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terça-feira, 22 de setembro de 2015

A poeira do Tempo - 2

São Jerônimo em seu escritório,
Jan Van Eyck, 1442
A palavra Vanitas vem diretamente da frase bíblica “Vanitas vanitatum et omnia vanitas” (Ec.1:2 - “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”.)

A pintura mais antiga de Vanitas é o retrato de São Jerônimo, um santo intelectual, doutor da Igreja, onde lembra "ao homem de carne e osso que ele não é nada face ao poder aniquilador do tempo”. Um desses primeiros retratos foi pintado pelo flamengo Jan Van Eyck, a quem se atribui a invenção da tinta a óleo. Esta pintura pertence atualmente ao Institute of Arts of Detroit, EUA. Ela foi a base para muitas outras que foram feitas nos séculos seguintes, usando o mesmo tema e o mesmo São Jerônimo, por diversos artistas como Antonelo de Messina, Carpaccio, Lourenzo Lotto, Petrus Christus e muitos outros. Incluindo o mestre alemão Albrecht Dürer, que o pintou em 1521.

Mas Vanitas tem uma “dupla filiação ideológica”, afirma Calheiros. “Por um lado, dos círculos humanistas centro-europeus e italianos dos séculos XV e XVI, revisitadores das antigas alegorias “memento mori” dos latinos clássicos (sendo a mais conhecida o mosaico de Pompeia); e por outro lado, da atmosfera intelectual e religiosa de Leyden, bastião calvinista, que condena com severidade puritana tudo o que é considerado excessivamente hedonista e mundano”. Do lado da Contra Reforma e seu fervor religioso, também era importante enfatizar a inevitabilidade da morte, a reflexão sobre as vaidades das coisas terrenas, a efemeridade da vida.

Mosaico antigo de Pompeia
Mas em Pompeia antiga, aponta o professor português, o século I da nossa Era já imprimira em mosaico a representação da tête de mort, o crânio humano. No século XV começaram a aparecer as primeiras pinturas com este tema: “memento mori”, “dança macabra” e “vanitas” surgiam com espécies de legendas pintadas nas telas, como esta abaixo do pintor Jan Gossaert que inscreveu em latim em seu “Díptico de Carondelet” (1517): “Aquele que considera sempre a proximidade da morte, aceita facilmente tudo” (“Facile contemnit omnia qui se semper cogitat moriturum”). 

Foi algo assim que influenciou, mais tarde, o ceticismo metafísico de Caravaggio que gostava deste lema: “Perdida a Esperança, perde-se o medo”.
 
"Díptico de Carondelet",  Jan Gossaert, 1517
O grande mestre alemão Albrecht Dürer também pintou seu “memento mori”, por volta de 1528, ano de sua morte. Escreveu embaixo de sua caveira: “Não existe nenhum escudo que vos possa defender da morte; quando chegar a vossa vez morrereis, crede em mim”.

"Memento mori", Albrecht Dürer
A partir da segunda metade do século XVII o gênero “Vanitas” se consagra. David Bailly, pintor da Escola de Leyden, fará em 1651 uma grande composição com seu auto-retrato onde segura um segundo retrato seu nas mãos, mais "envelhecido" em uma maravilhosa Vanitas, onde aparecem objetos pessoais e coisas de seu trabalho de artista, como um desenho colado na parede (esta imagem abre o post anterior).

Muitos pintores flamengos e dos países-baixos irão produzir variadas Vanitas. Na França, o tema foi introduzido pela importante comunidade flamenga de Saint-Germain de Prés. O tema é mais raro na Itália, aparecendo, contudo, na obra de Salvatore Rosa e Giuseppe Recco.

Na Espanha, o pintor Antonio de Pereda y Salgado pintará várias Vanitas. A mais conhecida é "O sonho do cavaleiro" (veja abaixo), feito por volta de 1670, que apresenta um homem adormecido sentado em uma cadeira, a cabeça apoiada na mão. O resto da composição apresenta uma variedades de objetos: livros, partituras, uma pistola, um globo, uma couraça e braçais de armadura, flores, jóias, cartas de jogar, moedas, uma máscara, um livro aberto, uma vela apagada, um relógio e dois crânios, (um frontal, muito iluminado, e o outro visto por baixo, “da mesma forma que vem representado nas gravuras do tratado do anatomista Andrea Vesallius em “De Humani Corporis Fabrica”, de 1568”, observa Luís Calheiros). O anjo, no centro da tela, estende uma legenda que diz: “Aeterne pingit ito vola et accidit” (“A glória eterna esvai-se como um sonho”). 

