Numa tarde de sábado, há alguns meses, passei algumas horas muito agradáveis na companhia de uma artista plástica de longa e impressionante história: Edíria Carneiro. Esse encontro aconteceu em sua casa, no bairro da Bela Vista, em São Paulo. Ela, pessoalmente, abriu-me a porta do apartamento onde mora, com um sorriso muito simpático no rosto e um abraço apertado. Finalmente eu estava diante desta artista que carrega uma experiência de vida das mais ricas!
Para aquecer a conversa, fomos vendo juntas uma série de fotografias tiradas por ocasião de uma visita recente de Edíria à Escola Florestan Fernandes, do MST. Lá, ela havia recebido uma homenagem por sua doação à Escola do MST de seis telas a óleo, pintadas por ela. Ao final, foi me contando sobre sua riquíssima experiência de vida como artista, como comunista, como mãe e como esposa de João Amazonas, antigo dirigente do PCdoB.
Primeiras pinceladas
Edíria Carneiro nasceu em Salvador, Bahia. Desde cedo se interessou pelas artes plásticas, indo estudar na Escola de Belas Artes de Salvador. “Lá tínhamos aula de desenho com modelo vivo e tudo", diz ela. "E eu precisava esconder meus desenhos de modelos nus, para minha mãe não ver”, conta, sorrindo. “Imagina o que era isso na década de 30...”
Um de seus lugares de exercício de desenho era na porta do Convento São Francisco, onde os pobres se enfileiravam para receber uma sopa. “A pobreza sempre foi uma coisa que me tocou”, complementa. Em seguida, encaminhou-se para o campo da ilustração e fez desenhos para a revista baiana “Seiva”, um instrumento de luta política e cultural e de resistência ao fascismo, que, naquela época, já estava em ascensão. Na sequência, filiou-se ao PCdoB.
Em 1945, a UNE organizou um Congresso no Rio de Janeiro, do qual Edíria participou. Disse ela que, quando chegou ao Rio e viu toda aquela movimentação política, social e artística da capital federal, pensou e decidiu: “Eu não vou mais voltar para a Bahia”. Lá na sua terra era muito mais difícil, para ela, ser militante do Partido Comunista. “Ir às reuniões do Partido à noite? Minha família não ia deixar...” Ainda havia muito preconceito contra a participação de mulheres tanto na política quanto nas artes.
Decidida a ficar morando no Rio, Edíria se instalou no bairro de Ipanema. Como o Partido estava precisando de uma desenhista, Edíria foi trabalhar como ilustradora do Jornal "A Classe Operária". “Naqueles tempos, observa ela, os jornais não possuíam, como hoje, fotógrafos à disposição. Então o papel dos ilustradores era muito importante”.
Ela lembra que a "A Classe Operária" ainda não estava com todo o corpo de redação completo e não tinha uma sede própria, funcionando na sede do Comitê Nacional, na Lapa, onde ela conheceu seu futuro companheiro João Amazonas. Ele já era um dos dirigentes do Partido, atuando na área sindical. “Aí começou aquele namorico”, diz Edíria entre sorrisos.
Além da “A Classe Operária”, ela também atuava no “Momento Feminino”, um jornal editado por mulheres, cuja diretora era Arcelina Mochel, uma advogada maranhense, cuja família possuía muitos membros atuando como militantes comunistas. Heloísa Ramos - esposa do escritor Graciliano Ramos, também filiado ao PCdoB – também atuava nesse jornal. Então, assim era Edíria, a ilustradora de jornais que também desenhava panfletos, material de propaganda, etc.
Em 1946, ela frequentou o curso livre de Artes Gráficas da Fundação Getúlio Vargas, onde aprendeu a técnica de xilogravura com Axl Leskochek, e de gravura em metal com Carlos Oswald. Nessa escola também estudou pintura com Tomás Santa Rosa.
Uma de suas muitas experiências com artes visuais foi o convite do Barão de Itararé para ela pintar suas faixas de campanha política. Ele era o dono, nessa época, de um jornal intitulado "A Manha". O Barão de Itararé era candidato a Vereador pelo PCdoB do Rio. “Eu fiz as faixas da campanha dele, porque ele queria que tivesse sua caricatura, e o pessoal que fazia faixas não sabia desenhar, só faziam letras. O Barão de Itararé (que era um humorista nato),queria faixas engraçadas e eu fiz. Eu fazia um bocado de faixas para o Partido, eu fazia de tudo”, diz ela mais uma vez sorrindo.
Nas atividades do PCdoB, Edíria “era pau para toda obra” no campo da ilustração e desenho gráfico. Além de manter seu trabalho como artista plástica. Foi convidada, então, para fazer a cenografia de uma Sinfonia de Dmitri Shostakovich, compositor soviético, que seria apresentada no Estádio das Laranjeiras, naquela época um grande estádio de futebol.
