quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

"Por ti, Portinari"

“Vim da terra vermelha e do cafezal. As almas penadas,
os brejos e as matas virgens acompanham-me
como o espantalho, que é o meu auto-retrato.
Todas as coisas frágeis e pobres se parecem comigo.”
(Candido Portinari)

Em 6 de fevereiro, há 50 anos, morreu o artista brasileiro de maior reconhecimento internacional: Candido Portinari. Duas homenagens à altura desse pintor acontecerão neste primeiro semestre de 2012: a escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel desfilará no sambódromo do Rio de Janeiro em homenagem ao artista, e o Memorial da América Latina em São Paulo passará a exibir os dois painéis “Guerra” e “Paz”, que depois passarão por outros países: Rússia, China, Índia e África do Sul.


Guerra e Paz


Após uma completa restauração realizada no Rio de Janeiro, os dois gigantescos paineis de Portinari serão exibidos ao público no Memorial da América Latina em São Paulo. É uma rara oportunidade de ver essas duas gigantescas telas de 14 metros por 10 cada uma, doadas pelo governo brasileiro à sede da ONU em Nova Iorque, Estados Unidos. Além de ser possível observar cerca de 100 estudos preparatórios que Portinari fez para os paineis, assim como uma amostra do Projeto Portinari, organizada pelo seu filho João Candido. No Memorial também está o painel Tiradentes, pintado por ele entre 1948-49.
Painel Guerra, de Portinari, 14 metros de altura por 10 metros de largura
Os paineis Guerra e Paz foram encomendados no final de 1952 ao pintor, para um espaço de 280 metros quadrados, maior do que o espaço que Michelangelo tinha para a pintura da Capela Sistina.


Portinari, em 1952, já havia sido proibido de pintar a óleo, por recomendação dos médicos, uma vez que ele já sofria com sintomas de intoxicação pelas tintas. Mesmo assim, Portinari aceitou o convite. Ele sabia que corria risco de morte ao aceitar esse trabalho, mas foi "uma decisão consciente e coerente com toda uma vida de militância", disse o filho do artista, João Candido Portinari, ao jornal Folha de São Paulo. "Foram nove meses pintando e ele saiu disso muito fragilizado."


Foi no auditório dos estúdios da antiga TV Tupi que durante 4 anos Portinari trabalhou na confecção de 180 estudos, esboços, maquetes e as pinturas para os murais, que foram entregues em 5 de janeiro de 1956 ao Ministro das Relações Exteriores Macedo Soares, para a doação à ONU.


Mas antes de embarcarem para os EUA, Guerra e Paz foram montados no fundo do palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, e em fevereiro de 1956 foram inaugurados pelo então Presidente da República Juscelino Kubitschek. Na ocasião, ele entregou a Portinari a Medalha de Ouro de Melhor Pintor do Ano de 1955, concedida pelo International Fine Arts Council de Nova York. Logo depois os paineis foram enviados à sede da ONU, mas somente no dia 6 de setembro de 1957, Guerra e Paz foram inaugurados em cerimônia oficial.


Mas sem a presença do pintor. Portinari era ligado ao Partido Comunista do Brasil, e o macartismo terrivelmente anticomunista que dominava os Estados Unidos naquele período, impediu que fosse concedido o visto de entrada a Portinari. Ele foi representado pelo chefe da delegação brasileira, o embaixador Cyro de Freitas-Valle, que lamentou publicamente a ausência do artista.


Portinari, com tamanho desafio à frente, realizou, só para o painel Guerra, cerca de 150 desenhos e 14 telas a óleo, como informa a pesquisadora Annateresa Fabris, da USP. Com seu traço marcantemente expressionista, ele resume nesses dois paineis todo o seu modo de ver a realidade do mundo: mães em desespero por seus filhos mortos, crianças esquálidas, retirantes, camponeses e trabalhadores sofridos, fazem do painel Guerra uma verdadeira denúncia dos horrores cometidos pelas guerras que dominaram o século XX, considerado o século mais sangrento de toda nossa história.


Nesse período, a resistência à guerra e ao nazismo e fascismo tinha alcançado também os artistas. Assim como Pablo Picasso e Bertolt Brecht, entre outros artistas humanistas, Portinari não podia se furtar a denunciar o que via em seu tempo: as consequências de duas sangrentas guerras mundiais, de massacres como nunca tinham sido vistos antes, quando homens mataram homens em conflitos bélicos, “acentuando climas de intolerância e regimes de terror, com a proliferação dos fascismos de diferentes formas - da Alemanha à Itália, da Espanha a Portugal”, como diz, em artigo, o sociólogo Emir Sader.


