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segunda-feira, 29 de setembro de 2014

A política e os artistas

"A morte no sábado - homenagem a Vladimir Herzog",
óleo sobre tela, Antonio Amaral, 1975
A força das ideias gera a história, movimenta os povos, muda sistemas. Nas artes, inúmeros artistas não ignoraram o que aconteceu em seu próprio tempo, criando obras que foram testemunhos históricos e ao mesmo tempo marcos estéticos de suas épocas. Há relação, portanto, entre arte e política.

Vamos começar com um exemplo mais distante, mas que trouxe grande influência à nossa época e mesmo ao nosso país: na França do século XVIII, ideias as mais contraditórias disputavam espaço numa sociedade em ritmo de mudanças profundas em seu sistema político, econômico, social. Burgueses e aristocratas combatiam entre si os espaços de poder e de pensamento, enquanto que a grande maioria do povo vivia na pobreza. Os adeptos do velho regime se agarravam ferrenhamente ao passado; outros, inspirados pelos novos ideais carregavam novas bandeiras que balançavam ao sopro dos ventos de um mundo novo.

A Revolução Francesa marcou o fim desse "Ancien Régime" e dos privilégios da realeza e do clero. Até então o rei era o centro de toda a vida política e social na França. Os impostos cobrados ao povo eram extorsivos. A imensa maioria vivia na miséria, enquanto os membros da corte e do clero se refestelavam nos palácios. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, proclamou a igualdade dos direitos de todos diante da lei, além de defender direitos básicos dos cidadãos. Essa Revolução de 1789 marcou o início da era moderna e influenciou todos os recantos do mundo.


Marat assassinado, David
Em meio aos artistas, as discussões iam além de questões estéticas e as ideias dos adeptos do Romantismo já movimentavam os ateliês. Foi em meio a esse fervilhar de ideias que se destacou Jacques-Louis David (1748-1825). Envolvido totalmente com a Revolução Francesa de 1789, David pôs seu talento de pintor a serviço das causas revolucionárias, assim como foi fiel ao período napoleônico, declaradamente favorável a Napoleão Bonaparte. Mas na Revolução de 1789 alinhou-se aos jacobinos, a ala esquerda. Em 1793 apresentou o depois famoso quadro “Marat assassinado”, onde denunciava o assassinato do revolucionário e seu amigo Jean-Paul Marat.

Além de David, um outro artista francês se destacou como um pintor da Revolução: Eugène Delacroix (1798-1863), que já nasceu numa França renovada pela Revolução mas também era plugado a seu tempo, até mesmo pelo romantismo que o inspirava.


A Liberdade guiando o povo, Delacroix
Delacroix participou dos movimentos revolucionários de seu tempo ao pintar o célebre quadro “A Liberdade guiando o povo às barricadas”. A mulher que representa a Liberdade em sua tela é uma mulher do povo, com o peito nu e os cabelos ao vento. Diz Walter Friedlaender em seu livro “De David a Delacroix”: “De todas as obras de Delacroix, foi a única em que um conceito original e um verdadeiro sentimento contemporâneo se completaram de forma vigorosa”.


Aqui no Brasil, muitos foram os artistas que se envolveram com a política de seu tempo. Começando com Victor Meirelles (1832-1903) e Pedro Alexandrino (1856-1942), que pintaram grandes telas representando momentos épicos da história do nosso país, passamos pelos modernistas e chegamos a Candido Portinari (1903-1962), um dos nossos maiores pintores, que se envolveu diretamente com a política de seu tempo, sendo inclusive candidato a deputado federal nas eleições de 1945 e de 1947, pelo Partido Comunista do Brasil (PCB). São inúmeras as telas de Portinari com cunho político, especialmente aquela em que ele denuncia a miséria em que vivia grande parte do povo nordestino, “Os Retirantes”, que tem uma força expressiva muito tocante.

Mas para exemplificar com um artista mais próximo do nosso tempo, vamos destacar o paulista Antonio Henrique Abreu Amaral, que nasceu em 1935 e ainda vive em São Paulo. 

Antonio Henrique iniciou sua formação artística na Escola do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand - MASP, em 1952. Em 1956, foi estudar gravura com Lívio Abramo, um grande gravador brasileiro, que também se interessava muito pela política do nosso país. Em 1958, Antonio Henrique viajou pela Argentina e Chile, realizando exposições, ocasião em que conhece pessoalmente o poeta Pablo Neruda (1904 - 1973), que era comunista. 

Após passar pelos EUA, em sua volta ao Brasil em 1960, Antonio Henrique Amaral conheceu artistas como  Ivan Serpa (1923 - 1973), Candido Portinari (1903 - 1962), Antonio Bandeira (1922 - 1967), Djanira (1914 - 1979) e Oswaldo Goeldi (1895 - 1961). Em 1964, houve o golpe militar que instaurou no Brasil uma Ditadura Militar que perseguiu muitos artistas e intelectuais, prendendo, torturando e mesmo assassinando inúmeros brasileiros que se opunham àquele regime de falta de liberdade e que havia imposto uma censura muito grande que atingia também diretamente a o meio artístico.


Incomunicação, Antonio Amaral,
xilogravura
Com isso, Antonio passou a incorporar em seu trabalho artístico a temática social, denunciando também a falta de liberdade em que vivia o povo brasileiro, sob uma censura rígida e muita perseguição política. Em 1967, ele lançou um álbum de xilogravuras coloridas intitulado “O Meu e o Seu”, com apresentação do poeta Ferreira Gullar (1930) que à época também era militante comunista e também foi perseguido pela ditadura militar. Nesse album, ele sintetiza a questão do autoritarismo político dos militares no poder.

Antonio Henrique Amaral começa a fazer uma série de pinturas com o tema das Bananas, entre 1968 e 1975, onde se vê claramente a metáfora da banana como crítica ao que estava acontecendo em nosso país. Um desses trabalhos apresenta uma banana cortada e envolta por um garfo, ambos amarrados por um grosso barbante. Nessa série de Bananas, o artista parece concentrar sua denúncia do momento político brasileiro sob o regime ditatorial militar: bananas apodrecidas, espetadas por garfos pesados parecem querer mostrar o que estava acontecendo nas prisões com a tortura cruel aos presos políticos.


Bananas, A. Amaral,
óleo sobre tela, 1970
A metáfora das bananas sempre foram usadas em diversos momentos da nossa história, desde a pintura “Tropical” de Anita Malfatti (1889-1964), passando pela “A Negra” de Tarsila do Amaral (1886-1973), e até “Bananal” de Lasar Segall (1891-1957). Na década de 1930 o compositor Braguinha explicitou na letra da música “Yes nós temos bananas”, de forma gaiata, a exploração das riquezas do Brasil por parte dos estrangeiros. Na década de 1940 Carmen Miranda balançava suas curvas nos Estados Unidos, criando a imagem caricata da latino-americana com seu chapéu excêntrico carregado de bananas e outras frutas. Ou seja, Antonio Henrique voltava à mesma metáfora para mostrar que o país da banana e do carnaval sofria com a ditadura militar.

