terça-feira, 22 de setembro de 2015

A poeira do Tempo - 2

São Jerônimo em seu escritório,
Jan Van Eyck, 1442
A palavra Vanitas vem diretamente da frase bíblica “Vanitas vanitatum et omnia vanitas” (Ec.1:2 - “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”.)

A pintura mais antiga de Vanitas é o retrato de São Jerônimo, um santo intelectual, doutor da Igreja, onde lembra "ao homem de carne e osso que ele não é nada face ao poder aniquilador do tempo”. Um desses primeiros retratos foi pintado pelo flamengo Jan Van Eyck, a quem se atribui a invenção da tinta a óleo. Esta pintura pertence atualmente ao Institute of Arts of Detroit, EUA. Ela foi a base para muitas outras que foram feitas nos séculos seguintes, usando o mesmo tema e o mesmo São Jerônimo, por diversos artistas como Antonelo de Messina, Carpaccio, Lourenzo Lotto, Petrus Christus e muitos outros. Incluindo o mestre alemão Albrecht Dürer, que o pintou em 1521.

Mas Vanitas tem uma “dupla filiação ideológica”, afirma Calheiros. “Por um lado, dos círculos humanistas centro-europeus e italianos dos séculos XV e XVI, revisitadores das antigas alegorias “memento mori” dos latinos clássicos (sendo a mais conhecida o mosaico de Pompeia); e por outro lado, da atmosfera intelectual e religiosa de Leyden, bastião calvinista, que condena com severidade puritana tudo o que é considerado excessivamente hedonista e mundano”. Do lado da Contra Reforma e seu fervor religioso, também era importante enfatizar a inevitabilidade da morte, a reflexão sobre as vaidades das coisas terrenas, a efemeridade da vida.

Mosaico antigo de Pompeia
Mas em Pompeia antiga, aponta o professor português, o século I da nossa Era já imprimira em mosaico a representação da tête de mort, o crânio humano. No século XV começaram a aparecer as primeiras pinturas com este tema: “memento mori”, “dança macabra” e “vanitas” surgiam com espécies de legendas pintadas nas telas, como esta abaixo do pintor Jan Gossaert que inscreveu em latim em seu “Díptico de Carondelet” (1517): “Aquele que considera sempre a proximidade da morte, aceita facilmente tudo” (“Facile contemnit omnia qui se semper cogitat moriturum”). 

Foi algo assim que influenciou, mais tarde, o ceticismo metafísico de Caravaggio que gostava deste lema: “Perdida a Esperança, perde-se o medo”.
 
"Díptico de Carondelet",  Jan Gossaert, 1517
O grande mestre alemão Albrecht Dürer também pintou seu “memento mori”, por volta de 1528, ano de sua morte. Escreveu embaixo de sua caveira: “Não existe nenhum escudo que vos possa defender da morte; quando chegar a vossa vez morrereis, crede em mim”.

"Memento mori", Albrecht Dürer
A partir da segunda metade do século XVII o gênero “Vanitas” se consagra. David Bailly, pintor da Escola de Leyden, fará em 1651 uma grande composição com seu auto-retrato onde segura um segundo retrato seu nas mãos, mais "envelhecido" em uma maravilhosa Vanitas, onde aparecem objetos pessoais e coisas de seu trabalho de artista, como um desenho colado na parede (esta imagem abre o post anterior).

Muitos pintores flamengos e dos países-baixos irão produzir variadas Vanitas. Na França, o tema foi introduzido pela importante comunidade flamenga de Saint-Germain de Prés. O tema é mais raro na Itália, aparecendo, contudo, na obra de Salvatore Rosa e Giuseppe Recco.

Na Espanha, o pintor Antonio de Pereda y Salgado pintará várias Vanitas. A mais conhecida é "O sonho do cavaleiro" (veja abaixo), feito por volta de 1670, que apresenta um homem adormecido sentado em uma cadeira, a cabeça apoiada na mão. O resto da composição apresenta uma variedades de objetos: livros, partituras, uma pistola, um globo, uma couraça e braçais de armadura, flores, jóias, cartas de jogar, moedas, uma máscara, um livro aberto, uma vela apagada, um relógio e dois crânios, (um frontal, muito iluminado, e o outro visto por baixo, “da mesma forma que vem representado nas gravuras do tratado do anatomista Andrea Vesallius em “De Humani Corporis Fabrica”, de 1568”, observa Luís Calheiros). O anjo, no centro da tela, estende uma legenda que diz: “Aeterne pingit ito vola et accidit” (“A glória eterna esvai-se como um sonho”). 

E tudo isto relacionado à famosa peça de Calderón de la Barca, "La Vida es Sueño", cujo trecho destaco aqui:

“Sueña el rey que es rey, y vive
con este engaño mandando,
disponiendo y gobernando;
y este aplauso, que recibe
prestado, en el viento escribe,
y en cenizas le convierte
la muerte, ¡desdicha fuerte!
¿Que hay quien intente reinar,
viendo que ha de despertar
en el sueño de la muerte?

Sueña el rico en su riqueza,
que más cuidados le ofrece;
sueña el pobre que padece
su miseria y su pobreza;
sueña el que a medrar empieza,
sueña el que afana y pretende,
sueña el que agravia y ofende,
y en el mundo, en conclusión,
todos sueñan lo que son,
aunque ninguno lo entiende.

Yo sueño que estoy aquí
destas prisiones cargado,
y soñé que en otro estado
más lisonjero me vi.
¿Qué es la vida? Un frenesí.
¿Qué es la vida? Una ilusión,
una sombra, una ficción,
y el mayor bien es pequeño:
que toda la vida es sueño,
y los sueños, sueños son.”


