quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Preparando a primavera

Les Nymphéas, de Claude Monet, 1920-1926, óleo sobre tela, 602x219cm, Museu de l'Orangerie, Paris
As torrentes e os rios degelam de repente
Primavera em fulgor ressurge sem tardança!
No campo aflora em tudo alegria e esperança
enquanto o velho inverno, extênue e decadente
às ásperas montanhas se recolhe e lança
com os estertores finais, nos ares regelados
granizo em profusão que toda a terra envolve.
Cobrem-se verdejantes e distantes prados
com branca e pura neve e o sol logo a dissolve
tudo renasce e vibra com força e fantasia
Natureza rebenta em cores e poesia
E como nesse campo existem poucas flores
Enfeita-se com vestes humanas multicores.

Contempla desta altura a toda imensidade
e observa ao longe em direção à cidade
do vão da porta escura, em grande confusão
surge uma colorida e ávida multidão
Todos querem o calor do sol com ansiedade...
(...)
(O Fausto, de Goethe)

E eu vou, por aqui, preparando-me para uma primavera interrompida por um outono, que virá em poucos dias... Interrompendo a estação das flores, vou subindo para o norte hemisférico em busca das cores. Um frio um tanto a mais, mas o aquecimento interno que eu preciso. Cá embaixo, ao sul do equador, as flores estão chegando. Lá em cima, ao norte, cores me apontam novos rumos. Moças com brincos de pérola me indicam um mergulho em tubos de tinta e em pinceis de marta e mangouste que atravessarão as minhas mãos. Vou me banhar com aquelas cores seculares e profundas. Eu volto.

Monet pintando à beira da floresta, tela de John Singer Sargent, pintor realista, 1885

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Hokusai, o “louco do desenho”

No último dia 26 de agosto de 2011 aconteceu em Berlim, Alemanha, a abertura oficial da exposição de 440 obras do mestre da xilogravura japonesa, Hatsushika Hokusai (1760-1849). A mostra terá a duração de dez semanas, indo até 24 de outubro, no Museu Martin Gropius Bau de Berlim. Muitos dos trabalhos lá expostos saíram do Japão pela primeira vez e, organizada cronologicamente, mostra todas as fases da carreira do artista.


Vista do monte Fuji com o dragão
Hatsushika Hokusai inspirou artistas como Van Gogh, Manet e Monet. Gustav Klimt, Degas e Gauguin colecionavam obras do mestre japonês, que morreu pobre, quase aos 90 anos, em sua cidade natal Edo – hoje Tóquio.

Hokusai nasceu na zona rural, uma região chamada de Katsushika, perto da hoje cidade de Tóquio, entre outubro e novembro de 1760. Seus pais não são conhecidos. Ele foi adotado por uma família de artesãos quando tinha entre 3 ou 4 anos de idade. Seu pai adotivo, Nakajima, era um fabricante de espelhos para a corte do Shogun. Desde cedo, Hokusai demonstrou facilidade para o desenho e a pintura.

Com a idade de 13 anos, torna-se aluno de um atelier de xilogravura e em 1778 começa a fazer parte do atelier do mestre Katsukawa Shunsho (1726-1792) que era, entre outras coisas, especialista em retratos. Hokusai começa nesse atelier seu trabalho de desenhista e de ilustrador de estampas. Após a morte do mestre, ele deixa o atelier.

Mas ele vivia em extrema pobreza. Mesmo assim, se dedicou a estudar as técnicas das escolas mais conhecidas da sua época, como a de Sumiyoshi Naiki, por exemplo. Também conheceu a arte praticada no Ocidente através de um artista japonês (Shiba Kokan) que costumava observar os pintores holandeses. Hokusai descobre a perspectiva.


Pintura de cerca de 1830
Por volta de 1794 ele se torna aluno de uma escola clássica japonesa, da tradição Rimpa. Faz muitas ilustrações e produz um grande número de desenhos e de estampas. Nessa época ele adota pela primeira vez o nome de Hokusai e ele mesmo se autodenomina, a partir de 1800, “O louco do desenho”. Em 1804 ele pinta, no templo de Edo (hoje Tóquio), com tinta nankin, uma tela gigante de 240 metros quadrados que para ser vista precisava ser içada até os tetos altos do templo.

