segunda-feira, 9 de julho de 2012

O bóson de Higgs e a Arte pictórica: faça-se a Luz!

No princípio, uma singularidade criou os céus e a terra. A terra estava informe e vazia; as trevas cobriam o abismo. Uma explosão inicial detonou a luz! E a luz foi feita. E tudo foi criado a partir de então.


No último dia 4 de julho, noite memorável, uma notícia se espalhou pelos quatro cantos do mundo. E nem foi por causa da Libertadores. Nem foi por causa do lançamento do meu livro, evento muito importante. Mas foi porque a Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (CERN) anunciou, em Genebra, a comprovação da existência de uma partícula, o chamado Bóson de Higgs, fundamental para que se possa entender a estrutura básica da matéria.


Essa partícula subatômica foi detectada dentro do Large Hadron Collider (LHC), o super-acelerador de partículas do CERN com 27 km de extensão, que fica na fronteira entre a Suíça e a França. E o bóson de Higgs foi fotografado pela maior câmera fotográfica do mundo. Sabemos que um dos objetivos desse grande acelerador de partículas subatômicas é o de recriar as condições que formaram o universo, a partir do modelo do Big Bang. O “Big Bang” é uma teoria científica que fala que o universo nasceu a partir da explosão de um ponto infinitesimal que se expandiu e criou o Espaço, o Tempo e a Massa existente no universo. E a nós, aos animais e às estrelas! Isso há 14/15 bilhões de anos atrás.


O bóson de Higgs foi confirmado com uma certeza de 99,99%, segundo relatório dos cientistas do CERN. Ela está associada a um 'campo' com o qual as outras partículas interagem (prótons, nêutrons, elétrons, quarks...), ganhando matéria. A interação entre as partículas subatômicas geram massa, e a massa, matéria. Mas há as que não interagem com o campo de Higgs, e essas não possuem massa. Estão destinadas a movimentar-se para sempre na velocidade da luz e são chamadas de Fótons, a unidade básica da luz.

O físico nuclear Peter Higgs
Peter Higgs, um tímido e calmo senhor de 83 anos, esperou quase 50 anos para ver sua tese comprovada, e apenas disse: “É agradável ter razão de vez em quando”. Ele é um físico escocês, atualmente professor emérito da Universidade de Edimburgo. Em 1964, Higgs previu teoricamente a existência do bóson que levaria seu nome, a também chamada “partícula de Deus”. Sua intuição dizia que deveria haver um campo de forças parecido com uma espécie de cola onde as partículas estariam imersas e em interação.


Essa tese deu início a uma verdadeira escola científica, unindo inúmeros físicos que apostavam na ideia de Peter Higgs. Todo um edifício teórico sobre a forma como as partículas criam massa e gera nosso universo visível surgiu a partir daí. Já está se dizendo que essa é uma das descobertas científicas mais importantes dos últimos 40 anos.


A descoberta do bóson de Higgs foi comemorada como a coroação de décadas de estudo de milhares de físicos e matemáticos que focaram seus esforços e suas vidas para entender de onde vem tudo o que existe, uma das grandes questões teóricas que o homem tenta resolver e que movem a ciência há séculos.


A longa espera terminou nesta quarta-feira, dia 4 de julho.

Retrato feito por Franz Hals
Mas o que tudo isso tem a ver com Arte? O que a descoberta de um físico nuclear escocês pode gerar de reflexões sobre a arte pictórica? E que lições podemos tirar daí?


Começando pela última pergunta. Durante 58 anos um homem levou sua vida de professor universitário e pesquisador, insistindo numa teoria. Sua intuição dizia que ele poderia estar certo, o que acabou sendo confirmado. Peter Higgs, como físico de altas energias, sabe que a nossa noção de tempo, o tempo linear, do cotidiano, é pobre. Num universo de 14 bilhões de anos, onde distâncias intergalácticas são medidas em anos-luz, 48 anos são nada. Quase nada também no movimento da história, mesmo que muito para uma vida humana.


Para a vida humana do sujeito que está agindo na superficialidade pragmática do dia a dia, 48 anos de estudo, de espera por algo, é quase insuportável. Mas há os Peter Higgs da vida, aqueles que pacientemente constroem tijolo por tijolo a sua obra. Debruçado sobre seus estudos, esses sujeitos não pensam em si enquanto egos a serem colocados acima de tudo, mas enquanto se esquecem de si e mergulham sobre seus suportes técnicos (ou suas teorias) vão simultaneamente se moldando na modelagem de seu objeto de estudo. Construir um edifício teórico não acontece do dia para a noite. Assim como desenhar e pintar não são dons milagrosos, mas frutos de anos e anos de dedicação, de esforço teórico e prático.

Alegoria da pintura, de Jan Vermeer
Mas o modo de vida deste tempo atual não suporta grandes esperas, e repudia aquilo que não seja instantâneo. Por isso, de vez em quando é necessário que nos calemos diante de um evento como este: a descoberta de uma partícula que gera a massa do universo e que nos remete às grandiosidades que muitas vezes esquecemos...


Diante da descoberta do bóson de Higgs, dá vontade de fazer eco ao que ele disse no dia 4 de julho: “É agradável ter razão de vez em quando”.


Vermeer demorava muito para pintar uma tela. Ele trabalhava lentamente e com muita meticulosidade, enquanto combinava cores de forma inimitável, perseguindo o movimento da luz que vai gerando as sombras, os espaços, a materialidade. Suas bordas não tinham borda. Elas se derramavam pictoricamente fazendo com que todos os objetos e figuras de seus quadros interagissem como o fazem as partículas subatômicas no Campo de Higgs. Com Vermeer, nada estaria mais separado. Quando fiz uma cópia do “Moça com brinco de pérola” em 2011, para mim foi uma descoberta maravilhosa: não há bordas duras em Vermeer, elas são suaves, quase nem existem, há interação pura entre elementos e cores do quadro.