Uma de suas pinturas mais explícitas é “A morte no sábado - homenagem a Vladimir Herzog”, na qual o artista denuncia o assassinato do jornalista da TV Cultura Vladimir Herzog nos porões da ditadura dos generais brasileiros.

Antonio Henrique Amaral vive e trabalha em São Paulo.

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Alguns exemplos da arte política do artista:


A Grande Mensagem, 1966, Amaral, xilogravura

Campo de batalha 22, óleo sobre tela, 1974
Campo de batalha 3, óleo sobre tela, Amaral, 1973
Os metais e as vísceras I, óleo sobre tela, Amaral, 1975 
"Eu decido", Antonio Amaral, xilogravura, 1968
"Sem saída", xilogravura, 1967

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

As ideias e os artistas


Detalhe da pintura "Marat Assassinado", de David, 1793
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A força das ideias vai gerando a história, movimentando os povos, mudando os sistemas. Nas artes, vai alinhando ou desalinhando artistas. E ninguém fica incólume ao que acontece em seu próprio tempo. Assim foi, assim é. Mas essas ideias não surgem do nada; não surgem da mente de algum ser genial. Surgem dessa dialética entre a realidade concreta e a observação que o ser humano vai fazendo dela, enquanto constrói seu caminho no mundo.

Estou lendo o livro de Walter Friedlaender intitulado “De David a Delacroix” que faz um recorte  na história da arte francesa, onde podemos observar o quanto ideias e arte estão em consonância. Esse livro foi publicado pela primeira vez em 1930, na Alemanha, e era destinado ao uso em escolas e universidades. Aborda principalmente dois grandes pintores franceses – David e Delacroix – mas os localiza num período histórico dos mais importantes da história.

A França do século XVII era o país mais poderoso da Europa e o que possuía a maior população. German Bazin (em outro livro que acabei de ler, o “Barroco e Rococó”) mostra que a França era o país que assimilou “com maior êxito o espírito do Renascimento italiano”, que trouxera muitas novidades em todos os campos da vida humana, assim como as ideias de uma classe em ascensão, a burguesia. No século XVIII – onde vamos nos concentrar aqui – ideias contraditórias disputavam espaço numa sociedade onde “financistas conviviam com as velhas noblesse d’épée e noblesse de robe”, ou seja, burgueses e aristocratas disputando espaços políticos e econômicos, além de filosóficos, dentro de um sistema em evolução.


"Marat assassinado", de Jacques Louis David, 1793
Essas ideias que competiam entre si, movimentavam a história. Uns agarrados ferrenhamente ao passado; outros, onde os mais pobres foram incluídos, carregavam novas bandeiras que balançavam ao sopro dos ventos de um mundo novo.

A Revolução Francesa (um período que vai de 1789 até o golpe de estado conhecido como o 18º Brumário de Luís Bonaparte, 1799) marcou o fim do Ancien Régime e dos privilégios da realeza e do clero. Até então o rei era o centro de toda a vida política e social na França. Os impostos cobrados ao povo eram extorsivos. A imensa maioria vivia na miséria, enquanto os membros da corte e do clero se refestelavam nos palácios. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, proclamou a igualdade dos direitos de todos diante da lei, além de defender direitos básicos dos cidadãos. Essa Revolução de 1789 marcou o início da era moderna e influenciou todos os recantos do mundo.

Dentro de tudo isso, correntes de pensamento influenciavam também a Pintura. Os ventos do Renascimento haviam trazido o pensamento racional, que predominou durante todo o século XVII e chegava ao século XVIII trazendo as ideias de influentes pensadores franceses, como Descartes e Corneille.

Mas uma corrente de pensamento “irracional”, mesmo que inconstante e com menos influência, “se manifesta de forma mais exuberante na primeira metade do século XVIII”, diz Walter Friedlaender. Essas duas formas de pensamento, conflitantes entre si, podem ser encontradas, segundo ele, “na complexa estrutura da pintura francesa do século XIX”. E posteriormente.

Os pastores da Arcadia, de Nicolas Poussin, 1638-1640

O pensamento racional dentro da obra de arte tinha, segundo o autor alemão, “um viés moralizante”. Estava preocupado com o conteúdo ético e didático da obra, muito influenciado pela visão de Nicolas Poussin (1594-1665), um pintor francês que se mudou para Roma, onde voltou seus estudos técnicos e teóricos para o classicismo de Rafael e dos pintores venezianos. Poussin, em seu metodismo e racionalismo, detestava a pintura de Caravaggio! Seu desejo era “reviver a antiguidade”, como afirma German Bazin. A pintura de Poussin que pode ser considerada um manifesto do que ele pensava é o “Os pastores da Arcádia”, pintado entre 1638-40.

As ideias estéticas predominantes em todo esse período pré-revolucionário vinham sendo construídas com base na razão e na moralidade, o bon sens. Eram ideias também de Pierre Corneille, o grande autor de peças como El Cid e Horácio, que se baseava também no classicismo. Corneille nasceu em 1606, numa família da nascente burguesia. Também se junta a esse campo do pensamento, o filósofo francês René Descartes, que morreu em 1650. Além de filósofo, o grande teórico racionalista era físico e matemático. Foi ele que desenvolveu o pensamento que ficou conhecido como o método cartesiano.

Mas, convivendo com essas ideias, havia uma corrente que se opunha àquela visão de mundo racional. Para ela mais valia o gosto pessoal do que a razão. Esse gosto podia ser traduzido para “fineza”, “delicadeza” e uma visão de mundo mais subjetiva. “Coeur e esprit eram as palavras de ordem dos salões literários que existiam por volta de 1720”, diz Friedlaender. Surgia “uma mentalidade artística, livre do peso da tradição acadêmica e moral”.

Mas tudo combinava com a alma francesa.


"A leitora", de Jean Honoré Fragonard, 1770-72
O refinamento e a elegância dos salões e da Corte de Paris ajudaram a desenvolver uma forma de pintura decorativa, de pintores como Watteau, Lancret, Pater, De Troy e outros. Mas nessas altas rodas aristocráticas, representando a burguesia, estavam sempre presentes os financistas. Os mesmos que mandam no mundo capitalista em crise de hoje.

Nas primeiras décadas do século XVIII houve um grande desenvolvimento das artes na França e muitos colecionavam pinturas. Era o tempo de Madame de Pompadour, amante do rei Luís XV e, em seguida, o tempo da rainha Maria Antonieta, a rainha fútil, que adorava moda e que foi guilhotinada pela Revolução Francesa.

