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terça-feira, 29 de janeiro de 2013

As opiniões sobre arte de Robert Hughes


Capa do livro

Comprei o livro “Goya” de Robert Hughes, lançado aqui no Brasil pela Companhia das Letras em 2007. Comprei-o no final de 2012 e estou lendo-o, para compreender um pouco mais profundamente a obra desse grande artista espanhol. Mas por enquanto, vou falar do autor do livro, Robert Hughes, um crítico com uma visão de arte que me interessa muito e a quem respeito.

Robert Hughes é um crítico de arte australiano, que nasceu em 28 de julho de 1938 e faleceu no ano passado, em Nova Yorque, EUA, onde residia desde a década de 1970.

Hughes sofreu um acidente de carro em 1999, onde quase perdeu a vida. Por causa do acidente, passou por mais de 20 cirurgias. Ainda por cima, em 2001, seu único filho cometeu suicídio aos 34 anos de idade. Após o sofrimento desses anos, lançou em 2003 este livro sobre o pintor espanhol Francisco Goya (1746-1828), um de seus preferidos.

Há uns anos atrás Robert Hughes concedeu uma entrevista a uma certa revista brasileira cujo nome é impronunciável, porque esta certa revista prima pelo descontrole emocional já faz alguns anos, e seu jornalismo é muito tendencioso na direção da direita. Mas o que interessa é falar de Hughes e o que ele falou naquele momento.

E disse que Francisco Goya, o grande pintor espanhol, fez uma obra que “extrapola seu tempo” e explicou porque resolveu escrever um livro sobre ele:

- “Por meio de sua trajetória e de suas ideias, pode-se entender melhor a história da Espanha e da Europa. Mas não só. Mais que qualquer outro pintor, Goya nos permite obter um conhecimento profundo da natureza dos sentimentos e da ideia de justiça, assim como de seus reversos, a injustiça e a crueldade. Nós vivemos num mundo de ironias ex­tremas e de paixões e agressões tão de­satinadas quanto às de que trata Goya. A loucura de que ele nos fala é uni­versal e atemporal. Apesar de repre­sentar tanto para a arte, ainda faltava um livro que o alçasse à sua devida dimensão. Julguei que era uma tarefa importante fazê-lo.”

O crítico de arte Robert Hughes
No livro, Hughes fala do acidente de carro que sofreu e das alucinações e pesadelos daqueles “dias difíceis”. Mas disse que somente com todo o sofrimento físico que passou após o desastre passou a ser capaz de conhecer “a experiência da dor”. No livro, Hughes conta um desses pesadelos, e nele era o próprio Goya quem vinha ajudar a esmagar a sua perna. E na entrevista ele disse que acredita que “um escritor que não conhecesse o medo, a dor e o desespero não teria uma visão completa do universo de Goya. Não es­tou dizendo, é óbvio, que seja necessá­rio quase perder a vida num acidente para entender um artista. Mas isso cer­tamente facilitou a apreciação da maté­ria-prima de sua obra, o sofrimento.”

No livro, Hughes mostra que Goya “foi também um dos poucos narradores visuais da dor física, do ultraje, do insulto ao corpo.”

Abaixo, alguns trechos do que ele disse na entrevista, que considero muito importante destacar e publicar aqui neste Blog:

Sobre a inundação que ocorreu em 1966 em Florença, cidade italiana, quando muitas obras de arte foram destruídas:
“Em Florença, vivi a expe­riência de encontrar destroços de peças renascentistas em meio à lama, uma tra­gédia que me fez compreender de uma vez por todas que aquilo que foi criado no período de ouro da arte é insubstituí­vel. Não apenas porque não se pode­riam refazer tais obras. Vivemos numa era muito pobre em matéria de artes vi­suais. Hoje se podem encontrar bons escultores e pintores, mas a ideia de que a arte atual possa um dia se igualar às enormes realizações do passado é um disparate. Nenhuma pessoa séria, por mais que se empolgue com a arte con­temporânea, poderia acreditar que ela um dia será comparada àquilo que foi feito entre os séculos XVI e XIX.”

Sobre como as pessoas podem se relacionar com a obra dos mestres do passado:
“Olhando para o que eles pro­duziram. Aprendendo a entender e a amar sua arte. Os mestres da pintura se relacionam a nós da mesma forma que as grandes obras literárias e as composi­ções musicais do passado. Como o ho­mem atual pode se relacionar com Cer­vantes? Por meio da leitura de sua obra. Dom Quixote continuará sendo uma his­tória contemporânea em qualquer tem­po e lugar. É preciso ter em mente que a arte é feita antes de tudo para deliciar os olhos e o espírito. É por meio desse ape­lo intuitivo que ela nos arrebata e con­duz, no fim das contas, a um conheci­mento mais profundo de nossa natureza.”