Era um verdadeiro desafio para a jovem artista, uma vez que seus painéis seriam o pano de fundo da sinfonia em três atos que seria assistida por uma plateia muito grande. Esse era um evento cultural organizado pelos comunistas e mostra, diz ela, o imenso prestígio que tinha o Partido Comunista naquele momento político, social e cultural brasileiro. "Qualquer atividade organizada pelo Partido era muito concorrida!", recorda Edíria.
"A sede Distrital do Partido no Rio, foi doada pelo arquiteto Oscar Niemeyer. Havia uma sala enorme, que eu usei para pintar os painéis”. Diante do desafio de um trabalho tão novo, ela foiprocurar o pintor Tomás Santa Rosa, que já era célebre naquele tempo. Ele era auxiliar de Cândido Portinari, também filiado ao Partido Comunista.
“Eu conhecia bem Santa Rosa e tinha liberdade de lhe pedir algumas dicas e conselhos, já que ele era cenógrafo, acostumado a pintar em tamanhos grandes. Foi ele o cenógrafo, inclusive, da peça “Véu de Noiva”, de Nelson Rodrigues. Ele era muito amigo nosso”.
Em seguida Edíria participou, com um trabalho seu, do Salão Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. Nesse Salão, ganhou uma medalha de bronze, mas nunca pode ir recebê-la porque, em seguida, o Partido caiu na ilegalidade e os deputados comunistas foram cassados. “Nem minha pintura eu pude ir buscar”, completa ela, sempre com o mesmo sorriso, os olhinhos brilhantes e o ânimo tão característico dela.
As cores densas da clandestinidade
Após a decretação da ilegalidade do Partido Comunista do Brasil e a cassação do mandato de deputado de João Amazonas, eles entraram na vida de clandestinidade. Mudaram-se do Rio para São Paulo, onde viveram por uns dois anos, trocando de casa frequentemente para não chamar a atenção.
Nesse período, Edíria só fez uma única ilustração, para um texto do Partido sobre mulheres, que não continha sua assinatura, por motivos de segurança. Ela pouco podia conviver socialmente, e não foi a nenhuma exposição de arte enquanto esteve em São Paulo, diferentemente de sua vida anterior no Rio de Janeiro onde conhecia muita gente dos meios político e artístico.
Após dois anos, voltaram ao Rio, pois João Amazonas tinha novas tarefas lá. A mesma vida difícil da clandestinidade continuava, no entanto. “A gente alugava uma casinha, lembra ela, depois, quando ficava algum tempo naquela casa, mudava para outra, para não ficar conhecido”. Ela disse que desenhava, quando podia, sobre qualquer tipo de papel, mas sem nada poder guardar e levar consigo.
Algum tempo depois, ficou grávida da primeira filha. Próximo ao momento do parto, estourou uma greve importante de operários em São Paulo, para onde seu marido, João Amazonas, foi enviado.
“Foi uma história complicada – conta Edíria entre risos. Me lembro que fui para a Casa de Saúde... Nós morávamos no subúrbio do Rio. Eu fui para o hospital, tive minha filha e na hora de sair eu simplesmente não tinha dinheiro para pagar o hospital.” Edíria, com o bom humor de sempre, completa: “Aí eu fiquei no hospital fingindo que estava doente, até que finalmente lembrei de uma amiga, a mulher do Diógenes Arruda, também dirigente do partido. Ela trabalhava na biblioteca da Câmara Municipal. Mandei um recado para ela ir até o hospital, e lhe contei a história. Ela conseguiu o dinheiro que eu precisava, paguei o hospital e fui para casa.”
O mesmo se passou com o nascimento dos outros dois filhos do casal. Seu companheiro sempre estava viajando em alguma tarefa do Partido. “Nossa vida foi assim, sempre tumultuada. Nunca foi uma vida linear...”, diz ela.
Em 1959, Edíria e João mudaram-se para o Rio Grande do Sul, onde puderam ter uma vida um pouco mais dentro da normalidade. “Em Porto Alegre, eu voltei a frequentar exposições e fui procurar fazer um curso de artes plásticas.” Tornou-se aluna do pintor Iberê Camargo, com quem fez um curso de pintura, que era patrocinado pela Prefeitura de Porto Alegre. Além disso, frequentava teatros, ia a concertos, a exposições. Lá viveram de dois a três anos.
Mas nessa época, as divergências dentro do Partido Comunista tinham chegado a uma situação difícil, até que houve o rompimento: João Amazonas seguiu com o PCdoB e Prestes, por outro caminho, à frente do PCB. Mais uma vez, Edíria e João tiveram que mudar de cidade.
