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sábado, 2 de outubro de 2010

Os revólveres, os urubus, a Bienal e as polêmicas do momento

Reproduzo abaixo artigo do poeta AFONSO ROMANO DE SANT'ANNA sobre a Bienal de São Paulo.

Artista, acima de qualquer suspeita?


Gil Vicente contra Gil Vicente
(do blog do Afonso Romano)
A 29ª Bienal de São Paulo está propiciando uma discussão que não pode ficar na superfície dos fatos. Com efeito, a Bienal anterior, que denominei de "a bienal do vazio" não se interessou em discutir a fundo o problema que levantou, e tudo terminou como uma questão policial. 

Agora surgiu a polêmica em torno dos desenhos do artista pernambucano Gil Vicente, nos quais ele aparece atirando em Fernando Henrique Cardoso, cortando a garganta de Lula e matando outros lideres mundiais como Nethanyahu, Armadinejad, Rainha Elizabeth e o Papa atual.

Formaram-se logo dois grupos opostos. A OAB, exercitando seu discurso jurídico, prometeu processar o artista e/ou a Bienal por incitação ao crime e à violência, e do outro lado os curadores afirmando que isto é censura. E alçaram a palavra "censura" como um talismã que os protegesse.

A questão me parece mal colocada. E quando se coloca mal uma discussão, deriva-se para outros mal entendidos. Consideremos primeiro que esse episódio remete para algo conhecido no mundo antigo como "morte em efígie". Não se podendo destruir o réu, destruía-se sua imagem, arrasando sua memória.

Mas não é a primeira vez que dentro da modernidade ocorre um crime semelhante. Em 1965 três pintores mataram Marcel Duchamp. Gilles Aillaud, Antonio Recalcati e Eduardo Arroyo pintaram oito quadros realistas nos quais surpreendiam Duchamp subindo uma escada, esmurravam-no, torturavam-no e jogavam-no escada abaixo nu.

Duchamp, que propunha a morte da arte, não gostou de se ver morto ali. E analisando esse quadro/episódio no livro "O Enigma Vazio" (Ed.Rocco) eu dizia que não é matando, mesmo em efígie, o ícone da arte de nosso tempo que o entenderemos. O desafio é ir a fundo na sua vida&obra (que foi o que tentei fazer). Além do mais, a violência dos três pintores insere-se no quadro violento dos anos 60/70 quando o pensamento totalitário à esquerda e à direita achava que pela força resolveriam problemas sociais e políticos.

Portanto, preservando-se o direito do artista se expressar, mas alertando para as consequências disto, não se pode deixar de ver na obra daquele artista pernambucano um paradoxal exercício da violência. A meu ver, deveríamos ter aprendido com a Revolução Francesa, com a russa, a chinesa e cubana, que cortar a cabeça dos lideres é inócuo. Por outro lado, ressurge aí a síndrome voluntarista, perversa e autoritária do "justiceiro" - figura que a sociologia estuda pertinentemente.

Acima de qualquer suspeita?

Isto posto é crucial trazer à discussão uma pergunta: É o artista um cidadão acima de qualquer suspeita? Esta é uma clara alusão ao filme de Elio Petri ("Indagine su un Cittadino al di Sopra di Ogni Sospetto"- 1971). Naquela película, um policial comete um assassinato, e por pertencer aos altos escalões do sistema julga-se tão incólume que até participa das investigações. Transpondo para o caso da Bienal e da arte atual, pergunta-se: estaria o artista acima de todas as leis sociais?

Para começar a entender essa pergunta, lembre-se que a ditadura recente nos deixou uma marca deletéria: depois de tanta repressão, caímos na ânsia de repressão nenhuma. Mergulhamos no oposto. Por isto, o mote: "é proibido proibir", que tem o seu charme juvenil, é um paradoxo, pois proibir a proibição é exercitar a proibição e a censura, só que do outro lado.

Por sua vez, a ideologia da pós-modernidade alardeia que tudo é legítimo, que não há fronteiras, nem valores, que as coisas se esgotam em si mesmas sem qualquer outro compromisso que não seja hedonista e narcísico. Portanto, um vetor nacional e outro internacional se complementam em forjar uma ideologia de época, que deve ser analisada cautelosamente.

Isto nos leva a um outro aspecto já que esta 29ª Bienal tem como tema "Arte e política". Ora, falar da política convencional é fácil. Acusar políticos, verberar contra os militares, é uma banalidade. Eles são os "outros". No entanto, há um enfrentamento político, igualmente urgente, dentro das artes. É necessário questionar o sistema em que as artes se baseiam. Isto consiste em rever o poder dos curadores, o sistema das galerias, as premiações, a crítica universitária e jornalística, a publicidade, a bolsa de valores, enfim, o "deus ex machina" que hoje, mais do que nunca, controla as artes - o mercado.