E tudo isto relacionado à famosa peça de Calderón de la Barca, "La Vida es Sueño", cujo trecho destaco aqui:

“Sueña el rey que es rey, y vive
con este engaño mandando,
disponiendo y gobernando;
y este aplauso, que recibe
prestado, en el viento escribe,
y en cenizas le convierte
la muerte, ¡desdicha fuerte!
¿Que hay quien intente reinar,
viendo que ha de despertar
en el sueño de la muerte?

Sueña el rico en su riqueza,
que más cuidados le ofrece;
sueña el pobre que padece
su miseria y su pobreza;
sueña el que a medrar empieza,
sueña el que afana y pretende,
sueña el que agravia y ofende,
y en el mundo, en conclusión,
todos sueñan lo que son,
aunque ninguno lo entiende.

Yo sueño que estoy aquí
destas prisiones cargado,
y soñé que en otro estado
más lisonjero me vi.
¿Qué es la vida? Un frenesí.
¿Qué es la vida? Una ilusión,
una sombra, una ficción,
y el mayor bien es pequeño:
que toda la vida es sueño,
y los sueños, sueños son.”


"O fim da glória do mundo", Juan de Valdés Leal
Outro pintor espanhol que se voltou para o tema de Vanitas foi Juan de Valdés Leal. A mim, pelo pouco que conheço da cultura espanhola, o tema de Vanitas com certeza atrairia a atenção dos angustiados espanhois. Em minha viagem a Sevilha (maio de 2015), vi de perto muitas pinturas que giram em torno deste assunto. Valdés Leal - contemporâneo de Velázquez - pintou as Alegorias “Finis gloriae mundi” (Fim das glórias mundanas) e “In ictu oculi” (Um abrir e fechar de olhos) em 1672 para a Igreja do Hospital da Caridade de Sevilha, onde admoestava a todos sobre a caducidade dos bens materiais e a brevidade da vida terrena. Francisco de Zurbaran, outro pintor espanhol sevilhano, também trabalhou no tema.

"Três crânios", Paul Cézanne
Nos tempos mais modernos, Vanitas retorna à pintura com Paul Cézanne ("Três crânios"), com Georges Braque ("Crânio, colar e crucifico", 1938) e Pablo Picasso ("Crânio com alho francês e vasilhas de cozinha", 1942).

Assim como Vanitas, a arte se voltou para outros símbolos desta mesma temática mais “escatológica”, vamos dizer assim. Muitos pintores se voltaram para temas como os "Apocalipses", os "Juízos Finais", as "Danças Macabras" e os "Triunfos da Morte", as "Procissões de Esqueletos e Condenados", as "Mascaradas da Morte", as "Três idades e a Morte", as "Degradações dos últimos tempos", etc. Estes foram temas que marcaram a Alta Idade Média e os primórdios do Renascimento.

E os primórdios do Capitalismo, o sistema econômico e político que se baseia na propriedade privada, na geração de lucros e na acumulação de riquezas. Vale lembrar que a Igreja Católica, grande acumuladora de bens, exortava seus fiéis a fugir da riqueza e das vaidades do mundo. Mas quando surgiu a Reforma Protestante, os Calvinistas incentivaram seus seguidores à prosperidade econômica, coisa que fez com que países como a Holanda, por exemplo, se desenvolvesse como centro comercial e financeiro ainda naquela época.

Podemos dizer que o capitalismo nasceu em um tempo em que o tema da morte era o espectro que pairava de forma enfática sobre todas as cabeças… Capitalismo e morte, irmãos siameses. Sistema que lucra inclusive com as guerras que produz, com as indústrias armamentistas que produz, e que produz a imagem atual mais marcante sobre a morte: a foto do garotinho sírio Alyan Kurdi. Esta imagem ao lado queimará nossas retinas durante ainda muitas décadas... Não consigo olhar para ela sem as lágrimas saltarem dos meus olhos...

