabalho, batendo nas portas de revistas e agências. Nesse período, não conseguia pintar. Seu amigo Walter Tittle, ilustrador como ele, descreveu o estado emocional deprimido de Hopper: “Sofrendo... com longos períodos de indomável inércia, sentado por dias seguidos diante de seu cavalete em uma infelicidade desamparada, sem conseguir levantar uma mão para quebrar o ‘feitiço’."


Estudo para "No escritório, à noite"
Em 1912, ele resolveu ir para Massachusetts buscar alguma inspiração e fez suas primeiras pinturas ao ar livre nos Estados Unidos. Em 1913, quando da famosa exposição de arte conhecida como Armory Show, Hopper conseguiu vender sua primeira pintura, “Vela”. Tinha 31 anos. Logo se animou e pensou que iria conseguir vender mais obras. Mas se passaram muitos anos até que fosse reconhecido. 

No ano seguinte, recebeu uma encomenda para fazer ilustrações para alguns cartazes de filmes e de publicidade para uma empresa de cinema. Mesmo que ele não gostasse desse trabalho, Hopper adorava teatro e cinema, que acabaram sendo também temas para suas pinturas e influenciaram a composição de seus quadros. Em 1915, voltou-se para a gravura e produziu cerca de 70 obras. Quando podia, fazia também aquarelas ao ar livre.


Edward Hopper
Embora estes tenham sido anos frustrantes, ele não deixa de ter algum reconhecimento. Em 1918, Hopper foi agraciado com o prêmio Prize Board por seu cartaz sobre a guerra, "Esmagar Huno". Além disso, ele expôs obras suas em três ocasiões: em 1917, na Sociedade de Artistas Independentes; em janeiro de 1920, numa individual no Whitney Studio Club (precursor do atual Museu Whitney); e em 1922, novamente no Whitney. Em 1923, recebeu dois prêmios por suas gravuras : o Prêmio Logan da Chicago Society of Etchers, e o Prêmio WA Bryan.

Em 1923, conheceu sua futura esposa Josephine Nivison, artista e também ex-aluna de Robert Henri. Casaram-se um ano depois.

O artista voltou-se mais uma vez para pintar e desenhar a arquitetura norte-americana, tanto urbana quanto rural. Aos quarenta e um anos, Hopper já vivia de seu trabalho de pintura. 

Continuava um homem recluso, de poucas palavras, taciturno, um tanto melancólico. Vivia uma vida simples, longe dos eventos sociais que já lhe davam fama. Passou pela década de 1930 produzindo muito. Durante a década de 1940, passou um período de relativa inatividade, mas foi quando pintou um de seus quadros mais famosos, o "Nighthawks" acima. Passou por vários problemas de saúde. Na década de 1950 e início de 1960, criou várias de suas obras mais importantes, entre elas “Primeira fila da orquestra” (1951); “Manhã de sol” ; “Hotel by a Railroad”, 1952; “Intervalo”, em 1963.


"Autòmato", 1927, óleo s/ tela
Sua vida foi relativamente calma e ordenada. Não passou por mudanças bruscas e mesmo que tenha passado curtos períodos na Europa, ele passou mais de 50 anos, até sua morte, trabalhando em seu ateliê da rua Washington Square North, no último andar do prédio, em Manhattan, Nova York. Teve uma vida modesta ao lado de sua esposa, Jo, também pintora.

Sua pintura desde o início reflete seu interesse na tradição dos mestres holandeses, especialmente Rembrandt e Franz Hals e, dos franceses, seu fascínio por Édouard Manet. Paisagista e interessado em pintar casas e prédios, Hopper se interessou muito também pela imagem da mulher. Em muitos de seus quadros, mulheres solitárias, muitas vezes nuas, parecem representar a solidão humana diante de um mundo que crescia muito e que parecia engolir o sujeito. Sua mulher também foi modelo para suas pinturas muitas vezes.

Hopper morreu em sua casa, em Nova York em 15 de maio de 1967. Sua esposa, que morreu dez meses depois, doou sua coleção com mais de três mil obras para o Museu Whitney de Arte Americana.

Edward Hopper manteve-se fiel a seu estilo figurativo e realista, como o fizeram tantos outros pintores, norte-americanos ou não, entre eles Lucian Freud. Ele se manteve coerente a uma máxima de Wolgang von Goethe, a qual citava e concordava: 

"O início e o fim de qualquer atividade artística é a reprodução do mundo à minha volta através do mundo dentro de mim..."