"O fim da glória do mundo", Juan de Valdés Leal
Outro pintor espanhol que se voltou para o tema de Vanitas foi Juan de Valdés Leal. A mim, pelo pouco que conheço da cultura espanhola, o tema de Vanitas com certeza atrairia a atenção dos angustiados espanhois. Em minha viagem a Sevilha (maio de 2015), vi de perto muitas pinturas que giram em torno deste assunto. Valdés Leal - contemporâneo de Velázquez - pintou as Alegorias “Finis gloriae mundi” (Fim das glórias mundanas) e “In ictu oculi” (Um abrir e fechar de olhos) em 1672 para a Igreja do Hospital da Caridade de Sevilha, onde admoestava a todos sobre a caducidade dos bens materiais e a brevidade da vida terrena. Francisco de Zurbaran, outro pintor espanhol sevilhano, também trabalhou no tema.

"Três crânios", Paul Cézanne
Nos tempos mais modernos, Vanitas retorna à pintura com Paul Cézanne ("Três crânios"), com Georges Braque ("Crânio, colar e crucifico", 1938) e Pablo Picasso ("Crânio com alho francês e vasilhas de cozinha", 1942).

Assim como Vanitas, a arte se voltou para outros símbolos desta mesma temática mais “escatológica”, vamos dizer assim. Muitos pintores se voltaram para temas como os "Apocalipses", os "Juízos Finais", as "Danças Macabras" e os "Triunfos da Morte", as "Procissões de Esqueletos e Condenados", as "Mascaradas da Morte", as "Três idades e a Morte", as "Degradações dos últimos tempos", etc. Estes foram temas que marcaram a Alta Idade Média e os primórdios do Renascimento.

E os primórdios do Capitalismo, o sistema econômico e político que se baseia na propriedade privada, na geração de lucros e na acumulação de riquezas. Vale lembrar que a Igreja Católica, grande acumuladora de bens, exortava seus fiéis a fugir da riqueza e das vaidades do mundo. Mas quando surgiu a Reforma Protestante, os Calvinistas incentivaram seus seguidores à prosperidade econômica, coisa que fez com que países como a Holanda, por exemplo, se desenvolvesse como centro comercial e financeiro ainda naquela época.

Podemos dizer que o capitalismo nasceu em um tempo em que o tema da morte era o espectro que pairava de forma enfática sobre todas as cabeças… Capitalismo e morte, irmãos siameses. Sistema que lucra inclusive com as guerras que produz, com as indústrias armamentistas que produz, e que produz a imagem atual mais marcante sobre a morte: a foto do garotinho sírio Alyan Kurdi. Esta imagem ao lado queimará nossas retinas durante ainda muitas décadas... Não consigo olhar para ela sem as lágrimas saltarem dos meus olhos...

Mas, voltando àquele tempo passado, as cidades foram devastadas pela Peste, as ações sanitárias e médicas eram insuficientes, a subnutrição e a falta de higiene potencializavam ainda mais os temas apocalípticos e as pregações do final dos tempos. Além de tudo, as guerras, que se espalhavam e eram medidas utilizadas no processo de construção da história europeia, marcada profundamente pela morte. Sem falar nas duas guerras grandes do século XX...

Os cidadãos e cidadãs que viviam naqueles tempos - e pouco, porque a vida humana durava em média 30 ou 40 anos - eram conscientes da realidade que ia ceifando vidas, “dizimando milhões de ‘almas’ de todas as classes e idades, sem exceções nem contemplações, aceitando no seu seio maldito a igual dignidade de mortais que existe na mais desvairada diversidade da espécie humana, que nos une a todos, para lá de todas as diferenças - credo, ideal, tradição cultural, nação, etnia, tribo, clã, casta, linhagem, classe (condição social), raça, sexo, idade, idiossincrasias, loucuras, excessivas normalidades…”, diz Luís Calheiros.

Detalhe de "O Inferno e o Dilúvio",
Hieronymus Bosch
Tempos em que as pessoas despertavam logo cedo para o sentimento trágico da vida, “para a amarga pena que é o viver diário”. E também despertavam, segundo Calheiros, para o sentimento da individualidade, da solidão irrepetível de cada um, separado e diferente do outro, separado da noção de coletividade. O sujeito humano se vê jogado sozinho nas armadilhas do mundo, nos porões das fábricas, nas longas filas para receber seu quinhão de salário, em longas jornadas diárias de trabalho exaustivo, sentindo o peso pesado da existência nessas condições…

Isso casava muito bem com as reflexões sobre a finitude da vida, sobre os mistérios de mundos reais e imaginários; a vida sob a batuta do medo e da esperança da salvação eterna, já que a vida terrena não salvava de nada… 

O poema sagrado de Dante Alghieri, a “Divina Comédia”, já tinha surgido no século XIV, levando seus leitores a um périplo pelo Inferno, Purgatório e Paraíso. Hieronymus Bosch, o grande pintor holandês da tragicidade da vida, já pintara seu “Julgamento final” no final do século XV. Assim como Pieter Brueghel, o Velho, mostrou o “Triunfo da Morte” em seu célebre quadro.

O tema da “Dança macabra” ou “Dança da Morte” também reinava no final da Idade Média e mostrava, na Literatura, na Pintura, na Escultura, na Gravura e na Música que a morte atingia a todos indistintamente. Os grandes mestres da velha escola alemã se voltavam para este assunto: Mathias Grünewald, Lucas Cranach, Nicholas Manoel Deutsch, Hans Baldung Grien ou Joaquim Patinir. 

Isto muito tempo antes do movimento Expressionista Alemão que retomou estes temas da tragicidade da vida, como Edward Munch, Egon Schielle, Georges Grosz, Kathe Kollwitz e Max Beckmann.

E, mais uma vez, os espanhois: os pintores tenebristas do século XIX espanhol José Gutierres Solana e Ignácio Zuloaga, com sua pintura sombria, ao revés da pintura iluminada de seu contemporâneo Joaquín Sorolla.

Paralelamente, a alma do povo tinha sua própria iconografia do tema da morte, que se multiplicava em cantos, estórias, práticas religiosas, imaginário em torno das penas do inferno e do purgatório, dos diabos e da morte, das almas penadas, dos espíritos que apareciam, das ameaças de outros espíritos malignos, dos exorcismos, das possessões…

Vale lembrar também do tema da moda naquela época e que inspirou o poeta francês François Villon: o tema do "Ubi sunt", um termo latino que significa "onde estão?". Onde estão as riquezas de outrora? A beleza de outrora? A juventude de outrora? Em seu poema "Balada dos tempos perdidos", ele repete o verso

"Mais où sont les neiges d'antan?" ("onde estão as neves de antanho?")