Esse conflito de ideias que unia, de um lado, “a melodia jovial e espontânea” do povo francês e, do outro, a “predominante e persistente nota racional” fez com que se desenvolvesse a arte francesa. Aparentemente, diz Friedlaender, no meio dos artistas as discussões pareciam se resumir a questões técnicas e visuais: “desenho versus cor, placidez versus movimento, ação concentrada em poucas figuras versus dispersão das figuras”. Mas no fundo representavam a verdadeira luta de ideias entre disciplina e moral, de um lado, e, do outro, um certo amoralismo, rejeição a normas e irracionalismo subjetivo. Que evoluíram para as ideias defendidas mais tarde pelos Românticos.

No topo disso se desenvolveu a famosa inimizade entre dois grandes pintores franceses: Jean Auguste-Dominique Ingres (1780-1867) e Eugène Delacroix  (1798-1863). Ingres era neoclássico. Delacroix era romântico. Delacroix era colorista, Ingres encarnava a pintura linear e clássica. Conta-se que certa vez Ingres encontrou Delacroix em um salão e teria dito: “Tem cheiro de enxofre”…

Pois Friedlaender diz que a Pintura Linear no século XVIII encarnava “algo pleno de significado moral”. A pintura romântica, colorista era uma verdadeira “heresia” e até mesmo considerada uma “falha moral”.  Ingres era muito rígido em suas ideias. Delacroix também.

Era esse o nível dos debates ideológicos dentro da Pintura francesa do século pré e pós-revolucionário.
Mas bem antes deles, esses pensamentos se deixavam impregnar uns pelos outros. Friedlaender esclarece que o “mais subjetivo artista francês, tanto em seus aspectos técnicos, como de composição, deixou-se parcialmente subordinar pela razão e mesmo pela Academia”.

A visão mais subjetiva refletia-se no estilo mais livre nas artes, especialmente a partir dos primórdios do século XVIII. Artistas contrários ao pensamento racional dominante reagiam com uma pintura mais “colorista” e com pinturas de gênero. Mas havia muito de superficial na pintura do período que vai de Jean Antoine Watteau (1684-1721) – um dos criadores do estilo Rococó – a François Boucher (1703-1770).  No entanto, foi Jean-Honoré Fragonard (1732-1806) quem melhor representou a arte decorativa desse período.

Após 50 anos de predomínio do estilo Rococó, onde reinava um certo amoralismo na vida social, o pensamento racionalista retorna em meados do século XVIII com toda sua força, no movimento neoclássico. A ideia era resgatar a “norma dos antigos”, ressalta Friedlaender.

No entanto, o período de domínio da irracionalidade Rococó tinha deixado sua marca e o Neoclassicismo surgia considerando a Antiguidade de uma forma mais relativizada. Já não se buscavam as soluções formais do período clássico (Grécia e Roma), mas sim seus valores éticos. “O heróico, agora, se associava ao virtuoso”, enfatiza o autor alemão. O herói deveria agora possuir, além de força, “todas as virtudes humanas”.

E esses valores deveriam ser seguidos também pelos reis. O que Friedlaender chama de “classicismo ético” passou a ter um caráter “eminentemente político” que influenciou os debates da época e preparou o caminho da Revolução.
"O julgamento dos Horácios", de Jacques Louis David, 1784

Em meio a essas ideias, surge Jacques Louis David (1748-1825), como o representante da pintura clássica por excelência. David atinge seu auge com a pintura “O Juramento dos Horácios” pintado em 1784. Ele seguia a regra – neopoussinista, no dizer de Freadlaender – de focar sua pintura no essencial: a Ação, retirando qualquer elemento que distraísse a atenção da cena principal do quadro.

Mas David nunca teve uma atitude anticolorista, pois admirava demais o pintor flamengo Rubens. E também não se rendeu ao pensamento clássico. Teria dito: “A arte antiga não me seduzirá: falta-lhe ação, falta-lhe movimento”.  Estava apegado teoricamente ao passado, mas era homem do seu próprio tempo.

Envolvido totalmente com a Revolução Francesa de 1789, David pôs seu talento de pintor a serviço das causas revolucionárias, assim como foi fiel ao período napoleônico, declaradamente favorável a Napoleão Bonaparte. Mas na Revolução de 1789 alinhou-se aos jacobinos, a ala esquerda. Em 1793 apresentou o depois famoso quadro “Marat assassinado”, onde denunciava o assassinato do revolucionário e seu amigo Jean-Paul Marat.

"A barca de Dante", de Delacroix, 1822
Eugène Delacroix (1798-1863), que já nasceu numa França renovada pela Revolução, tomou outro caminho pictórico, mas também era plugado a seu tempo, até mesmo pelo romantismo que o inspirava.

Contemporâneo de Jean Auguste-Dominique Ingres, um abismo separava suas telas da deste grande pintor acadêmico. Seguidor da vertente artística aberta por Rubens, enquanto Ingres admirava Poussin, Delacroix voltava seus pinceis e tintas na direção que dava mais ênfase à cor e ao movimento. Friedlaender o posiciona no estilo do alto barroco.

Mesmo distante da pintura de Poussin, Delacroix se aproximava do seu antecessor e compatriota em termos do interesse pelo estudo da teoria “para tornar mais claras as próprias intenções”.  Ele escrevia sobre arte e até começou a escrever um Dicionário Filosófico de Belas-Artes, que não terminou.

Com apenas 24 anos de idade pintou seu primeiro grande quadro: “A barca de Dante”, inspirado no Inferno da Divina Comédia de Dante Alighieri. Friedlaender diz que o arranjo temático derivava diretamente da pintura “A barca da medusa” de Theodore Géricault, outro pintor francês da época, e amigo de Delacroix. Mais tarde o poeta Charles Baudelaire teria dito de Delacroix que ele “fut grand dès as jeunesse, dès sés premières productions” (foi grande desde a juventude, desde seus primeiros trabalhos).

Delacroix participou dos movimentos revolucionários de seu tempo ao pintar “A Liberdade guiando o povo às barricadas”. Diferentemente de Ingres, ele não se isolou de seu tempo e quando a Revolução de julho de 1830 estourou, ele não ficou indiferente. A mulher que representa a Liberdade em sua tela é uma mulher do povo, com o peito nu e os cabelos ao vento. Friedlaender observa a respeito dessa pintura: “De todas as obras de Delacroix, foi a única em que um conceito original e um verdadeiro sentimento contemporâneo se completaram de forma vigorosa”.

Dois pintores de escolas diferentes resumem todo o caudal de ideias que iam se gestando desde o século XVI e o começo do capitalismo mercantilista.

Na Itália, muito antes da França, essa mesma luta de ideias já se passara. O Renascimento italiano tinha trazido as ideias greco-romanas também para as artes e foi lá onde primeiro se deu a passagem de uma arte severa para uma mais livre e informal. Foi contra a rigidez estética clássica que se insurgiram pintores como Caravaggio, um dos maiores representantes da pintura do Barroco.