"Moça costurando", Edward Hopper, 1921, óleo sobre tela

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Desenho Pictórico e Linear

Detalhe do quadro "Moça com brinco de pérola", Jan Vermeer

Na quarta-feira, dia 21 de agosto, estive na PUC de São Paulo para fazer uma palestra para os alunos do professor Luís Carlos Petry, do curso de Tecnologia e Jogos Digitais. Eles já vêm estudando os mestres, neste semestre, especialmente Vermeer e Rembrandt. Assistiram aos filmes “Moça com brinco de pérolas” de Peter Webber e “A ronda noturna” de Peter Greenway. Depois do filme sobre Vermeer, eles tiveram uma palestra sobre esse filme com a pesquisadora Cristina Sisigan, da Universidade do Porto, Portugal. Na sequência, a minha palestra sobre “Desenho Pictórico e Linear” e minhas experiências de estudo da pintura de Rembrandt e Vermeer. Abaixo, um resumo do que falei para eles.


Detalhe de pintura do Paleolítico superior
Para começar, é sempre bom lembrar da história. Há mais de 35 mil anos antes de Cristo, o ser humano começou a fazer seus primeiros desenhos nas paredes das cavernas onde viviam. Esses artistas da pré-história que decoraram abrigos e cavernas exerceram seu talento no Paleolítico superior sobre um período em torno de 25 mil anos: do Auriaciano (ou Aurignaciano - 35 mil a.C.) ao Madaleniano (em torno de 13 mil anos a.C). Desde esses primeiros desenhos e pinturas, nós temos buscado ampliar nossos conhecimentos sobre o mundo em que vivemos, e desenhamos e pintamos o que vemos desse mundo.


O ser humano inventou a linha para traçar seus desenhos, uma abstração que não existe na natureza. Mas ao traçar desenhos, seja no papel seja em outro meio qualquer, o ser humano está descrevendo também, através do desenho, o mundo que o rodeia.


Escultura de Michelangelo: David
Mas vamos dar um salto grande da pré-história ao período do Renascimento italiano, por volta dos séc. XIV e XVI. Nessa época, se desenvolveu a arte de observação da natureza, mas que pretendia ir além da desordem das aparências para encontrar a ordem subjacente no mundo. O modelo era a antiguidade clássica da Grécia e de Roma e seus ideais de Beleza e Perfeição. Naqueles longínquos tempos, a beleza do corpo humano era um ideal a ser buscado. Os atletas se desenvolviam na cultura física, os filósofos buscavam interpretar o mundo e compreender a condição humana.


No Renascimento, o lugar do ser humano no mundo voltou a ser valorizado. Não se pintava a realidade como ela era, mas buscando nela a Beleza e a Perfeição. Os modelos humanos eram idealizados, as composições dos quadros deviam ser claras, limpas, buscando a Simetria. Tudo isso dava à arte produzida nesse período uma qualidade algo estática. As figuras, pintadas ou desenhadas, estavam encerradas entre fronteiras e obedeciam a regras rígidas ditadas pela intelligentzia da época, em geral os doutores da Igreja.

"Nascimento de Vênus", de Sandro Botticelli, cerca de 1483
Foi quando Sandro Botticelli, um pintor italiano, pintou o “Nascimento de Vênus”, por volta de 1483. Como se pode ver neste quadro, as figuras se encontram recortadas em relação ao fundo. Os objetos estão separados entre si. Todos se voltam para o centro, onde se encontra a deusa grega Vênus e seu corpo nu, perfeitamente imaginado. Uma prova de que novamente, mesmo em meio à moral da época, o corpo humano voltava a ocupar lugar de destaque no mundo das ideias, voltava a ter grande valor.



Neste detalhe ao lado, podemos ver as linhas traçadas por Botticelli, onde ele encerrou sua Vênus. A  pintura, em sfumato, é plana. Sombras profundas, não há. A luminosidade parece deixar tudo plano, tudo parte de uma ordem que não pode ser mexida.

Mas em seguida… as sombras desceram de vez sobre a terra, para susto de alguns. Mas para os artistas, estas sombras trouxeram novas possibilidades de penetrar ainda mais fundo na realidade do mundo. No final do século XVI, com o surgimento disso que ficou depois conhecida como Arte Barroca, o artista desejou mergulhar na multiplicidade das coisas, nos fluxos da vida, no movimento.

Suas composições passaram a ser mais dinâmicas, abertas. O movimento se fazia presente nas artes, que agora mostravam uma tendência a romper com todas as fronteiras, mostrando uma variedade de formas de expressão que eram, inclusive, adaptáveis às culturas locais. O Barroco, nascido na Itália, se espalhou pela Europa e pelo mundo. Aqui no Brasil, as montanhas de Minas Gerais inspiraram o nosso maior artista barroco, o Aleijadinho.


