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terça-feira, 29 de março de 2016

O ferreiro

"A forja de Vulcano", Diego Velázquez, óleo sobre tela, 223 x 290 cm, 1630, Museu do Prado
O ferreiro aquece o ferro no fogo alto, o ferro se avermelha, ele o leva até à bigorna e martela ritmado, alternando a martelada com a martelada do companheiro. O trabalho na oficina é sempre intenso. Marcado pelo ritmo das marteladas alternadas. O som se propaga ao redor; a vizinhança já se acostumou à música que vem da oficina do ferreiro.

Mas um visitante chega na oficina de Vulcano, o ferreiro. Lhe faz uma revelação terrível!

Velázquez estava na Itália, em sua primeira visita àquele país. Tinha ido adquirir obras de arte para o rei Felipe IV e aproveitado para conhecer a arte pictórica dos italianos. Em algum momento mais tranquilo, deve ter lido as “Metamorfoses” de Ovídio e deve ter parado, quieto, com alguma ideia pairando no ar e lhe trazendo vontade de fazer algo com aquele instante em que os homens sabem da notícia chocante que o deus Apolo lhes trouxe. Era preciso captar o instante, pegá-lo com as mãos, fazer dele uma pintura.

Há quase um ano, em Madrid, eu parei diante deste quadro, pura poesia. Poesia pintada pelo maior de todos os pintores, Diego da Silva Velázquez. Ele se colocou no lugar de Vulcano? De Apolo? De cada um dos homens que fazem parte da cena? Sim, com certeza! Era preciso dar realidade e poesia àquele momento revelador.

Na atitude de cada um dos componentes do quadro, vê-se o impacto da surpreendente revelação. Conta Ovídio em suas “Metamorfoses” que Apolo, resplandecente de sol, foi até o ateliê do ferreiro dos deuses do Olimpo, Vulcano, para lhe dar a humilhante notícia de que sua mulher, Vênus, estava traindo-o com o deus Marte. No quadro de Velázquez vemos o ar estupefacto e atordoado de Vulcano, assim como de seus solidários companheiros. Na história contada por Ovídio, os colegas de trabalho de Vulcano eram ciclopes míticos, seres meio monstruosos, gigantes com um único olho na testa. Mas Velázquez os pintou como operários comuns. Ele resolveu abrir mão dos elementos sobrenaturais da história de Ovídio para dar a esta cena o realismo que desejava. A ele interessava muito mais captar um momento crítico de alta carga emocional e com isso dar a estes personagens uma variedade de atitudes e gestos.

Velázquez - segundo radiografias feitas recentemente nesse quadro - modificou as cabeças de Vulcano e de um de seus ajudantes, intensificando sua atitude de surpresa e ira de marido enganado. Este quadro é um grande exercício de expressão pictórica das paixões humanas: os efeitos do ciúme e da traição sobre um ser humano, o poder da palavra sobre nossos sentimentos e ações e, como também dizem alguns estudiosos desta pintura e de Velázquez, o poder e superioridade da mente sobre o trabalho manual, teoria que movia Velázquez a defender a nobreza da pintura acima dos outros ofícios artesanais e mecânicos.

Em “Vida y obras de don Diego Velázquez” Jacinto Octavio Picón, um estudioso do século XIX, diz que esta cena aparece disposta de uma forma em que vemos a “graciosísima ironía muy andaluza”  que tinha pouco respeito aos deuses imortais. Velázquez, como dissemos acima, ao invés de figuras mitológicas colocou quatro robustos rapazes que foram testemunhas da cena. Eles estavam trabalhando em seu ofício de ferreiros quando surge Apolo, também representado por Velázquez como um jovem bonito, coroado por um laurel e em cuja cabeça está circundada por uma claridade “intensa reveladora de su celeste orígen”. 

Apolo, o deus da Poesia, procura o deus do Inferno, Vulcano, para lhe dar uma notícia muito desagradável: enquanto o ferreiro se esmera em forjar uma armadura para Marte, este está “pegando” sua mulher, Vênus. Apolo conta isso sem nenhum rodeio e sem nem mesmo levar em conta que há mais quatro pessoas em volta que irão ouvir a história. No rosto de todos os homens, há estupefação e assombro. O trabalho é suspenso. Os ajudantes de Vulcano parecem mais curiosos do que surpresos. O olhar de Vulcano demonstra tremenda raiva. “Cada figura y cada parte de ella esta iluminada según el sitio que ocupa, ya por la claridad del día a que da entrada un ventanón abierto a la izquierda sobre cuyo vano destaca Apolo, ya por el resplandor que aureola la cabeza de éste” ou por causa das brasas vermelhas do fogo que arde. O local é uma humilde oficina, e pelo chão podemos ver peças de armadura e instrumentos de trabalho.

Para criar “A forja de Vulcano”, Velázquez usou como modelo a oficina de um ferreiro humilde dos subúrbios de Roma. Ele dava seu recado: já que os deuses imortais se comportavam como os comuns mortais, haviam que ser tratados como homens. Com exceção da cabeça de Apolo rodeada de um halo de luz, o resto da cena nada tem de divino ou de heroico. “Velázquez respirando a atmosfera da Roma papal do Renascimento, rodeado por concepções pictóricas onde prevaleceram o elemento literário, como resultado de uma cultura clássica extraordinária”, ao invés de tomar o caminho do tratamento grandioso que dariam a esta cena artistas como Dominichino, Guercino, Poussin, Albano e Guido Reni, preferiu reafirmar sua abordagem realista. Era como dizer: na simplicidade das coisas habita o sublime e o belo. Todos aqueles artistas poderiam ser mais poetas que Velázquez, mas “ninguno tan pintor”, afirma Jacinto Picón!