"Joana d'Arc na Coroação de Carlos VII", de Jean Dominique Ingres, 1854

Naquele tempo, segundo o também estudioso de arte Heinrich Wölfflin, o Barroco não surgiu com uma teoria, mas logo causou diversos adjetivos, entre os quais “capriccioso” (bizarro, extravagante). Trazia em si o prazer pelo raro, queria ir além das regras. No começo era pesado, severo, contraído; com o tempo se torna mais leve, alegre. E ocupou cerca de 200 anos de história.

Foram as ideias barrocas de Caravaggio que o fizeram usar como modelos pessoas comuns, prostitutas, vagabundos. Num tempo em que a Igreja Católica era a dona do mundo e os artistas vendiam sua força de trabalho para produzirem a propaganda da Igreja, Caravaggio não foi diferente, não podia ser, ou morria de fome. Mas usava suas amigas e amantes como modelos para a Virgem Maria e para os santos. Como Delacroix usou uma mulher do povo para representar a força simbólica da Liberdade que o povo deveria conquistar na França revolucionária.

A Liberdade de Delacroix era uma mistura das ideias que vinham desde Caravaggio (e que tinham atingido também David), com os ideais clássicos: força, valentia, coragem, disposição de espírito. Esses ideais traziam da antiguidade a figura do Herói não somente como alguém que realizava grandes feitos, que possuía força muscular admirável. “Ele era, antes de mais nada alguém (…) cujo nobre corpo revestia alma resplandescente de virtude e cujas realizações podiam servir de exemplo como um ideal a ser atingido” (Friedlaender).

E esses aspectos foram enaltecidos pelo Romantismo dos séculos XVIII e XIX. Vem daí a ideia do revolucionário como o herói do povo. Vem daí a ideia do artista como aquele cara excêntrico. Dessa mistura de ideias que vicejavam na Europa a partir do século XVIII, especialmente pós-Revolução Francesa, foi que surgiu a Modernidade. Daí veio inspiração para todas as revoluções do século XX.

"A Liberdade guiando o povo às barricadas", Eugène Delacroix, 1830

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Romantismo em São Paulo e Londres


WILLIAM TURNER:
Pescadores no mar, 1796, óleo sobre tela, 
91 x 122 cm, Tate Gallery
Duas exposições - em São Paulo e Londres - trazem à mostra pinturas que têm origem no século XIX, de artistas do movimento conhecido como Romantismo. Esses artistas expressavam em sua arte os novos pensamentos que passavam a dominar o mundo, ideias que fervilhavam nos diversos movimentos revolucionários da época, especialmente na França. Ideias de Socialismo, inclusive, como alternativa às injustiças geradas pelo capitalismo industrial.

JOHN CONSTABLE:
A casa do almirante em Hampstead, 1821,
óleo sobre tela, 60x50 cm, Alte Nationalgalerie, Berlim
Mas no século XIX, especialmente em Paris, os pintores também se rebelavam contra o estilo Neoclássico, que uniformizava o mundo dentro do padrão da estética clássica, grega e romana. Pintores, mas também escritores, não queriam mais guardar fidelidade a esses modelos antigos, que limitavam a criatividade e as manifestações da individualidade, com duras e dogmáticas regras para as artes (para se ter uma ideia, havia receitas para se pintar bem, dentro dos cânones neoclássicos; havia uma receita de mistura de tonalidades de cores que eram usadas para pintar a pele das pessoas, por exemplo).

Os românticos - como ficaram conhecidos esses artistas rebeldes - pregavam a livre efusão dos sentimentos, a visão e a experiência individual do mundo. Eles não acreditavam num Belo absoluto, universal e eterno. O Belo era, para eles, transitório, relativo. Mesmo a feiúra do mundo era Bela. Podemos lembrar de um poema de Baudelaire que falava de uma carniça, assim como podemos buscar exemplos em vários poemas de seu livro Les Fleurs du Mal. Mas isso eu deixo para meu amigo Jeosafá Gonçalves, literato e estudioso de artes literárias.

WILLIAM BLAKE:
O Corpo de Abel Encontrado por Adão e Eva,
1825. Aquarela sobre madeira.
A origem da palavra Romântico, segundo vários estudiosos, vem do inglês "romantic", no sentido de pitoresco e até de bizarro. Na França, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) foi um dos pensadores que não somente influenciaram o Romantismo francês mas a própria Revolução Francesa, com suas ideias de Igualdade, Liberdade e Fraternidade. Segundo Carlos Cavalcanti (professor brasileiro de História da Arte, já falecido) o Romantismo nasce como consequência ao individualismo burguês que gerou o liberalismo econômico e político, que nasceram na Revolução Industrial.

Além de grande influência sobre as mudanças profundas que mudavam a história da França e da Europa, o Romantismo trouxe um novo tipo de artista: o excêntrico, o esquisito, o inconformado e rebelde contra os valores da burguesia industrial. Ser artista passou a ser sinônimo de uma pessoa desvairada, boêmia e de conduta antisocial. São os sonhadores, os poetas malditos, os que morriam de tuberculose e de fome. Eram aqueles que se negavam a pertencer a um mundo que trazia tão desagradável realidade: injustiça social, divisão de classes, preconceitos sociais, visão utilitária - leia-se comercial - do mundo e das relações. Foram os Românticos os primeiros pintores politizados, os artistas que pintavam a vida social. E os que, numa visão entre sentimental e utópica do mundo, recebiam com bons olhos as ideias socialistas nascentes.

EUGENE DÉLACROIX: A Liberdade guiando o povo, 1830,
Museu do Louvre, Paris.

Nesse meio, surgiram - para ficar só nas artes plásticas - Henry Fuseli, William Turner, John Constable, Samuel Palmer, William Blake, El Greco, Jeronimus Bosch, Théodore Géricault, Eugene Délacroix, Camille Corot, Charles Daubigny, Théodore Rousseau, Jean François Millet, além de outros tantos, entre os quais o famoso ilustrador de obras literárias Gustave Doré. No Brasil, um nome se destaca: João Batista da Costa (1865-1926) que, influenciado pela Escola de Barbizon (movimento de artistas românticos franceses), deu aulas de pintura e dirigiu a nossa Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro.

Na exposição em Londres, o foco são os artistas da Grã-Bretanha, suas origens, inspirações e legados. São obras da coleção da própria Tate Britain, onde se mostram grandes obras de Henry Fuseli, William Turner, John Constable e Samuel Palmer, bem como as obras recém-adquiridas de William Blake.

No Brasil, no MASP, podem ser vistas obras de El Greco, Bosch, Turner, mas também de pintores impressionistas como Gauguin, Van Gogh, Renoir, Monet e Manet, todos também pertencentes ao acervo do Museu de Arte de São Paulo.

JEAN-FRANÇOIS MILLET: As respigadeiras, 1857,
Museu D'Orsay, Paris.
É uma excelente oportunidade para ver de perto obras que ilustram a história da arte, em especial a pintura que representou um verdadeiro momento de ruptura na tradição, um movimento revolucionário nas artes que acontecia em momentos de revoluções profundas, em especial na França, como lembra Gombrich, o historiador da arte e autor de vários livros sobre o assunto.

