Cena na Bolsa de Valores de Nova York: o deus-Mercado em ação |
O artista francês François Derivery (nascido em
1937), que atualmente faz parte do conselho editorial da revista “Ecritique” de
Paris, publicou no site do grupo DDR, do qual faz parte junto com dois outros
artistas (Michel Dupré e Raymond Perrot), um artigo sobre a relação entre o
Neoliberalismo e a chamada Arte Contemporânea. Por considerar um assunto muito
atual e esclarecedor a respeito do estado das artes plásticas no mundo de hoje,
resolvi traduzir trechos e publicá-los aqui, como um resumo deste artigo cujo
título é o mesmo deste post.
Livro de Francis Stoner Saunders que conta as ações da CIA para criar uma "arte moderna" que fosse controlada |
Derivery
afirma que depois de 1945, o desenvolvimento do neoliberalismo, nascido da
internacionalização do capitalismo norte-americano impulsionado pela guerra,
submete, voluntária ou involuntariamente, um número crescente das atividades
humanas às leis do mercado, afetando profundamente as relações sociais e os
valores que as regem. Sabemos que o auge do neoliberalismo se deu ao final da década de 1970 com a ascensão de Ronald Reagan à presidência dos EUA e com o governo da primeira ministra Margareth Thatcher, na Inglaterra. Mas Derivery aponta a situação mundial pós-segunda guerra como as raízes do neoliberalismo.
Na
medida em que os laços sociais vão sendo definidos pelo mercado - mercado financeiro
- os valores que ele perpetua estão bem distantes dos valores históricos, que
passam a ser considerados obsoletos, além de tornarem-se mesmo um obstáculo
para o “livre” desenvolvimento em direção a uma sociedade de mercado.
A
partir daí, diz Derivery, uma nova "modernidade" começa a esvaziar o
conteúdo cultural baseado no sentido do Coletivo, intervindo em todas as áreas
da atividade humana, da democracia política ao direito, da cultura à educação.
E, obviamente, da Arte. O desafio, naquele momento era reformatar tudo nos termos
do mercado, tornar todos os meios em instrumentos do neoliberalismo e
transformar o cidadão em produtor-consumidor, passivo e submisso.
A
“cultura de massa” não é mais somente àquilo que a esquerda chama de “mercantilização”
da cultura, mas ela é considerada como uma atividade econômica e industrial
como qualquer outra. Isso designa uma produção original fundada sobre um
projeto ideológico novo. A cultura de massa é constituída, em suas formas e em
seus conteúdos, na ruptura e não mais na continuidade no sentido de patrimônio
cultural herdado ao longo da história.
Essa
nova “cultura da sociedade de mercado”, como diz o autor – ou essa “cultura de
massas” – carrega um duplo papel: enquanto abranda e “adoça” as massas com
entretenimento, usa isso como álibi para a dominação econômica e política. O
“sucesso” dessa empreitada é colocado na conta do neoliberalismo. Mas,
paradoxalmente, os estragos da globalização capitalista deixam marcas pelo
mundo, e esse sistema precisa criar necessidades de compensação simbólica que
são constantemente renovadas. A indústria cultural ganha em todo o processo, na
medida em que aumenta a pressão do sistema sobre os indivíduos.
Na
sequência, continua o artigo de François Derivery, surge a noção de
pós-modernidade, que reflete essa ruptura econômica, cultural e ideológica que
constituiu o advento do neoliberalismo e de um novo modelo de sociedade. O
neoliberalismo se impôs mais rapidamente na esfera econômica do que na esfera
cultural. Demorou algumas décadas para que fosse traduzido, em termos
culturais, a opção neoliberal, e mesmo assim atingindo desigualmente os
diversos setores da sociedade.
A arte
dita “contemporânea” – continua Derivery - se situa na vanguarda dessa evolução
neoliberal, num campo propício às radicalizações tanto em razão do caráter
hermético dessa nova arte, quanto pela demanda econômica distinta à qual ela
deve responder.
Uma
arte de mercado
Frisson de clientes na casa de leilões Sotheby's londrina que leiloava um dos animais embebidos em formol de Damien Hirst |
Na
mesma direção que a autora do livro “Quem pagou a conta?”, Frances Stonor
Saunders, Derivery diz em seu texto que no fim da segunda guerra mundial a CIA
introduziu na Europa, com o plano Marshall, uma arte norte-americana armada de
uma “feroz vontade de conquista”. E ele observa: “A hegemonia econômica não é
possível sem dominação cultural”. Os Estados Unidos já vinham fazendo uma verdadeira
faxina em sua própria casa, colocando um fim às experiências de arte
“engajada”. A nova política cultural norte-americana pretendia impor uma arte
“neutra”, porém cúmplice e autora de seu projeto imperialista. E acrescenta
Derivery: “A arte contemporânea de mercado se desenvolveu a partir desse
primeiro modelo de arte trans-nacional. O mercado de arte se estrutura a nível
mundial enquanto se coloca como referência estética.”