Era um tempo em que o humanismo do passado remoto era retomado. Os valores clássicos podia ser avaliados na obra de inúmeros artistas da época, entre eles o mais radical de todos Nicolas Poussin. Mas Poussin não era realista. Seu amor aos conceitos clássicos, fazia com que ele pintasse as cenas bucólicas dos tempos idos da velha Grécia, com seus heróis e deuses. Velázquez não. Velázquez preferia aproximar esses conceitos clássicos do homem comum de seu tempo. Se havia que abordar os temas em voga, baseados na relação entre os deuses e os homens, havia que lhes dar uma poesia nova, numa nova abordagem pictórica. 

Em seu senso de humanismo, Diego da Silva preferiu pintar pessoas comuns, os trabalhadores da Corte como ele, as pessoas mais simples, feias, os anões, os bufões, as serventes. E lhes deu um tremendo valor, o valor mais alto, ao colocar essas pessoas humildes como personagens centrais de seus quadros.

A oficina do ferreiro romano que lhe serviu de modelo está expressa nessa obra diante da qual a gente se cala, respeitosamente, diante da grandiosa humanidade desse pintor andaluz e sevilhano.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

O pintor russo Valentin Serov

Cavalos na praia, Valentin Serov
Autorretrato, Valentin Serov, 1885
O Museu Estatal Tretyakov de Moscou, Rússia, está apresentando uma importante exposição da obra do pintor russo Valentin Serov, marcando os 150 anos de seu nascimento. A mostra foi inaugurada no último 7 de outubro e se encerrará em 17 de janeiro de 2016. Serov é considerado um pintor realista, formado na escola clássica da pintura europeia, e no final de sua vida se aproximou das linguagens contemporâneas. Sem abandonar o figurativismo.

Esta retrospectiva das melhores pinturas e desenhos de Serov ocupam três andares da galeria. A exposição ajuda a mostrar a grande variedade do patrimônio criativo do mestre, não só através de seus retratos famosos, mas também com suas pinturas de paisagens e arte monumental, que foram gradualmente negligenciadas pelos pesquisadores das artes.

Valentin Aleksandrovich Serov nasceu em São Petersburgo em 19 de janeiro de 1865. Filho do compositor russo Aleksandr Serov e de Valentina Bergman, também compositora, que vinha de famílias de origem alemã e inglesa. 

A infância de Serov se passou dentro do meio artístico em que viviam seus pais, ambos músicos. Seu pai, Aleksandr Serov, era também conhecido na época, além de compositor, como crítico musical. Tinha 43 anos quando se casou com sua aluna de 17 anos de idade, Valentina Bergman, com quem teve seu único filho Valentin Serov. Sua casa sempre estava cheia de convidados, entre músicos e estudantes de música. Lá se discutiam as ideias de liberdade e igualdade, defendidas pelo teórico Tchernichévski. O pai músico tinha amigos intelectuais como Turgeniev, além de artistas da música e da pintura. Discutia-se muito a política da época e as ideias que se iam fermentando e que depois confluiram para a revolução russa do começo do século XX.
Retrato de S.M. Dragomirovoy, Serov,1889

Após a morte de seu pai (Valentin tinha seis anos de idade), a vida de Serov mudou. Sua mãe tinha paixão pela música e pelas atividades sociais ligadas a ela. Em 1872 sua mãe resolve mudar-se para Munique, na Alemanha, onde Valentin teve suas primeiras lições de desenho com Carl Kepping, conhecido gravador e ceramista. Vendo que o filho possuía grande talento para o desenho, mudou-se com ele para Paris, onde já vivia então Ilya Repin, o artista de quem ela já conhecia a fama, por causa de seu quadro “Os barqueiros do Volga” (leia aqui). Era 1874 e Valentin foi estudar com Ilya Repin. Seu único entretentimento eram as aulas com o mestre e os desenhos que fazia de forma independente.

Em 1875 mãe e filho retornaram à Rússia. Em 1876 mudaram-se para Kiev. Valentina Bergman não conseguia ficar parada e a vida nômade para Serov continuou. Em 1878, ele retomou suas aulas sistemáticas com Ilya Repin, que havia voltado também para Moscou. Para Serov, Repin era quase um membro da família e acompanha seu desenvolvimento em todos os aspectos. 

Retrato do escritor Maxim Gorky, Serov 
Se inscreveu na Academia de Belas Artes em 1880, que deixou em 1885, pedindo licença "para tratar a saúde”. Em suas memórias Valentin se dizia cansado da Academia. O que o incomodava? Tudo! “As paredes aqui, os corredores ..." Ele tinha desejado entrar para a Academia com a intenção de estudar com Pavel Chistyakov. Mas o seu método de ensino era bruto: zombava dos alunos, lhes chamava de impotentes, de infantis, fazendo críticas impiedosas todo o tempo. Mas Serov se submeteu ao tratamento dado por Chistyakov, pois sua opinião valia mais para ele ainda que a de Repin. Por seu lado, Chistyakov gostava de Serov e tinha orgulho dele. Foi este professor quem primeiro lhe abriu os tesouros do museu Hermitage e que lhe falou sobre a necessidade de estudar os antigos mestres. 