Retornaram ao Rio de Janeiro, sem dinheiro, sem lugar para morar. Ela então escreveu uma carta a seu pai, que era Juiz de Direito e morava na Bahia, pedindo ajuda. Ele enviou o dinheiro e ela e os filhos passaram alguns meses com seus pais. João permaneceu no Rio providenciando uma situação melhor.
Já estavam em São Paulo, quando a Ditadura Militar lançou seu manto trágico sobre o Brasil. Em 1968, o PCdoB começou a organizar a Guerrilha do Araguaia, como ato de resistência à ditadura, e João Amazonas seguiu para a região, deixando a família em São Paulo. Um certo dia, Edíria recebe um recado de que deveria encontrar-se com João. “Ele me disse que ia fazer uma viagem à China e combinou de nos encontrarmos em Paris, uns meses depois.” Nessa época, os filhos já estavam todos adultos.
A ideia era que Amazonas voltasse ao Brasil. Mas em 1976 aconteceu o episódio da Queda da Lapa, uma reunião do Comitê Central do PCdoB que foi estourada pelo Exército, onde foram assassinados os dirigentes comunistas Ângelo Arroyo e Pedro Pomar, além dos outros que foram presos e selvagemente torturados.
“Com isso – disse Edíria – o João não podia voltar! Ele acabou ficando em Paris, com documentação de português. Era Monsieur Pereira”, diz ela, sorridente. E completa: “Cheguei lá e vi que ele estava muito doente! Então lhe disse que eu não voltava para o Brasil, que não ia deixar ele doente lá!” O casal se instalou, então, na capital francesa, aonde viveram exilados por quatro anos, voltando ao Brasil depois da decretação da Anistia, em 1980.
Uma artista no estrangeiro
Em Paris, Edíria voltou aos cursos de artes plásticas. Esteve com Friedlaender, um gravador muito conhecido e já muito velhinho. Ele perguntou por Lívio Abramo, que foi seu aluno. Segundo Edíria, ele não queria mais ter alunos e indicou o “Atelier 17” de Stanley William Hayter, de nacionalidade inglesa.
Por ocasião da II Guerra Mundial, Hayter, como Edíria o chama, mudou-se para os EUA. Lá deu aulas de gravura, tendo como um de seus alunos o pintor expressionista abstrato norte-americano Jackson Pollock, que também trabalhou no atelier do artista. Passaram pelo “Atelier 17” de Stanley W. Hayter muitos artistas famosos, como Miró, Picasso, Vieira da Silva, Giacometti...
Neste ponto da conversa, Edíria me convida a ir conhecer seu atelier, do outro lado da rua “no porão da casa da minha filha”. Fomos. Ela se apoiando no meu braço direito, para caminhar com mais apoio, enquanto atravessávamos a rua. Nossa primeira parada foi na sala, onde ela me mostrou pinturas e gravuras penduradas na parede. Ia mostrando, enquanto me explicava a técnica que havia aprendido com o gravador Hayter.
“Ele era químico, explica ela, e por isso ele criou e desenvolveu uma técnica de gravura que permite obter várias cores com uma única impressão”. Foi com essa técnica aprendida com Hayter que Edíria realizou muitas de suas gravuras. A tinta deve ter níveis de viscosidade diferentes, uns mais líquidos, outros mais viscosos. O resultado é que essa mistura entre tintas de viscosidades diferentes cria um efeito de repulsão entre elas que permite um bom acabamento em várias cores, com uma única passada pela prensa. Edíria, provavelmente, é a única gravadora brasileira atualmente que passou pelo Atelier 17, de Hayter.
Mas não foi fácil ser aluna de professor tão concorrido. Edíria foi procurá-lo em seu atelier e ouviu como resposta: “Eu não aceito mais nenhum aluno”. Ela interrompe a história e fala, como se precisasse argumentar com ele: “mas eu tinha que estudar com algum gravador!”
Como a primeira resposta foi negativa, Edíria começou a frequentar um outro atelier, menos importante, o de Joeles Serve, em uma rua que, segundo ela lembra, possuía “um bocado de ateliers”. Mas todos os dias, voltava ao Hayter, sempre com a mesma pergunta: já tem um lugar pra mim? Até que finalmente a chance apareceu, “para minha sorte”.
Hayer não gostava da idéia do artista solitário, separado da sociedade. No Atelier 17, artistas de várias partes do Mundo, de tendências e personalidades muito diversas, trabalhavam juntos e trocavam suas experiências e vivências. A personalidade forte e marcante de Hayter determinava um grande respeito pelo trabalho de cada um, não havendo lugar para críticas depreciativas ou desrespeito às exigências naturais do bom funcionamento de um atelier coletivo.