----- CONTINUA NO PRÓXIMO POST -----


"O sonho do cavalheiro", Antonio de Pereda
Vanitas, Philippe de Champaigne, 1671
Vanitas do pintor australiano, falecido em 2012, Kevin Best: "Natureza-morta infinita"
"Madalena com as duas chamas", Georges de la Tour

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

A poeira do Tempo - 1

"Vanitas e autorretrato", David Bailly, óleo sobre tela
Há certo tipo de “natureza-morta” pintada ao longo do tempo por diversos artistas sob o título de “Vanitas”. São pinturas de caráter especial, uma vez que trazem como mensagem filosófica o tema da efemeridade da vida e da certeza da morte. 

É um tema muito antigo, que acompanha a história da arte desde os primórdios da história, mas tomou ainda mais fôlego por volta do século XVII, em especial na Holanda, em Leyden. Aquela região da Europa, por onde passou a Reforma Calvinista, propiciou uma atmosfera religiosa e intelectual onde também se gestou o tema de Vanitas.

Vanitas é uma palavra de origem latina, com fonte no livro do Eclesiastes, e significa "vaidade". O objeto que aparece em todas as pinturas com este tema é a caveira, o crânio humano. Ela traduz, de maneira simbólica e enfática, a nossa relação com a morte.

Mas por que um tema como este merece alguma atenção nos dias de hoje? Merece tanta, que resolvemos nos debruçar sobre este assunto e dividir este texto em três posts, em continuação.


O tema de Vanitas e o tema da Morte são cada vez mais atuais, mais contemporâneos. Chegamos num estágio da humanidade em que - imergidos num mundo onde as lutas pela sobrevivência, a fome e as guerras impelem milhares de pessoas pelos caminhos em busca de vida - pensamos, de fato, que estamos assentados bipolarmente em frente a uma caveira: de frente, encaramos o fato de que todos morreremos; de costas para ela, fazendo de conta que a ignoramos, criamos o caos à nossa volta.

Mas aqui é preciso dizer que este caos contemporâneo é intensificado pelo sistema capitalista e seu mercado financeiro atual que gera muito dinheiro que não existe e que pertence a poucos, enquanto lança a imensa maioria da humanidade nesta situação:

jornadas e cargas humanamente intoleráveis de trabalho
estresse diário com o tráfego nas metrópoles 
quase um bilhão de pessoas que passam fome em pleno 2015 
correntes migratórias que crescem em números astronômicos 
guerras, fabricação e vendas de armamentos pesados de guerra
fanatismos e radicalismos de toda ordem, religiosa e ideológica 
violência nas grandes cidades
existência de redes organizadas de traficantes de entorpecentes ilegais
violência policial
indústria farmacêutica que "cria" novas doenças e entorpecentes legalmente vendidos (nunca se vendeu tanto remédio para depressão como nos dias atuais)
políticos e executivos que se enriquecem a si mesmos com dinheiro público
imensa falta de perspectiva de felicidade num mundo voltado para a geração de lucro

Entre muitas coisas mais.

Falemos de Vanitas.


Mosaico de Pompeia
Fazendo uma passagem pelo livro de Umberto Eco “História da Feiúra”, em busca de saber mais a respeito do assunto, os caminhos da internet me levaram a encontrar um artigo acadêmico do professor português Luís Calheiros, que também é pintor e pesquisador de Teoria da Arte em Viseu, Portugal. Em seu texto, escrito de forma muito eloquente e com bastantes referências de imagens, me inspirei, assim como na leitura de Umberto Eco, que inclui também seu “Arte e Beleza na Estética Medieval”.

O tema de Vanitas, apesar de datado no tempo, o ultrapassa. Como já falamos, nos confrontamos no mundo atual com a atualidade desta questão, que nos acompanha desde que nascemos e que se intensifica na medida em que envelhecemos: a angústia causada pela consciência de que somos mortais. 

As pinturas feitas dentro do tema de Vanitas, mesmo as mais simples trazem dentro de si muita expressividade e significado. Muitas delas faziam alusões filosóficas de forma óbvia, pois traziam legendas que falavam da efemeridade da vida e da morte certa. Essas pinturas traziam em si um convite à reflexão sobre a precariedade dos prazeres mundanos, o vazio das ostentações vaidosas, o engano pelo apego excessivo às riquezas materiais de que se rodeia e “a realidade ameaçadora do triunfo final da morte”, como diz o professor Calheiros. Tudo isso explicitado através de um símbolo mais imediato e certeiro - a caveira.

Este tema chegou a ser moda no século XVI e durante todo o século XVII. No século XVIII ele ainda aparecia nas pinturas em toda a Europa.

Mas seu passado é ainda mais remoto. Desde o século XV, a representação solitária da caveira aparecia em diversos materiais de propaganda religiosa, anteriores e posteriores ao Concílio de Trento e ao surgimento da Reforma Protestante. O imenso afresco “Juízo Final” - cerca de 13 por 12 metros - pintado por Michelangelo no altar da Capela Sixtina entre 1535 e 1541, contribuía também para criar esse ambiente em que a morte estava sempre à espreita. Segundo Luís Calheiros, foi nessa fermentação de ideias que surgiram os primeiros sinais dos futuros estilos “tenebrista” e “maneirista” e, especialmente, do Barroco, que se espalharam por toda a Europa, atingindo outros continentes, como o nosso Brasil, posteriormente.

Mas o século áureo das naturezas-mortas (ou still-life em inglês, bodegón em espanhol e nature-morte em francês) foi mesmo o século XVI. Assim como o de Vanitas.