Não bastasse o sangue derramado nas duas guerras, duas bombas foram atiradas sobre Hiroshima e Nagasaki, o que levou o poeta Vinicius de Moraes a escrever “A rosa de Hiroshima”. Observando os detalhes da pintura de Portinari, nos sofrimentos ali expostos, nas mãos suspensas das mulheres em desespero, podemos lembrar dos versos do poeta: “Pensem nas crianças mudas telepáticas (...) Pensem nas mulheres, rotas alteradas...”


Emir Sader completa, em seu artigo: “Foi nesse marco - o da resistência e o do triunfo democrático - que uma geração notável de artistas e homens de cultura brasileiros se integraram a esse movimento internacional com o melhor de sua capacidade criativa. Os poemas de Carlos Drummond de Andrade sobre o assassinato de Federico Garcia Lorca, sobre a resistência de Stalingrado, ao lado das telas de Portinari Guerra e Paz se destacam como expressões maiores desse movimento”.
Painel Paz, de Portinari, 14 metros de altura por 10 metros de largura
No painel Paz, pessoas se movimentam, pessoas trabalham. Uma mãe está com seu bebê no colo, o filho de volta, pequeno, cheio de futuro. Um grupo de jovens canta. Muitas crianças brincam. É o recado do artista: a Paz deve ser para todos. As crianças representam o futuro da humanidade, um futuro de paz verdadeira, sem interesses bélicos que lancem as pessoas umas contra as outras, como nas guerras imperialistas.


Mas o mundo ainda não viveu esse dia. Estamos observando o desenrolar de uma crise que mais uma vez envolve os EUA e os países poderosos da Europa: há um cheiro de guerra no ar, quando ouvimos falar da Síria ou do Irã. A lição ainda não foi aprendida pelo senhores da guerra e os EUA, principalmente, ainda insistem na solução da morte para se imiscuir nos problemas internos da nações soberanas do mundo.


Guerra e Paz vão voltar à sede da ONU em 2013. Os poderosos do mundo vão continuar passando através deles, na entrada e na saída do prédio. E o recado do artista estará lá, em seu grito silencioso. Até que um dia os povos do mundo façam esse grito ser ouvido...


Serviço:
Exposição dos paineis GUERRA e PAZ
Memorial da América Latina
Barra Funda - São Paulo
De 6 de fevereiro a 21 de abril


O Samba para Portinari


Mas... como o mundo não é só guerra e o Brasil é também o país da celebração, a Mocidade Independente de Padre Miguel vai levar a arte de Candido Portinari para a Marquês Sapucaí no próximo carnaval, com o enredo “Por Ti, Portinari. Rompendo a tela, a realidade”.


O carnavalesco Alexandre Louzada pretende mostrar a infância do pintor em Brodowski, os grandes murais, pinturas como “Os retirantes”, as favelas e o carnaval que Portinari pintou. E lá também estarão representados os paineis "Guerra e Paz".


Este é o samba-enredo, de autoria de Diego Nicolau, Gabriel Teixeira e Gustavo Soares:


Por Ti, Portinari. Rompendo a tela, a realidade


Eu guardei
A mais linda inspiração
Pra exaltar em tua arte
A brasilidade de sua expressão
Desperta gênio pintor
Mostra teu talento, revela o dom
Deixa a estrela guiar
Faz do firmamento, seu eterno lar


Solto no céu feito pipa a voar
Quero te ver qual menino feliz
Planta a semente do sonho em verde matiz
Emoção, me leva...
Livre pincel a deslizar
Vou navegar, desbravador
Um errante sonhador
Voar pelas asas de um anjo
Num céu de azulejos pedir proteção
Vida de um retirante
No sol escaldante que queima o sertão


Moinhos vencer... Histórias de amor
Riscar poesias em lápis de cor
Você, que do morro fez vida real
Pintou nossos lares num lindo mural
Você, retratando a alma, se fez ideal
Meu samba canta mensagens de "Guerra e Paz"
Seu nome será imortal em nosso Carnaval
É por ti que a Mocidade canta
Portinari, minha aquarela
Rompendo a tela, a realidade
Nas cores da felicidade
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Mais textos sobre Candido Portinari neste blog:


 Candido Portinari no MAM de São Paulo
 Um samba para Portinari
 Portinari de todos os tempos


Links para o Projeto Portinari:


Projeto Portinari
Paineis Guerra e Paz


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Veja abaixo o video onde o presidente Lula, na ONU, apresentou os paineis GUERRA e PAZ de Portinari:


quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

"O tempo em que o mundo tinha a nossa idade"



"Quero pôr os tempos em sua mansa ordem, conforme esperas e sofrências. Mas as lembranças desobedecem, entre a vontade de serem nada e o gosto de me roubarem do presente. Acendo a estória, me apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz.
Sou chamado de Kindzu. É o nome que se dá às palmeiras mindinhas, essas que se curvam junto às praias. Quem não lhes conhece, arrependidas de terem crescido, saudosas do rente chão?"


Terminei de ler "Terra sonâmbula" de Mia Couto, escritor moçambicano que transforma prosa em verdadeira poesia. Como Guimarães Rosa - que ele conhece bem - qualquer coisa do mundo, mesmo a fome, mesmo a guerra, mesma a solidão... vira coisa bela. Para mim, isso faz o artista: captura qualquer imagem do seu mundo, tempera-a com o fogo de seu próprio coração, após atravessar muitas vezes a barreira de lágrimas formadas em seus olhos, e devolve ao mundo o que viu e sentiu, em forma de arte. Para que as pessoas possam ver o mundo, ver e rever, perceber, com outros olhos. Ver, rever, perceber, mudar o mundo.


Me lembrei de uma frase do poeta Mário Quintana, que, com sua licença, faço uma adaptação: A Arte não muda o mundo, a Arte muda o homem. E o homem  muda o mundo...


Fiquei com vontade de pintar o rosto de Kindzu, um Kindzu já velho, pleno de experiência, marcado pelos sofrimentos da sua gente moçambicana, repleto da mais pura poesia que sai de seus olhos vermelhos. Em nossa língua portuguesa.


Acima está o meu "Kindzu dos olhos vermelhos", pastel sobre papel canson.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Grandes exposições em 2012

Desde outubro de 2011, inúmeros eventos marcam o Ano da Itália no Brasil, com espetáculos artísticos e culturais que vão desde apresentações de teatro, arte, música, feiras, festas, esportes e cinema, que marcam as profundas relações culturais entre os dois países.


O Brasil possui mais de 30 milhões de descendentes de italianos, que moram sobretudo em São Paulo, que será um dos grandes palcos desses acontecimentos artísticos e culturais. Mas a programação do Momento Itália-Brasil não se restringe a São Paulo: estará presente em todo o Brasil, como mostra esta Programação (clique aqui para abrir o arquivo em PDF).


Destacamos dois grandes eventos, entre outros (mostras dos artistas Eliseu Visconti, Amadeo Modigliani, De Chirico, Maria Bonomi, etc):


1 - Roma – A Vida e os Imperadores
Cícero, arquivo da Galeria
Uffizi


No MASP, em São Paulo, a partir de 25 de janeiro.


Essa exposição (que já passou por Belo Horizonte) pretende recontar a trajetória do povo e dos imperadores romanos no período tardio da República e primeiros séculos do Império Romano por meio da arte, da arquitetura triunfal, das cerimônias de poder, da vida cotidiana, das célebres conquistas e da opulência do Império. É a primeira vez que esse acervo sai de instituições da Itália como o Museu Arqueológico Nacional de Florença, o Museu Nacional Romano, o Museu Nacional de Nápoles, o Antiquário de Pompéia, o Museu Arqueológico de Fiesole e a Galeria Uffizi.


O curador, Guido Clemente, professor de História Romana da Universidade de Florença, escolheu privilegiar o ponto de vista do exercício do poder por parte dos imperadores de Roma. A variedade das peças trazidas ao Brasil permite ao visitante visualizar um pouco como foi o mundo do império romano em seus diversos aspectos, desde o poder do Imperador até aspectos da vida social e familiar, da escravidão, da economia, da religião, do trabalho, das moradias.


Baixo-relevo com Vendedor de Travesseiros,
da Galeria Uffizi
Lá estarão expostas três paredes com afrescos da Vila de Pompéia, estátuas de Júpiter, de Lívia (esposa de Augusto) e da deusa Isis, a Cabeça Colossal de Júlio César em mármore, máscaras teatrais, escultura de Calígula, Armadura de Gladiador, desenhos do Coliseu, a Lamparina de Ouro e cerca de 60 joias.