Em 1812, Hokusai começa a percorrer seu país, fazendo croquis por onde passava, observando e anotando tudo em seus cadernos de desenho. Foram tantos os desenhos dessa fase que, quando mais tarde foram publicados em álbuns, o conjunto todo perfez 12 volumes.

Com 60 anos, Hokusai passa a se chamar Litsu, porque, dizia ele, estava entrando em nova fase da vida. Nesse período produziu muitas ilustrações de livros. A partir dos 60 anos, começou a desenhar mais paisagens, onde começou a usar a cor “azul da Prússia” que tanto inspirou o pintor holandês Vincent Van Gogh.

Ele teve, ao longo da vida, 30 pseudônimos – começou a usar Hokusai mais vezes a partir dos 70 anos de idade, fase que produziu as obras mais conhecidas. Desenvolvia sempre novos estilos e criou novas obras até o fim de sua vida, numa idade em que a maior parte dos artistas param de produzir.

Por volta de 1836, depois de uma longa temporada ausente de Edo, Hokusai volta à sua cidade. Mas a capital japonesa vivia um período de muita penúria, conhecido como o período da “Grande Fome”. Hokusai sobrevive graças a seus desenhos, que ele trocava por comida. Em 1839, um incêndio destruiu seu atelier, queimando o trabalho acumulado de anos!


O sonho da mulher do pescador - Hokusai
Os dez anos que se seguiram foram de produção mais lenta, mas Hokusai se esforçava por fazer pelo menos um desenho por dia, coisa que ele fez até o último dia de vida. Ele morreu no dia 10 de maio de 1849, deixando uma obra com cerca de 30 mil desenhos e mais de 500 livros ilustrados. Seu corpo foi cremado e suas cinzas depositadas dentro do templo que fica na região onde ele passou a maior parte de sua vida.

Sobre a caixa que contem suas cinzas, há um epitáfio que ele mesmo escreveu: “Oh! Liberdade, Liberdade bela! Quando será que iremos aos campos do verão para deixar lá nossos corpos perecíveis?”

Conta-se que em seu leito de morte, Hokusai teria dito: “Se eu tivesse mais cinco anos de vida, teria sido um grande artista!”

Para mim, Hokusai representa o artista persistente, aquele resistente solitário, o que continua praticando sua arte sem jamais se entregar, mesmo que para isso faça algum sacrifício pessoal. Representa também aquele artista que está aberto ao aprendizado em qualquer fase de sua vida, sempre buscando descobrir novas formas de criar, sempre buscando se superar e enxergar formas novas no real, que não se esgota!


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A grande onda fora da costa de Kanagawa, cerca de 1831, Hokusai

Vista do Monte Fuji em vermelho, cerca de 1830

domingo, 11 de setembro de 2011

Um outro tempo

Estudo de fluxo de luz, pastel em tons de cinza
Viver numa cidade grande como São Paulo, exige que sejamos capazes de superar limites de todos os tipos. O tempo turbilhona enquanto a produtividade alucinante acontece. O capitalismo exige produção, eficiência, aceleração. Sobre o suor de quem trabalha, tempo é dinheiro... Nessa vida doida, onde precisamos dar conta de tudo, nem atinamos para coisas que, em outro ritmo de vida, tocam, inspiram, elevam.


Mas o tempo é outro, outro o ritmo e outra a forma de olhar para o mundo, quando se cria. Uma maneira mais quieta, mais meditativa, mais reflexiva. Para a arte o tempo é outro e é preciso se afinar com esse tempo. É a única forma de perceber a sutileza das coisas do mundo. E a única para criar.




Como diz a música de Chico Buarque, o TEMPO E ARTISTA:


"Imagino o artista num anfiteatro onde o tempo é a grande estrela
Vejo o tempo obrar a sua arte, tendo o mesmo artista como tela
Modelando o artista ao seu feitio, o tempo, com seu lápis impreciso
Põe-lhe rugas ao redor da boca como contrapesos de um sorriso


Já vestindo a pele do artista, o tempo arrebata-lhe a garganta
O velho cantor subindo ao palco apenas abre a voz, e o tempo canta
Dança o tempo sem cessar, montando o dorso do exausto bailarino


Trêmulo, o ator recita um drama que ainda está por ser escrito
No anfiteatro, sob o céu de estrelas um concerto eu imagino
Onde, num relance, o tempo alcance a glória e o artista, o infinito."