Em 1885 faz uma viagem a Munique e Holanda. Em Munique, Serov estuda a coleção da Alte Pinakothek, e faz cópias de Velázquez. 

Desde cedo, Serov se destacou como grande retratista. Ele seguia as características principais do que se denomina como “impressionismo russo”, ou seja, a preocupação com o movimento da luz e das massas de cor, a harmonia dos reflexos de luz.

Depois de 1890, se assumiu ainda mais como retratista. Seus modelos preferidos eram atores, artistas e escritores, e chegou a fazer retratos de Konstantin Korovin, Isaac Levitan, Nicolai Leskov e Nicolai Rimski-Korsakov. Ele havia optado em pintar com uma paleta mais restrita, sem muita variação de cores, ao contrário de seus colegas que optaram por um estilo colorido em especial na década de 1880. Serov preferia os tons mais cinzas e marrons. Ele havia feito a escolha de seus contemporâneos Anders Zorn e John Singer Sargent, preferindo dirigir seus estudos para as obras de pintores como Diego velázquez, por exemplo. Ele era um apaixonado pela obra do pintor espanhol Velázquez.


Mika Morozov, Valentin Serov
A partir de 1894 Serov começou a participar do movimento “Os Itinerantes”, e com esses companheiros executou várias pinturas de encomenda, como o retrato do grão-duque Pável Aleksandrovich, entre outros. Suas pinturas e desenhos se destacam bastante, pela execução hábil e composições grandiosas. Simultaneamente pintava retratos mais intimistas, em sua maioria de crianças e de mulheres. Com as crianças que pintou, desejava capturar-lhes o gesto e a pose para enfatizar a espontaneidade dos movimentos.

Valentin Serov usava com frequência várias técnicas para se expressar, desde a aquarela, aos pasteis, e as litogravuras. Foi se tornando cada vez mais gráfico e sucinto, especialmente na última fase de sua vida. Entre 1890 e 1900 pintou paisagens do campo, para si mesmo, geralmente em férias em sua dacha na Finlândia ou em Domotkanovo, a propriedade de seu amigo Derviz. 

A fase final de sua vida como pintor tem início por volta de 1900. Rompeu sua relação com o grupo “Os Itinerantes” e passou a fazer parte de outra associação de artistas que tinha também uma revista. Era o grupo do “O mundo da Arte”, que mantinha uma série de atividades como organizar exposições, propagandear as realizações da arte moderna russa e europeia. Nas reuniões de pauta para a revista “O mundo da Arte” em geral ele ficava calado, mas quando falava era sempre cáustico em suas críticas. Estava sempre com um lápis na mão desenhando.


Yuri e Sasha, desenho de Serov
Serov começava a mudar seu estilo de pintura, abandonando as características ditas “impressionistas” de sua pintura anterior, e foi se aproximando mais dos modernistas. Mas a compreensão realista da natureza de seus retratos continuou constante. 

Valentin Serov defendia os valores democráticos das revoluções russas de 1905. Membro de a Academia Imperial das Artes de São Petersburgo desde 1903, abandonou-a em protesto contra a execução de trabalhadores em greve e suas famílias, no dia 9 de janeiro de 1905, episódio que ficou conhecido como “domingo sangrento”. 

Serov também usou sua criatividade para executar pinturas históricas, dando aos fatos da história a importância que lhes devia. Também criou peças gráficas, fez ilustrações para livros, de caráter históricos ou científicos. Em seus últimos anos de vida, Serov pintou temas tirados da mitologia grega clássica, dando-lhes sua interpretação pessoal. 

Valentin Serov morreu em Moscou no dia 5 de dezembro de 1911. Deixou uma vasta obra, considerada das melhores do realismo russo e ele mesmo é considerado um dos maiores mestres da pintura europeia do século XIX. Em 1914 foi realizada uma exposição póstuma com sua obras em Moscou e São Petersburgo.

"Ele era mais do que um artista, era um buscador da verdade", disse o pintor Konstantin Korovin sobre o amigo Valentin Serov.


O rapto de Europa, Valentin Serov, 1910
Nikolai Rimski-Kosarkov, Serov, 1898
"Os dois meninos Serov", Valentin Serov, 1899
"Retrato de Isaac Levitan", Serov
"Outubro em Domotkanovo", Serov, 1895
"Alexandr Serov", Valentin Serov, 1897 - inacabado
"Banhando o cavalo", Serov
"Jovem com peras - retrato de V.S. Mamontova", Serov, 1887