Autorretrato, de Rembrandt
Sobre o papel das artes plásticas na formação cultural de uma pessoa:
“Não recomendo que se olhe para os grandes artistas com o intuito de atingir um nível cultural superior, pois, como já disse, o objetivo maior da arte é dar prazer. Mas posso falar de seu ca­ráter enriquecedor pela minha própria experiência. Muito antes de eu me tornar um crítico, a arte desempenhou um papel fundamental em minha vida, na medida em que me fez entender certas questões existenciais mais claramente do que qualquer livro ou aula teórica o fariam. Seria um exagero dizer que se pode educar alguém por meio da arte. Mas ela é capaz de fazer de nós pessoas melhores e mostrar que existem muitos mundos além do nosso umbigo.”

Sobre o pensamento contemporâneo de que o presente precisa se livrar do passado:
“A noção de que há uma oposição entre o presente e o passado é estúpida. Trata-se de uma deturpação vulgar do ideário modernista de pri­meira hora. Ele consistia em questionar o tradicionalismo, mas não a herança dos antigos mestres. Os futuristas ita­lianos, é verdade, chegaram a propor a destruição das obras de arte criadas no passado - como se fosse possível apa­gar sua influência apenas com sua ex­tinção por meios físicos. Mas o fato é que toda arte digna de nota feita no sé­culo XX se baseou no passado. Os mo­dernistas que realmente importam, co­mo Matisse e Picasso, nunca se pauta­ram por sua rejeição. Muito pelo con­trário: as fontes de que extraíram sua inspiração foram os artistas da Renas­cença e do século XVIII.”

Impressões sobre o artista pop norteamericano Andy Warhol:
“Warhol foi uma das pessoas mais chatas que já conheci, pois era do tipo que não tinha nada a dizer. Sua obra também não me toca. Ele até pro­duziu coisas relevantes no começo dos anos 60. Mas, no geral, não tenho dú­vida de que é a reputação mais ridicu­lamente superestimada do século XX.”

Sobre Marcel Duchamp:
“Foi um prazer conhecê-lo, embora certamente não seja o primei­ro artista em minha lista dos mais im­portantes de sua época. Sua elevação à condição de figura "seminal" nunca me convenceu. Já vi de perto todos os trabalhos que ele fez e nunca obtive nenhum prazer com eles. Duchamp não foi um grande artista, e sim um homem de ideias notáveis. Pessoal­mente, prefiro um pintor como o fran­cês Pierre Bonnard. Muita gente consi­dera Duchamp um deus e Bonnard um impressionista enfadonho. Mas eu gostaria muito mais de ter em casa um de seus belos quadros do que um tra­balho de Duchamp. Além disso, a in­fluência de Duchamp sobre a arte con­temporânea foi liberadora, mas tam­bém catastrófica. Porque ser o pai dessa boba­gem chamada arte conceitual não é uma distinção de que se orgulhar. Para com­preender o tamanho do estrago, basta dizer que sem ele hoje não haveria as chamadas instalações, aquelas obras to­las em que o espectador é convidado a passar por túneis e outros recursos in­fantis. Ou precisa ler uma bula para en­tender o que o artista quis dizer.”

Sobre os preços astronômicos de leilões de obras de arte:
“Francamente, não consigo imaginar uma boa razão. Os preços se tornaram tão obscenos e sem sentido que, a meu ver, só podem ser resultado de al­gum tipo de doença social. As pessoas que se sujeitam a pagar tanto por um qua­dro são movidas por motivações ridículas, como ostentar seu prestígio e poder. Não compactuo com essa insanidade.”
“A supervalorização atende aos interesses de certos marchands e cole­cionadores, mas é danosa para a arte. Passa-se a valorizar um artista ou ten­dência em função de seu cacife no mercado, e não da importância de suas realizações. Além disso, sua transformação em bem de consumo de luxo muitas ve­zes dificulta que um dia o grande públi­co possa contemplá-las em museus.”
“Daqui a vinte anos, veremos quanto se pagará pelas obras de um sujeito como Hirst - que, aliás, não me interessam nem um pouco. Hirst e outros de sua geração fazem do escândalo uma arma de marketing. Mas um renascentista co­mo Piero della Francesca conseguiu ser radical num nível que ele nunca passou nem perto de alcançar.”

