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segunda-feira, 29 de setembro de 2014

A política e os artistas

"A morte no sábado - homenagem a Vladimir Herzog",
óleo sobre tela, Antonio Amaral, 1975
A força das ideias gera a história, movimenta os povos, muda sistemas. Nas artes, inúmeros artistas não ignoraram o que aconteceu em seu próprio tempo, criando obras que foram testemunhos históricos e ao mesmo tempo marcos estéticos de suas épocas. Há relação, portanto, entre arte e política.

Vamos começar com um exemplo mais distante, mas que trouxe grande influência à nossa época e mesmo ao nosso país: na França do século XVIII, ideias as mais contraditórias disputavam espaço numa sociedade em ritmo de mudanças profundas em seu sistema político, econômico, social. Burgueses e aristocratas combatiam entre si os espaços de poder e de pensamento, enquanto que a grande maioria do povo vivia na pobreza. Os adeptos do velho regime se agarravam ferrenhamente ao passado; outros, inspirados pelos novos ideais carregavam novas bandeiras que balançavam ao sopro dos ventos de um mundo novo.

A Revolução Francesa marcou o fim desse "Ancien Régime" e dos privilégios da realeza e do clero. Até então o rei era o centro de toda a vida política e social na França. Os impostos cobrados ao povo eram extorsivos. A imensa maioria vivia na miséria, enquanto os membros da corte e do clero se refestelavam nos palácios. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, proclamou a igualdade dos direitos de todos diante da lei, além de defender direitos básicos dos cidadãos. Essa Revolução de 1789 marcou o início da era moderna e influenciou todos os recantos do mundo.


Marat assassinado, David
Em meio aos artistas, as discussões iam além de questões estéticas e as ideias dos adeptos do Romantismo já movimentavam os ateliês. Foi em meio a esse fervilhar de ideias que se destacou Jacques-Louis David (1748-1825). Envolvido totalmente com a Revolução Francesa de 1789, David pôs seu talento de pintor a serviço das causas revolucionárias, assim como foi fiel ao período napoleônico, declaradamente favorável a Napoleão Bonaparte. Mas na Revolução de 1789 alinhou-se aos jacobinos, a ala esquerda. Em 1793 apresentou o depois famoso quadro “Marat assassinado”, onde denunciava o assassinato do revolucionário e seu amigo Jean-Paul Marat.

Além de David, um outro artista francês se destacou como um pintor da Revolução: Eugène Delacroix (1798-1863), que já nasceu numa França renovada pela Revolução mas também era plugado a seu tempo, até mesmo pelo romantismo que o inspirava.


A Liberdade guiando o povo, Delacroix
Delacroix participou dos movimentos revolucionários de seu tempo ao pintar o célebre quadro “A Liberdade guiando o povo às barricadas”. A mulher que representa a Liberdade em sua tela é uma mulher do povo, com o peito nu e os cabelos ao vento. Diz Walter Friedlaender em seu livro “De David a Delacroix”: “De todas as obras de Delacroix, foi a única em que um conceito original e um verdadeiro sentimento contemporâneo se completaram de forma vigorosa”.


Aqui no Brasil, muitos foram os artistas que se envolveram com a política de seu tempo. Começando com Victor Meirelles (1832-1903) e Pedro Alexandrino (1856-1942), que pintaram grandes telas representando momentos épicos da história do nosso país, passamos pelos modernistas e chegamos a Candido Portinari (1903-1962), um dos nossos maiores pintores, que se envolveu diretamente com a política de seu tempo, sendo inclusive candidato a deputado federal nas eleições de 1945 e de 1947, pelo Partido Comunista do Brasil (PCB). São inúmeras as telas de Portinari com cunho político, especialmente aquela em que ele denuncia a miséria em que vivia grande parte do povo nordestino, “Os Retirantes”, que tem uma força expressiva muito tocante.

