Máscaras da Commedia dell'Arte |
Enquanto François Villon (1431-1463) (ver final do post anterior) escrevia seus poemas de morte ("Balada dos Tempos Perdidos", "Balada dos Enforcados" e outros) no final da Idade Média, na Itália foram se gestando as sementes dos futuros teatros populares e de improvisação, como a Commedia dell'Arte (leia mais aqui). Atores populares iam encenando textos numa linguagem mais próxima do povo, como reação à comédia erudita literária, que o povo não compreendia, de autores como Maquiavel, Ariosto, etc.
O personagem Polichinelo |
- Este teatro popular nascido no século XVI na Itália, especialmente em Veneza, retomava os conceitos do Carnaval, a festa onde se permitia comer carne e aproveitar os prazeres da vida, antes que chegasse a Quaresma, os 40 dias onde se lembra a morte de Cristo; enquanto seus personagens se escondiam atrás de máscaras, iam passando e repassando as intrigas reais e inventadas da sociedade local, arrancando risadas ou choro do populacho que se reunia em torno destes atores, os primeiros improvisadores, que podemos ver também como os antecessores dos nossos cantadores nordestinos e de nosso MC’s…
- Naqueles tempos também havia as rinhas de atores, as disputas e querelas, como ocorre com os repentistas do nordeste e com as atuais rinhas de MC's nas periferias de São Paulo...
- Os personagens da Commedia dell'Arte usavam máscaras, ou tinham seu rosto pintado de branco, como Pedrolino, que na França ficou conhecido como Pierrot. Este era o mais triste dos personagens, com uma lágrima desenhada sob um dos olhos. Arlequim, que disputava com Pierrot o amor de Colombina, tem em seu nome uma origem que vem de duas culturas: ou deriva de Hellequin (chefe dos diabos no teatro medieval francês) ou de Eln Köining (chefe dos gnomos da cultura escandinava). Já Polichinelo, teria tido um nascimento um tanto estranho, pois teria aparecido num berço ao lado de um gato preto e uma ave de agouro, como se também descendesse do diabo...
Tudo isso recolhido do rico imaginário popular que vinha desde a Alta Idade Média... E atravessou os tempos, como podemos ver a seguir.
"Inferno", pintura de Hieronymus Bosch, cerca de 1490 |
- Mas, ainda no século XVI, exatamente em 1517, é encenada pela primeira vez a peça “Auto da Barca do Inferno”, do português Gil Vicente. Os personagens discutem com o Diabo, comandante de uma das três barcas, e com o Anjo, comandante de outra, em qual delas vão entrar. No final, a maioria entra mesmo é na Barca do Inferno. Nesta peça, Gil Vicente tece duras críticas à sociedade da época.
Enquanto isso, na pintura abundavam registros de reflexão ascética de santos, eremitas, mártires ou monges
contemplativos, como São Jerônimo, Maria Madalena, São Francisco de Assis,
Santo Antão, etc. Vi inúmeros quadros pintados com cenas envolvendo estes
santos, em minha viagem à Espanha deste ano.
É deste período também o surgimento deste ícone universal
que é a imagem da Morte com um manto negro, portando uma foice com a qual vai
ceifando vidas. É esta imagem que surge no baralho de Tarôt sob o número 13,
o número do azar. Que, acrescenta Luís Calheiros, propõe como reflexão ao
consultante um questionamento sobre “vícios e defeitos, propõe o
arrependimento, o desprendimento, o aperfeiçoamento e a transformação radical e
superação de tudo o que está ultrapassado, obsoleto e decadente”.
Enquanto o mundo se expandia, no começo do século
XVI também nascia o Brasil.
Valeria a pena uma profunda pesquisa, Brasil a
dentro, de como essas ideias nos atingiram em cheio desde os primeiros
movimentos de construção do nosso país. Devagar, estou iniciando uma pesquisa
em direção a isto, o que levará muito tempo, anos talvez. Mas a título de elucubrações
iniciais, fico pensando na construção da nossa cultura baseada nestas três fontes
distintas: aqueles europeus, os nossos indígenas e os africanos (sobre o assunto, Darcy Ribeiro escreveu o livro "O povo brasileiro"). Cada qual com
sua cosmologia, sua visão de mundo, de vida e de morte.