E para esclarecer a esquizofrenia do sistema artístico e de nossa sociedade, leiamos esse poema do antipsiquiatra R.D. Laing:

“Ele estão jogando o jogo deles
eles estão jogando de não jogar o jogo
se eu lhes mostrar que os vejo tal qual eles estão
quebrarei as regras desse jogo
e receberei a sua punição.
O que devo pois é jogar o jogo deles
o jogo de não ver o jogo que eles jogam.”

Na última Bienal isto ficou claro: os grafiteiros que denunciaram o "jogo" do qual não podiam participar foram parar na polícia. Na atual Bienal já ocorrem reclamações semelhantes, comprovando que a arte oficial de nosso tempo não consegue resolver seu paradoxo fundamental: diz que não há fronteiras, que tudo é licito, desde, é claro, que sejam suas as fronteiras e desde que sejam "eles" a decidirem o sistema que tutelam.

Todo mundo é artista?
Grande parte da arte contemporânea se baseia em silogismos que nunca foram analisados detidamente. Se analisados, revelam-se como falácia. Falácias que levam a becos sem saída.


Retomemos a questão implícita no conceito de que o artista pode tudo, que ele é um cidadão acima de qualquer suspeita. Existe um silogismo básico na prática da arte oficialista (o governo deu R$ 46 mihões para a Bienal), silogismo originário de Duchamp, segundo o qual a arte morreu e todo mundo é artista.

Ora, vejamos o silogismo aí contido: todo mundo é artista / o artista está acima de qualquer suspeita / logo, todo mundo esta acima de qualquer suspeita. Como se sabe, essa verdade é mentirosa. Se todo mundo estivesse acima da lei, não existira lei, nem sociedade.

Esse silogismo é ainda falacioso, enganador, porque sabemos que nem todo mundo é artista e que uns são "mais" artistas que outros. Pior: dentro do sistema das artes que, hipócrita e espertamente decretou que tudo é arte e todos são artistas, grupos bem organizados e presos sobretudo às leis do mercado e do marketing controlam as leis éticas e estéticas que, paradoxalmente, dizem não existir.

Portanto, uma discussão radical sobre política e arte passa pelo exame interno do sistema das artes hoje e tem que enfrentar certos paradoxos, dilemas e sofismas. É uma operação tão arriscada e séria, que pode levar a um suicídio histórico, a um colapso do sistema. Ou, então, o que seria admirável, ao renascimento da própria arte de uma forma para nós ainda inimaginável.

Afonso Romano de Sant'Anna

sexta-feira, 16 de abril de 2010

À imagem e semelhança do... Homem!



“Não farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do que há em cima no céu, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra.” Este é o segundo mandamento da Lei de Moisés do Velho Testamento da Bíblia, que virou o primeiro mandamento das artes plásticas contemporâneas.

A comparação não é minha, mas do poeta mineiro e estudioso de artes, Afonso Romano de Sant'Anna, em seu livro “Desconstruir Duchamp”, onde o autor tece inúmeras reflexões sobre o estado atual das artes plásticas no mundo, dominadas pela arte conceitual.

Qualquer pessoa que tenha atualmente um mínimo interesse em acompanhar como andam as coisas no mundo das artes plásticas – que a nova academia prefere chamar e incluir no termo “artes visuais” – se verá diante de um quadro bem difícil de assimilar. Num mundo onde reinam “conceitos” abstratíssimos e onde “tudo” – literalmente qualquer merda (Manzoni, artista italiano enlatou suas próprias fezes que foram vendidas a preço de ouro) – pode ser considerado arte, quem ganha é o sistema: mercado de ações, curadores, negociantes de arte, instituições e, claro, o artista digerido por esse sistema.

Mas perde o ser humano. Nesse sentido, a crise atual das artes plásticas está nos dizendo alguma coisa, e precisamos ouvi-la.

Um primeiro fato que chama a atenção é a absurda elitização daquilo que pode ser chamado de alta cultura, como livros, teatro, concertos musicais, cinema, museus. Recentemente, o Ministério da Cultura fez uma pesquisa cujos dados são alarmantes. Para não entrar em outras áreas, apenas em relação a um dos dados avaliados pelo índice que mediu o consumo cultural do povo, verificou-se que 70% dos brasileiros jamais colocou os pés em um museu!

Há muitos anos, exatamente em 1959, Ernst Fischer já chamava a atenção, em seu livro “A Necessidade da Arte”, para a falta de interesse e de empenho, por parte do sistema capitalista, de que a imensa maioria do povo tenha acesso à cultura. Diz ele: “... massa de seres humanos para os quais mesmo a velha arte é algo de inteiramente novo, seres cujo gosto artístico ainda está por se formar, cuja capacidade de apreciar as qualidades artísticas precisa ser desenvolvida”, necessitam de que a arte se liberte do fato de ser bem de uma “elite educada” a que se chama “público”. E essa “elite educada” nunca foi tão elite quanto atualmente em que a arte conceitual se assume como obra DE e PARA iniciados. Mas faz sentido! Se um tubarão congelado em formol ou uma cama desarrumada após uma relação sexual podem ser expostos como “obras de arte”, realmente para se enxergar nisso o que “eles” dizem que existe – arte – realmente há que ser um iniciado de uma de suas herméticas escolas!