Mas para exemplificar com um artista mais próximo do nosso tempo, vamos destacar o paulista Antonio Henrique Abreu Amaral, que nasceu em 1935 e ainda vive em São Paulo. 

Antonio Henrique iniciou sua formação artística na Escola do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand - MASP, em 1952. Em 1956, foi estudar gravura com Lívio Abramo, um grande gravador brasileiro, que também se interessava muito pela política do nosso país. Em 1958, Antonio Henrique viajou pela Argentina e Chile, realizando exposições, ocasião em que conhece pessoalmente o poeta Pablo Neruda (1904 - 1973), que era comunista. 

Após passar pelos EUA, em sua volta ao Brasil em 1960, Antonio Henrique Amaral conheceu artistas como  Ivan Serpa (1923 - 1973), Candido Portinari (1903 - 1962), Antonio Bandeira (1922 - 1967), Djanira (1914 - 1979) e Oswaldo Goeldi (1895 - 1961). Em 1964, houve o golpe militar que instaurou no Brasil uma Ditadura Militar que perseguiu muitos artistas e intelectuais, prendendo, torturando e mesmo assassinando inúmeros brasileiros que se opunham àquele regime de falta de liberdade e que havia imposto uma censura muito grande que atingia também diretamente a o meio artístico.


Incomunicação, Antonio Amaral,
xilogravura
Com isso, Antonio passou a incorporar em seu trabalho artístico a temática social, denunciando também a falta de liberdade em que vivia o povo brasileiro, sob uma censura rígida e muita perseguição política. Em 1967, ele lançou um álbum de xilogravuras coloridas intitulado “O Meu e o Seu”, com apresentação do poeta Ferreira Gullar (1930) que à época também era militante comunista e também foi perseguido pela ditadura militar. Nesse album, ele sintetiza a questão do autoritarismo político dos militares no poder.

Antonio Henrique Amaral começa a fazer uma série de pinturas com o tema das Bananas, entre 1968 e 1975, onde se vê claramente a metáfora da banana como crítica ao que estava acontecendo em nosso país. Um desses trabalhos apresenta uma banana cortada e envolta por um garfo, ambos amarrados por um grosso barbante. Nessa série de Bananas, o artista parece concentrar sua denúncia do momento político brasileiro sob o regime ditatorial militar: bananas apodrecidas, espetadas por garfos pesados parecem querer mostrar o que estava acontecendo nas prisões com a tortura cruel aos presos políticos.


Bananas, A. Amaral,
óleo sobre tela, 1970
A metáfora das bananas sempre foram usadas em diversos momentos da nossa história, desde a pintura “Tropical” de Anita Malfatti (1889-1964), passando pela “A Negra” de Tarsila do Amaral (1886-1973), e até “Bananal” de Lasar Segall (1891-1957). Na década de 1930 o compositor Braguinha explicitou na letra da música “Yes nós temos bananas”, de forma gaiata, a exploração das riquezas do Brasil por parte dos estrangeiros. Na década de 1940 Carmen Miranda balançava suas curvas nos Estados Unidos, criando a imagem caricata da latino-americana com seu chapéu excêntrico carregado de bananas e outras frutas. Ou seja, Antonio Henrique voltava à mesma metáfora para mostrar que o país da banana e do carnaval sofria com a ditadura militar.

Uma de suas pinturas mais explícitas é “A morte no sábado - homenagem a Vladimir Herzog”, na qual o artista denuncia o assassinato do jornalista da TV Cultura Vladimir Herzog nos porões da ditadura dos generais brasileiros.

Antonio Henrique Amaral vive e trabalha em São Paulo.