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Francisco de Goya


"La maja desnuda", Francisco de Goya, 1790-1800, óleo sobre tela, 191 x 98 cm, Museu do Prado
Fruto de minha última viagem à Espanha, nos próximos posts deste blog pretendo trazer um pouco sobre a vida e a obra dos maiores mestres daquele país, os conhecidos e os desconhecidos. Os pintores espanhois são, para mim, os melhores exemplos de artistas em que vida e obra não se podem separar; assim como não é possível separá-los da cultura de seu país, tão diversa quanto a nossa, e tão profundamente arraigada na alma daquele povo como, por exemplo, as tradicionais touradas. Como enfatiza Antonio López, pintor contemporâneo, a pintura espanhola está ligada à vida, nem sempre à beleza.
Comecemos por Francisco de Goya.
"Retrato de Goya", Antonio López, 1826
Francisco José de Goya y Lucientes nasceu em Fuendetodos, Saragoça, na Espanha, em 1746. Faleceu em Bordeaux, França, em 1828.
Filho de um mestre dourador, Goya teve suas primeiras lições de pintura em Saragoça, por volta dos anos 1760. Na sequência ele mudou-se para Madrid, onde continuou sua formação. Fez uma passagem por Roma, Itália, em 1770, e se deixa influenciar pelo neoclassicismo vigente, como pode ser visto na imagem abaixo, que mostra uma tela pintada por ele nesta época (“Hanibal atravessando os Alpes”).
Goya voltou à Espanha em 1771, quando começou a receber as primeiras encomendas: a decoração da abóboda da basílica do Pilar em Saragoça, entre outras. Em 1773 casa-se com Josefa, a irmã do pintor Francisco Bayeu, que era pintor oficial na época. No ano seguinte, outro pintor, o flamengo Anton Raphael Mengs o convida para mudar-se para Madrid. Mengs viveu na Espanha e lá produziu uma série de pinturas, que podem ser vistas atualmente no Museu do Prado.
"Hanibal atravessando os Alpes", Goya
O período entre 1776 e 1792 marca a ascensão social de Goya. No começo, ele produziu algumas gravuras estudando a partir de pinturas de Diego Velázquez, que sempre foi considerado por ele seu verdadeiro mestre. Em 1779 ele pintou um primeiro retrato da família real, do rei Carlos III, e no ano seguinte foi eleito por unanimidade para a Academia Real de Belas Artes de São Fernando. Mas seu trabalho na abóboda da basílica de Pilar em Saragoça precisava ser terminado, e, com isso, Goya voltou para lá para acabar a obra.
Após seus retorno a Madrid, acabou se tornando o pintor oficial da aristocracia, executando diversos retratos, onde já expressava sua força e seu jeito pessoal de pintar. Fez também pinturas de paisagens, mas se dedicou principalmente a criar tapetes para a Real Fábrica de Santa Bárbara, nos quais Goya utilizou temas populares.
"Ainda aprendo", Goya
Mas desde 1792 Francisco de Goya começou a perder a audição. Especula-se que ele ficou surdo por causa da grande quantidade de chumbo presente nos pigmentos que usava para pintar. Angustiado, ele transmite para sua pintura os seus próprios medos, pintando nesta época cenas obscuras de Madrid, uma série de estudos de Tauromaquia e as gravuras da série “Caprichos”, cheios de figuras monstruosas e demoníacas. Mas a Santa Inquisição ameaçou-o, e teve que interromper esta série de gravuras.
Goya chegou ao século XIX completamente surdo. Isto fez com que ele penetrasse cada vez mais em seu mundo interno. Ele foi se tornando, à medida em que envelhecia, uma espécie de profeta solitário, pintando suas pinturas negras nas paredes de sua própria casa. Mas antes, em 1805, terminou seus dois quadros - que acabei de ver em Madrid, no Museu do Prado - “La maja nua” e “La maja vestida”, duas grandes telas, colocadas lado a lado. Foi o primeiro nu pintado na Espanha após a “Vênus do Espelho”, de Velázquez, pintada em 1650. Na Espanha católica, esta pintura da Maja nua foi completamente condenada. O quadro foi confiscado e Goya foi obrigado a dar explicações ao tribunal da Inquisição em 1814.
A invasão francesa na Espanha, pelos exércitos de Napoleão, em 1808, também inspiraram no pintor uma série de gravuras feitas em água-forte (técnica de gravação sobre metal com ponta-seca e complementada com a utilização de um ácido sobre a chapa). Goya intitulou esta série “Os desastres da guerra”. Mas pintou principalmente o quadro, bastante conhecido, uma tela muito grande intitulada “O três de maio” (abaixo), assim como outra que ele deu como título “O dois de maio”, que celebram a resistência do povo espanhol às investidas de Napoleão. Em especial na pintura abaixo, "O assassinato do três de maio, Goya inova na pintura tanto em termos de composição, como de técnica.
"O assassinato do três de maio de 1808", Goya, óleo sobre tela, 1814
Mas o pintor Goya não podia descansar… O rei absolutista Fernando VII, com sua política de relações submissas ao governo francês, considerava-o perigoso para seus planos e o obrigou a deixar a Espanha. Em 1824 Goya se instalou na cidade francesa de Bordeaux, juntamente com dezenas de exilados espanhois. Ele foi obrigado a abandonar sua recém comprada casa de campo perto de Madrid, por causa da perseguição de Fernando VII.
"O afiador", Goya,
óleo sobre tela, 1808-1812
Em Madrid ainda, Goya se refugiou inicialmente na casa de um médico a quem tinha feito um retrato, o doutor Duaso. Mas lhe pareceu melhor fugir para a França. Inicialmente em Bordeaux, ele resolveu seguir até Paris, onde passou alguns meses, vivendo completamente só, mas sem parar de pintar e desenhar. Desde seus últimos tempos em Madrid, Goya já vinha realizando desenhos que mostravam suas inquietudes psicológicas e suas preocupações sociais.
O exílio para um homem com 78 anos de idade, e doente, era um golpe muito pesado. Sem se adaptar a Paris, resolveu voltar a Bordeaux em setembro de 1824. Lá estavam seus amigos, entre eles o poeta Moratín, de quem fez um retrato a óleo. Deu aulas de pintura e desenho para Rosario Weiss, filha de uma conhecida, Leocadia Zorrilla. Mas seu temperamento lutador não se acalmava. A partir de 1825 começou a fazer a série de gravuras intituladas “Los toros de Bordeaux”, junto com mais quatro telas a óleo sobre o mesmo tema. Mas também fez miniaturas sobre marfim, aguadas, desenhos.
"A obra", Goya, óleo sobre tela,
1786, 127 x 169 cm
Em 1826 Goya fez uma viagem a Madrid, onde obteve uma anistia. Continuou pintando, mas voltava para sua casa em Bordeaux. Uma de suas últimas pinturas foi “A leiteira de Bordeaux”, em 1827. Entre 1824 e 1827 ele fez muitos desenhos, entre os quais o famoso “Ainda aprendo”, onde talvez ele tenha se auto-retratado, pensando em sua permanente inquietude.
Em 1828, Francisco de Goya piorou de saúde. Há uma carta, de 17 de janeiro, que ele escreveu a seu filho, já demonstrando como sua saúde só se deteriorava. Sua nora e seu neto foram para Bordeaux, ao encontro dele; seu filho, Mariano, e sua mãe, somente chegaram no mês de março, quando ele já estava muito mal. Faleceu na noite de 15 para 16 de abril de 1828 e foi sepultado num pequeno cemitério da cidadezinha francesa, longe de sua terra. Mas em 1927 seus restos mortais foram trasladados para Saragoça, aonde até hoje se conserva seu túmulo.
Um dos maiores mestres espanhois estava com 82 anos de idade, enfermo, surdo e começando a ficar cego. Mas apesar disso tudo, se expressava cada vez com mais liberdade, força e inspiração, usando todo o seu tempo para se dedicar a seus desenhos e suas pinturas. Ainda antes de ser exilado, ele havia deixado nas paredes de sua casa de campo as marcas do seu pincel inquieto e de sua mente repleta de angústias e questionamentos sobre a vida: suas “pinturas negras” maravilhosas, que pude admirar de novo no Museu do Prado há alguns dias.

