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terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Arte e negócios

Nesta primeira semana de fevereiro, a revista Carta Capital dedicou capa e diversos artigos a analisar a situação da cultura e da arte no Brasil e no mundo de hoje. O editorial, escrito por Mino Carta, expõe algumas chagas na cultura dos tempos atuais.

Especialmente o artigo que reproduzo abaixo (que foi digitado por mim a partir da revista), resume muito bem a situação, especialmente das artes plásticas. A autora denuncia, entre outras coisas, a instrumentalização da arte e de artistas pelo neoliberalismo nas últimas décadas. 

Muita gente tem entrado nessa onda: algumas ingenuamente, outras por falta de senso crítico, outras por adesão mesmo. É a velha história faustiana de entregar a alma ao diabo (no caso, o capitalismo).

Recomendo uma leitura atenta.




Um excelente negócio
Nas últimas décadas, a arte tem perdido o jogo como bem público
Revista Carta Capital

Daniela Castro*

A arte joga com o inegociável da vida social. Ela desestabiliza o estabelecido, fricciona, negocia, destrói, revela, ilustra, dialoga com a matriz ideológica que sustenta certa hegemonia de valores. A instituição cultural que abriga tais práticas veicula essa produção de saberes não hegemônicos, expõe aquilo que há nas entrelinhas desses discursos, e assim nos instiga a imaginar outra sociedade, um lugar melhor. Ou seja, a arte é fundamentalmente de cunho social e político.

Não se trata aqui de reduzir o papel da arte, mesmo que assim o pareça na tentativa de defini-la em um parágrafo. Trata-se de dizer que nos últimos anos ela tem perdido o jogo como um “bem público” da vida social para se tornar um “ótimo negócio” dos interesses privados.

Quem dá mais?

Há aqueles que se regozijam com a explosão do mercado de arte e o lugar que ocupa nele a arte brasileira. Novas galerias surgem em São Paulo a cada semana, o mundo conta com mais de 300 bienais, e as inúmeras feiras celebram o interesse crescente pela arte, a julgar pela alta visitação e o alto volume de vendas. No Brasil, centros culturais privados geridos com dinheiro público obtido por incentivos fiscais exibem seus nomes fantasia nas fachadas de prédios imponentes em endereços nobres com orgulho filantrópico.

Precisamos retroceder alguns séculos para entender como tudo isso começou. Desde o primeiro momento em que artistas começaram a viver de sua produção, alguma forma de mercado de arte negociava transações entre indivíduos que detinham poder e outros que detinham talento artístico. O primeiro crítico do mercado da arte, Gerald Reitlinger, atestou em seu clássico “The Economy of Taste” (1961) que o mundo não poderia oferecer enormes quantias de dinheiro à arte até que o mundo obtivesse enormes quantias de dinheiro. Isto é, após a industrialização e financeirização do capitalismo.

Uma caveira de 100 milhões de
dólares, "obra" de Damien Hirst
Quando pinturas históricas e cubistas figuraram juntas nas primeiras IPOs do século XX (do inglês, initial public offering; evento que marca a primeira venda de ações de uma empresa no mercado), atingiram um valor astronômico, pois, subitamente, as pessoas passaram a ver as pinturas não somente como representação de valores históricos, mas de valores futuros. As obras de arte passaram a ser avaliadas não mais como unidades especulativas de medida de valor. Neste século, a caveira de diamantes de Damien Hirst, com custo de produção de 23,6 milhões de dólares, foi arrematada por 100 milhões, o maior valor atribuído a uma obra de artista vivo.

Foi a partir dos anos 1980 que, em resposta à crise de estagflação mundial, o capitalismo dirigido pelas finanças disseminou a sua lógica inexorável do mercado caracterizado pela ausência de regulamentação e voltado para a maximização do valor aos acionistas por todos os cantos do planeta. E a velha novidade é que os executivos do capitalismo financeiro que patrocinam as artes e ocupam assentos em conselhos administrativos de museus são os mesmos acionistas voltados para a maximização do valor a qualquer custo por todos os cantos do planeta.