Ele dava grande importância à poética do traço. Instintivo que ele fosse, seria um ato de criação. Periodicamente Hayter fazia os alunos praticarem exercícios de desenho automático (com os olhos fechados) e todos aprendiam o manejo dos buris. Havia alunos de tendências diversas – abstratos e figurativos. Cada um respeitava o trabalho do outro. O próprio Hayter nunca criticava o trabalho de um aluno por seguir esta ou aquela tendência. E nenhum aluno tinha o direito de criticar o trabalho de um colega.
Ediria mostrou-me várias gravuras que fez com a técnica de Hayter. Numa delas, um casal ao centro, em meio a manchas disformes. Ela aponta e ri, dizendo: “Este quadro eu pus o nome de “Encontro”, porque este casal representa nós dois, maltratados, machucados”...
Perguntei-lhe sobre a vida em Paris: “Naquela época eu, como estrangeira, tinha que me apresentar a cada três meses ao serviço de imigração. Eu era a única brasileira. E Hayter, então, me dava um atestado de que eu era sua aluna. Eu levava esse papel na imigração e eles renovavam meu visto por mais alguns meses”.
Além dela, muitos outros artistas estrangeiros estudavam lá. “A vida cultural era fervilhante, lembra ela. Em Paris havia muito atelier, seja de gravura, seja de pintura. Tinham vários onde se davam sessões com modelo vivo. Qualquer um podia ir lá fazer seus desenhos e pinturas, pagando ao final da sessão”.
O atelier atual de Edíria está bem instalado e equipado, com três prensas para impressão de gravura, incluindo uma prensa elétrica. Ao fundo, uma mapoteca, onde ela guarda dezenas de cópias de gravuras, que nós duas fomos tirando uma a uma, enquanto ela ia contando suas histórias. Num armário, potes e potes de tinta, assim como pincéis, bisnagas de tinta a óleo, buris, todo o material de trabalho do artista.
“Tudo isso eu trouxe de Paris, inclusive esse rolo imenso que foi transportado de navio para cá. Fiz questão de trazer todo o meu material de trabalho, quando nós voltamos ao Brasil”, complementa Edíria.
De volta ao Brasil em 1980, tendo sido anistiada junto com seu marido, Edíria Carneiro trouxe consigo toda a experiência adquirida nesses quatro anos na França, convivendo com artistas de várias partes do mundo. Experiência que se somou a toda a sua trajetória de artista plástica, desde os primeiros anos de jovem estudante da Escola de Belas Artes da Bahia.
Entre suas experiências nas artes plásticas, convém destacar:
No Brasil:
Fez parte do Núcleo de Gravadores de São Paulo desde sua fundação (década de 60); II Bienal de Artes Plásticas de Salvador, Bahia; Bienal de Artes de Santos, São Paulo (década de 70); X e XI Bienais Internacionais de São Paulo (1969 e 1971); Salão Paulista de Arte Moderna (de 1963 a 1968); Salão Paulista de Arte Contemporânea (1969 a 1974); exposição no Memorial da América Latina, em São Paulo (2005); Câmara Federal de Brasília (2006); exposição individual ”Folclore Brasileiro”, Campos do Jordão, São Paulo (2006).
No exterior:
Expôs na Associação Brasil-Estados Unidos, em Washington, EUA (1961); no Salon d'Automne, em Paris, França ( de 1977 a 1981); Musée des Beaux Arts de Caen, França (1981); Salon des Artistes Françaises, em Paris ( de 1977 a 1981); Salon Internacional del Grabado, em Madri, Espanha ( de 1977 a 1981); Feira Internacional de Arte de Paris (1986); exposição no Museu de Arte Colonial a convite do Centro Wilfredo Lam, em Havana, Cuba (1991); Bienal de Gravura de Taiwan, China (1991); Mostra Internacional de Minigrabados em Madri, Espanha ( de 1994 a 1998).
Edíria tem obras nos acervos dos museus: Museu de Arte Moderna de São Paulo; Museu de Arte Moderna de Skoplje, Macedônia, antiga Iugoslávia; Museu del Grabado de Buenos Aires, Argentina; e no Cabinet d'Estampes de la Bibliothèque National de Paris, França e na Prefeitura de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. - É verbete no Dicionário das Artes Plásticas no Brasil (Roberto Pontual), no Dicionário de Artistas Plásticos – Instituto Nacional do Livro (MEC) e na Grande Enciclopédia Delta Larrouse (Edição Brasileira ano 1970).
Incansável, apesar da idade, Edíria ainda pinta telas a óleo. Ela é a representante, ainda viva, de um momento riquíssimo da história das artes plásticas brasileiras, pós-Semana de 1922, crescendo em meio ao movimento modernista, no qual se destacaram muitas mulheres pintoras, do porte de Anita Malfatti e Tarsila do Amaral. Assim é Edíria Carneiro Amazonas.