O significado direto de Vanitas, diz o professor, é sobretudo o de um “verdadeiro aviso”: uma “repreensão lapidar sobre a ignorante leviandade das vaidades mundanas; a inconsciência alheada dos excessos e finitudes várias do Homem - os seus vícios e horrores, as suas paixões desonestas, desvairadas de cegas, funestas; os seus apetites venais insaciáveis; as suas perigosas irracionalidades; as suas pulsões inconfessáveis; e, em geral, uma distância circunspecta por tudo o que se aprecia, sem freio e pudor, com desbragado hedonismo, neste mundo de carnalidades e materialismos primários, doentiamente consumista e fetichista, inundado pelos prazeres mais desatinados” (grifo meu).


"Por trás da máscara de beleza
espreita a morte", vanitas,
de Johann Caspar Lavater (1775-78)
 
E o aviso é: isto tudo tem fim!


Por isso, a presença da caveira nestas naturezas-mortas entra em contraste violento com objetos que a rodeiam: objetos de ostentação, de luxo, de erudição, de estudo, de pompa, de poder. A caveira é a terrível alegoria da morte próxima e justa, que atinge a todos sem distinção. “Um apelo ao instante arrependimento que tarda, pela vacuidade da vida guiada pela mais leviana ilusão, ao aproximar-se, com o triunfo derradeiro da morte, o severo fim para as frivolidades mundanas. São histórias contadas visualmente, narrativas exemplares, com um recorte moral fortíssimo, um registo severo de recriminação ética, com um alcance filosófico que poderemos chamar mesmo de proto-existencialista”, observa Luís Calheiros.

Se pretendia, com estas obras da pintura, “irmã da Poesia” - no dizer do poeta lírico romano Horácio - “traduzir o discurso melancólico-ascético, contemplativo, estóico, puritano, saído das convulsões ideológicas e religiosas do século XVI, um discurso condenador das materialidades mais apelativas do viver mundano, e ainda das atividades predadoras e hieraquizadoras do viver social com todo um rol de evidentes iniquidades, a injustiça revelada na desigualíssima distribuição dos bens e riquezas, a roda da fortuna separando implacavelmente os poderosos, que tudo possuem, dos expoliados que nada têm de seu, morrendo igualmente todos e tudo deixando, muito uns, outros pouco, (justiça final, ironia última do fim dos tempos!), das satisfações cegas dos prazeres mais primários e sórdidos, dum hedonismo fetichista cada vez mais generalizado - sinal dos tempos - a modernidade do capitalismo emergente”.

Essas naturezas-mortas intemporais, que tratam de temas mórbidos, fúnebres, macabros, tétricos - também anunciam todo o tempo a verdade mais radical de todas: a Morte é o fim último e derradeiro de todo ser que respira.

A composição destas pinturas sempre são feitas com estes tipos de objetos:


Vanitas de Pieter Claesz
Os que aludem à vida espiritual e contemplativa: livros, quadros, esculturas, máscaras, instrumentos musicais, máquinas e mecanismos científicos;
Os que representam a vida materialista e sensual, como: espelhos, colares, pérolas, jóias e outros adornos femininos, e ainda flautas e violas, símbolos fálicos e rotundos, moedas de ouro e prata, objetos preciosos, coisas de grande aparato, de ostentação e fausto, ricos panos de armar com as suas borlas de ouro fino, panejamentos drapeados dos mais requintados tecidos, veludos, sedas e brocados, desdobrando os seus bordados de ornato rico, coroas, tiaras, mitras, medalhas e outros adereços de honra, ou ainda armas, armaduras, elmos, escudos, emblemas heráldicos, e toda a panóplia de instrumentos bélicos e sinais de subida hierarquia
Os objetos que evocam a brevidade da vida física: ampulhetas e diversificados relógios, cronômetros, clepsidras, flores perdendo as pétalas e definhando, frutos apodrecendo, folhas secando e murchando, pedras desgastadas e rachadas, gretadas, velas apagando-se, cachimbos pousados, ainda a fumegar, taças de vinho tombadas
E o objeto-mor, sempre presente, a Caveira. Em algumas pinturas também se podem ver outros ossos como as tíbias, ou o esqueleto completo, muitas vezes erguendo um gadanho, a arrepiante foice da morte. 
Além de inscrições de aviso cruel sobre o fim dos fins, quase todas retiradas do livro do Eclesiastes, na Bíblia, observa Calheiros.
----- CONTINUA NO PRÓXIMO POST -----

Vanitas, de Pieter Boel

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Guerra e Paz, ainda mais atual

Paineis "Guerra e Paz", de Candido Portinari
Hoje, 8 de setembro, os paineis "Guerra e Paz" de Candido Portinari voltam a ocupar seu lugar dentro das dependências do prédio das Nações Unidas em Nova York.
Candido Portinari
João Candido, filho do pintor, em entrevista à BBC Brasil, diz que o quadro continua atualíssimo. Basta lembrar da guerra do Iraque e de outros conflitos atuais. "Agora, tenho que incluir a foto no menino sírio morto em uma praia turca", disse ele.
João também observa que o painel "Guerra" não traz imagens nem de armas, nem de tanques, nem de soldados. Candido Portinari preferiu focar-se nos sofrimentos que as guerras produzem nas pessoas; os mesmos que hoje podemos observar nas centenas de imagens dos imigrantes ao redor de países europeus, africanos e asiáticos. em busca de melhores condições de vida; ou mesmo em busca de "vida", como disse recentemente um dos refugiados africanos que foi acolhido em Portugal.
João Candido vai fazer um discurso por ocasião da reinaguração, hoje, por volta das 15 horas. Ele disse que pretende chamar a atenção para a "urgência de construirmos uma nova humanidade".
"Guerra e Paz" voltará a seu lugar no prédio da ONU após cinco anos de ausência, quando então foi exposto no Rio de Janeiro, aqui em São Paulo, em Belo Horizonte e em Paris. Quando passou pelo Rio, os paineis passaram por uma restauração. Os dois juntos têm 140 metros quadrados de área e pesam uma tonelada cada um.
João Candido Portinari
"Foi um milagre que permitiu realizar um sonho acalentado há muitos anos: que o público pudesse ver esta obra do meu pai. Ela fica em um local de segurança máxima onde é muito difícil ter acesso. Isso sempre me incomodou", diz João Cândido. "Guerra e Paz" foi visto por 360 mil pessoas nas cidades pelas quais passou.
A curadora da inauguração é a diretora de teatro Bia Lessa, que disse sobre o evento que ocorre hoje: "Assim como no quadro de Portinari, não vamos falar de uma violência de bombas e espingardas, mas do sofrimento trazido pela violência do cotidiano por meio de poemas de autores de diversas partes do mundo, por exemplo. Poder falar sobre guerra e paz neste momento é muito interessante. A reinauguração do quadro agora tem uma carga simbólica muito grande."
Os planos de João Candido para os paineis de seu pai são de que eles possam ser abertos à visitação, coisa que é dificultada por ficarem dentro das dependências do prédio da ONU. Mas ele vai tentar fazer com que sejam abertos para visitas ao menos uma vez por semana. "A ONU tem estrutura de vigilância para lidar com isso. Se houver vontade política…", diz João Cândido. "A missão brasileira está ajudando a viabilizar. Não posso prometer, mas estamos trabalhando muito para isso."
O mural "Guerra e Paz" foi inaugurado na sede da ONU, em Nova York, no dia 6 de setembro de 1956. Mas Candido Portinari não estava ausente, pois seu visto foi negado pelos Estados Unidos porque o pintor era ligado ao Partido Comunista do Brasil. Mas 60 anos depois, a reinauguração dos paineis contará com a presença de seu filho, João Candido.
Candido Portinari trabalhando na pintura dos paineis "Guerra e Paz"