Na Tate Britain, a exposição vai até 31 de julho de 2011. No Masp, a exposição foi aberta no ano passado e não tem previsão de encerramento.
THÉODORE GÉRICAULT:
A barca da medusa, 1817-1818, óleo sobre tela, Museu do Louvre, Paris.


terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O Real inesgotável

Reflexões sobre o Realismo nas artes plásticas

(Mazé Leite)

Em 1855, o pintor francês Gustave Courbet, organiza em Paris, uma exposição com 40 telas sob o título “Du Réalisme”, inaugurando essa nova forma de ver e pintar o mundo. O Realismo atravessou todo o século XX e alcança o século XXI, carregado de conotações filosóficas, políticas e estéticas, em maior ou menor grau, mas que resume a tomada de consciência do que vê e do que sente o artista sobre a realidade de seu mundo.


A Liberdade guiando o Povo, Eugene Délacroix, 1830.
Óleo sobre tela,325x260cm, Museu do Louvre, Paris, França.

Antecedentes históricos

No século XIX, o mundo passava por intensas transformações sociais, econômicas, políticas e culturais, desde as revoluções burguesas do século XVIII, entre as quais a Revolução Industrial iniciada na Grã-Bretanha e a Revolução Francesa de 1789 que, inspirada pelos princípios do Iluminismo, trouxe abaixo não só o Antigo Regime que privilegiava clero e nobreza, como abriu um período de ebulição de ideias em todos os campos do pensamento.

A Revolução Industrial ocorreu quando já havia acontecido outros movimentos de ruptura com a tradição, trazendo consigo novas relações sociais, políticas e econômicas, inaugurando o Capitalismo. Ideias novas começavam a vicejar também em meio aos artistas, trazendo grandes mudanças não somente em sua forma de trabalhar e ganhar a vida, como também em suas linhas de pensamento. Os artistas, inicialmente desprezados pela elite, sofriam os mesmos preconceitos dos “tempos da Grécia antiga, quando os esnobes podiam aceitar um poeta, que trabalhava com o cérebro, mas jamais um artista que trabalhava com as próprias mãos”, como relata E. H. Gombrich, em seu livro “História da Arte”. Na Inglaterra, onde o poder do Papa não alcançava e onde o movimento da Arte Barroca não teve desenvolvimento, os pintores se voltaram a pintar retratos de gente comum, cenas da vida do povo. Foi a época de William Hogarth, de Thomas Gainsborough, de Jean-Baptiste-Siméon Chardin, e, claro, de William Blake, que além de pintor era poeta.

Na França, a Revolução de 1789 trouxera consigo o estilo Neoclássico, que valorizava os ideais de beleza grega e romana e, por isso, também ia contra o poder clerical. A pintura, que até o final do século XVIII era um ofício ensinado de mestre a discípulo nos ateliês, passou a ser uma disciplina ensinada em academias, como a Filosofia. Em Londres e Paris começaram a ser organizadas, pela primeira vez na história, exposições anuais de arte, que se converteram em verdadeiros eventos sociais.

Mas a Revolução Francesa trouxe também o gosto por temas históricos e heróicos na pintura. Em 1793, o pintor J.L David pintou “Marat assassinado”, um dos quadros que se inscreve – segundo o pesquisador e artista plástico francês Michel Dupré – “dans une orientation réaliste”. Também em 1831, Eugène Delacroix, considerado um pintor romântico, adquire um tom de contestação com seu quadro “A Liberdade guiando o povo”, num fervente apelo às revoltas populares que o poder político da época se apressou em censurar (o Estado comprou essa tela, que ficou escondida por mais de 30 anos).

Na Espanha, Francisco Goya, já tinha surgido com uma pintura diferente dos seus contemporâneos, expressando toda a “feiúra e vacuidade” daqueles que viviam na Corte. Inaugurava-se um período em que os artistas sentiam-se “livres para passar ao papel suas visões pessoais, algo que até então só os poetas costumavam fazer”, complementa Gombrich.

As revoluções burguesas também trouxeram mudanças na situação de trabalho dos artistas. A tradição do artesanato e o trabalho manual dos artesãos cedeu lugar à produção mecânica, a oficina perdeu lugar para a fábrica. A construção civil, no século XIX, teve um intenso crescimento em cidades grandes, especialmente da Inglaterra e EUA. Operários e trabalhadores em geral mantinham uma jornada de trabalho exaustivo, incluindo mulheres e crianças. O escritor inglês Charles Dyckens (1812-1870) denunciou, em seus romances, a situação de vida dos trabalhadores dessa época, em especial em “David Cooperfield” e “Oliver Twist”.

Do lado dos artistas, surgiram dois tipos de pintores: os que pintavam para agradar o gosto do freguês (que incluía agora a nova classe média que surgia nas cidades) e aqueles que se recusavam terminantemente a isso. Os artistas inconformados com essa nova situação e que não davam “uma única pincelada sem perguntar a si mesmos se ela satisfazia sua consciência artística” (Gombrich), começaram a escrever uma nova história e novas idéias começaram a vicejar.

Gustave Courbet

Os britadores de pedra, Gustave Courbet, 1849.
Óleo sobre tela, 159x259 cm, Gemäldegalerie, Dresden, Alemanha
Gustave Courbet era um jovem pintor, de origem camponesa, nascido em Ornans, interior da França. Como tantos outros, foi para Paris para fazer carreira artística, chegando na capital francesa em 1839. Paris vivia momentos de efervescência política, social e artística. Círculos de artistas e intelectuais enchiam os cafés de Paris. Courbet frequentava o grupo do poeta Charles Baudelaire, dos filósofos Proudhon e Marc Trapadoux, dos críticos de arte e escritores Champfleury e Fernand Desnoyers, entre outros, jornalistas, artistas e ativistas políticos. Reuniam-se até altas horas da noite, onde elaboravam suas teorias que posteriormente se transformavam em artigos de jornal, ou em panfletos, ou em obras de arte.

Courbet também freqüentava aulas de desenho e pintura com mestres de Paris, entre os quais François Bonvin com quem aprendeu a ir aos museus para copiar os velhos mestres, como Diego Vélazquez, Francisco de Zurbarán, Bartolomeu Esteban Murillo (da escola espanhola), assim como os artistas do Barroco e do Renascimento italianos. Caravaggio entre eles.

Courbet possuía um espírito inquieto, rebelde, de caráter e pensamento artístico semelhantes a Caravaggio, segundo afirma Michel Dupré. Bem distante dos ideais artísticos do passado ainda em voga na Europa, ele não buscava formosura, buscava a verdade. Contra os clichês de sua época, disse ele em 1854: “Espero sempre ganhar a vida com minha arte, sem me desviar um milímetro dos meus princípios, sem ter mentido à minha consciência nem por um único momento, sem pintar sequer o que pode ser coberto pela palma da mão só para agradar a alguém ou para vender mais facilmente”.