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NOTA DO BLOG:
A artista Edíria Carneiro faleceu em dezembro de 2011.
Para aquecer a conversa, fomos vendo juntas uma série de fotografias tiradas por ocasião de uma visita recente de Edíria à Escola Florestan Fernandes, do MST. Lá, ela havia recebido uma homenagem por sua doação à Escola do MST de seis telas a óleo, pintadas por ela. Ao final, foi me contando sobre sua riquíssima experiência de vida como artista, como comunista, como mãe e como esposa de João Amazonas, antigo dirigente do PCdoB.
Primeiras pinceladas
Edíria Carneiro nasceu em Salvador, Bahia. Desde cedo se interessou pelas artes plásticas, indo estudar na Escola de Belas Artes de Salvador. “Lá tínhamos aula de desenho com modelo vivo e tudo", diz ela. "E eu precisava esconder meus desenhos de modelos nus, para minha mãe não ver”, conta, sorrindo. “Imagina o que era isso na década de 30...”
Um de seus lugares de exercício de desenho era na porta do Convento São Francisco, onde os pobres se enfileiravam para receber uma sopa. “A pobreza sempre foi uma coisa que me tocou”, complementa. Em seguida, encaminhou-se para o campo da ilustração e fez desenhos para a revista baiana “Seiva”, um instrumento de luta política e cultural e de resistência ao fascismo, que, naquela época, já estava em ascensão. Na sequência, filiou-se ao PCdoB.
Em 1945, a UNE organizou um Congresso no Rio de Janeiro, do qual Edíria participou. Disse ela que, quando chegou ao Rio e viu toda aquela movimentação política, social e artística da capital federal, pensou e decidiu: “Eu não vou mais voltar para a Bahia”. Lá na sua terra era muito mais difícil, para ela, ser militante do Partido Comunista. “Ir às reuniões do Partido à noite? Minha família não ia deixar...” Ainda havia muito preconceito contra a participação de mulheres tanto na política quanto nas artes.
Decidida a ficar morando no Rio, Edíria se instalou no bairro de Ipanema. Como o Partido estava precisando de uma desenhista, Edíria foi trabalhar como ilustradora do Jornal "A Classe Operária". “Naqueles tempos, observa ela, os jornais não possuíam, como hoje, fotógrafos à disposição. Então o papel dos ilustradores era muito importante”.
Ela lembra que a "A Classe Operária" ainda não estava com todo o corpo de redação completo e não tinha uma sede própria, funcionando na sede do Comitê Nacional, na Lapa, onde ela conheceu seu futuro companheiro João Amazonas. Ele já era um dos dirigentes do Partido, atuando na área sindical. “Aí começou aquele namorico”, diz Edíria entre sorrisos.
Além da “A Classe Operária”, ela também atuava no “Momento Feminino”, um jornal editado por mulheres, cuja diretora era Arcelina Mochel, uma advogada maranhense, cuja família possuía muitos membros atuando como militantes comunistas. Heloísa Ramos - esposa do escritor Graciliano Ramos, também filiado ao PCdoB – também atuava nesse jornal. Então, assim era Edíria, a ilustradora de jornais que também desenhava panfletos, material de propaganda, etc.
Em 1946, ela frequentou o curso livre de Artes Gráficas da Fundação Getúlio Vargas, onde aprendeu a técnica de xilogravura com Axl Leskochek, e de gravura em metal com Carlos Oswald. Nessa escola também estudou pintura com Tomás Santa Rosa.
Uma de suas muitas experiências com artes visuais foi o convite do Barão de Itararé para ela pintar suas faixas de campanha política. Ele era o dono, nessa época, de um jornal intitulado "A Manha". O Barão de Itararé era candidato a Vereador pelo PCdoB do Rio. “Eu fiz as faixas da campanha dele, porque ele queria que tivesse sua caricatura, e o pessoal que fazia faixas não sabia desenhar, só faziam letras. O Barão de Itararé (que era um humorista nato),queria faixas engraçadas e eu fiz. Eu fazia um bocado de faixas para o Partido, eu fazia de tudo”, diz ela mais uma vez sorrindo.
Nas atividades do PCdoB, Edíria “era pau para toda obra” no campo da ilustração e desenho gráfico. Além de manter seu trabalho como artista plástica. Foi convidada, então, para fazer a cenografia de uma Sinfonia de Dmitri Shostakovich, compositor soviético, que seria apresentada no Estádio das Laranjeiras, naquela época um grande estádio de futebol.