Sobre as Bienais de Arte:
“Não ligo a mínima para bie­nais, trienais, quadrienais ou coisas que o valham. Elas hoje têm relevância ape­nas para os negociantes de arte. Por bai­xo da fachada novidadeira, a maioria desses eventos se transformou em feiras vulgares. Nunca estive na Bienal de São Paulo. Mas a de Veneza eu conheço bem. Alguns anos atrás, fui convidado a colaborar com seus organizadores e me vi em tal pesadelo que renunciei a meu posto. Já que é tudo comércio, melhor deixar para quem entende disso.”

Sobre a arte de países sem muita tradição nessa área:
“Não direi que será sempre assim. Mas eles enfrentam um problema e tanto: não têm controle sobre o mercado. Parece-me inusitado que a Austrália amargue uma presença pró­xima do zero na arte mundial enquan­to qualquer porcaria que se produz na Califórnia logo alcança visibilidade. A atmosfera do circuito internacional de arte é corrupta, já que se vive de criar modismos e falsos novos gênios para faturar. Essa é uma das razões pelas quais eu me aposentei como crítico. Prefiro me concentrar em alguns artistas cujo trabalho realmente importa a ver minhas resenhas sendo usadas para in­flar as cotações alheias. O presente, em arte, é sempre um terreno pantanoso e sujeito aos golpes de marketing. Tome­-se como exemplo o carnaval que se faz no momento a respeito da arte chinesa. A maior parte do que se convencionou rotular de pós-modernismo chinês é ape­nas uma empulhação bem promovida pelos marchands e casas de leilões. As vítimas deles são os colecionadores no­vos-ricos que pululam pelo mundo afora e compram tudo o que vêem pela frente. Eles podem ter dinheiro, mas não pas­sam de idiotas e vítimas da moda.”

É isto. Mais um na nossa lista dos que se opõem ao “pensamento único” da arte contemporânea e consideram o que se faz atualmente em nome da Arte um grande jogo que envolve mercado, marchands, galeristas e, infelizmente, artistas. Poucos ganham bilhões de dólares ou de euros nesse jogo, mas a “arte” que eles dizem negociar durará a moda da próxima estação. Daqui a 500 anos as pessoas continuarão admirando “Dom Quixote” de Cervantes e a “Escola de Atenas”, de Rafael Samzio ou qualquer um dos autorretratos de Rembrandt. Mas duvido muito que resista ao tempo qualquer um dos tubarões da coleção dos formois de Damien Hirst e outros. 

Robert Hughes lamentava nosso tempo em que a Arte virou brinquedo nas mãos do Mercado. Para ele, a história da Arte Moderna é uma história trágica e lamentava ter vivido somente após os grandes momentos criativos do Modernismo, em seus primórdios no começo do século XX. O Mercado que transformou a Arte em mercadoria é o mesmo que ajuda a multiplicar e a proliferar os artistas-celebridades.

Esta pintura do artista realista Gusta Courbet, O Desesperado, seria um bom espelho
da nossa estupefação diante de certas "obras de arte" contemporâneas.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Neoliberalismo, anti-cultura e arte contemporânea: Uma lógica de predação


Cena na Bolsa de Valores de Nova York: o deus-Mercado em ação
O artista francês François Derivery (nascido em 1937), que atualmente faz parte do conselho editorial da revista “Ecritique” de Paris, publicou no site do grupo DDR, do qual faz parte junto com dois outros artistas (Michel Dupré e Raymond Perrot), um artigo sobre a relação entre o Neoliberalismo e a chamada Arte Contemporânea. Por considerar um assunto muito atual e esclarecedor a respeito do estado das artes plásticas no mundo de hoje, resolvi traduzir trechos e publicá-los aqui, como um resumo deste artigo cujo título é o mesmo deste post.

Livro de Francis Stoner Saunders
que conta as ações da CIA para
criar uma "arte moderna" que fosse
controlada
Derivery afirma que depois de 1945, o desenvolvimento do neoliberalismo, nascido da internacionalização do capitalismo norte-americano impulsionado pela guerra, submete, voluntária ou involuntariamente, um número crescente das atividades humanas às leis do mercado, afetando profundamente as relações sociais e os valores que as regem. Sabemos que o auge do neoliberalismo se deu ao final da década de 1970 com a ascensão de Ronald Reagan à presidência dos EUA e com o governo da primeira ministra Margareth Thatcher, na Inglaterra. Mas Derivery aponta a situação mundial pós-segunda guerra como as raízes do neoliberalismo.