"A leiteira de Bordeaux", 1827, talvez uma das últimas pinturas de Goya
"O parassol", Goya, óleo sobre tela, 1777
"A pradaria de São Isidro", Goya, óleo sobre tela, 1788
"La maja vestida", Goya, óleo sobre tela, 1802-1805
"Cachorros e instrumentos de caça", Goya, óleo sobre tela, 1775
"As parcas", uma das pinturas negras de Goya, 1820-1823, 266 x 123 cm
"Os estragos da guerra", Goya, gravura

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Ir para Madrid

"Velha fritando ovos", Diego Velázquez, 1618
Abaixo, um trecho do livro "Vida y obra de Don Diego Velázquez", escrito em 1899 por Jacinto Octavio Picon, onde ele conta um pouco como foi a ida de Diego Velázquez, pintor espanhol sevilhano, para a capital Madrid. Também conta como era a relação do pintor com o rei, uma relação de assalariado, mas que lhe garantia moradia e alimentação, para ele e sua mulher, Juana Pacheco. Diego conheceu Juana na casa de seu mestre Francisco Pacheco. Casaram-se quando ele tinha 19 anos. Viveram juntos até o fim da vida. Ela morreu oito dias depois da morte dele, no dia 14 de agosto de 1660.
A tradução do texto foi feita por mim de forma livre. E cortei do texto o que não tivesse grande importância.
Autorretrato, Velázquez
"Por grande que fosse a cultura de Sevilha naquele tempo, era natural que Madrid, onde habitavam os reis e as famílias mais ricas, atraísse a atenção dos artistas provincianos. Só Madrid é nobre, se dizia vaidosamente então, e à corte quis ir Velázquez, ávido de estudar as maravilhas com que enfeitavam seus palácios, casas e conventos, Felipe IV, os grandes senhores e as comunidades religiosas. Ademais, ainda vivia El Greco em Toledo, e na sacra estupenda mole de El Escorial, segundo a pomposa linguagem da época, havia quadros de Tintoretto e Ticiano; estímulos de sobra, superiores naquela ânsia de se aperfeiçoar, para que o artista quisesse empreender a viagem.
«Desejoso, pois, de ver El Escorial — declara Francisco Pacheco (sogro de Velázquez) — partiu de Sevilha a Madrid, por volta do mês de Abril de 1622. Foi acompanhado dos amigos D. Luis e D. Melchor del Alcázar, e em particular de D. Juan de Fonseca, que estava a serviço do rei e era um admirador de sua pintura”. Don Antonio Palomino, do seu lado, diz que Velázquez partiu de Sevilha acompanhado somente de um criado: posteriormente outros biógrafos, Lefort entre eles, supuseram que este servidor fosse seu escravo, Juan de Pareja, mas não se tem certeza.
"El niño de Vallecas", Velázquez, 1635 
Em Madrid, retratou ao poeta Luiz de Góngora, o que seu sogro Pacheco o atesta. O poeta, residente então em Madrid, tinha 60 anos de idade. Dada a importância do personagem e o interesse demostrado pelo sogro, era natural que Velázquez não se limitasse a pintar só a cabeça: o natural era que, por respeito à personalidade de um e ao carinho do outro, tivesse feito uma obra mais aprimorada, onde o autor de “Polifemo y las Soledades”, tão admirado em seu tempo, estivesse de corpo inteiro ou ao menos em meia figura. Mas o artista fez um retrato da cabeça de Góngora mais seca, dura e cansada do que as que fez antes de ir a Madrid.
Ou porque algum assunto grave requeresse ali sua presença, ou porque estava desesperado por não alcançar seus desejos, Velázquez voltou nesse mesmo ano a Sevilha; no ano seguinte, em 1623 don Juan de Fonseca o chamou por ordem do Conde-Duque de Olivares, oferecendo-lhe uma ajuda de custo de 50 escudos para a viagem que, segundo parece, fez acompanhado de seu sogro Francisco Pacheco. Hospedou-se em casa de Fonseca e como mostra de sua habilidade ou prova de gratidão, Velázquez lhe fez um retrato. Conta Pacheco que naquela mesma noite “um filho do Conde de Penharanda, camareiro do Infante Cardenal” o levou ao palácio e “em uma hora todos os que estavam no Palácio vieram ver”. Logo se ordenou que retratasse ao rei, o que foi feito em 30 de agosto de 1623. Até então ninguém ainda havia pintado a imagem do rei Felipe IV.
"O bufão Calabacillas", Velázquez, 1639