Era um verdadeiro desafio para a jovem artista, uma vez que seus painéis seriam o pano de fundo da sinfonia em três atos que seria assistida por uma plateia muito grande. Esse era um evento cultural organizado pelos comunistas e mostra, diz ela, o imenso prestígio que tinha o Partido Comunista naquele momento político, social e cultural brasileiro. "Qualquer atividade organizada pelo Partido era muito concorrida!", recorda Edíria.
"A sede Distrital do Partido no Rio, foi doada pelo arquiteto Oscar Niemeyer. Havia uma sala enorme, que eu usei para pintar os painéis”. Diante do desafio de um trabalho tão novo, ela foiprocurar o pintor Tomás Santa Rosa, que já era célebre naquele tempo. Ele era auxiliar de Cândido Portinari, também filiado ao Partido Comunista.
“Eu conhecia bem Santa Rosa e tinha liberdade de lhe pedir algumas dicas e conselhos, já que ele era cenógrafo, acostumado a pintar em tamanhos grandes. Foi ele o cenógrafo, inclusive, da peça “Véu de Noiva”, de Nelson Rodrigues. Ele era muito amigo nosso”.
Em seguida Edíria participou, com um trabalho seu, do Salão Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. Nesse Salão, ganhou uma medalha de bronze, mas nunca pode ir recebê-la porque, em seguida, o Partido caiu na ilegalidade e os deputados comunistas foram cassados. “Nem minha pintura eu pude ir buscar”, completa ela, sempre com o mesmo sorriso, os olhinhos brilhantes e o ânimo tão característico dela.
As cores densas da clandestinidade
Após a decretação da ilegalidade do Partido Comunista do Brasil e a cassação do mandato de deputado de João Amazonas, eles entraram na vida de clandestinidade. Mudaram-se do Rio para São Paulo, onde viveram por uns dois anos, trocando de casa frequentemente para não chamar a atenção.
Nesse período, Edíria só fez uma única ilustração, para um texto do Partido sobre mulheres, que não continha sua assinatura, por motivos de segurança. Ela pouco podia conviver socialmente, e não foi a nenhuma exposição de arte enquanto esteve em São Paulo, diferentemente de sua vida anterior no Rio de Janeiro onde conhecia muita gente dos meios político e artístico.
Após dois anos, voltaram ao Rio, pois João Amazonas tinha novas tarefas lá. A mesma vida difícil da clandestinidade continuava, no entanto. “A gente alugava uma casinha, lembra ela, depois, quando ficava algum tempo naquela casa, mudava para outra, para não ficar conhecido”. Ela disse que desenhava, quando podia, sobre qualquer tipo de papel, mas sem nada poder guardar e levar consigo.
Algum tempo depois, ficou grávida da primeira filha. Próximo ao momento do parto, estourou uma greve importante de operários em São Paulo, para onde seu marido, João Amazonas, foi enviado.
“Foi uma história complicada – conta Edíria entre risos. Me lembro que fui para a Casa de Saúde... Nós morávamos no subúrbio do Rio. Eu fui para o hospital, tive minha filha e na hora de sair eu simplesmente não tinha dinheiro para pagar o hospital.” Edíria, com o bom humor de sempre, completa: “Aí eu fiquei no hospital fingindo que estava doente, até que finalmente lembrei de uma amiga, a mulher do Diógenes Arruda, também dirigente do partido. Ela trabalhava na biblioteca da Câmara Municipal. Mandei um recado para ela ir até o hospital, e lhe contei a história. Ela conseguiu o dinheiro que eu precisava, paguei o hospital e fui para casa.”
O mesmo se passou com o nascimento dos outros dois filhos do casal. Seu companheiro sempre estava viajando em alguma tarefa do Partido. “Nossa vida foi assim, sempre tumultuada. Nunca foi uma vida linear...”, diz ela.
Em 1959, Edíria e João mudaram-se para o Rio Grande do Sul, onde puderam ter uma vida um pouco mais dentro da normalidade. “Em Porto Alegre, eu voltei a frequentar exposições e fui procurar fazer um curso de artes plásticas.” Tornou-se aluna do pintor Iberê Camargo, com quem fez um curso de pintura, que era patrocinado pela Prefeitura de Porto Alegre. Além disso, frequentava teatros, ia a concertos, a exposições. Lá viveram de dois a três anos.
Mas nessa época, as divergências dentro do Partido Comunista tinham chegado a uma situação difícil, até que houve o rompimento: João Amazonas seguiu com o PCdoB e Prestes, por outro caminho, à frente do PCB. Mais uma vez, Edíria e João tiveram que mudar de cidade.
Retornaram ao Rio de Janeiro, sem dinheiro, sem lugar para morar. Ela então escreveu uma carta a seu pai, que era Juiz de Direito e morava na Bahia, pedindo ajuda. Ele enviou o dinheiro e ela e os filhos passaram alguns meses com seus pais. João permaneceu no Rio providenciando uma situação melhor.