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

As ideias e os artistas


Detalhe da pintura "Marat Assassinado", de David, 1793
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A força das ideias vai gerando a história, movimentando os povos, mudando os sistemas. Nas artes, vai alinhando ou desalinhando artistas. E ninguém fica incólume ao que acontece em seu próprio tempo. Assim foi, assim é. Mas essas ideias não surgem do nada; não surgem da mente de algum ser genial. Surgem dessa dialética entre a realidade concreta e a observação que o ser humano vai fazendo dela, enquanto constrói seu caminho no mundo.

Estou lendo o livro de Walter Friedlaender intitulado “De David a Delacroix” que faz um recorte  na história da arte francesa, onde podemos observar o quanto ideias e arte estão em consonância. Esse livro foi publicado pela primeira vez em 1930, na Alemanha, e era destinado ao uso em escolas e universidades. Aborda principalmente dois grandes pintores franceses – David e Delacroix – mas os localiza num período histórico dos mais importantes da história.

A França do século XVII era o país mais poderoso da Europa e o que possuía a maior população. German Bazin (em outro livro que acabei de ler, o “Barroco e Rococó”) mostra que a França era o país que assimilou “com maior êxito o espírito do Renascimento italiano”, que trouxera muitas novidades em todos os campos da vida humana, assim como as ideias de uma classe em ascensão, a burguesia. No século XVIII – onde vamos nos concentrar aqui – ideias contraditórias disputavam espaço numa sociedade onde “financistas conviviam com as velhas noblesse d’épée e noblesse de robe”, ou seja, burgueses e aristocratas disputando espaços políticos e econômicos, além de filosóficos, dentro de um sistema em evolução.


"Marat assassinado", de Jacques Louis David, 1793
Essas ideias que competiam entre si, movimentavam a história. Uns agarrados ferrenhamente ao passado; outros, onde os mais pobres foram incluídos, carregavam novas bandeiras que balançavam ao sopro dos ventos de um mundo novo.

A Revolução Francesa (um período que vai de 1789 até o golpe de estado conhecido como o 18º Brumário de Luís Bonaparte, 1799) marcou o fim do Ancien Régime e dos privilégios da realeza e do clero. Até então o rei era o centro de toda a vida política e social na França. Os impostos cobrados ao povo eram extorsivos. A imensa maioria vivia na miséria, enquanto os membros da corte e do clero se refestelavam nos palácios. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, proclamou a igualdade dos direitos de todos diante da lei, além de defender direitos básicos dos cidadãos. Essa Revolução de 1789 marcou o início da era moderna e influenciou todos os recantos do mundo.

Dentro de tudo isso, correntes de pensamento influenciavam também a Pintura. Os ventos do Renascimento haviam trazido o pensamento racional, que predominou durante todo o século XVII e chegava ao século XVIII trazendo as ideias de influentes pensadores franceses, como Descartes e Corneille.

Mas uma corrente de pensamento “irracional”, mesmo que inconstante e com menos influência, “se manifesta de forma mais exuberante na primeira metade do século XVIII”, diz Walter Friedlaender. Essas duas formas de pensamento, conflitantes entre si, podem ser encontradas, segundo ele, “na complexa estrutura da pintura francesa do século XIX”. E posteriormente.

Os pastores da Arcadia, de Nicolas Poussin, 1638-1640

O pensamento racional dentro da obra de arte tinha, segundo o autor alemão, “um viés moralizante”. Estava preocupado com o conteúdo ético e didático da obra, muito influenciado pela visão de Nicolas Poussin (1594-1665), um pintor francês que se mudou para Roma, onde voltou seus estudos técnicos e teóricos para o classicismo de Rafael e dos pintores venezianos. Poussin, em seu metodismo e racionalismo, detestava a pintura de Caravaggio! Seu desejo era “reviver a antiguidade”, como afirma German Bazin. A pintura de Poussin que pode ser considerada um manifesto do que ele pensava é o “Os pastores da Arcádia”, pintado entre 1638-40.