Velázquez foi contratado como pintor do rei em 1623 com um salário de 20 ducados ao mês, algo como ganhava qualquer serviçal da corte, como o barbeiro, por exemplo. Foi feita a mudança de Sevilha a Madrid. Pintou o retrato do rei a cavalo, feito todo a partir do natural. O quadro foi colocado na Calle Mayor, frente ao rei e a toda sua corte, o que despertou a inveja de outros artistas. Tudo isto foi contado por Francisco Pacheco.
Velázquez fez vários retratos de Felipe IV.
A boa sorte de Velázquez estava assegurada, entendendo por isso a segurança de seguir servindo ao rei. Choveram sobre o artista sevilhano todos os aplausos e até poesias. Seu próprio sogro lhe dedicou um soneto e don Juan Vélez de Guevara lhe compôs outro.
Passou a viver numa casa ao lado do palácio do rei, que representava um custo anual de 200 ducados. Felipe IV lhe deu outros 300 ducados de presente e ordenou que lhe pagassem um salário mensal, como era feito aos eclesiásticos a serviço da monarquia. Ou seja, Velázquez era um assalariado do rei.
Diego Velázquez seguiu fazendo seu trabalho de pintor. Nesta época fez também um retrato de sua esposa, Juana Pacheco. Por volta de 1626 pintou ao Infante don Carlos de corpo inteiro e em tamanho natural em pé, vestido com capa e traje negro. Podemos afirmar que neste retrato termina a primeira fase da pintura de Velázquez. Se pode afirmar a superioridade indiscutível do quadro em relação aos anteriores. Está desenhado, como todos os outros, com aquele maravilhoso sentimento da linha que ele teve desde o princípio, mas no que toca ao modo de pintar, ele começa a mostrar maior soltura, menos esforço para conseguir o modelado e, no que se refere à cor, a tendência a buscar a doce e elegante harmonia entre tons cinzas e negros que ele manejava como ninguém.
"O bufão don Diego de Acedo", Velázquez, 1639
Felipe IV encomendou, não só a Velázquez mas a outros artistas em forma de concurso, um quadro que representasse a expulsão dos mouros, executada a mando de seu pai Felipe III, um ato cheio de crueldades. Mais de 300 mil pessoas foram expulsas da Espanha, por serem de origem moura. Felipe IV ofereceu um prêmio a quem melhor representasse o tema. Francisco Pacheco conta que seu genro fez “um quadro grande com o retrato do rei Felipe III comandando a expulsão dos mouros”. Velázquez venceu o concurso e com isto o rei ordenou que se lhes pagasse uma ração igual aos que ganhavam os que viviam no palácio, que eram de 12 reais por dia para sua refeição e outras ajudas de custo. Velázquez ascendeu um grau na escala dos criados do palácio.
Ao rei agradava muito esta e outras obras pintadas por Velázquez. Mas a Tesouraria do Palácio não era um modelo de esmero no pagamento dos salários e muitas vezes o artista teve que fazer uma reclamação e soube que aquela ração diária de 12 reais se referia somente aos quadros de retratos do rei e não aos outros quadros que pintasse Velázquez. O rei Felipe tinha decretado a seguinte ordem:
«A Diego Velázquez, meu pintor de Câmara, ordeno que se dê pela despensa de minha casa uma ração cada dia em espécie como a que têm os barbeiros de minha Câmara, em consideração por ter se dado por satisfeito de tudo o que se lhe deve até hoje pelas obras de seu ofício; e de todas as que adiante mandarei, fareis com que se registre assim nos livros da casa. (Há uma rúbrica do Rei). Em Madrid, 18 de Setembro de 1628. Ao Conde de los Arcos, em Bureo».
"Retrato de don Juan Pareja", Velázquez
Digam o que quiserem os adoradores do passado acerca da diferença de tempos, usos e costumes, para sustentar que o que hoje parece humilhante era naquele tempo uma honra, a verdade é que lendo tais coisas vem aos lábios o sorriso amargo que inspiram a grande mesquinhês humana; sobretudo se se considera que os barbeiros da Câmara eram tratados como gente de segunda linha, assim como Velázquez era tratado como o eram os anões e bufões da corte que inclusive lhes serviram de modelo, como o menino de Vallecas, Nicolasito Pertusato, o bobo de Coria, Calabacilla e Solpillo. Enquanto isso, em outros países em épocas mais remotas, os reis honraram seus pintores, como Francisco I a Leonardo da Vinci, como Julio II a Michelangelo, Como Leão X a Rafael, como Maria de Médicis a Rubens, e como a cidade de Amsterdam a Rembrandt.