"Amor vitorioso", Caravaggio, 1601
Caravaggio, na Itália, mergulhou profundamente nessa nova estética. Usou as sombras mais densas a favor da luz, em seus quadros. Montava suas composições em ambientes com pouca luz e era dali que fazia com que emergissem as figuras.

Até o começo do período do Barroco, nos fins do século XVI, o desenho e a pintura ocidentais seguiam o estilo linear, onde predominava o uso de linhas - mesmo na pintura - e as composições planas, luminosas. Mesmo Leonardo da Vinci que em um tratado sobre a pintura recomendava que o artista não respeitasse os limites da linha, ele mesmo pintava desta forma. Michelangelo, o grande, inquieto e pródigo artista do Renascimento também ele respeitava as linhas. O mesmo aconteceu com Sandro Botticelli, ou com Rafael di Sanzio ou com outros grandes.

Mas Ticiano… não! A Escola Veneziana, à qual ele pertencia, era a escola da pintura cheia de cor, que ousou ir mais longe do que a Escola Florentina, que praticava um desenho e uma pintura mais lineares. Ticiano foi um dos pioneiros do estilo pictórico, rompendo os limites da linha, abrindo mão de descrever os detalhes do que via em prol do que era essencial aos olhos. A importância de Ticiano na história da arte deve-se ao fato de que ele deixou para seus contemporâneos e para a posteridade uma concepção de pintura verdadeiramente revolucionária, pois foi ele quem libertou a pintura dos limites da linha e da forma, dando todo o poder às cores.

"Madalena", de Ticiano - ainda pode ser vista no CCBB de São Paulo
Linear e Pictórico


Em seu livro “Conceitos fundamentais de história da arte”, Heinrich Wölfflin explica de forma bastante didática essas duas concepções da arte, que pode estar presente no desenho, na pintura, na escultura, na arquitetura.

Em resumo, são na verdade duas visões de mundo: uma, em que o mundo se encontra encerrado entre linhas limítrofes e com regras mais claras; a segunda, uma visão de que tudo no mundo se relaciona e há que se buscar ver a realidade como resultado de um conjunto de relações e que dá unidade a tudo.

O estilo Linear vê o mundo em linhas. O sentido do objeto é buscado primeiro no contorno dele e os olhos são conduzidos através dos limites da forma. Limites firmes, ao qual tudo se subordina.


Exemplos de pintura e desenho linear:

Estilo Pictórico


O estilo Pictórico, por seu lado, confere à forma um caráter indeterminado. Busca o movimento que ULTRAPASSA o conjunto dos objetos. As formas isoladas têm pouca importância, pois vale a Unidade do todo, o conjunto do quadro. O pictórico emancipa as massas do degradée do chiaro-oscuro e do sfumato, um jeito de pintar que alisa as tintas e cria uma sensação de profundidade através da passagem suave das sombras para a luz, ou vice-versa. No estilo Pictórico, o visível parece REAL aos olhos: o pintor reproduz a aparência do objeto / da Realidade. Mas isso não significa superficialidade, já que a aparência é o resultado de um jogo de forças distribuído em camadas em diversos níveis de profundidade. O artista pictórico vê o mundo como massas, não como linhas.



Rembrandt van Rijn (15/071606 - 4/10/1669)
Este artista holandês fez um esforço para subtrair as figuras à zona tátil e eliminar o que sobra. Para ele, os contornos não são importantes. Cada detalhe está tão ligado ao contexto maior que dá a impressão de MOVIMENTO contínuo. Rembrandt usava grossas camadas de tinta para mostrar o movimento das massas em direção à luz. Para ele quanto mais luz, mais densidade de tintas. Na medida em que ele amadurecia em idade e em produção artística, mais se tornava um exemplo de que o progresso na concepção pictórica pode caminhar paralelamente em direção a uma crescente simplicidade.

O estilo pictórico é o despertar para um novo sentido da beleza, diz Wölfflin. Quando Rembrandt pinta uma figura sobre um fundo escuro, a luminosidade do corpo parece emanar naturalmente do escuro do espaço. Franz Hals (1580 ou 1585 — 10/8/1666) não queria reproduzir mais do que o olhar apreende do conjunto. Jan Vermeer (31/10/1632 - 15/12/1675) em seu trabalho lento e meticuloso de pintor, busca expressar a fragilidade dos limites entre as formas, as suaves e profundas distinções entre a luz e a sombra.


O estilo pictórico mostra a realidade como ela é apreendida pelo olhar do artista. É a arte do “parece ser”. A pintura, em seu conjunto, tem movimento, ritmo, amplitude além da forma. O artista renuncia à ideia anterior sobre a cor local. As cores servem ao movimento. Elas são um novo ideal de beleza. A sombra já não é dominada pelo preto, mas por tons mais intensos. Luz e sombra são parte da mesma coisa.