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Minha arte, meu grito



Minha arte, meu grito!

Para se juntar ao grito de dor e desespero dos milhares de imigrantes que se movem hoje em dia pelo mundo, incluindo o Brasil, para onde estão vindo sírios, haitianos, bolivianos, africanos.

Em memória do bebêzinho de 3 anos que apareceu morto nas areias de uma praia ontem, ao lado de seu irmão de 5 anos de idade. Seu nome era Alyan Kurdi. Sua mãe também morreu afogada. Só seu pai sobreviveu.

Em sua memória, desenhei estes dois meninos acima. Também são imigrantes, como ele.

Olhe para esses olhos! Poderão ler a dor de seus pais.

Também copio abaixo as manchetes dos últimos meses. Leiam, uma a uma!

E pensem, pensem muito!

Que mundo é este, que sistema de injustiça é este que abriu as portas para a morte de seres humanos que somente buscam desesperadamente melhores condições de vida? O nome disso é capitalismo.

Malditos sejam todos os que lucram com as guerras!


AS MANCHETES:


O corpo de um bebê morto encontrado na praia ontem
Um cargueiro abandonado em alto-mar se dirigia com 450 imigrantes a bordo
Outros 20 podem ter morrido
Pelo menos 29 imigrantes morreram de frio no barco
Outras 200 pessoas foram consideradas desaparecidas
Homem deposita flores sobre caixões de imigrantes que morreram
941 pessoas foram tiradas do mar
121 passageiros, dos quais dez morreram a bordo
Foram resgatadas ao menos 300 pessoas, entre elas 30 crianças e uma grávida
480 imigrantes foram resgatados
400 pessoas foram consideras desaparecidas no mar Mediterrâneo
700 imigrantes que buscavam refúgio na Europa e seu barco naufragou na costa da Líbia
As equipes recuperaram 24 corpos
A maioria das pessoas que estavam na embarcação continua desaparecida
Ao menos três pessoas, incluindo uma criança, morreram
As equipes de resgate salvaram 28 pessoas e recuperaram 24 corpos
Nações Unidas afirmaram que mais de 800 pessoas devem ter morrido no naufrágio
Cerca de 600 imigrantes foram levados a centros de detenção
Mais de 700 pessoas morreram na pior tragédia do tipo
Cerca de 5.800 viajantes clandestinos foram resgatados neste final de semana
Um caminhão foi encontrado com os corpos de 71 refugiados
Mais de 2.500 pessoas morreram fazendo a travessia neste ano


quarta-feira, 2 de setembro de 2015

John White Alexander

"Walt Whitman", John White Alexander, óleo sobre tela, 127 x 101 cm
Tempos caóticos estes em que vivemos atualmente. As dispersões são muitas, as preocupações imensas. Faz semanas que não acho inspiração para postar aqui. Há crise em vários aspectos de nossas vidas. Mas há espaços para a esperança, sempre há. Que renascem sempre que nos deparamos com uma boa surpresa, uma alegria. A minha alegria de ontem foi descobrir este pintor norte-americano do final do século XIX, com uma pintura tão bela e bem feita: John White Alexander.


John White Alexander
Os Estados Unidos têm uma grande tradição de arte realista, que atravessaram até mesmo os tempos mais terríveis da perseguição macartista, que ameaçava a todos os que tinham ideais socialistas, mas também os artistas figurativos. A pintura figurativa, durante a Guerra Fria, era considerada pintura de comunistas, pela direita norte-americana. Naqueles tempos, era propagandeada e incentivada pelo Estado Maior daquele país a arte abstrata como a verdadeira arte moderna. Em contraposição à arte soviética, que também tentava dirigir esteticamente seus artistas na direção da arte chamada de “realismo socialista”. Mas nos Estados Unidos, mesmo assim, os artistas resistiram, sendo que hoje este país é um dos maiores produtores de artistas figurativos e mesmo realistas, como David Leffel, Richard Schmid e Burton Silverman.

John White Alexander é um dos precursores destes excelentes realistas norte-americanos. No século XIX, uma grande leva de pintores deste país se mudaram para Paris com o objetivo de estudar pintura. Acompanharam as mudanças estéticas que vinham ocorrendo naquele momento na França, com o surgimento da pintura realista de Gustave Courbet e principalmente dos Impressionistas.

John White Alexander nasceu na Pensilvânia, Estados Unidos, no dia 7 de outubro de 1856. Foi pintor e também ilustrador.