Felipe IV pensou de distinto modo e assim como em certa ocasião se lhe ocorreu expulsar da Espanha os estrangeiros porque comiam muito pão, acreditava que o nome de seu artista predileto não estava mal junto com os nomes dos barbeiros, maltrapilhos, anões e bufões. A alguns destes Velázquez imortalizou, pintando-os de forma que mesmo sendo da baixa ralé hoje figuram juntos com os retratos dos reis nos museus. Se ele fez isso de forma maliciosa, foi genial; se fez isso por inocência, como pode ser presumido porque ele era um homem de grande bondade, o tempo acabou vingando-o."
"Café da manhã", Velázquez, 1618,
Museu Hermitage, São Petersburgo, Rússia

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Quem tem alma não tem calma

Dentro de nove dias embarco mais uma vez para a Espanha.

Desde o mês de março, a pintura espanhola vem novamente tomando conta de mim, em especial a de Diego Velázquez. Desde então, já fiz dois estudos sobre obras suas, como esta abaixo que representa o "El Bufon don Sebastian de Morra", de 1645 e "A costureira" de 1640.


Cópia de "El bufon don Sebastian de Morra",
Mazé Leite, abril de 2015, óleo sobre tela
Mergulhada em estudos sobre este grande pintor espanhol, teóricos e práticos, a vida vai me levando de novo para a Espanha. Desta vez para estudar mais, pesquisar mais, ver de perto, beber, me embriagar dos grandes pintores espanhois... 

Desde março, revoluções internas me dominam, me angustiam, me fazem perder o sono de madrugada... Penso no meu caminho na pintura, como uma pintora brasileira que vive em um país ensolarado, tropical, "bonito por natureza" mas vivendo momentos tão tensos e até mesmo perigosos. Está muito perigosa a vida no Brasil! Nesta semana, meu sobrinho Rondinelli Ferreira foi morto num assalto por causa de um celular. Só tinha 18 anos... Todos os dias esta mesma tragédia se repete na vida de inúmeras famílias do meu país. Que fazer?

Me pergunto: pintar a vida é pintar o que?

Pensamentos livres vão alcançando a superfície do mar revoltoso do meu cérebro: que é arte? que é se expressar em arte? pra que serve arte? pra que serve técnica?(leia post anterior aqui) Vêm vindo os pensamentos...

Arte pela arte é auto-compensação, é auto-indulgência, é querer se satisfazer sozinho, como se sozinhos fôssemos no mundo. Arte pela arte é refúgio covarde, ou egoísta, quando não se pode - ou não se quer - pensar sobre o mundo. Arte pela arte é a idealização da impotência, a concretização da fraqueza.

Caminhos existem para o artista, e enxergo estes aqui:

- OU fazer arte apenas para obter vantagem econômica, mesmo sendo espoliado por galeristas e curadores - o que pode levar à superficialidade mais escrota!

- OU resistir às pressões do sistema de arte atual, contrariando-o, e ao mesmo tempo se fechando, se isolando do mundo - o que pode levar à depressão, à loucura;


- OU resistir ativamente, coletivamente, consciente de que está tendo uma função cultural válida, mesmo num tempo tão desastroso como o que vivemos. Prefiro esta alternativa.
Retrato de Antonio López,
ainda em execução - Mazé Leite, óleo
sobre tela, maio de 2015

Lucien Freud já disse uma vez algo no sentido de que a arte deve assombrar, incomodar, mobilizar.

Mas a pergunta continua: pintar a vida é pintar o que? A resposta não vem fácil e isso algumas vezes dá raiva.

Nem sempre a raiva é um sentimento ruim; muitas vezes ela é necessária para nos empurrar em outro caminho, escolher outra coisa. Sinto raiva muitas vezes! Raiva do mundo, das coisas, das pessoas, de mim mesma, das minhas próprias tonterias.

Nesta noite passada, noite gelada, olhei para o céu escuro, busquei um horizonte entre prédios e falei para mim mesma, tentando acalmar as angústias dos dias presentes:

- Lembra daquela estrela do teu céu de antigamente? Vê que hoje há uma ali, à esquerda no céu, assemelhada àquela daqueles tempos em outro mês de maio? Lembra que ela iluminava os espaços em volta, de tão quente estrela que era? Também havia a escuridão em torno dela, aquele espaço negro no céu, negro de dar medo daquela garganta imensa do infinito que podia me engolir a qualquer hora, não fosse a gravidade... Mas a luz daquela estrela espantava a escuridão e a escuridão da noite foi perdendo fôlego. A estrela maior, o Sol, nasceu e começou a dissolver meus medos, minhas raivas, aquelas batalhas que às vezes trovejam dentro de mim... Os raios do sol abanam a fogueira da minha existência. O arder do fogo da vida, para arder, precisa de abanos. E hoje um vento solar me abana e me leva para bem longe daqui.

Por isso vou para a Espanha.

Vou pensando como Fernando Pessoa:

"Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é..."