Mais à
frente ele aponta que a dupla função dessa “arte sem fronteiras” era ter um papel
econômico como possibilidade de investimentos e um outro papel, o ideológico,
porque “ela foi um instrumento importante e fundamental para divulgar os
valores do neoliberalismo”.
A poderosa Sotheby's |
O fato
de associar-se arte contemporânea e cultura de massas pode parecer paradoxal,
observa o artista francês, se levarmos em conta o elitismo e a arrogância
presentes nessa arte. Mas o elitismo de hoje não é o de ontem, que estava
ligado mais ao saber ou a habilidades pessoais: o elitismo de hoje é um
elitismo de posição social, um elitismo de conta no banco. É o elitismo do
“reality show”, de suas celebridades e de certa mídia dita “popular”, que nada
tem de popular, apesar de visar o povo. É um produto de mercado, acrescenta.
Para a
sobrevivência do neoliberalismo ele precisa estar no controle sobre o sentido simbólico
de tudo, e a censura aos dissidentes é necessária. Censurar a história em nome
da “modernidade”, permite esvaziar as estratégias potencialmente
desestabilizantes. Essa nova ideologia procura introduzir a ideia de que a arte
contemporânea é sinal de “modernidade”, inclusive pelo fato de não ter um passado
(assim como não tem conteúdo). Em nome dessa nova ideologia, práticas artísticas
significantes e relevantes da humanidade são denunciadas, ainda hoje, como
“ideológicas” – e eles acrescentariam: “desonestas”, “não artísticas” e “sem
ética”. Mas qualquer crítica que se faça à “doxa”
(do grego, senso comum) oficial é apresentada, no mínimo, como
manifestação de ódio à arte.
François
Derivery diz com todas as letras em seu texto: “O neoliberalismo é a origem e a
razão de ser da arte contemporânea”!
Objeto de "arte": de Piero Manzoni, que "cagou" em 90 dessas e vendeu a peso de ouro |
E
segue explicando a sua tese, enquanto faz um levantamento sobre o funcionamento
do sistema envolvido em torno da chamada arte contemporânea: até pode se
admitir a crítica ao conceito ou ao modelo teórico, mas isso “não inclui
questionar as obras daqueles que, segundo o pragmatismo do mercado, produzem
"arte contemporânea’".
Mas, contrariamente
à opinião dominante – diz ele – o pensamento crítico e o trabalho em outro
sentido não são atividades ideológicas. Só que pensamento crítico e fazer arte
de outro jeito tomam um sentido político se questionam o sistema oficial, a
forma imposta e alienante “da relação com o Real e com o Outro”.
Derivery
diz que o endeusamento da forma, do objeto, no mundo contemporâneo nasce do
medo à busca do sentido, do significado das coisas. E esse medo tem conduzido os
artistas ao abandono da prática artística enquanto forma de produzir arte. Prática
artística significa trabalhar em conjunto conteúdo e forma, ao longo do tempo.
É um processo - precisamente o processo da arte. Dentro disso, ela não pode
produzir “objetos”, mas “obras”, afirma o artista, que acrescenta que a
pós-modernidade artística rejeita a obra porque ela se refere a uma prática e porque
carrega uma história. Porque a pós-modernidade valoriza e sacraliza o objeto
“acabado”, sem processo, nascido na “fulgurância de um “gesto criador’”. É o advento
do “Conceito” no sentido publicitário do termo e do produto artístico formatado
dentro das normas dessa anti-cultura.
"obra" de Tracey Emin: uma cama desarrumada |
A arte
moderna da primeira metade do século XX privilegiou a prática, diz Derivery. Nós
sabemos que a história da arte é a história do exercício humano em busca da
perfeição artística. Todos os grandes mestres se debruçaram sobre seu trabalho,
e não se tornaram mestres da noite para o dia. Mas, voltando ao artigo, ele
continua dizendo que os artistas do começo do século XX, na esteira da
contestação contra a arte oficial que já vinha desde o século XIX, escolheram abrir-se à sociedade como
um todo e correr os riscos de novos significados. “Sua vontade de sair do gueto
de uma arte convencional, seu assim chamado “engajamento”, é a explicação para
sua excepcional criatividade”, atesta Derivery. Mas aquela abordagem e prática
de arte eram irreconciliáveis com o projeto de uma arte de mercado,
ideologicamente conformada a ela.