Roma - A Vida e os Imperadores foi estruturada em ordem cronológica. O ponto de partida é o processo de estabelecimento do Império, período revivido por meio da vida e obra de César e Augusto, seus fundadores, e o destino final é o terceiro século, considerado o apogeu do domínio de Roma.


São quatro as divisões da exposição:
1. Entre César e Augusto: o nascimento do Império
2. Nero
3. O apogeu do Império
4. Um Império multicultural


No total são 370 peças e obras originais do período tardio da República e primeiros séculos do Império Romano. 


Local:  1º  e 2º subsolos do MASP (Avenida Paulista, 1578).


2 - Caravaggio e os Caravaggescos


Narciso, Caravaggio
Como já havíamos anunciado antes aqui neste Blog, a exposição Caravaggio e os Caravaggescos trará ao Brasil um conjunto de 24 pinturas nunca antes vista por aqui, que percorrerá os estados de Minas Gerais e São Paulo.


A mostra contará com oito obras do mestre do Barroco italiano, Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610), e mais 16 pinturas realizadas por seus seguidores, os chamados “caravaggescos”. 


São eles: Giovanni Baglione (1573-1644), Orazio Gentileschi (1563-1639), Artemísia Gentileschi (1597-1652), Carlo Saraceni (1579-1620), Mattia Preti (1613-1699), Bartolomeo Cavarozzi (c. 1590-1625), Giovanni Antonio Galli conhecido como Spadarino (1580-1650), Tomaso Salini (1575-1625), Giovanni Serodine (1600-1631), Giuseppe Vermiglio (c. 1585-c. 1635), Niccolò Musso (1580/90-c. 1622) e Lionello Spada (1576-1622).


São Francisco em meditação,
Caravaggio
De 03 de abril a 03 de julho de 2012:


Casa Fiat de Cultura
Rua Jornalista Djalma Andrade, 1250 - Nova Lima MG
+55 31 3289.8900 | Fax +55 31 3289.8920
www.casafiatdecultura.com.br
Terça a sexta das 10 às 21hs | sábados domingos feriados das 14 às 21hs


De 12 de junho a 19 de agosto de 2012:
Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand – MASP
Av. Paulista, 1578 - São Paulo SP
+55 11 3251.5644 | Fax +55 11 3284.0574
masp.art.br
Terça a domingo das 11 às 18hs | quinta das 11 as 20hs




São João Batista, Caravaggio
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Além destas, outras exposições estão sendo programadas para 2012:

1. Portinari - Memorial da América Latina - exposição dos murais “Guerra” e “Paz”
6 de fevereiro a 21 de abril


2. Índia - CCBB
Mais de 300 peças que tratam da religiosidade indiana, da vida de sua população, da formação da Índia moderna. (Esta exposição está atualmente no CCBB do Rio de Janeiro)


3. Alberto Giacometti - Pinacoteca
Primeira exposição retrospectiva no Brasil com cerca de 70 esculturas, de vinte a trinta pinturas, 60 a 80 obras sobre papel e trinta fotografias provenientes da Fondation Giacometti e outras coleções.
De 26 de março a 17 de junho (vai também para Curitiba, Rio de Janeiro e Porto Alegre)


4. Giorgio de Chirico - Masp
De 19 de junho e 20 de setembro.
45 pinturas e onze esculturas produzidas entre os anos 60 e 70, além de 66 litografias de 1930, apresentadas juntas pela primeira vez. A exposição passará por Belo Horizonte e Porto Alegre.


5. Homenagem a Lina Bo Bardi - Casa de Vidro
A arquiteta recebe homenagem no segundo semestre de 2012. 15 nomes estão confirmados, entre eles o holandês Rem Koolhaas, o brasileiro Cildo Meireles, o argentino Adrian Villar Rojas, o estadunidense Arto Lindsay, o francês Dominique Gonzalez-Foerster e o inglês Norman Foster.


6. II Bienal de Graffiti - Mube
Entre setembro e outubro de 2012, com artistas nacionais e internacionais, contando a história do graffiti no Brasil e no mundo, influências recebida de movimentos artísticos do século XX e tendências atuais

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Por um mundo mais belo para todos!

Que todos sejamos felizes neste fim de ano!
Que todos sejamos felizes em 2012!
Que o mundo se torne mais belo,
mais harmonioso, mais justo!