O caráter filantrópico associado ao patrocínio empresarial à cultura como “bem público” mascara outro tipo de maximização do valor: o do capital simbólico. Tal como os antigos empreendedores, as elites corporativas lutam para consolidar sua posição e seu status dominantes por meio de uma intrincada rede de relações econômicas e sociais. Engajar as companhias no comando das artes e atividades culturais é parte dessa estratégia.



Vik Muniz e seu prato de macarrão simulando
a obra "Medusa" de Caravaggio

Em outras palavras, qualquer tipo de patrocínio corporativo à arte e cultura, seja por meio de doações, seja principalmente por incentivos fiscais, gera lucro. Portanto, não há mera coincidência entre a bilionária ascensão do mercado de arte contemporânea e a desregulamentação do capital financeiro. Pautado por uma economia desterritorializada de especulação do capital, o neoliberalismo encontrou na obra de arte, como mercadoria de especulação sobre valores futuros, sua alma gêmea. Aquilo que se convencionou chamar de “Economia Criativa”, a partir dos anos 2000, foi a bem-sucedida união em comunhão de bens da economia neoliberal com a arte. Uma expressão que designa deliberadamente a privatização da cultura.

Os riscos que esse cenário nos traz já são sentidos. Em primeiro lugar, estamos diante de uma situação em que o antigo modelo de comércio varejista das galerias tem sido substituído por amalgamações globais de larga escala, como a Hauser & Wirth & Zwirner e a Gagosian. A formação de conglomerados no mercado e instituições artísticas (Guggenheim) aponta para a ideia de que a arte está cada vez mais enredada nas tentativas de reassegurar o poder monopolista, berço do capitalismo da propriedade privada, cuja geração de riqueza depende de alegações de singularidade e autenticidade distintivas e irreplicáveis.

Essa afirmação nos coloca um problema grave, pois o discurso gerado pela produção de conhecimento acadêmico e intelectual no campo da arte corre o risco de ser instrumentalizado como commodities do consumo de trabalhos artísticos diante da ascensão da competição e globalização no negócio da arte. Em segundo lugar, a própria criação artística - tradicionalmente vinculada à interiorização, ao tempo lento e à autonomia de pensamento - se vê obrigada a adaptar-se ao ritmo da demanda do mercado.

Mefistófeles está disponível para quem quiser
vender sua alma...
Isso força um esvaziamento crítico de sua produção, a aprisiona a clichês do vocabulário de experiências pessoais comercialmente conformistas e resulta em um enfraquecimento nas relações formais e de conteúdo. O brasileiro Vik Muniz tornou-se mundialmente famoso por suas releituras icônicas da história da arte feitas com macarrão e chocolate. E as expressões da pobreza e do abandono do Estado das classes baixas urbanas, uma vez retratadas pela dupla Os Gêmeos, agora figuram em lenços da nova coleção da Louis Vuitton.

Soma-se a tudo isso a politicagem grotesca que ainda estrutura os mecanismos administrativos da cultura no Brasil. Salvo duas ou três instituições, a nomeação por interesse político-partidários de diretores de instituições peca na avaliação profissional desses indivíduos, que ora usam uma instituição pública em benefício próprio, ora armam-na com interesses privados. O Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo, por exemplo, exibiu em 2012 os trabalhos de grafiteiros sob o título Keep Walking Brazil, patrocinados pela Johnnie Walker. A tela com o “maior valor artístico” figuraria na capa do próximo CD de remix de sucessos da Madonna...

Se a produção da arte, como jogo com o inegociável da vida social e desestabilizador de discursos hegemônicos, passa a ser instrumentalizada para a manutenção do poder e status da elite capitalista privada, então estamos diante de um “direcionamento privatizado” das dimensões de fruição e de possibilidade de um real posicionamento crítico perante o mundo.

(* Daniela Castro é formada em História da Arte e Estudo da Cultura Visual pela Universidade de Toronto, Canadá. Atua como escritora e curadora independente.)