Mas, voltando àquele tempo passado, as cidades foram devastadas pela Peste, as ações sanitárias e médicas eram insuficientes, a subnutrição e a falta de higiene potencializavam ainda mais os temas apocalípticos e as pregações do final dos tempos. Além de tudo, as guerras, que se espalhavam e eram medidas utilizadas no processo de construção da história europeia, marcada profundamente pela morte. Sem falar nas duas guerras grandes do século XX...

Os cidadãos e cidadãs que viviam naqueles tempos - e pouco, porque a vida humana durava em média 30 ou 40 anos - eram conscientes da realidade que ia ceifando vidas, “dizimando milhões de ‘almas’ de todas as classes e idades, sem exceções nem contemplações, aceitando no seu seio maldito a igual dignidade de mortais que existe na mais desvairada diversidade da espécie humana, que nos une a todos, para lá de todas as diferenças - credo, ideal, tradição cultural, nação, etnia, tribo, clã, casta, linhagem, classe (condição social), raça, sexo, idade, idiossincrasias, loucuras, excessivas normalidades…”, diz Luís Calheiros.

Detalhe de "O Inferno e o Dilúvio",
Hieronymus Bosch
Tempos em que as pessoas despertavam logo cedo para o sentimento trágico da vida, “para a amarga pena que é o viver diário”. E também despertavam, segundo Calheiros, para o sentimento da individualidade, da solidão irrepetível de cada um, separado e diferente do outro, separado da noção de coletividade. O sujeito humano se vê jogado sozinho nas armadilhas do mundo, nos porões das fábricas, nas longas filas para receber seu quinhão de salário, em longas jornadas diárias de trabalho exaustivo, sentindo o peso pesado da existência nessas condições…

Isso casava muito bem com as reflexões sobre a finitude da vida, sobre os mistérios de mundos reais e imaginários; a vida sob a batuta do medo e da esperança da salvação eterna, já que a vida terrena não salvava de nada… 

O poema sagrado de Dante Alghieri, a “Divina Comédia”, já tinha surgido no século XIV, levando seus leitores a um périplo pelo Inferno, Purgatório e Paraíso. Hieronymus Bosch, o grande pintor holandês da tragicidade da vida, já pintara seu “Julgamento final” no final do século XV. Assim como Pieter Brueghel, o Velho, mostrou o “Triunfo da Morte” em seu célebre quadro.

O tema da “Dança macabra” ou “Dança da Morte” também reinava no final da Idade Média e mostrava, na Literatura, na Pintura, na Escultura, na Gravura e na Música que a morte atingia a todos indistintamente. Os grandes mestres da velha escola alemã se voltavam para este assunto: Mathias Grünewald, Lucas Cranach, Nicholas Manoel Deutsch, Hans Baldung Grien ou Joaquim Patinir. 

Isto muito tempo antes do movimento Expressionista Alemão que retomou estes temas da tragicidade da vida, como Edward Munch, Egon Schielle, Georges Grosz, Kathe Kollwitz e Max Beckmann.

E, mais uma vez, os espanhois: os pintores tenebristas do século XIX espanhol José Gutierres Solana e Ignácio Zuloaga, com sua pintura sombria, ao revés da pintura iluminada de seu contemporâneo Joaquín Sorolla.

Paralelamente, a alma do povo tinha sua própria iconografia do tema da morte, que se multiplicava em cantos, estórias, práticas religiosas, imaginário em torno das penas do inferno e do purgatório, dos diabos e da morte, das almas penadas, dos espíritos que apareciam, das ameaças de outros espíritos malignos, dos exorcismos, das possessões…

Vale lembrar também do tema da moda naquela época e que inspirou o poeta francês François Villon: o tema do "Ubi sunt", um termo latino que significa "onde estão?". Onde estão as riquezas de outrora? A beleza de outrora? A juventude de outrora? Em seu poema "Balada dos tempos perdidos", ele repete o verso

"Mais où sont les neiges d'antan?" ("onde estão as neves de antanho?")

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"O sonho do cavalheiro", Antonio de Pereda
Vanitas, Philippe de Champaigne, 1671
Vanitas do pintor australiano, falecido em 2012, Kevin Best: "Natureza-morta infinita"
"Madalena com as duas chamas", Georges de la Tour