Na medida em que os laços sociais vão sendo definidos pelo mercado - mercado financeiro - os valores que ele perpetua estão bem distantes dos valores históricos, que passam a ser considerados obsoletos, além de tornarem-se mesmo um obstáculo para o “livre” desenvolvimento em direção a uma sociedade de mercado.

A partir daí, diz Derivery, uma nova "modernidade" começa a esvaziar o conteúdo cultural baseado no sentido do Coletivo, intervindo em todas as áreas da atividade humana, da democracia política ao direito, da cultura à educação. E, obviamente, da Arte. O desafio, naquele momento era reformatar tudo nos termos do mercado, tornar todos os meios em instrumentos do neoliberalismo e transformar o cidadão em produtor-consumidor, passivo e submisso.

A “cultura de massa” não é mais somente àquilo que a esquerda chama de “mercantilização” da cultura, mas ela é considerada como uma atividade econômica e industrial como qualquer outra. Isso designa uma produção original fundada sobre um projeto ideológico novo. A cultura de massa é constituída, em suas formas e em seus conteúdos, na ruptura e não mais na continuidade no sentido de patrimônio cultural herdado ao longo da história.

Essa nova “cultura da sociedade de mercado”, como diz o autor – ou essa “cultura de massas” – carrega um duplo papel: enquanto abranda e “adoça” as massas com entretenimento, usa isso como álibi para a dominação econômica e política. O “sucesso” dessa empreitada é colocado na conta do neoliberalismo. Mas, paradoxalmente, os estragos da globalização capitalista deixam marcas pelo mundo, e esse sistema precisa criar necessidades de compensação simbólica que são constantemente renovadas. A indústria cultural ganha em todo o processo, na medida em que aumenta a pressão do sistema sobre os indivíduos.

Na sequência, continua o artigo de François Derivery, surge a noção de pós-modernidade, que reflete essa ruptura econômica, cultural e ideológica que constituiu o advento do neoliberalismo e de um novo modelo de sociedade. O neoliberalismo se impôs mais rapidamente na esfera econômica do que na esfera cultural. Demorou algumas décadas para que fosse traduzido, em termos culturais, a opção neoliberal, e mesmo assim atingindo desigualmente os diversos setores da sociedade.

A arte dita “contemporânea” – continua Derivery - se situa na vanguarda dessa evolução neoliberal, num campo propício às radicalizações tanto em razão do caráter hermético dessa nova arte, quanto pela demanda econômica distinta à qual ela deve responder.

Uma arte de mercado

Frisson de clientes na casa de leilões Sotheby's londrina
que leiloava um dos animais embebidos em formol de Damien Hirst
Na mesma direção que a autora do livro “Quem pagou a conta?”, Frances Stonor Saunders, Derivery diz em seu texto que no fim da segunda guerra mundial a CIA introduziu na Europa, com o plano Marshall, uma arte norte-americana armada de uma “feroz vontade de conquista”. E ele observa: “A hegemonia econômica não é possível sem dominação cultural”. Os Estados Unidos já vinham fazendo uma verdadeira faxina em sua própria casa, colocando um fim às experiências de arte “engajada”. A nova política cultural norte-americana pretendia impor uma arte “neutra”, porém cúmplice e autora de seu projeto imperialista. E acrescenta Derivery: “A arte contemporânea de mercado se desenvolveu a partir desse primeiro modelo de arte trans-nacional. O mercado de arte se estrutura a nível mundial enquanto se coloca como referência estética.”

Mais à frente ele aponta que a dupla função dessa “arte sem fronteiras” era ter um papel econômico como possibilidade de investimentos e um outro papel, o ideológico, porque “ela foi um instrumento importante e fundamental para divulgar os valores do neoliberalismo”.

A poderosa Sotheby's
O fato de associar-se arte contemporânea e cultura de massas pode parecer paradoxal, observa o artista francês, se levarmos em conta o elitismo e a arrogância presentes nessa arte. Mas o elitismo de hoje não é o de ontem, que estava ligado mais ao saber ou a habilidades pessoais: o elitismo de hoje é um elitismo de posição social, um elitismo de conta no banco. É o elitismo do “reality show”, de suas celebridades e de certa mídia dita “popular”, que nada tem de popular, apesar de visar o povo. É um produto de mercado, acrescenta.
           