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Neoliberalismo, anti-cultura e arte contemporânea: Uma lógica de predação


Cena na Bolsa de Valores de Nova York: o deus-Mercado em ação
O artista francês François Derivery (nascido em 1937), que atualmente faz parte do conselho editorial da revista “Ecritique” de Paris, publicou no site do grupo DDR, do qual faz parte junto com dois outros artistas (Michel Dupré e Raymond Perrot), um artigo sobre a relação entre o Neoliberalismo e a chamada Arte Contemporânea. Por considerar um assunto muito atual e esclarecedor a respeito do estado das artes plásticas no mundo de hoje, resolvi traduzir trechos e publicá-los aqui, como um resumo deste artigo cujo título é o mesmo deste post.

Livro de Francis Stoner Saunders
que conta as ações da CIA para
criar uma "arte moderna" que fosse
controlada
Derivery afirma que depois de 1945, o desenvolvimento do neoliberalismo, nascido da internacionalização do capitalismo norte-americano impulsionado pela guerra, submete, voluntária ou involuntariamente, um número crescente das atividades humanas às leis do mercado, afetando profundamente as relações sociais e os valores que as regem. Sabemos que o auge do neoliberalismo se deu ao final da década de 1970 com a ascensão de Ronald Reagan à presidência dos EUA e com o governo da primeira ministra Margareth Thatcher, na Inglaterra. Mas Derivery aponta a situação mundial pós-segunda guerra como as raízes do neoliberalismo.

Na medida em que os laços sociais vão sendo definidos pelo mercado - mercado financeiro - os valores que ele perpetua estão bem distantes dos valores históricos, que passam a ser considerados obsoletos, além de tornarem-se mesmo um obstáculo para o “livre” desenvolvimento em direção a uma sociedade de mercado.

A partir daí, diz Derivery, uma nova "modernidade" começa a esvaziar o conteúdo cultural baseado no sentido do Coletivo, intervindo em todas as áreas da atividade humana, da democracia política ao direito, da cultura à educação. E, obviamente, da Arte. O desafio, naquele momento era reformatar tudo nos termos do mercado, tornar todos os meios em instrumentos do neoliberalismo e transformar o cidadão em produtor-consumidor, passivo e submisso.

A “cultura de massa” não é mais somente àquilo que a esquerda chama de “mercantilização” da cultura, mas ela é considerada como uma atividade econômica e industrial como qualquer outra. Isso designa uma produção original fundada sobre um projeto ideológico novo. A cultura de massa é constituída, em suas formas e em seus conteúdos, na ruptura e não mais na continuidade no sentido de patrimônio cultural herdado ao longo da história.

Essa nova “cultura da sociedade de mercado”, como diz o autor – ou essa “cultura de massas” – carrega um duplo papel: enquanto abranda e “adoça” as massas com entretenimento, usa isso como álibi para a dominação econômica e política. O “sucesso” dessa empreitada é colocado na conta do neoliberalismo. Mas, paradoxalmente, os estragos da globalização capitalista deixam marcas pelo mundo, e esse sistema precisa criar necessidades de compensação simbólica que são constantemente renovadas. A indústria cultural ganha em todo o processo, na medida em que aumenta a pressão do sistema sobre os indivíduos.

Na sequência, continua o artigo de François Derivery, surge a noção de pós-modernidade, que reflete essa ruptura econômica, cultural e ideológica que constituiu o advento do neoliberalismo e de um novo modelo de sociedade. O neoliberalismo se impôs mais rapidamente na esfera econômica do que na esfera cultural. Demorou algumas décadas para que fosse traduzido, em termos culturais, a opção neoliberal, e mesmo assim atingindo desigualmente os diversos setores da sociedade.

A arte dita “contemporânea” – continua Derivery - se situa na vanguarda dessa evolução neoliberal, num campo propício às radicalizações tanto em razão do caráter hermético dessa nova arte, quanto pela demanda econômica distinta à qual ela deve responder.