Diego Velázquez ( 31/10/1632-15/12/1675): Retrato de Juan Pareja, 1650
À distância, tudo está completo. Próximo, só podemos enxergar as pinceladas do artista. As raízes do Impressionismo do século XIX na França já tinham sido lançadas pelos artistas holandeses. Eles já haviam descoberto o caráter pictórico da Natureza: a beleza das roupas rotas de um mendigo, de uma casa em ruínas, das águas inquietas de praias e cachoeiras, das nuvens em perene autocriação, das multidões se movimentando nas feiras e praças…


As ideias de Heinrich Wölfflin se refletem também nas do pintor realista norte-americano David Leffel, que complementa: o pintor não pinta “coisas”, pinta a luz nas coisas. Ele não vê seu modelo como um conjunto de detalhes separados, mas em termos de movimentos de massa. Não pensa em características especificas como “boca”, “nariz”, ou “olhos”; mas vê massas movendo-se para dentro e para fora. Vê movimento entre a luz e a sombra, que vai dando materialidade ao modelo. A realidade é a referência permanente do artista. Ele não pinta o que não está lá, ou o que ele não vê, mas aquilo que para ele é significativo da sua observação do mundo. Através do seu olhar, ele mostra como “pensa” o mundo, qual é sua atitude, sua capacidade de ver e de sintetizar o que vê


Estudo sobre pintura de Rembrandt feita com carvão
e lápis-carvão, em 2011
Para finalizar a conversa com os estudantes da PUC-SP, falei da minha própria experiência no estudo destes mestres, especialmente Rembrandt e Vermeer. Dois artistas holandeses que foram contemporâneos, mas que não se conheceram, e eram tão diferentes entre si. Um, voltado para o mundo externo, que adorava o teatro e produzia intensamente. O outro, Vermeer, mais lento, mais quieto, que usava pinceis pequenos para quadros pequenos que pintava durante meses de trabalho. Chegou a pintar pouco mais de 40 pinturas em toda sua vida, enquanto Rembrandt deixou centenas de telas que hoje estão espalhadas por diversos museus do mundo.

Estudei e pintei algumas pinturas de Rembrandt no Atelier de Arte Realista de Maurício Takiguthi, onde ainda estudo aqui em São Paulo. Para compreender como ele, Rembrandt, movimentava suas massas, trabalhava a incidência da luz naquilo que tocava. Mostrei aos alunos do professor Petry dois estudos meus: um em carvão e o outro em pastel.

Mas também fiz uma cópia do “Moça com brinco de Pérola”, de Jan Vermeer. Trabalhei nesse pequeno quadro durante umas 45 horas, no Atelier Vermeer em Paris. Somente para captar um pouco da concepção dos movimentos das cores que definem a boca e o nariz da “Moça”, devo ter trabalhado dois dias inteiros, num total de umas 18 horas.


Estudo meu em óleo sobre tela sobre o original de
Vermeer "Moça com brinco de pérola" - Paris 2011
No momento, a pintura realista retoma um fôlego muito importante em diversos lugares do mundo. Só para citar alguns, do meu conhecimento e experiência: Rússia, França, Espanha e Estados Unidos. Nos EUA, onde ainda se pratica a pintura acadêmica e começa a criar grande força o Hiperrealismo, a pintura realista conta hoje com os mais importantes mestres, o que não deixa de ser curioso, uma vez que a Guerra Fria produziu lá o Expressionismo Abstrato em contraposição ao Realismo. Muitos destes velhos artistas norte-americanos, que ainda estão vivos e produzindo muito, passaram por toda aquela fase de perseguição do macarthismo que identificava pintura realista com comunismo.


A pintura realista e pictórica toma como referência a realidade, que é inesgotável. Enquanto nos fixamos nas formas das coisas do mundo, vamos penetrando cada vez mais em camadas de conhecimento que nos surpreendem a cada momento. Após cada coisa apreendida, cada conquista feita, algo surge lá como novidade, mostrando o fluxo das massas de cores, os pequenos toques que configuram um olho, por exemplo, num jogo de valores que vão da luz às sombras mais densas.

O prazer de enxergar a possibilidade de romper os limites, de ir além das formas, de ultrapassar as bordas do mundo, de buscar o que há mais lá dentro, no fundo, escondido dos olhos dos apressados, é o que me move.


Para romper limites, é preciso coragem! Inclusive para nadar contra a maré do mercado de arte atual e dos pensadores da arte dita "contemporânea".

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Bibliografia:
- Wölfflin, Heinrich. Conceitos Fundamentais de História da Arte. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2006
- Bazin, German. Barroco e Rococó. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2010