Courbet, já republicano e socialista, partilhava com seus contemporâneos a crença de que a arte podia ser uma força social. Seu ciclo de amigos desprezava os valores burgueses e defendia valores socialistas e revolucionários. Convém lembrar que, nesse período, Karl Marx e Friedrich Engels já elaboravam as teorias que eles expuseram no “Manifesto Comunista” de 1848. Esses ideais de Courbet e seus amigos aliavam-se aos apelos do povo por mudanças profundas na França. Em muitos outros países, o mesmo sentimento revolucionário gerava movimentos nacionalistas e liberais impulsionados não só pela própria burguesia que exigia governos constitucionais, como por trabalhadores e camponeses que se rebelavam contra as formas de vida impostas pelo capitalismo.

Em 1849, já interessado em pintar cenas da vida cotidiana, ele apresenta uma das primeiras de suas grandes obras realistas: “Os britadores de pedra”. Essa tela, infelizmente, foi destruída no bombardeio britânico de Dresden em 1945. Logo em seguida, Courbet começou a pintar a imensa tela “Enterro em Ornans”, com 6 metros de largura e três de altura. Não demorou para sofrer duras críticas dos conservadores: até então, telas grandes como aquela eram destinadas a expressar cenas de batalha, feitos heróicos com figuras proeminentes das classes dominantes. “Enterro em Ornans” é apenas uma cena de cemitério com figuras humanas comuns, pessoas simples da vila de Ornans.

Em 1855, Napoleão III ordenou que se construísse o Palais des Arts et de l’Industrie, com a finalidade de apresentar produtos da agricultura, da indústria e das belas artes, em reação ao governo inglês que tinha construído o Palácio de Cristal, onde iria acontecer a primeira exposição de artes realmente internacional. Mas Courbet ficou de fora da exposição de Napoleão.

Indignado, e com o apoio do mecenas Alfred Bruyas, Gustave Courbet resolveu fazer uma exposição paralela, num galpão construído para este fim, bem ao lado de onde iria acontecer a exposição oficial. Quarenta quadros foram expostos aos visitantes, que também podiam adquirir um pequeno folheto onde estavam impressas as idéias básicas de Courbet. O título da exposição-manifesto era: DU RÉALISME. “Ser capaz de traduzir os costumes, as ideias, os aspectos de minha época, ser não somente um pintor, mais ainda um homem; em uma palavra, fazer uma arte viva, tal é meu objetivo”, dizia ele no folheto.

Durante os quarenta dias do governo revolucionário conhecido como a Comuna de Paris, em 1871, Gustave Courbet ocupou o cargo de Presidente da Comissão para as Artes. Derrotado o governo revolucionário após um verdadeiro banho de sangue nas ruas de Paris, sob o comando do governo de Thiers e suas tropas, Courbet foi preso. Depois de solto e ainda perseguido politicamente, exilou-se em Genebra, onde morreu em 1877.

Retrato de Carolus-Duran, John Singer Sargent, 1879.
Óleo sobre tela, 116,96 cm,  Francine and Sterling Clark Art Institute, EUA.

Novas Realidades

Como fruto dos movimentos revolucionários que escreveram uma nova história no mundo, o Realismo trazia consigo dois traços constantes: a importância dada à temática, que se distinguia dos métodos tradicionais de pintura, e nesse sentido inspirada nos grandes mestres do passado, como Rembrandt, Vélazquez e Caravaggio; e o interesse despertado na questão da fronteira entre Arte e vida.

No século XIX, quando os artistas se deparavam com a nova realidade criada pelos acontecimentos, muitas vezes seguindo rumos inesperados e frustrantes, eles perceberam – como Baudelaire – que o movimento de uma realidade que parece escapar soa como um chamado à sua reconquista. A história da arte do século XIX mostra esse movimento dos artistas em procurar expressar em suas obras a realidade fugidia de seu tempo. Tempo de choques brutais e acelerados nos ideais revolucionários. A frustração gerada pelas ilusões republicanas, as mudanças súbitas de poder (a Comuna de Paris durou poucos dias), os embates sangrentos, a repressão brutal desconhecida até então, tudo isso trouxe aos artistas a consciência de uma realidade que era também brutal. “Enterro em Ornans”, de Courbet, parece transmitir toda a violência daquele período, expressada nas cores, na temática, e nos rostos das mulheres à direita do quadro, em estado de profunda lamentação.

Enterro em Ornans, Gustave Courbet. 1850. 600x300cm, Museu D'Orsai, Paris, França.

Mas a arte Realista, que nascera em meio à riqueza histórica do século XIX, iria atravessar todo o século XX como uma corrente de pensamento que trouxe intensos debates e gerou diversos movimentos de vanguarda em inúmeros lugares do mundo. Como observa Michel Dupré, a palavra Realismo foi objeto de uma “inflation” surpreendente. Numerosos pintores, nestes últimos 156 anos desde a exposição de Courbet, se autoproclamaram "realistas", mesmo seguindo cada um seu modo de ser mais próximo ou não ao Realismo, como Fernand Léger, Malevitch, Rodchenko, Siqueiros, Orozco, Rivera, Lucien Freud, Edward Hopper, Grant Wood, John Singer Sargent, entre inúmeros outros. Michel Dupré sugere que Realismo parece designar sobretudo uma postura, que é tanto prática quanto teórica.

Seguindo os parâmetros de sua história inicial, a arte Realista esteve presente de forma intensa em todo o século XX. Antes e durante a I Guerra Mundial, artistas realistas começaram a surgir de forma bastante intensa na Inglaterra. Envoltos pelas energias densas da 1a Guerra, os artistas ingleses reagiam, como Paul Nash: “Não sou mais um artista interessado e curioso, sou um mensageiro que irá trazer a palavra dos homens que estão lutando àqueles que desejam eternizar a guerra.” Cristopher Nevinson pintou imagens de desolação e mesmo John Singer Sargent, retratista por excelência, em 1918, pintou o quadro “Envenenados por gás”, uma tela gigante que mostra uma fila de soldados estropiados caminhando entre dezenas de mortos e feridos.

Nos EUA, desde o final do século XIX, a arte realista teve a adesão de um grande número de artistas. Seus expoentes iniciais foram Thomas H. Benton, John S. Currey e Grant Wood. Ao lado destes mais regionalistas, surgiram também, nas primeiras décadas do século XX, artistas que se voltavam para o que ficou conhecido como Realismo Social, com muitos deles se filiando ao Partido Comunista criado em 1919. Esses pintores foram bastante influenciados pelos muralistas mexicanos, especialmente Rivera, Orozco e Siqueiros, que, no dizer de James Malpas (em seu livro Realismo), “constituem um dos fenômenos mais intrigantes da pintura do século XX”. Por Realismo Social, diz Brendan Prendeville em “Peinture Réaliste au XXe siècle”, entenda-se um termo que foi usado desde então para descrever uma grande variedade de práticas pictóricas de artistas cujo denominador comum, crítico ou humanista, era o desejo de mudança da sociedade. Entre esses artistas, destacam-se Reginald Marsh, Isabel Bishop, Raphael Soyer e Philip Evergood.