Autorretrato, de Rembrandt
Rembrandt foi outro pintor holandês obcecado pelo entendimento de como a luz se derrama nas coisas, criando as sombras. Também ele pintava, não as coisas que seriam vistas por qualquer ser humano comum, mas pintava as relações entre as coisas, com a perfeita consciência de que a luz cria massas densas, matéria, que ele executava a partir de pinceladas pastosas, em camadas de massas com valores medidos pelos movimentos da luz. E nada de linhas. Massas. “Quando Rembrandt pinta um nu sobre um fundo escuro, a luminosidade do corpo parece emanar naturalmente do escuro do espaço”, diz Heinrich Wöllflin em Conceitos fundamentais de história da arte.


Caravaggio queria criar uma nova relação entre o espaço, as coisas e as figuras. Sua obsessão era a realidade. Como afirma Roberto Longhi, para ele “uma pedra não é menos importante do que um santo, porque não é menos real.” Na configuração dos santos e das pedras, prótons, nêutrons e elétrons interagem entre si e com o Bóson de Higgs, que lhes dão massa. Os mesmos componentes químicos que fazem um santo, fazem uma pedra. E a mesma luz que atravessa a mão estendida de Jesus se espraia nos rostos dos pecadores publicanos em seu quadro “O chamamento de Mateus”. Caravaggio queria representar os volumes que via em termos de planos de luz, com o furor de quem queria “alcançar o real”, como diz Longhi.

Detalhe: autorretrato em
As Meninas, de Velázquez
Franz Hals, com seu pincel inquieto, fazia com que suas obras exigissem a distância espacial para serem assimiladas, pois quando olhadas muito de perto, viam-se manchas, massas em correspondência, movimentos de cores e de valores que inebriavam a vista, como partículas de cores em interação eletromagnética se fundindo para configurar formas e figuras. Nada pode ser visto isoladamente, tudo está em relação, manchas, massas, cores, valores. Assim como ele, Van Dyck; assim como Van Dyck, Rembrandt; assim como Rembrandt, Velázquez.


Em Velázquez, cabelos, vestimentas, figuras, não são cabelos, vestimentas, figuras; são substâncias, são fenômenos luminosos, pictóricos. As massas claras e escuras se interpenetram. A ênfase, diz Wöllflin, está na luz. “Todos os contornos são imprecisos, as superfícies se furtam à tangibilidade e a luz flui livremente, como a correnteza que rompeu o dique”. Como a explosão cósmica inicial, que gerou o espaço, o tempo, a estrela, o planeta, o homem, o gato, a formiga, o pintor, a tela, o cavalete. Massas de matéria navegam imersas na escuridão do cosmos, alcançadas pela luz que desvenda a matéria, e o mundo, e tudo o que existe. Que existe por causa do bóson de Higgs.


Na arte pictórica, o universo está em interação permanente. Tudo interage com tudo todo o tempo. Nada está separado de nada. A harmonia do conjunto é gestada a partir desse aparente caos que confunde as mentes apressadas que olharem as telas de Franz Hals de perto.


Quando o artista norte-americano David Leffel (1931) viu as obras de Rembrandt pela primeira vez, ficou tão impressionado que resolveu dirigir seus estudos para os efeitos da luz sobre a realidade observada. E passou a ensinar que um pintor não pinta coisas, pinta a luz nas coisas. O artista pictórico não vê o mundo em detalhes separados, mas vê massas, planos, dimensões. Ele não pensa, quando vê um rosto humano, em termos de “olhos”, “nariz”, “boca”. Vê jogos de luz e sombra e massas em movimento. Em interação. É exatamente esse jogo das massas, no movimento entre a luz e a sombra, que vai dando materialidade ao quadro. Como as partículas vão se enchendo de Massa através da interação com o bóson de Higgs. E vão criando o mundo e tudo o que existe.


“É agradável ter razão de vez em quando”. Viva Higgs!

realismo
Detalhe de autorretrato, de David Leffel 

3 comentários:

  1. Boa matéria Mazé, boa associação entre ciência e arte, tão distantes e tão próximas. Estaremos sempre perguntando sobre o princípio das coisas: como surgiu o universo, a vida. Teria vindo de uma singularidade? um acaso a origem do universo? Perguntas que levam boas reflexões, para quem tem abertura de pensamento. Os pré-socráticos já se perguntavam assim, sobre o princípio de tudo. A ciência moderna, entretanto, está focada apenas no abjeto de seu estudo, esquecendo-se pragmaticamente do seu contexto.

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  2. Brava Mazé, que já tanto nos ensina sobre a ciência da arte, agora nos presenteia com seus entendimentos sobre a arte da ciência!

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  3. O MUNDO PERCEBIDO.

    Os gregos atribuíam a cada fenômeno natural uma criatura ou um Deus diferente. Nas artes e literatura a atmosfera presente era de uma estética simbolista, a ênfase no imaginário e na fantasia,ou seja, imperava a mitologia. Para interpretar a realidade eles se valiam da intuição e não da razão ou da lógica, davam preferencia ao vago, ao indefinido ao impreciso.
    Aos poucos começa se descortinar a clareza do conhecimento, mais precisamente com Sócrates e sua famosa frase "Só sei que nada sei". Deveria existir uma lógica pra explicar as coisas.

    “É agradável ter razão de vez em quando”. Viva Higgs! Viva o conhecimento e o seu papel fundamental - O mundo percebido!

    Viva o Blog da Mazé!

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