Pinturas da caverna de Lascaux, França
Mas o sentido da arte, segundo acredito, é o da arte que vem da História, desde as primeiras inscrições nas cavernas descobertas na Espanha e França. Criaturas criadoras que somos, desde milênios, a arte sempre serviu para nos comunicar uns com os outros, para nos unir, para nos inspirar, para nos colocar “em estado de equilíbrio com o meio circundante”, como diz também Ernst Fischer. A história da arte é a história da humanidade, uma vez que o foco – e o objetivo – da arte é o ser humano.

Humanismo percebido por Marcelo Gleiser, físico teórico brasileiro, que acaba de lançar no Brasil o seu novo livro “Criação Imperfeita”. O livro fala de ciência, de Física e Astronomia. O que isso tem a ver com Arte? O seguinte: Marcelo Gleiser propõe uma mudança de foco num paradigma tão antigo quanto a ciência: “é necessário deixar para trás a expectativa de que devemos achar explicações finais sobre o mundo, sejam elas científicas ou religiosas”, diz ele e acrescenta que essa maneira de fazer ciência nos fez evoluir e aprender muito como funciona o universo e do que somos feitos. “Por muito tempo, talvez por tempo demais, buscamos harmonias que não existem; buscamos, também, por companhia nos céus – divina ou extraterrestre, que aliviasse os temores de nossa existência.” Mas esse tempo já passou, diz ele, ao propor o que ele chama de Humanocentrismo, ou seja, a necessidade de recolocar o ser humano no centro da atenções, das ciências à artes.

Nas artes hoje vivemos sob o pensamento único que impera sob o nome de “arte contemporânea”. Mas o que exatamente significa o termo “arte contemporânea”? Para o mercado – e para o sistema atual das artes, na expressão do jornalista Luciano Trigo – significa simplesmente commodities. Arte é negócio – e negócio é arte, inclusive para alguns artistas.

Arte não é mais aquela obra de criação de um ser humano apresentada à outro com o sentido de refusão desse homem, como diz Antonio Callado, num sentido de coletividade “que completa uns homens nos outros”, que “torna novos” os homens, que incita-os “à permanente escalada de si mesmos” e da sociedade. Hoje Arte é mercadoria, no sentido capitalista definido por Marx como mais-valia. Na Idade Média, uma pintura valia um preço, mas o preço real do gasto com material e do trabalho do artista. Hoje, na busca alucinante (e alucinógena) pelo lucro a todo custo, um tubarão imerso em formol do artista plástico Damien Hirst é vendido como obra de arte por 12 milhões de dólares. O mundo deve estar louco... Mas, pensando bem, esse mundo é uma minoria, que da maioria quer mesmo é distância. Melhor – para eles – que ainda hoje 70% de brasileiros não possam ir a um museu contemplar as Belas Artes...

Essa arte hoje também é tudo, menos pluralismo. Não há espaço para pintores figurativos, por exemplo. Milhares de artistas figurativos, que teimam em representar a realidade em seus quadros, sobrevivem à margem do sistema, esquecidos, resistentes. Afonso Romano de Sant'Anna, também em seu livro “Desconstruir Duchamp” pergunta: “Quantos artistas ainda não estão traumatizados, paralisados, congelados de medo diante do desejo de pintar figuras, como se os talibãs os fossem pegar em flagrante?”

Voltando à frase bíblica inicial, podemos pensar que realmente hoje há um medo da imagem no mundo das artes plásticas – grande paradoxo gerado pela sociedade pós-moderna que multiplica-se em milhões de imagens. Mas esse medo é o mesmo medo de se voltar ao ser humano, de recolocá-lo no centro, como propõe Marcelo Gleiser. É o mesmo medo das elites de que esses 70% de brasileiros possam ir aos museus, às galerias, às livrarias, aos cinemas, aos teatros, aos concertos musicais, porque no dia em que isso começar a acontecer o homem mais uma vez estará dando um salto em sua humanidade.

Para terminar, em prol dessa re-humanização das artes, Ernst Fischer:

“O homem, que se tornou homem pelo trabalho, que superou os limites da animalidade transformando o natural em artificial, o homem, que se tornou um mágico, o criador da realidade social (…) será sempre Prometeu trazendo o fogo do céu para a terra, será sempre Orfeu enfeitiçando a natureza com a sua música. Enquanto a própria humanidade não morrer, a arte não morrerá.”