As ideias estéticas predominantes em todo esse período pré-revolucionário vinham sendo construídas com base na razão e na moralidade, o bon sens. Eram ideias também de Pierre Corneille, o grande autor de peças como El Cid e Horácio, que se baseava também no classicismo. Corneille nasceu em 1606, numa família da nascente burguesia. Também se junta a esse campo do pensamento, o filósofo francês René Descartes, que morreu em 1650. Além de filósofo, o grande teórico racionalista era físico e matemático. Foi ele que desenvolveu o pensamento que ficou conhecido como o método cartesiano.

Mas, convivendo com essas ideias, havia uma corrente que se opunha àquela visão de mundo racional. Para ela mais valia o gosto pessoal do que a razão. Esse gosto podia ser traduzido para “fineza”, “delicadeza” e uma visão de mundo mais subjetiva. “Coeur e esprit eram as palavras de ordem dos salões literários que existiam por volta de 1720”, diz Friedlaender. Surgia “uma mentalidade artística, livre do peso da tradição acadêmica e moral”.

Mas tudo combinava com a alma francesa.


"A leitora", de Jean Honoré Fragonard, 1770-72
O refinamento e a elegância dos salões e da Corte de Paris ajudaram a desenvolver uma forma de pintura decorativa, de pintores como Watteau, Lancret, Pater, De Troy e outros. Mas nessas altas rodas aristocráticas, representando a burguesia, estavam sempre presentes os financistas. Os mesmos que mandam no mundo capitalista em crise de hoje.

Nas primeiras décadas do século XVIII houve um grande desenvolvimento das artes na França e muitos colecionavam pinturas. Era o tempo de Madame de Pompadour, amante do rei Luís XV e, em seguida, o tempo da rainha Maria Antonieta, a rainha fútil, que adorava moda e que foi guilhotinada pela Revolução Francesa.

Esse conflito de ideias que unia, de um lado, “a melodia jovial e espontânea” do povo francês e, do outro, a “predominante e persistente nota racional” fez com que se desenvolvesse a arte francesa. Aparentemente, diz Friedlaender, no meio dos artistas as discussões pareciam se resumir a questões técnicas e visuais: “desenho versus cor, placidez versus movimento, ação concentrada em poucas figuras versus dispersão das figuras”. Mas no fundo representavam a verdadeira luta de ideias entre disciplina e moral, de um lado, e, do outro, um certo amoralismo, rejeição a normas e irracionalismo subjetivo. Que evoluíram para as ideias defendidas mais tarde pelos Românticos.

No topo disso se desenvolveu a famosa inimizade entre dois grandes pintores franceses: Jean Auguste-Dominique Ingres (1780-1867) e Eugène Delacroix  (1798-1863). Ingres era neoclássico. Delacroix era romântico. Delacroix era colorista, Ingres encarnava a pintura linear e clássica. Conta-se que certa vez Ingres encontrou Delacroix em um salão e teria dito: “Tem cheiro de enxofre”…

Pois Friedlaender diz que a Pintura Linear no século XVIII encarnava “algo pleno de significado moral”. A pintura romântica, colorista era uma verdadeira “heresia” e até mesmo considerada uma “falha moral”.  Ingres era muito rígido em suas ideias. Delacroix também.

Era esse o nível dos debates ideológicos dentro da Pintura francesa do século pré e pós-revolucionário.
Mas bem antes deles, esses pensamentos se deixavam impregnar uns pelos outros. Friedlaender esclarece que o “mais subjetivo artista francês, tanto em seus aspectos técnicos, como de composição, deixou-se parcialmente subordinar pela razão e mesmo pela Academia”.

A visão mais subjetiva refletia-se no estilo mais livre nas artes, especialmente a partir dos primórdios do século XVIII. Artistas contrários ao pensamento racional dominante reagiam com uma pintura mais “colorista” e com pinturas de gênero. Mas havia muito de superficial na pintura do período que vai de Jean Antoine Watteau (1684-1721) – um dos criadores do estilo Rococó – a François Boucher (1703-1770).  No entanto, foi Jean-Honoré Fragonard (1732-1806) quem melhor representou a arte decorativa desse período.