Para a sobrevivência do neoliberalismo ele precisa estar no controle sobre o sentido simbólico de tudo, e a censura aos dissidentes é necessária. Censurar a história em nome da “modernidade”, permite esvaziar as estratégias potencialmente desestabilizantes. Essa nova ideologia procura introduzir a ideia de que a arte contemporânea é sinal de “modernidade”, inclusive pelo fato de não ter um passado (assim como não tem conteúdo). Em nome dessa nova ideologia, práticas artísticas significantes e relevantes da humanidade são denunciadas, ainda hoje, como “ideológicas” – e eles acrescentariam: “desonestas”, “não artísticas” e “sem ética”. Mas qualquer crítica que se faça à “doxa” (do grego, senso comum)  oficial é apresentada, no mínimo, como manifestação de ódio à arte.

François Derivery diz com todas as letras em seu texto: “O neoliberalismo é a origem e a razão de ser da arte contemporânea”!

Objeto de "arte":  de Piero Manzoni,
que "cagou" em 90 dessas e vendeu
a peso de ouro
E segue explicando a sua tese, enquanto faz um levantamento sobre o funcionamento do sistema envolvido em torno da chamada arte contemporânea: até pode se admitir a crítica ao conceito ou ao modelo teórico, mas isso “não inclui questionar as obras daqueles que, segundo o pragmatismo do mercado, produzem "arte contemporânea’".

Mas, contrariamente à opinião dominante – diz ele – o pensamento crítico e o trabalho em outro sentido não são atividades ideológicas. Só que pensamento crítico e fazer arte de outro jeito tomam um sentido político se questionam o sistema oficial, a forma imposta e alienante “da relação com o Real e com o Outro”.

Derivery diz que o endeusamento da forma, do objeto, no mundo contemporâneo nasce do medo à busca do sentido, do significado das coisas. E esse medo tem conduzido os artistas ao abandono da prática artística enquanto forma de produzir arte. Prática artística significa trabalhar em conjunto conteúdo e forma, ao longo do tempo. É um processo - precisamente o processo da arte. Dentro disso, ela não pode produzir “objetos”, mas “obras”, afirma o artista, que acrescenta que a pós-modernidade artística rejeita a obra porque ela se refere a uma prática e porque carrega uma história. Porque a pós-modernidade valoriza e sacraliza o objeto “acabado”, sem processo, nascido na “fulgurância de um “gesto criador’”. É o advento do “Conceito” no sentido publicitário do termo e do produto artístico formatado dentro das normas dessa anti-cultura.

"obra" de Tracey Emin: uma cama desarrumada
A arte moderna da primeira metade do século XX privilegiou a prática, diz Derivery. Nós sabemos que a história da arte é a história do exercício humano em busca da perfeição artística. Todos os grandes mestres se debruçaram sobre seu trabalho, e não se tornaram mestres da noite para o dia. Mas, voltando ao artigo, ele continua dizendo que os artistas do começo do século XX, na esteira da contestação contra a arte oficial que já vinha desde o  século XIX, escolheram abrir-se à sociedade como um todo e correr os riscos de novos significados. “Sua vontade de sair do gueto de uma arte convencional, seu assim chamado “engajamento”, é a explicação para sua excepcional criatividade”, atesta Derivery. Mas aquela abordagem e prática de arte eram irreconciliáveis com o projeto de uma arte de mercado, ideologicamente conformada a ela.

Assim o neoliberalismo artístico esvaziou a arte moderna de seu princípio criador, de seu próprio projeto, lhe reduzindo à pretendida “aventura das formas”.

Qualquer coisa é arte quando alguém assim
o determina, dizem eles
Dentro da ideia de um fim da história, todos os objetos se equivalem. Portanto, apesar da ruptura ideológica do pós-guerra, a pós-modernidade artística, cujo projeto se estrutura a partir dos anos 1960, vai se nutrir da arte moderna e de suas invenções formais. A nova “arte” não tem e nem pode ter uma identidade artística própria. Não há invenção de forma e experimentação, não se inventa nada sem referência na realidade. Mas a arte contemporânea diz recusar o real.

Derivery continua, afirmando que “a arte é sempre alimentada pela realidade”. Mas ela legitima essa abordagem quando se abre ao Outro, porque a “arte intermedeia a realidade”. Através da vontade de observação e de percepção do artista, ele produz uma representação que o Outro é chamado a ampliar. Mas a predação começa quando a compreensão do real se reduz a uma simples “apropriação”. A arte contemporânea está aí com seus milhões de exemplos de apropriação indébita. Basta ir até a Bienal do Ibirapuera...

