Detalhe de um de seus autorretratos |
Mas
o tema que nos interessa no momento, dentro das cartas de Vincent a Theo, é apontar
como Vincent van Gogh era um estudioso de sua profissão de artista. Acho
importante enfatizar isso, pois vivemos em um tempo em que o sistema artístico
hegemônico atual considera que técnica não serve para nada e que o aluno não
precisa mais se debruçar dias e dias, anos de sua vida, no estudo da técnica e
da teoria. Prega-se a instantaneidade, a rapidez das coisas. E “gênios” são fabricados
a partir daí, com todo o apoio da mídia. Hoje em dia, basta ter uma boa ideia,
à moda da “Caninha 51”, como aponta Ferreira Gullar.
Terraço do café à noite, Arles, 1888 |
Mas
os mestres, todos, estudaram muito para produzir arte. Se olhamos para um
quadro com as cores vivas de Van Gogh, que não nos iludamos: aquilo ali é fruto
de aplicação ao estudo, ao desenho, às anotações, à observação das cores, de
como elas se comportam em um quadro, umas em relação às outras. E respeitava
aqueles que vieram antes dele, sabendo que ele só alcançaria algum status nas
artes se soubesse em que terreno pisava, se conhecesse o que falaram e fizeram
os que vieram antes dele. Mesmo que fosse para inovar. E Van Gogh o fez.
Extraio
aqui alguns trechos de cartas escritas por Vincent a Theo entre 1883 e 1885,
no que diz respeito às cores. Há muito mais nesse livro, que recomendo a
leitura aos interessados. Esses excertos abaixo foram retirados do livro da
Editora L&PM Cartas a Theo, de 2010:
“Escrevo-lhe
a respeito de uma passagem de Os artistas do meu tempo, de Charles Blanc:
‘Três meses aproximadamente antes da morte de Eugène Delacroix, nós o reencontramos, Paul Chenavard e eu, nas galerias do Palais-Royal, às dez horas da noite. Foi à saída de um grande jantar onde se havia discutido questões de arte, e a conversação sobre este mesmo assunto tinha se prolongado entre nós dois, com aquela vivacidade, aquele calor que dispensamos sobretudo às discussões inúteis. Falávamos sobre a cor, e eu dizia:
‘Três meses aproximadamente antes da morte de Eugène Delacroix, nós o reencontramos, Paul Chenavard e eu, nas galerias do Palais-Royal, às dez horas da noite. Foi à saída de um grande jantar onde se havia discutido questões de arte, e a conversação sobre este mesmo assunto tinha se prolongado entre nós dois, com aquela vivacidade, aquele calor que dispensamos sobretudo às discussões inúteis. Falávamos sobre a cor, e eu dizia:
-
‘Para mim os grandes coloristas são aqueles que não pintam a cor local’. E eu
ia desenvolver meu tema quando percebemos Eugène Delacroix na galeria da
Rotunda.
‘Ele
veio a nós exclamando: tenho certeza de que eles estão discutindo pintura! Com
efeito, disse-lhe eu (...), eu dizia que os grandes coloristas não pintam a cor
local, e convosco certamente não precisarei ir além.
‘Eugène
Delacroix deu dois passos para trás piscando um olho segundo seu hábito: ‘Isto
é perfeitamente verdadeiro, disse ele, veja um tom, por exemplo (e indicava com
o dedo o tom cinza e sujo do chão): pois bem, se disséssemos a Paolo Veronese
(pintor italiano do Renascimento): pinte-me uma bela mulher loira cuja pele
tenha este tom, ele a pintaria, e a mulher seria uma loira em seu quadro’.
A noite estrelada sobre o rio Rhone, 1888 |
Van
Gogh continua:
“A
respeito de ‘cores pobres’, não se deve, no meu entender, considerar as cores
de um quadro por si mesmas; uma ‘cor pobre’ pode muito bem exprimir o verde
tênue e vigoroso de uma campina ou de um trigal quando, por exemplo, estiver
sustentada por um castanho-vermelho, um azul-escuro ou um verde-oliva."
“(...)
Uma cor escura pode parecer, ou melhor, produzir claridade; isto no fundo é
mais uma questão de tom."
“Mas, então, no que diz respeito à cor
propriamente dita, um vermelho-cinza, relativamente pouco vermelho, parecerá
mais ou menos vermelho em função das cores que lhe dão vizinhança."
“Assim
como o azul e o amarelo. Basta colocar um pouquinho de amarelo numa cor para
fazê-la tornar-se muito amarela, quando colocamos esta cor num – ou ao lado de
um – violeta ou lilás."