Xilogravura do artista popular pernambucano J. Borges, "A briga da onça com a serpente" |
De vida e de morte foi feita a nossa história.
Nossos índios foram sendo dizimados ao longo dos séculos. Nossos
afro-descendentes, para usar um termo atual, ainda não saíram de todo da
Senzala porque a Casa Grande teima em não permitir… As tentativas de
resistência, em nossa história, foram abatidas à bala, como aconteceu com a
Canudos de Antonio Conselheiro, com Zumbi dos Palmares…
Estamos revivendo os períodos de maior violência da história da cultura brasileira, nestes tempos de 2015. De um lado, a perene vida difícil dos pobres nas periferias do Brasil - são “quase todos pretos”, como canta Caetano Veloso. São eles as maiores vítimas das redes de tráfico de drogas, pois por séculos de descaso de políticas públicas tornam-se reféns, e mesmo colaboradores dos verdadeiros bandidos. A expectativa de vida nas favelas e nas periferias
das grandes cidades só diminui, por conta da violência policial e do tráfico de
drogas. Em 2014, as pesquisas apontam que a violência da Polícia Militar cresceu
111%. Em 2015 deve ser muito maior, pois de uma vez só a PM de São Paulo matou
19 pessoas recentemente em Osasco. Segundo dados do mapa da violência no
Brasil, um jovem negro tem 139% a mais de chance de ser morto na rua do que um
jovem branco.
A morte impera na vida dos moradores de periferia no Brasil. Passa a ser até “natural”, faz “parte da vida”, como podemos ler - ou ouvir - nas canções de rappers e MC’s como Emicida, Criolo, Sabotage…
“No pé que as coisas vão, Jão
Doidera, daqui a pouco,
resta madeira nem pros caixão.
Era neblina, hoje é poluição
Asfalto quente queima os pés no chão
Carros em profusão, confusão
Água em escassez, bem na nossa vez!
Assim não resta nem as barata...
Injustos fazem leis, e o que resta procês?
Escolher qual veneno te mata!
Pois somos tipo passarinhos
Soltos a voar dispostos a achar um ninho
Nem que seja no peito um do outro”
(do rapper Emicida, "Passarinhos")
Cena do filme "Que horas ela volta?" |
A morte ronda cada vez mais de perto as nossas vidas, sejamos ou não moradores das periferias. Todos somos vítimas da violência, é certo! Mas a Casa Grande não se incomoda se a Foice da Morte se restringir às favelas, aos pretos, aos pobres. A Casa Grande tem gerado campanhas de ódio, tem treinado aprendizes de fascistas como "justiceiros", tem batido freneticamente suas panelas enquanto de suas bocas escorrem babas de ódio contra os aeroportos e aviões repletos de gente pobre viajando, contra os filhos da empregada e do porteiro do prédio se formando nas mesmas universidades que seus filhos (saudações ao belo filme "Que horas ela volta?" de Ana Muylaert!). Para a Casa Grande, a Senzala deve se ligar de que seu lugar é onde sempre foi desde que o Brasil é Brasil: na sua inferioridade de classe.
Vanitas, vanitatum et omnia vanitas...
No nordeste - no meu - meu
conterrâneo João Cabral de Melo Neto já impingira na cara do Brasil o poema onde conta o que
acontecia naquele agreste ardente com as vidas ceifadas pela seca, pela fome,
pelas injustiças sociais, da qual são vítimas todos os severinos do nordeste,
“Morte e vida severina”:
“Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta”.
Severinos migraram para São Paulo
ao longo de décadas. E moram, em sua maioria, nas mesmas favelas mortíferas de
hoje. A saga do poema de João Cabral, que se passa em Pernambuco, pode muito bem ser
replicada nas ruelas estreitas e tortas das Quebradas de São Paulo:
“— E foi morrida essa morte, irmão
das almas,
essa foi morte morrida ou foi
matada?
— Até que não foi morrida, irmão
das almas,
esta foi morte matada, numa
emboscada.
— E o que guardava a emboscada,
irmão das almas,
e com que foi que o mataram, com
faca ou bala?
— Este foi morto de bala, irmão
das almas,
mais garantido de bala, mais longe
vara.
— E quem foi que o emboscou,
irmãos das almas,
quem contra ele soltou essa
ave-bala?
— Ali é difícil dizer, irmão das almas,
sempre há uma bala voando,
desocupada”.