U
m mundo melhor!
Um mundo bom e igual para todos!
Um mundo de Paz!


Como diz o poeta Vinícius:
"Que tudo seja belo e inesperado"!
Que  nossos olhos possam se abrir e perceber essa
"divisória que nos separa do mistério das coisas
a que chamamos Vida",
como disse também Victor Hugo.



Feliz 2012 para todos!

Albert Moore, Azaléias.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Antes que o ano acabe...

Estudo em pastel preto&branco sobre uma pintura de Rembrandt - dez/2011

Rainer Maria Rilke, poeta e escritor de língua alemã, nascido em Praga (atual República Tcheca) no final do século XIX (1875), certa vez recebeu uma carta de um jovem poeta, acompanhada de um poema, para o qual ele solicitava uma opinião sincera de Rilke. Queria saber se era de fato um criador, um artista.


Estudo com pastel em tons de cinza,
dezembro/2011
Lembrei disso ao terminar este estudo acima, em pastel, sobre um auto-retrato de Rembrandt. Após dias observando a forma de trabalhar daquele maravilhoso pintor holandês, tentando seguir em sua direção, eu pegava no pastel sentindo, alternadamente, a dor e a delícia que toma conta de mim em minhas tentativas de representação pictórica do mundo. Há um sofrimento inerente a esse processo, ao qual me sinto incapaz de fugir: apanho muito, muito enquanto desenho e pinto, nessas preliminares que antecedem o surgimento da figura que quero ver surgir no meu cavalete. Sofro se não alcanço o ponto certo, o tom certo, o valor certo. Sofro se há mais sombra do que devia; se uma certa sutileza foge de mim, se uma massa muito ampla se transforma numa espécie de bicho selvagem que não domino e que me domina; sofro se minha mão oscila, treme, fica insegura quando o toque deve ser o mais leve ou o mais pesado naquele ponto... Mas a delícia vem... Após horas de trabalho, suor, tensão, angústia, a figura vem se mostrando ali na minha frente, com uma harmonia que parece inacreditável, um equilíbrio ainda um tanto quanto incerto, mas que me mostra uma possibilidade de crescimento maior a partir dali... Parece que se abre um mundo imenso de possibilidades novas, uma coisa que às vezes é tão grande, tão grande que parece muito maior do que eu possa transmitir... 


Desenho desde o jardim de infância. Cresci desenhando. Minha vida tem sido em torno do desenho, mesmo que durante anos eu tenha me voltado para o desenho gráfico virtual, com o computador. Mas o desenho está sempre – esteve sempre – a minha vida inteira ali à minha espreita, quando eu pensava que já não precisava mais dele e que o computador estava aí para acelerar todos os processos... Ledo engano. O computador serve a outro tipo de produção. Jamais vai substituir o traço incerto, oscilante, denunciante da alma humana, da mão criadora do mundo. Uma máquina não substitui a alma e o coração do artista...


Olhei de novo para meu estudo sobre Rembrandt. O que ele, Rembrandt, acharia disso? Será que ficaria satisfeito com meu trabalho? Como me avaliaria? Lembrei de Rilke. Peguei o livro na minha estante “Cartas a um jovem poeta”. Li a primeira carta, que já tinha lido antes outras tantas vezes.


Cópia inacabada em óleo da obra "Moça com
brinco de pérola" de Jan Vermeer - outubro/2011
Estavam lá estes dois trechos que mais me tocam: 


 - o primeiro, que fala da dificuldade que temos de traduzir o real que vemos e experimentamos. As palavras faltam. As palavras falham. As palavras são ainda poucas, confusas, estranhas. Há algo no Real que continua indizível. E até invisível para quem não sabe Ver. Fala Rilke: 


“As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos suscetíveis de expressão do que qualquer outra coisa são as obras de arte, — seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa, efêmera.”


A segunda parte da carta, provoca o artista, interroga-o: você consegue viver sem desenhar, pintar, escrever? Não??? Então transforme sua vida na busca disso do qual você não consegue fugir. Fale, Rilke:


“Pergunta se os seus versos são bons. Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a periódicos, compara-os com outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas são recusadas por um ou outro redator. Pois bem — usando da licença que me deu de aconselhá-lo — peço-lhe que deixe tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, — ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila de sua noite: "Sou mesmo forçado a escrever?” Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples "sou", então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão. Aproxime-se então da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde.” 


O pequeno Arlequim e sua mãe, pastel colorido, novembro/2011