Assim
o neoliberalismo artístico esvaziou a arte moderna de seu princípio criador, de
seu próprio projeto, lhe reduzindo à pretendida “aventura das formas”.
Qualquer coisa é arte quando alguém assim o determina, dizem eles |
Dentro
da ideia de um fim da história, todos os objetos se equivalem. Portanto, apesar
da ruptura ideológica do pós-guerra, a pós-modernidade artística, cujo projeto
se estrutura a partir dos anos 1960, vai se nutrir da arte moderna e de suas
invenções formais. A nova “arte” não tem e nem pode ter uma identidade
artística própria. Não há invenção de forma e experimentação, não se inventa nada
sem referência na realidade. Mas a arte contemporânea diz recusar o real.
Derivery continua, afirmando que “a arte é sempre alimentada
pela realidade”. Mas ela legitima essa abordagem quando se abre ao Outro,
porque a “arte intermedeia a realidade”. Através da vontade de observação e de
percepção do artista, ele produz uma representação que o Outro é chamado a
ampliar. Mas a predação começa quando a compreensão do real se reduz a uma
simples “apropriação”. A arte contemporânea está aí com seus milhões de
exemplos de apropriação indébita. Basta ir até a Bienal do Ibirapuera...
Não é um brinquedo de criança. Isso é "arte" de Jeff Koons |
Mas,
continua o artigo de François Derivery: o resultado desse gesto de apropriação
é um objeto, fragmento de realidade, que, transportado a lugar apropriado
fornecido pelo mercado ou instituição, se transforma num “objeto artístico”.
Certamente isso que é “artístico” é menos o objeto do que o “gesto”, a operação
de apropriação. Mas essa intermediação da realidade pela arte acontece naquilo
que nós chamamos de “prática”, coisa que é recusada pela arte contemporânea. “A
apropriação é, na verdade, o grau zero da intermediação e o “gesto” de
apropriação é o grau zero da prática”, conclui o artista.
O
ready made
O
objeto da arte contemporânea é então o produto e ao mesmo tempo a testemunha
material de um gesto fundador imaterial, onde o valor artístico, na ausência de
projeto significante, é fixado pelo mercado. Esse gesto “criador”, na arte
contemporânea, é atribuído ao “gesto inaugural” de Marcel Duchamp. Mas o
propósito dele - ao contrário dos produtores contemporâneos - foi o de
denunciar a legitimação exagerada das instituições em decidir o que podia ser
exposto como arte.
Ready made de Duchamp |
Falar
em “gesto” em relação aos primeiros ready made é justo porque Duchamp não
procurava fabricar “objetos artísticos”. Mas seu gesto, ao contrário do gesto
do produtor contemporâneo, foi um gesto crítico, portanto plenamente artístico,
explica Derivery. Na minha opinião, Duchamp acabou entrando na onda e se
enquadrou no sistema que inicialmente criticou. Mas concordo quando Derivery
afirma que a “imagem de “Duchamp” hoje é produto da arte contemporânea, não o
inverso”. Porque não poderia ser de outro jeito num sistema cujo impulso
permanente é o da apropriação, inclusive de símbolos ligados à esquerda, como a
imagem do Che Guevara, só para ficar num único exemplo.
O
sentido inicial do gesto de Duchamp foi esvaziado, mas restou o objeto, o
penico, com valor adicionado. Sua função passou a ser a de modelo de um modo de
produção de objetos que têm a particularidade de ser ao mesmo tempo objetos de
arte e objetos de mercado.
Arte
é vida, efeito do real
Mao Tse Tung, líder chinês "apropriado" pelo artista pop Andy Warhol |
O
mercado de arte contemporânea não oferece, portanto, uma intermediação do real,
ele se apropria, da mesma forma que o capitalismo. Enquanto promove a morte do
simbólico justifica a predação que justifica a morte do simbólico. Portanto não
é a realidade a referência para a arte, mas a arte, a ilusão (disfarçada) que
faz a realidade. A Realidade é a última das preocupações da arte contemporânea.