Não é um brinquedo de criança.
Isso é "arte" de Jeff Koons
Mas, continua o artigo de François Derivery: o resultado desse gesto de apropriação é um objeto, fragmento de realidade, que, transportado a lugar apropriado fornecido pelo mercado ou instituição, se transforma num “objeto artístico”. Certamente isso que é “artístico” é menos o objeto do que o “gesto”, a operação de apropriação. Mas essa intermediação da realidade pela arte acontece naquilo que nós chamamos de “prática”, coisa que é recusada pela arte contemporânea. “A apropriação é, na verdade, o grau zero da intermediação e o “gesto” de apropriação é o grau zero da prática”, conclui o artista.

O ready made

O objeto da arte contemporânea é então o produto e ao mesmo tempo a testemunha material de um gesto fundador imaterial, onde o valor artístico, na ausência de projeto significante, é fixado pelo mercado. Esse gesto “criador”, na arte contemporânea, é atribuído ao “gesto inaugural” de Marcel Duchamp. Mas o propósito dele - ao contrário dos produtores contemporâneos - foi o de denunciar a legitimação exagerada das instituições em decidir o que podia ser exposto como arte.

Ready made de Duchamp
Falar em “gesto” em relação aos primeiros ready made é justo porque Duchamp não procurava fabricar “objetos artísticos”. Mas seu gesto, ao contrário do gesto do produtor contemporâneo, foi um gesto crítico, portanto plenamente artístico, explica Derivery. Na minha opinião, Duchamp acabou entrando na onda e se enquadrou no sistema que inicialmente criticou. Mas concordo quando Derivery afirma que a “imagem de “Duchamp” hoje é produto da arte contemporânea, não o inverso”. Porque não poderia ser de outro jeito num sistema cujo impulso permanente é o da apropriação, inclusive de símbolos ligados à esquerda, como a imagem do Che Guevara, só para ficar num único exemplo.

O sentido inicial do gesto de Duchamp foi esvaziado, mas restou o objeto, o penico, com valor adicionado. Sua função passou a ser a de modelo de um modo de produção de objetos que têm a particularidade de ser ao mesmo tempo objetos de arte e objetos de mercado.

Arte é vida, efeito do real

Mao Tse Tung, líder chinês "apropriado"
pelo artista pop Andy Warhol
O mercado de arte contemporânea não oferece, portanto, uma intermediação do real, ele se apropria, da mesma forma que o capitalismo. Enquanto promove a morte do simbólico justifica a predação que justifica a morte do simbólico. Portanto não é a realidade a referência para a arte, mas a arte, a ilusão (disfarçada) que faz a realidade. A Realidade é a última das preocupações da arte contemporânea.

A ideologia do ready made permite que se aproprie do real sob a forma de “arte”, esvaziando totalmente o momento intermediador e afastando o risco da significância. Isso sem falar, lembra Derivery, que o artista foi expatriado de sua responsabilidade no processo social e absorvido por uma ideologia que é também estética. A intervenção do artista atual consiste em encenar um papel, que é ainda mais benéfico e proveitoso para essa arte-espetáculo. Mesmo que a encenação crie um ato de violência, o que aumenta o espetáculo.

A "celebridade" Damien Hirst com uma de suas "obras"
e uma multidão dos buscadores de ícones neoliberais
contemporâneos
Deve se dizer, acrescenta Derivery, que a pesquisa sobre os efeitos do real não tem nada a ver com o "realismo", que é um pensamento sobre a realidade. Mas a recusa ao real é uma forma de confessar que a "realidade" reproduzida num objeto não passa de uma convenção. E ele diz que o Hiperrealismo, que está em certo sentido na moda em alguns lugares, especialmente nos EUA, é a expressão artística privilegiada do atual consenso ideológico, porque a "constatação" do real se encontra instalada na lógica consensual de recusar (de pensar) a realidade. Suas poses “subversivas”, independentemente do seu impacto dramático ou violento, endossam a ordem vigente. Para se abster de toda interpretação do real, o pintor hiperrealista prefere não reproduzir o que ele mesmo vê da “realidade” mas a “versão já interpretada de uma fotografia”.

O problema da arte - e não existe outro, segundo ele afirma - é o da sua relação com o real. Mas na arte contemporânea essa relação não existe, é simulada e ao mesmo tempo recusada e negada.

O ideal é o do Mercado Financeiro
François Derivery, mais à frente, coloca que não estando engajada em uma vontade de transformação da realidade, a produção formalista não pode se renovar a não ser pela replicação sem fim. Ao mesmo tempo continua a cumprir seu papel exsudatório enquanto satisfaz a demanda do mercado por produtos de valor monetário cada vez maior.