Após 50 anos de predomínio do estilo Rococó, onde reinava um certo amoralismo na vida social, o pensamento racionalista retorna em meados do século XVIII com toda sua força, no movimento neoclássico. A ideia era resgatar a “norma dos antigos”, ressalta Friedlaender.

No entanto, o período de domínio da irracionalidade Rococó tinha deixado sua marca e o Neoclassicismo surgia considerando a Antiguidade de uma forma mais relativizada. Já não se buscavam as soluções formais do período clássico (Grécia e Roma), mas sim seus valores éticos. “O heróico, agora, se associava ao virtuoso”, enfatiza o autor alemão. O herói deveria agora possuir, além de força, “todas as virtudes humanas”.

E esses valores deveriam ser seguidos também pelos reis. O que Friedlaender chama de “classicismo ético” passou a ter um caráter “eminentemente político” que influenciou os debates da época e preparou o caminho da Revolução.
"O julgamento dos Horácios", de Jacques Louis David, 1784

Em meio a essas ideias, surge Jacques Louis David (1748-1825), como o representante da pintura clássica por excelência. David atinge seu auge com a pintura “O Juramento dos Horácios” pintado em 1784. Ele seguia a regra – neopoussinista, no dizer de Freadlaender – de focar sua pintura no essencial: a Ação, retirando qualquer elemento que distraísse a atenção da cena principal do quadro.

Mas David nunca teve uma atitude anticolorista, pois admirava demais o pintor flamengo Rubens. E também não se rendeu ao pensamento clássico. Teria dito: “A arte antiga não me seduzirá: falta-lhe ação, falta-lhe movimento”.  Estava apegado teoricamente ao passado, mas era homem do seu próprio tempo.

Envolvido totalmente com a Revolução Francesa de 1789, David pôs seu talento de pintor a serviço das causas revolucionárias, assim como foi fiel ao período napoleônico, declaradamente favorável a Napoleão Bonaparte. Mas na Revolução de 1789 alinhou-se aos jacobinos, a ala esquerda. Em 1793 apresentou o depois famoso quadro “Marat assassinado”, onde denunciava o assassinato do revolucionário e seu amigo Jean-Paul Marat.

"A barca de Dante", de Delacroix, 1822
Eugène Delacroix (1798-1863), que já nasceu numa França renovada pela Revolução, tomou outro caminho pictórico, mas também era plugado a seu tempo, até mesmo pelo romantismo que o inspirava.

Contemporâneo de Jean Auguste-Dominique Ingres, um abismo separava suas telas da deste grande pintor acadêmico. Seguidor da vertente artística aberta por Rubens, enquanto Ingres admirava Poussin, Delacroix voltava seus pinceis e tintas na direção que dava mais ênfase à cor e ao movimento. Friedlaender o posiciona no estilo do alto barroco.

Mesmo distante da pintura de Poussin, Delacroix se aproximava do seu antecessor e compatriota em termos do interesse pelo estudo da teoria “para tornar mais claras as próprias intenções”.  Ele escrevia sobre arte e até começou a escrever um Dicionário Filosófico de Belas-Artes, que não terminou.

Com apenas 24 anos de idade pintou seu primeiro grande quadro: “A barca de Dante”, inspirado no Inferno da Divina Comédia de Dante Alighieri. Friedlaender diz que o arranjo temático derivava diretamente da pintura “A barca da medusa” de Theodore Géricault, outro pintor francês da época, e amigo de Delacroix. Mais tarde o poeta Charles Baudelaire teria dito de Delacroix que ele “fut grand dès as jeunesse, dès sés premières productions” (foi grande desde a juventude, desde seus primeiros trabalhos).

Delacroix participou dos movimentos revolucionários de seu tempo ao pintar “A Liberdade guiando o povo às barricadas”. Diferentemente de Ingres, ele não se isolou de seu tempo e quando a Revolução de julho de 1830 estourou, ele não ficou indiferente. A mulher que representa a Liberdade em sua tela é uma mulher do povo, com o peito nu e os cabelos ao vento. Friedlaender observa a respeito dessa pintura: “De todas as obras de Delacroix, foi a única em que um conceito original e um verdadeiro sentimento contemporâneo se completaram de forma vigorosa”.