Já estavam em São Paulo, quando a Ditadura Militar lançou seu manto trágico sobre o Brasil. Em 1968, o PCdoB começou a organizar a Guerrilha do Araguaia, como ato de resistência à ditadura, e João Amazonas seguiu para a região, deixando a família em São Paulo. Um certo dia, Edíria recebe um recado de que deveria encontrar-se com João. “Ele me disse que ia fazer uma viagem à China e combinou de nos encontrarmos em Paris, uns meses depois.” Nessa época, os filhos já estavam todos adultos.
A ideia era que Amazonas voltasse ao Brasil. Mas em 1976 aconteceu o episódio da Queda da Lapa, uma reunião do Comitê Central do PCdoB que foi estourada pelo Exército, onde foram assassinados os dirigentes comunistas Ângelo Arroyo e Pedro Pomar, além dos outros que foram presos e selvagemente torturados.
“Com isso – disse Edíria – o João não podia voltar! Ele acabou ficando em Paris, com documentação de português. Era Monsieur Pereira”, diz ela, sorridente. E completa: “Cheguei lá e vi que ele estava muito doente! Então lhe disse que eu não voltava para o Brasil, que não ia deixar ele doente lá!” O casal se instalou, então, na capital francesa, aonde viveram exilados por quatro anos, voltando ao Brasil depois da decretação da Anistia, em 1980.
Uma artista no estrangeiro
Em Paris, Edíria voltou aos cursos de artes plásticas. Esteve com Friedlaender, um gravador muito conhecido e já muito velhinho. Ele perguntou por Lívio Abramo, que foi seu aluno. Segundo Edíria, ele não queria mais ter alunos e indicou o “Atelier 17” de Stanley William Hayter, de nacionalidade inglesa.
Por ocasião da II Guerra Mundial, Hayter, como Edíria o chama, mudou-se para os EUA. Lá deu aulas de gravura, tendo como um de seus alunos o pintor expressionista abstrato norte-americano Jackson Pollock, que também trabalhou no atelier do artista. Passaram pelo “Atelier 17” de Stanley W. Hayter muitos artistas famosos, como Miró, Picasso, Vieira da Silva, Giacometti...
Neste ponto da conversa, Edíria me convida a ir conhecer seu atelier, do outro lado da rua “no porão da casa da minha filha”. Fomos. Ela se apoiando no meu braço direito, para caminhar com mais apoio, enquanto atravessávamos a rua. Nossa primeira parada foi na sala, onde ela me mostrou pinturas e gravuras penduradas na parede. Ia mostrando, enquanto me explicava a técnica que havia aprendido com o gravador Hayter.
“Ele era químico, explica ela, e por isso ele criou e desenvolveu uma técnica de gravura que permite obter várias cores com uma única impressão”. Foi com essa técnica aprendida com Hayter que Edíria realizou muitas de suas gravuras. A tinta deve ter níveis de viscosidade diferentes, uns mais líquidos, outros mais viscosos. O resultado é que essa mistura entre tintas de viscosidades diferentes cria um efeito de repulsão entre elas que permite um bom acabamento em várias cores, com uma única passada pela prensa. Edíria, provavelmente, é a única gravadora brasileira atualmente que passou pelo Atelier 17, de Hayter.
Mas não foi fácil ser aluna de professor tão concorrido. Edíria foi procurá-lo em seu atelier e ouviu como resposta: “Eu não aceito mais nenhum aluno”. Ela interrompe a história e fala, como se precisasse argumentar com ele: “mas eu tinha que estudar com algum gravador!”
Como a primeira resposta foi negativa, Edíria começou a frequentar um outro atelier, menos importante, o de Joeles Serve, em uma rua que, segundo ela lembra, possuía “um bocado de ateliers”. Mas todos os dias, voltava ao Hayter, sempre com a mesma pergunta: já tem um lugar pra mim? Até que finalmente a chance apareceu, “para minha sorte”.
Hayer não gostava da idéia do artista solitário, separado da sociedade. No Atelier 17, artistas de várias partes do Mundo, de tendências e personalidades muito diversas, trabalhavam juntos e trocavam suas experiências e vivências. A personalidade forte e marcante de Hayter determinava um grande respeito pelo trabalho de cada um, não havendo lugar para críticas depreciativas ou desrespeito às exigências naturais do bom funcionamento de um atelier coletivo.