Lá vou eu!

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Tiziano poeta

Danae, Ticiano, 1551-1553, óleo sobre tela, 192x114 cm, Apsley House, Londres
Danae, Ticiano, 1565, 129x181 cm, óleo sobre tela, Museu do Prado, Espanha
Tiziano Vecellio, ou simplesmente Ticiano (em nossa língua), pintor italiano que nasceu por volta de 1477 e morreu em 1576, continua impressionando todos os que amam a pintura. Ele é considerado um dos maiores expoentes da chamada Escola Veneziana e era chamado, pelos seus próprios contemporâneos, de “o sol entre as estrelas”, por causa da sua imensa versatilidade no manejo do pincel, criando obras-primas que atravessam séculos. Ele foi um dos primeiros pintores a buscar exprimir o essencial na pintura, valorizando mais as massas de cores do que as linhas do desenho.
Na fase mais amadurecida de sua carreira, Ticiano começou a experimentar pintar sem desenhos preparatórios, de forma mais rápida e, alguns diriam, imprecisa. Imprecisa no sentido de que ele abria mão da descrição absoluta e pincelava o que era necessário para expressar-se. Queria captar a realidade no momento preciso. Por isso, não há mais contornos definidos e as pinceladas são mais soltas e mais densas, aparecendo mais. Isso era absolutamente novo na pintura daquela época, e o resultado é mais movimento, uma pintura mais viva, diferente da execução detalhada que obedecia basicamente ao desenho.
Foi exatamente nesta fase, depois de 1550, que Ticiano criou um conjunto de 6 pinturas que ele mesmo denominou de “Poesias”. São obras de temas mitológicos que ele pintou para o rei espanhol Felipe II, provavelmente encomendadas por este. Estas “Poesias” demonstram como Ticiano criou sua própria interpretação de temas mitológicos como o de Cupido e Vênus, carregando as cenas de erotismo, de valorização do feminino e mostrando a sensualidade do corpo da mulher.
Perseu e Andrômeda, Ticiano, 1556, 183x199 cm
São estas “Poesias” que o Museu do Prado, de Madrid, Espanha, está mostrando ao público desde o dia 19 de novembro de 2014 até 1º de março próximo. Trata-se de: “Danae” (Londres, Apsley House), “Vênus e Adônis” (Museu do Prado), “Perseu e Andrômeda” (Londres, Coleção Wallace), “Diana e Acteão” e “Diana e Calisto” (National Gallery, Edimburgo e Londres) e “O rapto de Europa” (Isabella Stewart Museum de Boston).
O curador da exposição, Miguel Falomir, explica que nas cartas enviadas por Ticiano a Felipe II, o pintor chamou-as de “Poesias”, pois queria reinvindicar um antigo desejo dos pintores de se assemelhar-se aos poetas. Ele mesmo deu sua interpretação aos textos antigos. Na obra “Vênus e Adonis”, exemplifica o curador, o protagonista masculino tenta se livrar do abraço de Vênus, de costas para o observador. Esta cena é uma invenção de Ticiano, pois não se encontrava em nenhum texto, e foi motivo de inspiração para muitos escritores, entre os quais William Shakespeare.
Estas obras, antes da exposição, passaram por um processo de restauração dentro do Museu do Prado, dirigido por Elisa Mora, uma das especialistas do museu. O trabalho consistiu em eliminar tudo o que interferia na leitura correta das obras, realizando uma limpeza nos vernizes que já haviam oxidado. Também foram eliminados toques de re-pintura, realizados em anos anteriores.
Diana e Acteão, Ticiano, 93x107 cm
Esta é a primeira vez que as pinturas “Danae” e “Vênus e Adonis” se mostram lado a lado. Uma outra versão de “Danae” de Ticiano, do acervo do Prado, também se encontra na mostra. É uma “Danae” posterior, de 1565, que fazia par com “Vênus e Adônis” nas chamadas abóbodas de Ticiano no antigo Alcazar madrilenho. Foi Velázquez quem a adquiriu em sua primeira viagem à Itália, e é considerada mais erótica do que a versão que se encontra em Londres, na Apsley House.

Ticiano é um dos mestres da pintura ocidental. Mesmo passados exatos 438 anos de sua morte, sua obra permanece como exemplo e referência de grande altitude, pois em sua genialidade teve coragem de enfrentar suas próprias questões técnicas e se afastar do modo padronizado de pintura do seu tempo. Assim como Velázquez, assim como outros que vieram depois em vários países. O que nos faz refletir: não importa o modismo estético da época, importa a busca individual pela perfeição pictórica e pela liberdade de expressão a que esse caminho conduz.
Abaixo, mais algumas "Poesias" de Ticiano...
Vênus de Urbino, Ticiano, 1538, óleo sobre tela, 165x119 cm, Galeria degli Uffizzi, Florença

Vênus vendando os olhos de Cupido, Ticiano, 1565,
óleo sobre tela, 185x118 cm, Galleria Borghese, Roma

Vênus recreando-se com a música, Ticiano, 1550, óleo sobre tela, 222x138cm, Museu do Prado 
Vênus recreando-se com o Amor e a Música, Ticiano,
1555, óleo sobre tela, 218x150 cm, Museu do Prado 
O rapto de Europa, Ticiano, 205x185 cm, Museu Isabella Stewart, Boston
Vênus e Adônis, Ticiano, 207x186 cm, Museu do Prado
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