Autorretrato, 1888 |
“Lembro-me
como alguém se esforçava em reproduzir um telhado vermelho sobre o qual batia a
luz, por meio do vermelhão e do amarelo-cromo, etc... Não funcionava."
(...)
“Li com muito prazer Os mestres de outrora, de Fromentin. Vi tratadas nesse
livro , em diversas passagens, as mesmas questões que me preocupavam muito
nestes últimos tempos e nos quais penso continuamente... (...)”
“Faz
muito tempo, Theo, que estou desgostoso com certos pintores atuais, que nos
privam do bistre e do betume*, com os quais se pintaram tantas coisas
magníficas e que, bem utilizados, dão sabor, riqueza e generosidade ao
colorido, sendo sempre tão distintos. E que possuem propriedades tão notáveis e
específicas.”
“Aliás, também exigem esforço para que se
aprenda a utilizá-los, pois deve-se usá-los de forma diferente que as cores
ordinárias, e acho muito provável que mais de uma pessoa tenha ficado assustada
com as tentativas que é preciso fazer no início e que, naturalmente, não dão
certo logo ao primeiro dia em que se começa a utilizá-los.”
Estudo para Marguerite Gachet ao piano, 1890 |
“(...)
Quando encontrar boas obras como, por exemplo, o livro de Fromentin sobre os
pintores holandeses, ou se você se lembrar de uma delas (obras), não se esqueça
que eu desejo muito que você compre algumas, deduzindo do que você costuma me
enviar,desde que tratem de técnica.
Tenho a intenção de aprender seriamente a teoria; não considero isso de forma
alguma inútil, e acredito que frequentemente o que sentimos ou o que
pressentimos instintivamente torna-se claro e certo quando somos guiados por
alguns textos que tenham um real sentido prático."
“Quando
ouço dizer que ‘na natureza não há preto’, penso que na realidade o preto
também não existe na cor.”
“Sobretudo
não se deve cair no erro de acreditar que os coloristas não empregam o preto,
pois não é preciso dizer que desde que o preto entre em composição com
elementos azuis, vermelhos ou amarelos, estes tornam-se cinzas, seja
vermelho-escuro, amarelo ou azul-cinzento. Acho especialmente muito
interessante o que Charles Blanc no Os Artistas de meu tempo diz sobre a
técnica de Velázquez, cujas sombras e semitons consistem, na maioria das vezes,
em cinzas frios e incolores, em que o preto e um pouco de branco são os
elementos de base. Neste meio neutro e incolor, a menor nuvenzinha, por
exemplo, já é muito expressiva.”
E
mais à frente:
“(...)
Sei entretanto e muito bem quem são os artistas verdadeiros e originais em
torno dos quais girarão, como ao redor de um eixo, os paisagistas e os pintores
de camponeses. Delacroix, Millet, Corot e o resto. Isto é o que eu sinto,
embora mal expresso.”
“Quero
dizer com isto que, mais que as pessoas, existem regras, princípios ou verdades
fundamentais, tanto para o desenho quanto para a cor, aos quais é preciso
recorrer quando se encontra algo de verdadeiro.”
“(...)
Quero portanto assegurar a Portier nesta carta que minha crença em Eugène Delacroix
e nestas pessoas antigas é muito exata e correta.”
“E
enquanto trabalho num quadro em que não se veem claridades de uma lâmpada (...)
talvez não seja inútil observar que uma das coisas mais belas dos pintores do
nosso século foi pintar a obscuridade, que apesar de tudo é cor.”
“...
Como é correto e verdadeiro. E como é importante poder fazer em sua palheta
essas cores que não sabemos como chamar e que formam a base de tudo.”
Os comedores de batata, 1885 |
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*
Bistre – bistre é uma tonalidade marrom escuro acinzentado com tom amarelado,
feito a partir de fuligem. Muitos
mestres antigos usaram o bistre para seus desenhos. Betume – decomposição de origem
animal ou vegetal, de cor escura como o petróleo, serve de base também para a
pintura, usando-se por exemplo para dar impressão de envelhecimento a alguma
base.
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Se quiser mais informações sobre o pintor, acesse o site do Museu Van Gogh de Amsterdam, Holanda:
Van Gogh Museum - em espanhol
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Se quiser mais informações sobre o pintor, acesse o site do Museu Van Gogh de Amsterdam, Holanda:
Van Gogh Museum - em espanhol
Esse texto não me ajudou em nada. Mas traz informações interessantes !!!
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