A
ideologia do ready made permite que
se aproprie do real sob a forma de “arte”, esvaziando totalmente o momento intermediador
e afastando o risco da significância. Isso sem falar, lembra Derivery, que o artista
foi expatriado de sua responsabilidade no processo social e absorvido por uma
ideologia que é também estética. A intervenção do artista atual consiste em
encenar um papel, que é ainda mais benéfico e proveitoso para essa
arte-espetáculo. Mesmo que a encenação crie um ato de violência, o que aumenta
o espetáculo.
A "celebridade" Damien Hirst com uma de suas "obras" e uma multidão dos buscadores de ícones neoliberais contemporâneos |
Deve se
dizer, acrescenta Derivery, que a pesquisa sobre os efeitos do real não tem
nada a ver com o "realismo", que é um pensamento sobre a realidade.
Mas a recusa ao real é uma forma de confessar que a "realidade"
reproduzida num objeto não passa de uma convenção. E ele diz que o Hiperrealismo,
que está em certo sentido na moda em alguns lugares, especialmente nos EUA, é a
expressão artística privilegiada do atual consenso ideológico, porque a "constatação"
do real se encontra instalada na lógica consensual de recusar (de pensar) a
realidade. Suas poses “subversivas”, independentemente do seu impacto dramático
ou violento, endossam a ordem vigente. Para se abster de toda interpretação do
real, o pintor hiperrealista prefere não reproduzir o que ele mesmo vê da
“realidade” mas a “versão já interpretada de uma fotografia”.
O
problema da arte - e não existe outro, segundo ele afirma - é o da sua relação
com o real. Mas na arte contemporânea essa relação não existe, é simulada e ao
mesmo tempo recusada e negada.
O ideal é o do Mercado Financeiro |
François
Derivery, mais à frente, coloca que não estando engajada em uma vontade de
transformação da realidade, a produção formalista não pode se renovar a não ser
pela replicação sem fim. Ao mesmo tempo continua a cumprir seu papel
exsudatório enquanto satisfaz a demanda do mercado por produtos de valor
monetário cada vez maior.
A
lógica capitalista é implacável, afirma Derivery. Ela prega a expropriação
cultural e política na arte para conformá-la ao ideal do mercado. E mais à
frente, ele lembra que a história tentou construir valores coletivos, de
sociedade. A arte moderna foi uma tentativa de abrir a arte para o sentido do coletivo,
contra a lógica que exigia neutralidade e submissão ao poder político. Mas o
individualismo da arte contemporânea nega também esse aspecto e não se pode
dizer que ela deriva da arte moderna. A arte contemporânea, para o artista
francês, deriva do neoliberalismo.
No
final do texto, ele propõe uma “resposta a essa “arte” que tem se atribuído
exclusividade sobre a contemporaneidade”, dizendo que essa resposta não se
encontra na reativação de um subjetivismo nostálgico obsoleto e nem numa nova
problemática formalista. As questões que se colocam como prioridade não são
questões de estética, mas questões cidadãs, do ser humano enquanto ser social.
Vamos ter que desconstruir – acrescenta Derivery - as noções de arte e de
artista e reexaminar sua pertinência a partir das realidades sociais e
coletivas.
Vamos
ter que reabilitar o pensamento crítico, retornar à prática e à busca do
sentido da arte.
Cena do filme de animação "American Pop" do diretor Ralph Bakshi, de 1981. A mensagem é nós fazemos parte da História, não estamos sós. Somos coletividade. |
Belo texto, Mazé!
ResponderExcluirNão existe nada mais sem sentido do que a arte contemporânea.
Valeu por mais essa reflexão!
Bjs.
Esse tal de François Derivery nem existe... vamos brincar de nos informarmos mais (ler, estudar, ir mais para museus).. é muito fácil fazer análises rasas. Pena que elas não servem para muita coisa, principalmente quando as fontes de referências são fictas.
ResponderExcluirPor que será que nunca se pode criticar esse povinho que adora arte contemporânea, sem deixá-los irritadinhos? Fica a questão, caro "Henrique"... Não seria você a ficção?
ResponderExcluirParabéns por este belíssimo texto!Tem toda a razão. Ainda ontem vi o filme "O Mestre da Vida" e lá mostra também a mesma linha de pensamento deste texto. A arte contemporânea não é arte, na minha modesta opinião. É outra coisa, mas não é arte. Qualquer pessoa, criança e até animal pode fazê-la e até melhor que esses pseudo artistas. Nao têm criatividade, a a sua "arte" é simplesmente futil, banal, incoerente, patética, sem beleza, enfim, envergonha qualquer pessoa minimamente inteligente! R.F. (Portugal).
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