Na Alemanha de entre guerras, os artistas buscavam se organizar em movimentos, ligas e associações, com o objetivo de contribuir para uma renovação artística e para uma mudança dos valores da sociedade. Um desses grupos ficou conhecido como Secessão de Dresden – Grupo 1919, que mantinha o mesmo ideal de uma arte interiormente verdadeira e preocupada em expressar os problemas sociais daquele período. Eram fundamentalmente expressionistas, mas Kate Kollwitz, uma artista dessa época, apresenta gravuras e desenhos de um realismo tocante e é uma artista das que mais representam aquele período da história alemã.

A Rússia, que desde o século XIX passava por mudanças profundas em sua história, assistiu a um fervilhar de movimentos artísticos de diversos matizes plenamente integrados às transformações que a sociedade russa ia tomando.  Programas e manifestos surgiam a partir de grupos e associações de artistas, em meio à nascente intelligentsia russa. Aquele momento de alta criatividade e produtividade artística pôs em circulação idéias que exerceram “efeitos cataclísmicos não só na própria Rússia, mas muito além de suas fronteiras”, como observa Isaiah Berlin em “O Nascimento da Intelligentsia russa”.

A chamada Vanguarda Russa teve importante papel na direção que tomaram as artes de vanguarda em todo o mundo. Maliévitch, Rodchenko, Tatlin, Chagal e Kandinski foram alguns dos artistas russos que grandes modificações trouxeram ao mundo das artes. O foco de seu trabalho estava na representação do mundo como um mundo em mudança, que as artes tinham que representar. Nesse sentido, as formas geométricas de Maliévitch eram, para ele, seu modo pessoal de ter uma leitura realista do mundo. Kandinski, por outro lado, criava a arte abstrata que buscava representar o mundo subjetivo, como uma arte distante das impurezas do real.
Tambores, Pavel Filonov, 1935.
Óleo sobre tela, 72x82cm, Museu de São Petersburgo, Rússia.

Anos mais tarde, a estética realista foi admitida como a que mais papel poderia exercer na educação do povo russo na direção de uma sociedade e uma cultura socialistas. Surge o que ficou conhecido como Realismo Socialista, que foi germinado a partir de debates entre os artistas e os construtores da nova sociedade soviética a partir da revolução de 1917. Sem entrar aqui na questão do pensamento ainda dominante atualmente sobre o tema, cabe apontar que Realismo Socialista é uma coisa, Jdanovismo é outra. Andrei Jdanov foi o articulador principal do controle estético e ideológico da arte russa durante o período de 1934 a 1954, sob o poder de Stalin. Defensor ferrenho do Realismo Socialista, Jdanov impôs aos artistas da época seus parâmetros ideológicos e estéticos de uma rigidez sufocante. Da mesma forma que o mercado e o sistema de arte atual que, de uma forma mascarada, oculta, subjacente e não explicitada, impõe a estética que serve à pós-modernidade e ao neoliberalismo, fechando espaços para a arte que não reze nessa cartilha. Com a única diferença, talvez, que a aparente permissividade atual do sistema não ameace diretamente os artistas, apenas relegue-os ao ostracismo...

Ainda sobre o Realismo Socialista – tema que ainda assusta a muitos e, como diz Michel Dupré, é muito pouco conhecido em sua essência (inclusive porque há uma recusa em conhecê-lo) – há uma observação a ser feita no que diz respeito ao caráter mesmo do Realismo, que foi levantada por Dupré em seu livro “Réalisme(s)”, publicado em 2009. Uma das críticas fundamentais e atuais que se faz em relação à arte soviética – observa ele – é a de que existiria uma irredutível contradição entre arte e política, que seriam dois mundos incompatíveis e que toda verdadeira criação está livre organicamente sob o sacrossanto princípio da liberdade de criação (grifo dele). E que esses críticos dizem que a arte da URSS peca pela mediocridade, pela necessidade esclerosante de representar os políticos e a política, que não deixa espaço para a criação dos artistas, etc. Isso de um lado. Do outro, diz Dupré, os mesmos críticos se maravilham com o desenvolvimento das artes “du monde libre”, onde os EUA são modelo tão emblemático e onde a “liberdade de criação” paira tão democrática sobre a cabeça de todos os artistas do mundo...

Retrato de Anna Achmatova, Kuzma Petrov-Vodkin, 1925.
Galeria Estatal Tretiakov, Moscou.
Na França daquela mesma época, os movimentos de vanguarda também estavam em plena ebulição. Foi o período de surgimento de muitos ismos nas artes: impressionismo, expressionismo, dadaísmo, construtivismo, cubismo, surrealismo... Inúmeros movimentos forjaram o que ficou conhecida como Arte Moderna, que unia desde aqueles que defendiam a “arte pela arte” até aqueles que defendiam que num mundo em transição a arte cumpria um papel que ia além da manifestação estética. Fernand Léger, André Fougeron, o poeta Louis Aragon, e mesmo Pablo Picasso, com sua pintura cubista, aderiram ao Partido Comunista Francês, em períodos diversos de suas vidas. Muitos tomavam o caminho da abstração e muitos que tinham ido para a abstração retornavam à arte figurativa, como Jean Hélion, em 1939, quando escreveu que “não podia mais viver oito horas do dia de uma maneira e viver as horas restantes de outra maneira”. A realidade chamava.

Sabemos que esses movimentos e debates que ocorriam na Europa, tanto na Rússia quanto na França, tiveram grande influência nos ideais representados pela Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, movimento que se amplificou nos anos seguintes, influenciando enormemente as artes plásticas brasileiras, com nomes como o de Portinari, Di Cavalcante, Carlos Scliar, os artistas do Grupo Santa Helena, entre outros.
Retorno do Mercado, André Fougeron, 1953.
Óleo sobre tela, Tate Gallery, Londres, Inglaterra. 

Atualidades do pensamento Realista

A Beleza, como a Verdade, é relativa aos tempos em que cada um vive e a todo indivíduo capaz de o compreender”, dizia Gustave Courbet. E como “criador de beleza” – no dizer do artista e comunista português Álvaro Cunhal – o pintor pode até negar qualquer influência externa na sua obra e na sua criação artística, mas não pode estar separado do meio e do tempo em que vive. Por mais abstrata e mais conceitual que seja uma obra de arte, por vezes uma surpreendente evidência de realidade se mostra.