Uma arte de mercado

Frisson de clientes na casa de leilões Sotheby's londrina
que leiloava um dos animais embebidos em formol de Damien Hirst
Na mesma direção que a autora do livro “Quem pagou a conta?”, Frances Stonor Saunders, Derivery diz em seu texto que no fim da segunda guerra mundial a CIA introduziu na Europa, com o plano Marshall, uma arte norte-americana armada de uma “feroz vontade de conquista”. E ele observa: “A hegemonia econômica não é possível sem dominação cultural”. Os Estados Unidos já vinham fazendo uma verdadeira faxina em sua própria casa, colocando um fim às experiências de arte “engajada”. A nova política cultural norte-americana pretendia impor uma arte “neutra”, porém cúmplice e autora de seu projeto imperialista. E acrescenta Derivery: “A arte contemporânea de mercado se desenvolveu a partir desse primeiro modelo de arte trans-nacional. O mercado de arte se estrutura a nível mundial enquanto se coloca como referência estética.”

Mais à frente ele aponta que a dupla função dessa “arte sem fronteiras” era ter um papel econômico como possibilidade de investimentos e um outro papel, o ideológico, porque “ela foi um instrumento importante e fundamental para divulgar os valores do neoliberalismo”.

A poderosa Sotheby's
O fato de associar-se arte contemporânea e cultura de massas pode parecer paradoxal, observa o artista francês, se levarmos em conta o elitismo e a arrogância presentes nessa arte. Mas o elitismo de hoje não é o de ontem, que estava ligado mais ao saber ou a habilidades pessoais: o elitismo de hoje é um elitismo de posição social, um elitismo de conta no banco. É o elitismo do “reality show”, de suas celebridades e de certa mídia dita “popular”, que nada tem de popular, apesar de visar o povo. É um produto de mercado, acrescenta.
           
Para a sobrevivência do neoliberalismo ele precisa estar no controle sobre o sentido simbólico de tudo, e a censura aos dissidentes é necessária. Censurar a história em nome da “modernidade”, permite esvaziar as estratégias potencialmente desestabilizantes. Essa nova ideologia procura introduzir a ideia de que a arte contemporânea é sinal de “modernidade”, inclusive pelo fato de não ter um passado (assim como não tem conteúdo). Em nome dessa nova ideologia, práticas artísticas significantes e relevantes da humanidade são denunciadas, ainda hoje, como “ideológicas” – e eles acrescentariam: “desonestas”, “não artísticas” e “sem ética”. Mas qualquer crítica que se faça à “doxa” (do grego, senso comum)  oficial é apresentada, no mínimo, como manifestação de ódio à arte.

François Derivery diz com todas as letras em seu texto: “O neoliberalismo é a origem e a razão de ser da arte contemporânea”!

Objeto de "arte":  de Piero Manzoni,
que "cagou" em 90 dessas e vendeu
a peso de ouro
E segue explicando a sua tese, enquanto faz um levantamento sobre o funcionamento do sistema envolvido em torno da chamada arte contemporânea: até pode se admitir a crítica ao conceito ou ao modelo teórico, mas isso “não inclui questionar as obras daqueles que, segundo o pragmatismo do mercado, produzem "arte contemporânea’".

Mas, contrariamente à opinião dominante – diz ele – o pensamento crítico e o trabalho em outro sentido não são atividades ideológicas. Só que pensamento crítico e fazer arte de outro jeito tomam um sentido político se questionam o sistema oficial, a forma imposta e alienante “da relação com o Real e com o Outro”.

Derivery diz que o endeusamento da forma, do objeto, no mundo contemporâneo nasce do medo à busca do sentido, do significado das coisas. E esse medo tem conduzido os artistas ao abandono da prática artística enquanto forma de produzir arte. Prática artística significa trabalhar em conjunto conteúdo e forma, ao longo do tempo. É um processo - precisamente o processo da arte. Dentro disso, ela não pode produzir “objetos”, mas “obras”, afirma o artista, que acrescenta que a pós-modernidade artística rejeita a obra porque ela se refere a uma prática e porque carrega uma história. Porque a pós-modernidade valoriza e sacraliza o objeto “acabado”, sem processo, nascido na “fulgurância de um “gesto criador’”. É o advento do “Conceito” no sentido publicitário do termo e do produto artístico formatado dentro das normas dessa anti-cultura.