Belo-triste encontro semiótico entre a ave-bala de João Cabral e as balas-passarinhos de Emicida...
"Os retirantes", pintura de Candido Portinari |
E em ressonância com João Cabral,
Candido Portinari pinta um dos mais representativos quadros desta tragédia, “Os
Retirantes”. Tintas carregadas no escuro, corpos deformados, verdadeiros espectros humanos, mal se sustentam
em seus próprios pés, enquanto aves de rapina fazem seus vôos rasantes
aguardando o trabalho da Morte…
E Ariano Suassuna escreve seu
“Auto da Compadecida”, onde narra o drama do nordeste, misturando elementos da
cultura popular, como a literatura de cordel, com o catolicismo barroco do
nosso povo. A peça já começa com o enterro de um cachorro. O que nos leva, por
livre associação, à Baleia, a cadela do conto de Graciliano Ramos que trata
exatamente de… vida e morte: “Vidas secas”.
Mas em Suassuna ainda, lembramos
que o último ato da peça traz o julgamento dos que foram mortos pelo capanga
Severino de Aracaju, que também foi morto por uma facada de João Grilo. No alto
de tudo, a Compadecida, Nossa Senhora - aquela que também habitava os altares e
o imaginário medieval como a Alentadora, a Mãe que se compadece dos pecadores e
os leva à salvação. Depois que a morte fez seu trabalho...
Ainda em nossa literatura, o
grande romance nacional “Grande sertão, veredas”, de Guimarães Rosa, nada mais
é do que a confissão do começo ao fim do capanga Riobaldo que viveu e viu a
morte de perto, assim como pressentia o “Tinhoso” com quem fez um pacto, mas
não impediu que fosse morta a sua amada Diadorim. Neste romance, Guimarães Rosa
mostra como era a vida nos sertões brasileiros, a luta de vida e morte dos
caboclos em suas taperas, ameaçados por jagunços armados por fazendeiros.
"A Roda da Fortuna", Edward Burne Jones |
“Viver é muito perigoso”, repete Riobaldo o tempo inteiro… “Porque aprender a viver é que é o
viver mesmo... Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e
abaixa... “
Finalizando, porque é preciso por
um fim a um assunto sem fim…
Há poucos anos atrás, o poeta
Afonso Romano de Sant’Anna disse, sobre nossos tempos e nossa arte atual: desde
a obra mítica do urinol de Marcel Duchamp, vem se falando na morte da arte. Na
década de 1980, Francis Fukuyama, pensador norte-americano neoliberal, apregoou
a morte da História.
“Falou-se muito de morte no século XX, sem esquecer o
banho de sangue provocado pelas duas guerras mundiais mortíferas”, reflete ele.
Pensemos na bomba de Hiroshima e Nagasaki que deixaram rastros de “crianças
mudas, telepáticas”, como disse outro poeta, Vinícius de Moraes.
Neste sentido,
complementa Afonso Romano “habitamos
um cemitério onde a teoria perambulou como um zumbi entre o sentido e o não
sentido, e teorizar sobre a morte de certas categorias, e mesmo de ideias,
parece que explica um pouco o caos contemporâneo”.
Enquanto isso as madames e suas panelas areadas,
plenas de vaidade, se agarram às suas marcas carésimas, a seus mitos
consumistas, a seus sonhos ilusórios, a seu vazio de classe. Se vendo
ameaçadas, blindam seus carros, suas casas, seus filhos, suas vidas…
E nos agarramos - todos - ao consumismo frenético de bens necessários e desnecessários vendidos pela propaganda, que diariamente gesta novas formas de vender coisas cada vez mais e em mais larga escala... “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade…” soam em “lúgubres responsos” os sinos do Eclesiastes, ainda mais atual em 2015.
Mas a Roda da Fortuna continua seu giro “separando
implacavelmente os poderosos, que tudo possuem, dos expoliados que nada têm de
seu, morrendo igualmente todos, e tudo deixando”, diz o professor português. Quem tem muito, muito deixa;
nada, os que nada possuem.
"Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no sexto dia e sim no sétimo", diz o poema "Dia da criação" de Vinícius de Moraes...
E pra finalizar e por via das dúvidas: Senhor, livrai-nos de todo o mal, amém!
"Fast food", vanitas, fotografia de Laurent Meynier, 2014 |