Ele dava grande importância à poética do traço. Instintivo que ele fosse, seria um ato de criação. Periodicamente Hayter fazia os alunos praticarem exercícios de desenho automático (com os olhos fechados) e todos aprendiam o manejo dos buris. Havia alunos de tendências diversas – abstratos e figurativos. Cada um respeitava o trabalho do outro. O próprio Hayter nunca criticava o trabalho de um aluno por seguir esta ou aquela tendência. E nenhum aluno tinha o direito de criticar o trabalho de um colega.
Ediria mostrou-me várias gravuras que fez com a técnica de Hayter. Numa delas, um casal ao centro, em meio a manchas disformes. Ela aponta e ri, dizendo: “Este quadro eu pus o nome de “Encontro”, porque este casal representa nós dois, maltratados, machucados”...
Perguntei-lhe sobre a vida em Paris: “Naquela época eu, como estrangeira, tinha que me apresentar a cada três meses ao serviço de imigração. Eu era a única brasileira. E Hayter, então, me dava um atestado de que eu era sua aluna. Eu levava esse papel na imigração e eles renovavam meu visto por mais alguns meses”.
Além dela, muitos outros artistas estrangeiros estudavam lá. “A vida cultural era fervilhante, lembra ela. Em Paris havia muito atelier, seja de gravura, seja de pintura. Tinham vários onde se davam sessões com modelo vivo. Qualquer um podia ir lá fazer seus desenhos e pinturas, pagando ao final da sessão”.
O atelier atual de Edíria está bem instalado e equipado, com três prensas para impressão de gravura, incluindo uma prensa elétrica. Ao fundo, uma mapoteca, onde ela guarda dezenas de cópias de gravuras, que nós duas fomos tirando uma a uma, enquanto ela ia contando suas histórias. Num armário, potes e potes de tinta, assim como pincéis, bisnagas de tinta a óleo, buris, todo o material de trabalho do artista.
“Tudo isso eu trouxe de Paris, inclusive esse rolo imenso que foi transportado de navio para cá. Fiz questão de trazer todo o meu material de trabalho, quando nós voltamos ao Brasil”, complementa Edíria.
De volta ao Brasil em 1980, tendo sido anistiada junto com seu marido, Edíria Carneiro trouxe consigo toda a experiência adquirida nesses quatro anos na França, convivendo com artistas de várias partes do mundo. Experiência que se somou a toda a sua trajetória de artista plástica, desde os primeiros anos de jovem estudante da Escola de Belas Artes da Bahia.
Entre suas experiências nas artes plásticas, convém destacar:
No Brasil:
Fez parte do Núcleo de Gravadores de São Paulo desde sua fundação (década de 60); II Bienal de Artes Plásticas de Salvador, Bahia; Bienal de Artes de Santos, São Paulo (década de 70); X e XI Bienais Internacionais de São Paulo (1969 e 1971); Salão Paulista de Arte Moderna (de 1963 a 1968); Salão Paulista de Arte Contemporânea (1969 a 1974); exposição no Memorial da América Latina, em São Paulo (2005); Câmara Federal de Brasília (2006); exposição individual ”Folclore Brasileiro”, Campos do Jordão, São Paulo (2006).
No exterior:
Expôs na Associação Brasil-Estados Unidos, em Washington, EUA (1961); no Salon d'Automne, em Paris, França ( de 1977 a 1981); Musée des Beaux Arts de Caen, França (1981); Salon des Artistes Françaises, em Paris ( de 1977 a 1981); Salon Internacional del Grabado, em Madri, Espanha ( de 1977 a 1981); Feira Internacional de Arte de Paris (1986); exposição no Museu de Arte Colonial a convite do Centro Wilfredo Lam, em Havana, Cuba (1991); Bienal de Gravura de Taiwan, China (1991); Mostra Internacional de Minigrabados em Madri, Espanha ( de 1994 a 1998).
Edíria tem obras nos acervos dos museus: Museu de Arte Moderna de São Paulo; Museu de Arte Moderna de Skoplje, Macedônia, antiga Iugoslávia; Museu del Grabado de Buenos Aires, Argentina; e no Cabinet d'Estampes de la Bibliothèque National de Paris, França e na Prefeitura de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. - É verbete no Dicionário das Artes Plásticas no Brasil (Roberto Pontual), no Dicionário de Artistas Plásticos – Instituto Nacional do Livro (MEC) e na Grande Enciclopédia Delta Larrouse (Edição Brasileira ano 1970).
Incansável, apesar da idade, Edíria ainda pinta telas a óleo. Ela é a representante, ainda viva, de um momento riquíssimo da história das artes plásticas brasileiras, pós-Semana de 1922, crescendo em meio ao movimento modernista, no qual se destacaram muitas mulheres pintoras, do porte de Anita Malfatti e Tarsila do Amaral. Assim é Edíria Carneiro Amazonas.
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NOTA DO BLOG:
A artista Edíria Carneiro faleceu em dezembro de 2011.