A lógica capitalista é implacável, afirma Derivery. Ela prega a expropriação cultural e política na arte para conformá-la ao ideal do mercado. E mais à frente, ele lembra que a história tentou construir valores coletivos, de sociedade. A arte moderna foi uma tentativa de abrir a arte para o sentido do coletivo, contra a lógica que exigia neutralidade e submissão ao poder político. Mas o individualismo da arte contemporânea nega também esse aspecto e não se pode dizer que ela deriva da arte moderna. A arte contemporânea, para o artista francês, deriva do neoliberalismo.

No final do texto, ele propõe uma “resposta a essa “arte” que tem se atribuído exclusividade sobre a contemporaneidade”, dizendo que essa resposta não se encontra na reativação de um subjetivismo nostálgico obsoleto e nem numa nova problemática formalista. As questões que se colocam como prioridade não são questões de estética, mas questões cidadãs, do ser humano enquanto ser social. Vamos ter que desconstruir – acrescenta Derivery - as noções de arte e de artista e reexaminar sua pertinência a partir das realidades sociais e coletivas.

Vamos ter que reabilitar o pensamento crítico, retornar à prática e à busca do sentido da arte.

Cena do filme de animação "American Pop" do diretor Ralph Bakshi, de 1981.
A mensagem é nós fazemos parte da História, não estamos sós. Somos coletividade. 

sábado, 3 de abril de 2010

O direito de dizer "não gostei"

Andy Warhol
Foi inaugurada na Pinacoteca de São Paulo, neste 20 de março, uma exposição com 170 trabalhos do norte-americano Andy Warhol. São pinturas, gravuras, fotografias, filmes e instalações de um dos ícones preferidos da mídia. E de uma certa categoria de gente (dessa gente que gosta de estar na onda da moda) que “ama de paixão” a arte contemporânea.

Mas... Quem foi Andy Warhol?

Warhol nasceu em 1928, na Pensilvânia, EUA, e era o quarto filho de uma família de operários imigrantes, originários da Eslováquia, fronteira com a Polônia. Em 1945, com 17 anos de idade, entrou na, hoje, Universidade Carnegie Mellon, onde se graduou em Design. Logo depois, mudou-se para Nova Iorque onde começou a trabalhar como ilustrador de revistas como a Vogue e a New Yorker. Também fazia anúncios publicitários e dispositivos para vitrines de lojas. Como artista gráfico e diretor de arte, ganhou diversos prêmios. Sua primeira exposição individual aconteceu em 1952, com quinze desenhos baseados na obra de Truman Capote. E a partir daí começa a se construir o personagem Andy Warhol.

No início dos anos 60, em plena Guerra Fria entre os EUA e a União Soviética, os planos norte-americanos de transformar Nova Iorque num centro cultural já estava em pleno andamento. Jackson Pollock, De Kooning e Mark Rothko já eram figuras de proa no Expressionismo Abstrato daquele país, uma estética que representava – para os mandarins culturais ideológicos dos EUA – a ideologia da liberdade, da livre iniciativa e, sobretudo, anticomunista.

Foi nesse meio que o artista gráfico Andy Warhol se formou e começou a construir a personagem Andy Warhol.

Fui ver esta exposição, que se intitula muito apropriadamente “Mr. America”, em Buenos Aires, em dezembro passado, no MALBA. Foi no mínimo curioso ir ver uma exposição como esta, de Andy Warhol, num museu que se chama de Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires e que ocupava três andares, sendo apenas um reservado para os realmente artistas latino-americanos. É a mesma exposição que passou pela Museu del Banco de Bogotá na Colômbia e que agora se inaugura aqui em São Paulo. Essa mostra traz uma boa parte do trabalho desse artista, o que é útil para aqueles que desejarem um conhecimento maior sobre ele. Ou para se juntar à trupe que o aplaude, ou para simplesmente confirmar, ao vivo, que ele realmente nada tinha a dizer que valesse a pena.

Ou melhor, tinha. Warhol se formou no meio da publicidade e do design. Sua importância, enquanto artista deve-se ao fato de que soube, mais do que ninguém, fazer a aproximação máxima entre arte e capitalismo. Show man e show business em potencial – teve até um programa na MTV – Warhol não tinha vergonha de assumir: “Sou uma pessoa profundamente superficial. As palavras enchem espaço. Prefiro encher a carteira”. Para ele o artista devia ser uma estrela, como as hollywoodianas, e todos deveriam perseguir seus “quinze minutos de fama”.