Dois pintores de escolas diferentes resumem todo o caudal de ideias que iam se gestando desde o século XVI e o começo do capitalismo mercantilista.

Na Itália, muito antes da França, essa mesma luta de ideias já se passara. O Renascimento italiano tinha trazido as ideias greco-romanas também para as artes e foi lá onde primeiro se deu a passagem de uma arte severa para uma mais livre e informal. Foi contra a rigidez estética clássica que se insurgiram pintores como Caravaggio, um dos maiores representantes da pintura do Barroco.

"Joana d'Arc na Coroação de Carlos VII", de Jean Dominique Ingres, 1854

Naquele tempo, segundo o também estudioso de arte Heinrich Wölfflin, o Barroco não surgiu com uma teoria, mas logo causou diversos adjetivos, entre os quais “capriccioso” (bizarro, extravagante). Trazia em si o prazer pelo raro, queria ir além das regras. No começo era pesado, severo, contraído; com o tempo se torna mais leve, alegre. E ocupou cerca de 200 anos de história.

Foram as ideias barrocas de Caravaggio que o fizeram usar como modelos pessoas comuns, prostitutas, vagabundos. Num tempo em que a Igreja Católica era a dona do mundo e os artistas vendiam sua força de trabalho para produzirem a propaganda da Igreja, Caravaggio não foi diferente, não podia ser, ou morria de fome. Mas usava suas amigas e amantes como modelos para a Virgem Maria e para os santos. Como Delacroix usou uma mulher do povo para representar a força simbólica da Liberdade que o povo deveria conquistar na França revolucionária.

A Liberdade de Delacroix era uma mistura das ideias que vinham desde Caravaggio (e que tinham atingido também David), com os ideais clássicos: força, valentia, coragem, disposição de espírito. Esses ideais traziam da antiguidade a figura do Herói não somente como alguém que realizava grandes feitos, que possuía força muscular admirável. “Ele era, antes de mais nada alguém (…) cujo nobre corpo revestia alma resplandescente de virtude e cujas realizações podiam servir de exemplo como um ideal a ser atingido” (Friedlaender).

E esses aspectos foram enaltecidos pelo Romantismo dos séculos XVIII e XIX. Vem daí a ideia do revolucionário como o herói do povo. Vem daí a ideia do artista como aquele cara excêntrico. Dessa mistura de ideias que vicejavam na Europa a partir do século XVIII, especialmente pós-Revolução Francesa, foi que surgiu a Modernidade. Daí veio inspiração para todas as revoluções do século XX.

"A Liberdade guiando o povo às barricadas", Eugène Delacroix, 1830

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Revisitando o mar

Caneta nankin, praia do sul, 2010

Havia um céu azul e um sol muito brilhante ali.


Eu caminhava descalça, feliz, pela praia. Atravessei um pequeno rio que oferecia suas águas ao mar, enquanto ondas salgadas penetravam rio a dentro, indo buscar, em correnteza, esses fluxos de água doce.


No ponto em que atravessei, as águas doces e salgadas empurravam-me levemente em movimentação contrária. Venci-as. Atravessei e continuei caminhando na areia já do outro lado, em outra praia, uma pequena praia quase sem ondas.


Sentei-me um pouco em frente ao mar.


Como gosto de fazer sempre, busquei a profundidade que a linha do horizonte aponta, lá nos confins do mar. Meu pensamento ia além das ondas, da lâmina d'água, dos pequenos pontos de interferência - os barcos - que passavam em direções diversas.


Meus desejos e meus sonhos tomaram um desses barcos e me carregaram para lá. Meus sentimentos me trazendo visões de encontros felizes.

Mas era fim do dia. Sem previsão nem preparação, uma tristeza começou a acompanhar os movimentos da luz do fim da tarde. Escurecia. O sol se inclinava fulminando o horizonte! Ia levando consigo o dia o céu as poucas nuvens as gaivotas. E a mim.


A escuridão cobriu meu coração, e meus olhos - janelas da alma - lançavam dois jatos de vista sobre o mundo, já escuro. Melhor mergulhar nesse mar e que seus movimentos me dirijam. Não há como ser barco sem se entregar às ondas. E esperar que o dia amanheça e que o céu fique azul e que o sol lance seus raios de novo sobre mim...