"Um raio de luz solar",
John W. Alexander, óleo sobre tela
Tendo ficado órfão ainda criança, foi criado por seus avós. Começou a trabalhar com a idade de 12 anos, como telégrafo na empresa Pacific and Atlantic Telegraph Company. Lá, seu talento foi descoberto por um dos chefes da companhia, um homem de nome Edward J. Allen, que resolveu ajudar o menino a desenvolver seus talentos. Enquanto se aperfeiçoava, John White fez vários retratos da família de seu patrão, além do próprio. Com 18 anos de idade mudou-se para New York, onde foi trabalhar no semanário Harper's Weekly, como ilustrador e cartunista político. Lá já estavam trabalhando outros ilustradores conhecidos, como Abbey e Pennel. 

Após três anos de aprendizado e trabalho, ele viajou para Munique, na Alemanha, para seu primeiro treinamento formal. Como não tinha dinheiro, foi viver na pequena aldeia de Polling, na região da Baviera, onde trabalhou com Frank Duveneck. Com ele, viajou para Veneza, onde conheceu o pintor norte-americano James Abbott McNeill Whistler, que vivia entre a Inglaterra e França, de quem recebeu orientação. John White Alexander continuou estudando em cidades como Florença, na Itália, em Paris, França, e nos Países Baixos.

Voltou para New York em 1881 e logo se tornou famoso como pintor retratista. Dois anos depois participou pela primeira vez de uma exposição, no Salão de Paris de 1893. Seu trabalho foi muito elogiado e ele foi eleito para a Sociedade Nacional de Belas Artes de Paris. Recebeu diversos prêmios.

Em 1889 pintou o retrato do grande poeta Walt Whitman, a pedido da senhora Jeremiah Milbank, que também lhe encomendou um retrato do marido. Nos Estados Unidos, desde 1901 recebeu diversos prêmios e honrarias, como os de ser nomeado Cavaleiro da Legião de Honra, membro da Academia Nacional de Desenho, da American Academy of Arts and Letters. Presidiu a Sociedade Nacional de Pintores Muralistas entre 1914 e 1915.

Suas obras estão espalhadas em vários museus dos Estados Unidos e Europa, como o Metropolitan Museum of Art, o Brooklyn Museum, o Los Angeles County Museum of Art, o Fine Art Museum de Boston, além de ter um grande mural no hall de entrada do Museu de Arte do Instituto Carnegie em Pittsburgh, intitulados “Apoteose de Pittsburg”, que cobre três andares de parede.

John White Alexander morreu em Nova York em 31 de maio de 1915.

Abaixo, algumas de suas lindas pinturas:


"Repouso", Alexander, 1895, 132 x 161 cm, Metropolitan Museum of Art, N.Y.
"Painel para sala de música", Alexander, 1894, 197 x 94 cm, Detroit Instituto de Arte
"Memórias", Alexander, 1903, 158 x 132 cm, Brooklyn Museum
"Paisagem", Alexander, 1890, 77 x 114 cm
"Althea", Alexander, 1898, 161 x 133 cm, Coleção particular
"Isabela e o pote de manjericão", Alexander,
1897, 192 x 92 cm, Metropolitan Museum of Art
"Estudo em preto e verde", John W. Alexander, óleo sobre tela,
50 x 40 cm, Metropolitan Museum of Art
"Um momento preguiçoso", Alexander, 1885, 86x66 cm, Coleção particular
"Preto e vermelho", Alexander, 1896, 120x90 cm, Coleção particular
"Anna Palmer Draper", Alexander, 1888, 183 x 122 cm, Coleção particular

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Pernambuco, primeiro retrato do Brasil

Tereza Costa Rêgo ao lado de sua tela "Batalha dos Guararapes"
Nesta quarta-feira, 12 de agosto, o Centro Cultural dos Correios, no Rio de Janeiro, abre uma exposição retrospectiva sobre a pintura pernambucana que alcança do século XVII até os dias atuais. Intitulada “Pernambuco, primeiro retrato do Brasil”, a mostra trará desde obras de Frans Post, o holandês que fez os primeiros retratos do Brasil, em Pernambuco, até Tereza Costa Rêgo, pintora atual, que já entrevistamos neste Blog (leia aqui).

Segundo o portal do Jornal do Comércio de Pernambuco, “enquanto o modernismo, no mundo e no Brasil, começou a insistir de maneira quase autônoma em imperativos como o construtivismo, os pintores pernambucanos torciam o nariz para ditaduras estéticas”. Seus artistas locais continuaram pintando as paisagens brasileiras do nordeste. Pernambuco foi o local onde se inaugurou, no continente sul americano, a pintura de paisagens, com os pintores holandeses que vieram para cá a convite de Maurício de Nassau, em especial Frans Post.

Marcos Lontra, crítico e historiador da arte, afirma que Frans Post foi o primeiro artista a pintar a paisagem brasileira “mais de um século antes da chegada da Missão Artística Francesa ao Brasil, em 1816”. Ele diz ainda que “a pintura pernambucana foi fundamental para  a formação de um olhar na pintura brasileira, que se estrutura com Post, se espraia com acadêmicos como Telles Jr, fundamentando-se com Cícero Dias no Modernismo brasileiro”. Marcos Lontra é o curador desta exposição.

"Paisagem brasileira", pintura de Frans Post, séc. XVII
“A paisagem pernambucana é um dos grandes temas da paisagem brasileira. O Brasil ainda precisa entender e reconhecer melhor a contribuição de Pernambuco para a arte contemporânea do Brasil. Quando se fala do modernismo, repetimos quase sempre o discurso hegemônico paulista. No caso pernambucano, o modernismo tem uma relação direta com o Movimento Regionalista (liderado por Gilberto Freyre). Não é uma questão de primazia, de dizer o que é melhor ou pior, mas de especificidade do Modernismo pernambucano. Através dos diálogos com a Europa, por meio das famílias ricas, o moderno é sempre pensado em diálogo com o regional”, apontou Marcos Lontra ao Diário do Comércio.