Logo no começo da mostra, entre os primeiros quadros, um que representa o Tio Sam, claro, pois a mostra se chama “Mr. America”. Seguem-se a ele, alguns auto-retratos com Warhol fantasiado de dragqueen. E mais à frente, as famosas serigrafias e estêncils com a logomarca das Sopas Campbell, seguidos por colagens com notas de dólar, e fotografias da Estátua da Liberdade. Deparo-me com a seguinte frase, entre os quadros: “De nenhuma maneira trato de fazer uma crítica aos EUA e nem mostrar coisas feias”. Anotei esta frase no caderninho que me acompanha nas exposições, para não esquecer. Em seguida, passa-se por alguns quadros representando uma morte em cadeira elétrica, um acidente automobilístico e um suicídio – o máximo de “denúncia social” a que o artista se propôs. Mas diz logo em seguida: “Creio que minha arte representa os EUA, mas não faço crítica social: só pinto esses objetos em minhas obras porque são os que melhor conheço”.

Como bom publicitário, ele inaugurou a fase (que ainda dura e ninguém aguenta mais tanta variação sobre o mesmo tema) onde se usa uma marca, um objeto, um produto do mercado de consumo, tentando-se elevá-los ao status de obra de arte. Transformando tudo em produto, como é próprio do sistema capitalista, além das sopas Campbell, Andy Warhol brincou com retratos, como o cansativamente reproduzido Marilyn Monroe, mas também com o de Mao Tse Tung e de Lenin. Por isso, quando vemos broches e camisetas do Che à venda em lojas de departamentos – o Che, o grande revolucionário latino-americano, anticapitalista e cuja face foi transformada em produto de grife – devemos isso ao grande inovador da publicidade-pop-arte-capitalista Andy Warhol.

Porque para ele, acima de tudo, arte era um negócio e, no final da vida, também apenas assinava as serigrafias que sua equipe produzia como autêntica. Já estava em pleno funcionamento a sua indústria artística, que era ao mesmo tempo espetáculo. Assim como suas obras, Andy Warhol se transformou também numa logomarca, numa virtualidade incorpórea. Ele era a própria americanização da arte tão desejada pelos autores norte-americanos da Guerra Fria, ou seja, uma forma nova de se fazer e pensar(?) a arte, com o artista e sua obra se transformando em um espetáculo ao qual todos podiam assistir em horário nobre. A imagem acima de tudo, mas uma imagem irreal. Quanto mais distante da realidade mais venerável.

Todos esses não são valores ainda muito atuais? Talvez seja por isso que Andy Warhol tenha ainda uma legião de fãs entre uma maioria de desinformados, porque a marca, o produto de mídia “Andy Warhol” ainda se multiplica e ainda vende. Ele mesmo, em várias de suas famosas tentativas de profetização, declarou que a “arte empresarial é o passo que vem depois da arte”. E acrescenta: “Depois que fiz a coisa chamada 'arte', ou seja lá como chamam, entrei na arte empresarial”, porque “ser bom nos negócios é o tipo mais fascinante de arte”. Nada mais próximo da receita atual de capitalismo e também do modelo de arte do mercado: pega-se um artista – ou um não-artista, melhor ainda se tiver um 'não' antes – e sua brilhante ideia, passa-se pela peneira da midia, transforma-se ambos em uma grande novidade, combina-se que aquela obra foi vendida por milhões de dólares (às vezes é real!), lança-se artista e produto no mercado de ações, assiste-se freneticamente ao subir de suas cotações nas Bolsas de Valores, atinge-se o clímax ao som das notas de dólares preenchendo as carteiras (né, Warhol?) e, após o orgasmo, poucos sobram para continuarem em movimento de sobe-e-desce. Até vir o próximo.

Mas vale a pena ir ver Andy Warhol na Estação Pinacoteca de São Paulo. Aliás, vale a pena ir ver exposições, sempre, sempre, sempre! Mesmo que o que se apresente aos nossos olhos não seja do nosso gosto. Sim! Porque nós PODEMOS dizer que não gostamos – se não gostamos – seja de Andy Warhol ou de Vik Muniz! Porque hoje em dia até mesmo o básico direito de torcer o nariz para os artistas endeusados pela midia e curadores (mercadores) de arte, é recebido como ignorância! “Andy Warhol – dizem “eles” - era um artista rebelde, que via a sociedade com cinismo”, apesar de ter se dado muito bem com essa mesma sociedade! Mas prefiro ficar com o jornalista brasileiro Luciano Trigo, que diz que quem enxerga na obra de Warhol “uma crítica à sociedade de consumo não entendeu nada”.