"obra" de Tracey Emin: uma cama desarrumada
A arte moderna da primeira metade do século XX privilegiou a prática, diz Derivery. Nós sabemos que a história da arte é a história do exercício humano em busca da perfeição artística. Todos os grandes mestres se debruçaram sobre seu trabalho, e não se tornaram mestres da noite para o dia. Mas, voltando ao artigo, ele continua dizendo que os artistas do começo do século XX, na esteira da contestação contra a arte oficial que já vinha desde o  século XIX, escolheram abrir-se à sociedade como um todo e correr os riscos de novos significados. “Sua vontade de sair do gueto de uma arte convencional, seu assim chamado “engajamento”, é a explicação para sua excepcional criatividade”, atesta Derivery. Mas aquela abordagem e prática de arte eram irreconciliáveis com o projeto de uma arte de mercado, ideologicamente conformada a ela.

Assim o neoliberalismo artístico esvaziou a arte moderna de seu princípio criador, de seu próprio projeto, lhe reduzindo à pretendida “aventura das formas”.

Qualquer coisa é arte quando alguém assim
o determina, dizem eles
Dentro da ideia de um fim da história, todos os objetos se equivalem. Portanto, apesar da ruptura ideológica do pós-guerra, a pós-modernidade artística, cujo projeto se estrutura a partir dos anos 1960, vai se nutrir da arte moderna e de suas invenções formais. A nova “arte” não tem e nem pode ter uma identidade artística própria. Não há invenção de forma e experimentação, não se inventa nada sem referência na realidade. Mas a arte contemporânea diz recusar o real.

Derivery continua, afirmando que “a arte é sempre alimentada pela realidade”. Mas ela legitima essa abordagem quando se abre ao Outro, porque a “arte intermedeia a realidade”. Através da vontade de observação e de percepção do artista, ele produz uma representação que o Outro é chamado a ampliar. Mas a predação começa quando a compreensão do real se reduz a uma simples “apropriação”. A arte contemporânea está aí com seus milhões de exemplos de apropriação indébita. Basta ir até a Bienal do Ibirapuera...

Não é um brinquedo de criança.
Isso é "arte" de Jeff Koons
Mas, continua o artigo de François Derivery: o resultado desse gesto de apropriação é um objeto, fragmento de realidade, que, transportado a lugar apropriado fornecido pelo mercado ou instituição, se transforma num “objeto artístico”. Certamente isso que é “artístico” é menos o objeto do que o “gesto”, a operação de apropriação. Mas essa intermediação da realidade pela arte acontece naquilo que nós chamamos de “prática”, coisa que é recusada pela arte contemporânea. “A apropriação é, na verdade, o grau zero da intermediação e o “gesto” de apropriação é o grau zero da prática”, conclui o artista.

O ready made

O objeto da arte contemporânea é então o produto e ao mesmo tempo a testemunha material de um gesto fundador imaterial, onde o valor artístico, na ausência de projeto significante, é fixado pelo mercado. Esse gesto “criador”, na arte contemporânea, é atribuído ao “gesto inaugural” de Marcel Duchamp. Mas o propósito dele - ao contrário dos produtores contemporâneos - foi o de denunciar a legitimação exagerada das instituições em decidir o que podia ser exposto como arte.

Ready made de Duchamp
Falar em “gesto” em relação aos primeiros ready made é justo porque Duchamp não procurava fabricar “objetos artísticos”. Mas seu gesto, ao contrário do gesto do produtor contemporâneo, foi um gesto crítico, portanto plenamente artístico, explica Derivery. Na minha opinião, Duchamp acabou entrando na onda e se enquadrou no sistema que inicialmente criticou. Mas concordo quando Derivery afirma que a “imagem de “Duchamp” hoje é produto da arte contemporânea, não o inverso”. Porque não poderia ser de outro jeito num sistema cujo impulso permanente é o da apropriação, inclusive de símbolos ligados à esquerda, como a imagem do Che Guevara, só para ficar num único exemplo.