Esta mostra traz obras de cinco séculos de artistas pernambucanos: de Frans Post a Albert Eckout, de Telles Júnior a Cícero Dias, de Francisco Brennand a Tereza Costa Rêgo, que participa com um de seus grandes paineis sobre a Batalha dos Guararapes. “Tereza é uma pintora quem tem a coragem de enfrentar questões históricas com trabalhos violentos”, observou o curador, que também ressaltou o caráter cultural de formação de identidade nos paisagistas pernambucanos.

Pernambuco, lugar da mais rica tradição cultural, sempre teve altíssima produção artística, ainda não devidamente reconhecida, por causa da visão hegemônica que recai praticamente só sobre a produção sudeste, em especial São Paulo e Rio. Mas em Pernambuco, poetas, pintores, fotógrafos, cartunistas, arquitetos, dramaturgos, editores, escultores, músicos, dançarinos, cantadores, cineastas, pensadores, escritores (sem falar na imensa quantidade de artistas mais ligados às tradições populares da cultura pernambucana) foram sempre os responsáveis pela efervescência cultural do meu Estado, onde se destacam nomes como os Vicente do Rego Monteiro, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Aloísio Magalhães, Ariano Suassuna, Abelardo da Hora, Kleber Mendonça Filho, Tereza Costa Rêgo, Antonio Nóbrega, etc.

Abelardo da Hora, escultor pernambucano falecido em 2014, com uma de suas esculturas

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Tenho por mim

Hoje encontrei este desenho do poeta cubano Nicolás Guillén, que fiz há algum tempo. Porque recebi hoje este poema dele, que reproduzo abaixo, em tradução livre minha do espanhol. Quando terminei de ler o poema, lembrei dos rostos que já desenhei e que caberiam dentro desta poesia. Assim como me lembrei de muitos rostos do meu povo, o brasileiro.

O momento atual no Brasil é preocupante: a elite brasileira, a velha, aquela rançosa, cheia de nhém-nhém-nhéns, mais uma vez quer se apossar do poder político brasileiro pra fazer a gente brasileira voltar para sua senzala, suas favelas, sua pobreza, sua cabeça-baixa, seu nordeste sofrido, sua inferioridade... de onde nunca deveria ter saído! Segundo esta elite vingativa.

Mas todos tinham começado já a se levantar depois de séculos de abandono! 

Ah elite brasileira retrógrada, incapaz de enxergar mais longe... 

("Garoa do meu São Paulo - timbre triste de martírios (...) São sempre brancos e ricos. Garoa sai dos meus olhos!", no dizer de outro poeta, Mário de Andrade.)

Ah Euclides da Cunha, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado, Florestan Fernandes, Mário de Andrade! Ah Ariano Suassuna, Antonio Nóbrega, Rolando Boldrim, Chico Buarque, Marieta Severo, Gilberto Gil! Ah amantes todos do Brasil, do seu povo e sua cultura! 

Se não tomarmos cuidado hoje, a roda volta a girar para trás de novo...



TENHO POR MIM


Nicolás Guillén

Quando me vejo e toco
eu, João sem Nada ontem
e hoje João com Tudo
e hoje com tudo
volto meus olhos e miro
me vejo e toco
e me pergunto como isso pode ser.

Tenho por mim, vamos a ver,
eu tenho o gosto de andar por meu país
dono de quanto existe nele
olhando bem de perto o que antes
não tive e não podia ter.


Safra posso dizer,
monte posso dizer,
cidade posso dizer,
exército dizer,
agora meus para sempre, e teus, nossos
e um amplo esplendor
de raio, estrela, flor.

Tenho por mim, vamos a ver,
tenho o gosto de ir
eu, campesino, operário, gente simples,
tenho o gosto de ir
- quereis um exemplo? -
a um banco e falar com o administrador,
não em inglês,
não falando “senhor”,
mas dizendo “compañero”, como se diz em espanhol.


Tenho por mim, vamos a ver,
que sendo um negro
ninguém pode me deter
à porta de uma festa ou de um bar.
E nem no carpete de um hotel
gritar-me que não tem quarto,
um mínimo quarto, e não um quarto enorme,
um pequeno quarto onde eu possa descansar.

Tenho por mim, vamos a ver,
que não há guarda rural
que me agarre e me prenda em um quartel,
nem me arranque e me expulse de minha terra
no meio do caminho real.


Tenho por mim que como tenho a terra, tenho o mar,
não “country”,
não “jailáif”,
não tênis e não “yatch”,
a não ser de praia em praia e onda em onda,
gigante azul aberto democrático:
enfim, o mar.


Tenho por mim, vamos a ver,
que já aprendi a ler,
a contar,
tenho por mim que já aprendi a escrever
e a pensar
e a rir.

Tenho por mim que já tenho
onde trabalhar
e ganhar
o que preciso para viver.

Tenho por mim, vamos a ver,
tenho o que eu teria que ter.












segunda-feira, 20 de julho de 2015

Paisagistas ingleses na Pinacoteca

"Destruição de Pompeia e Herculano", John Martin
A Pinacoteca do Estado de São Paulo está apresentando, desde 18 de julho, a exposição "A Paisagem na Arte: 1690-1998", com artistas ingleses cujos quadros fazem parte da coleção do Tate Britain de Londres. É uma parceria entre a Pinacoteca e o Tate, considerado o mais antigo museu de arte do mundo.

Com curadoria de Richard Humphreys, a mostra apresenta mais de 100 obras de artistas paisagistas clássicos do século XVIII, assim como românticos, pré-rafaelitas e impressionistas do século XIX até os pioneiros modernistas do século XX e contemporâneos das últimas décadas.

Fui ver esta exposição no fim de semana, mas confesso que me decepcionei um pouco. Esperava ver mais obras de William Turner, este, sim, o grande paisagista inglês. Tem apenas duas ou três telas a óleo dele e mais umas três aquarelas. Assim como uma única paisagem de John Singer Sargent, que foi mais pintor retratista. E de John Constable, também somente dois ou três trabalhos.