Estudo em branco e preto,
Burton Silverman, 2005.
Óleo sobre tela,
coleção privada, EUA
O que não poderia ser de outro modo, mesmo a contragosto das idéias de um Vassili Kandinski, por exemplo, para quem a arte deve ser purificada de qualquer vínculo com o real, deixando prevalecer o mundo subjetivo do artista. Mesmo que se viu depois, como observa Pierre Daix, que as formas puras dos quadros de Kandinski não estavam tão longe da realidade assim, quando se observam fotografias do mundo microscópico da biologia e da botânica.

Com efeito, o Real é inesgotável e fonte permanente de inspiração para o artista. Como observa Ariano Suassuna em Iniciação à Estética, “mesmo que a realidade não fosse inesgotável, bastaria a necessidade que tem cada geração, e mesmo cada um de nós, de resolver por si só cada problema em nossa própria linguagem, para tornar o conhecimento aquilo que ele é por natureza: a tentativa incessantemente renovada de explicar o homem e o mundo”. E mais à frente ele diz que “se a pintura abstrata é mais pura do que a figurativa, esta é mais humana, rica e variada, possibilitando um campo muito maior à invenção e à imaginação”.

Nessa preocupação maior em aproximar-se do Real está o pensamento de que a relação do homem com a realidade é sempre uma relação de movimento em que a consciência humana é permanentemente afetada por esta. Lembrando Karl Marx: “Não é a consciência dos homens que determina a realidade: é, ao contrário, a realidade social que determina a consciência” (Crítica da Economia Política).

Realidade que justapõe permanentemente uns indivíduos em relação aos outros, em todos os aspectos, incluindo o aspecto de classe social, cujas relações acontecem em meio aos fenômenos da vida que geram o processo histórico. Ao longo da história, a história da arte reflete também a da vida em sociedade e a história mesma da luta de classes. A arte, como um sistema de sinais e, portanto, como um tipo de linguagem universal, é o móvel que nos permite compreender a enorme cadeia de relações que se foram criando, ao longo do tempo, não só na sociedade humana em todos os seus aspectos, sejam econômicos, políticos, culturais e sociais, mas também no que diz respeito a como esta sociedade se reflete no indivíduo humano, em seu papel social e mesmo em sua psicologia. Com seu caráter universalizante, a arte realista permite essa linguagem comum que é capaz de ser compreendida em qualquer lugar, pelo mesmo sujeito histórico submetido às mesmas condições de existência.

A interpretação dos fatos da vida (vida muitas vezes exaustiva, como a do período em que estamos vivendo neste momento) por parte do artista que transforma o Real que vê e percebe em uma obra de arte que encanta e produz emoção estética, é um verdadeiro ato de “humanização do tumulto”, como fala o sociólogo Roger Bastide. A arte que torna mais humanizada a realidade que nos cerca, nos une, nos consola e mesmo nos fortalece.

A visão do artista capta do Real aquilo que é sua essência e eleva esse momento percebido ao status de Poesia, de Inspiração, o que aumenta a nossa dimensão e consciência. Diz o pensador russo do século XX, A. Ziss: "O artista, perante os fenômenos da vida, procura compreendê-los e, para isso,separa o essencial do secundário, o geral do particular, o necessário do fortuito. Diferentemente dos acontecimentos vividos, os fatos com os quais opera a autêntica arte realista não comportam nada de supérfluo. O artista "liberta", de algum modo, o fenômeno retido do contingente e parcial que obscurece a essência. Reproduz não toda a plenitude do real vivido, mas apenas os traços dominantes que encerram a "alma viva".”

A seleção operada pelo artista na matéria vivencial representada é o que torna uma obra de arte um bem que pertence, ao final das contas, a toda a sociedade e que é ilustrativa da sua história. Obras como “Os síndicos dos tecelões” de Rembrandt, como “As Meninas” de Vélazquez, como o “David” de Michelângelo, como “Narciso” da Caravaggio, como “Enterro em Ornans” de Courbet, como o “Pensador” de Rodin, ilustram facetas da vida captada pelo olhar desses artistas que continuam extasiando nossos olhos e nos mostrando como somos.
O Real se apresenta muitas vezes como os animais ferozes que são acalmados pela música da lira de Orfeu. Ele é a imagem do artista que se coloca entre a realidade e o indivíduo, com quem cria um diálogo de ser humano a ser humano, na linguagem universal que a arte proporciona.

O Real que nos solicita movimento é um desses infinitos aspectos de que é constituído e que permite mil modos de enxergar, de traduzir, de falar, de perceber, de pintar. A realidade é a potencialidade de tudo acontecer. Quando o artista cria uma obra de arte, ele está fornecendo uma parte do real vista por ele, que apresenta à visão do público, a quem se liga, mesmo que silenciosamente. É como se a obra do artista fosse uma espécie de janela para ver o real, ou o que Joel Birman chama de "irrupção do real", que se dá através da obra.

O atelier realista pratica todo o tempo esse exercício de olhar para enxergar na realidade aquilo que foge ao olhar comum, para devolver ao espectador esse momento essencial que muitas vezes nos inspira e move. Em 1789, o filósofo e poeta romântico Novalis escrevera: “Nós buscamos, acima de tudo, o Absoluto, e sempre encontramos apenas coisas”. Para a arte Realista, são exatamente essas “coisas” que se tornam o objeto de busca dos artistas, que conseguem ir além das aparências e da simples busca do Belo.

As coisas como elas são, o mundo como ele é, traz em si uma nova beleza, com todas as assimetrias possíveis, que o artista primeiro vê, depois se move, pincel em direção à tela, retratando nela com toda sua humanidade criativa aquele momento especial que ele deseja mostrar a seus semelhantes.


Velho mineiro, Mauríco Takiguthi, 2008.
Óleo sobre tela, coleção privada, São Paulo, Brasil.

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Bibliografia:
GOMBRICH, E.H. - A História da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
DUPRÉ, Michel – Réalisme(s) – Peinture et Politique. Paris : EC Éditions, 2009.
PRENDEVILLE, Brendan – La Peinture Réaliste au XXe Siècle. Paris : Thames & Hudson, 2001.
MALPAS, James – Realismo. São Paulo : Cosac & Naify, 2001.
DAIX, Pierre. – História Cultural Del Arte Moderno – de David à Cézanne. Madrid: Éditions Odile Jacob, 1998.
BASTIDE, Roger. Arte e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971.
SUASSUNA, Ariano. Iniciação à Estética. Rio de Janeiro: José Olimpio Editora, 1972.
ORTEGA Y GASSET, José. A desumanização da Arte. São Paulo: Cortez Editora, 2005.
A.     ZISS in Estética Marxista e Atualidade. Lisboa: Edições do Progresso, 1972.
CUNHAL, Álvaro. A Arte, o Artista e a Sociedade. Lisboa: Editorial Caminho, 1996.
BIRMAN, Joel. O Mal-Estar na Atualidade. São Paulo: Civilização Brasileira, 2009