O sentido inicial do gesto de Duchamp foi esvaziado, mas restou o objeto, o penico, com valor adicionado. Sua função passou a ser a de modelo de um modo de produção de objetos que têm a particularidade de ser ao mesmo tempo objetos de arte e objetos de mercado.

Arte é vida, efeito do real

Mao Tse Tung, líder chinês "apropriado"
pelo artista pop Andy Warhol
O mercado de arte contemporânea não oferece, portanto, uma intermediação do real, ele se apropria, da mesma forma que o capitalismo. Enquanto promove a morte do simbólico justifica a predação que justifica a morte do simbólico. Portanto não é a realidade a referência para a arte, mas a arte, a ilusão (disfarçada) que faz a realidade. A Realidade é a última das preocupações da arte contemporânea.

A ideologia do ready made permite que se aproprie do real sob a forma de “arte”, esvaziando totalmente o momento intermediador e afastando o risco da significância. Isso sem falar, lembra Derivery, que o artista foi expatriado de sua responsabilidade no processo social e absorvido por uma ideologia que é também estética. A intervenção do artista atual consiste em encenar um papel, que é ainda mais benéfico e proveitoso para essa arte-espetáculo. Mesmo que a encenação crie um ato de violência, o que aumenta o espetáculo.

A "celebridade" Damien Hirst com uma de suas "obras"
e uma multidão dos buscadores de ícones neoliberais
contemporâneos
Deve se dizer, acrescenta Derivery, que a pesquisa sobre os efeitos do real não tem nada a ver com o "realismo", que é um pensamento sobre a realidade. Mas a recusa ao real é uma forma de confessar que a "realidade" reproduzida num objeto não passa de uma convenção. E ele diz que o Hiperrealismo, que está em certo sentido na moda em alguns lugares, especialmente nos EUA, é a expressão artística privilegiada do atual consenso ideológico, porque a "constatação" do real se encontra instalada na lógica consensual de recusar (de pensar) a realidade. Suas poses “subversivas”, independentemente do seu impacto dramático ou violento, endossam a ordem vigente. Para se abster de toda interpretação do real, o pintor hiperrealista prefere não reproduzir o que ele mesmo vê da “realidade” mas a “versão já interpretada de uma fotografia”.

O problema da arte - e não existe outro, segundo ele afirma - é o da sua relação com o real. Mas na arte contemporânea essa relação não existe, é simulada e ao mesmo tempo recusada e negada.

O ideal é o do Mercado Financeiro
François Derivery, mais à frente, coloca que não estando engajada em uma vontade de transformação da realidade, a produção formalista não pode se renovar a não ser pela replicação sem fim. Ao mesmo tempo continua a cumprir seu papel exsudatório enquanto satisfaz a demanda do mercado por produtos de valor monetário cada vez maior.

A lógica capitalista é implacável, afirma Derivery. Ela prega a expropriação cultural e política na arte para conformá-la ao ideal do mercado. E mais à frente, ele lembra que a história tentou construir valores coletivos, de sociedade. A arte moderna foi uma tentativa de abrir a arte para o sentido do coletivo, contra a lógica que exigia neutralidade e submissão ao poder político. Mas o individualismo da arte contemporânea nega também esse aspecto e não se pode dizer que ela deriva da arte moderna. A arte contemporânea, para o artista francês, deriva do neoliberalismo.

No final do texto, ele propõe uma “resposta a essa “arte” que tem se atribuído exclusividade sobre a contemporaneidade”, dizendo que essa resposta não se encontra na reativação de um subjetivismo nostálgico obsoleto e nem numa nova problemática formalista. As questões que se colocam como prioridade não são questões de estética, mas questões cidadãs, do ser humano enquanto ser social. Vamos ter que desconstruir – acrescenta Derivery - as noções de arte e de artista e reexaminar sua pertinência a partir das realidades sociais e coletivas.

Vamos ter que reabilitar o pensamento crítico, retornar à prática e à busca do sentido da arte.

Cena do filme de animação "American Pop" do diretor Ralph Bakshi, de 1981.
A mensagem é nós fazemos parte da História, não estamos sós. Somos coletividade.