Mas foi bom ter visto que a Pinacoteca estava cheia de gente, a entrada era gratuita no sábado. As pessoas têm muito interesse em ver obras de arte, como pode ser verificado a partir da quantidade enorme de pessoas que têm ido à Pinacoteca, ao CCBB-SP, ao MIS, ou a qualquer outro espaço cultural onde esteja ocorrendo uma exposição de arte, nestes últimos anos. Com tendência a crescer.

Mas esta exposição dos ingleses paisagistas traça o desenvolvimento de uma das maiores contribuições da Grã-Bretanha para a arte europeia que foi a pintura de paisagem. Entre os destaques estão obras de William Turner (1775-1851), John Constable (1776-1837), Ben Nicholson (1894-1982) e Richard Long (1945). A mostra está dividida em nove setores que vão de 1690 a 1998. O texto de divulgação no site da Pinacoteca apresenta esta seguinte ordem:

1 - Descobrindo a Grã-Bretanha - Nesta sessão, é possível observar o crescimento do interesse pela paisagem natural da Grã-Bretanha durante o século XVIII, em um momento em que o fascínio e o orgulho pelo país natal andavam de mãos dadas com o entusiasmo pelas descobertas de exploradores, naturalistas, comerciantes e imperialistas à medida que o Império Britânico se expandia pelo mundo. As Ilhas Britânicas eram “descobertas” da mesma maneira que as distantes terras exóticas.

2 - Sonhos pastorais - O termo “pastoral” define uma gama complexa de formas artísticas e literárias que surgiram a partir do período clássico. Duas obras de Thomas Gainsborough (1727-1788) poderão ser vistas nesta sessão: em uma delas, um cavalheiro toca um instrumento em um mundo ideal, na outra, um paraíso completamente imaginário de pastores de vacas com seus satisfeitos rebanhos.

Pinacoteca de São Paulo
3 - A visão clássica - Nesta sessão, será possível conferir obra de Joseph Mallord William Turner (1775-1851), talvez o maior paisagista britânico de todos os tempos, que também aplicava princípios clássicos tanto em cenas italianas quanto em panoramas nativos. Nesta época, as paisagens clássicas eram tão celebradas pela aristocracia britânica, que muitas propriedades foram reformadas com o objetivo de incorporar nelas as suas características visuais e arquitetônicas.

4 - Romantismo - O romantismo compreende um vasto leque de formas culturais que surgiram em toda a Europa entre os anos 1770 e 1830. As grandes mudanças históricas do período, tais como a Revolução Francesa, a Revolução Industrial e a ascensão do nacionalismo, constituem o contexto turbulento em que o romantismo se desenvolveu. As artes topográfica, clássica e pastoral influenciaram a pintura romântica inglesa, mas no começo do século XIX ela encontrou uma forma própria de expressão. 

5 - Fidelidade à natureza - As pinturas desta seção têm relação com a ideia de fidelidade à natureza e representam uma rejeição de muitos aspectos do romantismo. A prática de fazer desenhos de observação da natureza ao ar livre popularizou-se entre os artistas profissionais e amadores no final do século XVIII e foi um dos pilares daquilo que se tornou conhecido como “pitoresco”.

6 - Impressionismo - O impressionismo foi um movimento radical da arte francesa nas décadas de 1860 e 1870. A arte experimental francesa do século XIX nasceu de um debate sobre o valor do esboço em relação à pintura terminada e acerca do poder das instituições acadêmicas sobre a formação artística e as exposições de arte. Desde o começo daquele século, muitos artistas franceses haviam admirado a pintura de paisagem britânica em razão de seu frescor antiacadêmico. Os vínculos entre a arte britânica e a francesa eram variados e complexos, e artistas de ambos os países cruzavam com frequência o Canal da Mancha.
Paisagem de John Constable
7 - Redescobrindo a Grã-Bretanha - No começo do século XX a pintura britânica englobava um leque diversificado de abordagens. O impressionismo, outrora ridicularizado, tornara-se um estilo estabelecido e dono de um mercado forte, enquanto outros artistas continuavam pintando nos estilos pré-rafaelita, simbolista e social-realista. Nesta sessão, será possível conferir John Dickson Innes (1887-1914) e seu o desejo de fazer experimentações mais radicais de forma e cor em suas paisagens.

8 - Um novo romantismo - Muitos artistas neoromânticos foram empregados como artistas oficiais de guerra no front interno durante a Segunda Guerra Mundial. Em suas pinturas de paisagem, figurando edifícios antigos e cidades arruinadas, eles criaram imagens que refletiam as emoções complexas que caracterizaram o período de guerra, como o terror, a euforia, a nostalgia e o escapismo.

9 - Novas paisagens, velhas paisagens - O neoromantismo foi sucedido por uma retomada da arte realista no começo da década de 1950. Já em 1960, no entanto, os artistas britânicos haviam começado a responder à arte e à cultura norte-americanas. A arte conceitual britânica das décadas de 1960 e 1970 também se interessava pela “noção de lugar”. Richard Long (1945) é um dos artistas desta sessão, criando uma arte paisagística híbrida e poética a partir da associação de mapas, textos e fotografias.

Os artistas presentes nesta exposição são: Século 18: Richard Wilson, George Stubbs, Thomas Gainsborough, Joseph Wright, Philip James de Loutherbourg, Francis Towne, John Mallord William Turner, Thomas Girtin; século 19: Joseph Mallord William Turner,  John Constable, John Sell Cotmann, Richard Parkes Bonington, John Martin, Samuel Palmer, Edwin Landseer, William Dyce, David Roberts, John Everett Millais, William Holman Hunt, John Brett, James Abbott McNeill Whistler, John Singer Sargent; século 20: Walter Sickert, Stanley Spencer, Augustus John, Paul Nash, David Bomberg, CRW Nevinson, Ben Nicholson, Christopher Wood, Graham Sutherland, John Piper, Edward Burra, Eric Ravilious, LS Lowry, Peter Lanyon, Frank Auerbach, David Inshaw.

"Montanhas de Moab", John Singer Sargent
"Dido e Eneas", de William Turner