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Alguns exemplos da arte política do artista:


A Grande Mensagem, 1966, Amaral, xilogravura

Campo de batalha 22, óleo sobre tela, 1974
Campo de batalha 3, óleo sobre tela, Amaral, 1973
Os metais e as vísceras I, óleo sobre tela, Amaral, 1975 
"Eu decido", Antonio Amaral, xilogravura, 1968
"Sem saída", xilogravura, 1967

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Desenhos e gravuras do Renascimento alemão

Rinoceronte, Albrecht Dürer, 1515, Xilogravura, 24,8 cm × 31,7 cm

O Museu de Arte de São Paulo está apresentando, desde o dia 19 de outubro, uma exposição com 61 obras-primas da gravura do Renascimento alemão. Essas obras fazem parte da coleção de 100 mil obras doadas ao Museu do Louvre em 1935, pela família do barão Edmond de Rothschild. A mostra fica até 13 de janeiro no 2º andar do MASP.

O Renascimento alemão teve uma produção muito rica, uma das mais relevantes da arte europeia, mas “nem sempre reverenciada em grandes mostras”, diz o texto de apresentação da exposição do Masp.

Lucas Cranach, o velho,
Retrato de um jovem aristocrata,
acervo do Masp
Mas duas obras que pertencem ao acervo do Museu também foram integrados à mostra: as pinturas de Hans Holbein “O Poeta Henry Howard, Conde de Surrey” (1542) e, de Lucas Cranach, o “Retrato de Jovem Aristocrata” (1539).

O texto do portal do Masp também diz que, para o Diretor-Presidente do Louvre, Henri Loyrette, “essa célebre coleção reúne peças únicas, sem as quais nosso conhecimento da gravura alemã continuaria incompleto”.  O barão de Rothschild era um colecionador de obras de arte. Rapidamente absorveu o espírito do Renascimento e “reuniu as mais belas peças da gravura alemã dos séculos XV e XVI que a curiosidade intelectual, o estudo erudito e, algumas vezes, a sorte ofereceram para seu excepcional gosto pelo Belo”, completa Loyrette.

O Renascimento foi um movimento artístico e intelectual dos séculos XV e XVI, numa fase em que o capitalismo mercantilista se expandia pelo mundo e as cidades cresciam. Os valores da Idade Média iam sendo abandonados em favor de um maior foco no humanismo, que fez com que muitos artistas deixasse de pintar ao gosto da Igreja para se tornarem mais independentes, usando como tema ou a mitologia greco-romana ou cenas do cotidiano, pessoas comuns, a natureza.

A Itália, considerada o berço do Renascimento, tinha uma economia próspera e era uma região de muita efervescência cultural. Muitos mecenas patrocinavam a arte e para lá migraram muitos artistas, de diversas partes da Europa, para ter contato com a arte italiana e aprender com seus mestres.

Albrecht Dürer aos 13 anos,
autorretrato com ponta de prata
Um desses grandes artistas que se dirigu para a Itália foi Albrecht Dürer, que nasceu em Nuremberg em 1471. Dürer representava muito bem o espírito do Renascimento, pois ele era, além de pintor, gravador, ilustrador, desenhista, matemático e teórico da arte alemã. Mas seus interesses também abrangiam a Arquitetura, a Geografia e a Geometria. Ele influenciou muitos artistas do século XVI tanto na Alemanha quanto nos Países Baixos. Era um trabalhador árduo na sua arte e se especializou também nas artes gráficas, fazendo muitas xilogravuras, consideradas inovadoras. Ele também foi um dos primeiros mestres da aquarela, especialmente representando paisagens.

Foi nomeado pintor da corte pelo imperador Maximiliano I, em 1512. Dürer viajou também pelas Países Baixos, além da Itália, conhecendo muitos pintores e pessoas ligadas às letras. Em seus últimos anos de vida, em Nuremberg, fez diversos estudos sobre medida e proporção da figura humana, assim como perspectiva e geometria.

Santo Estáquio, de Albrecht Dürer
Teixeira Coelho, curador do MASP, diz que Dürer “foi o maior nome da gravura em todos os tempos até a chegada de Rembrandt, e foi a gravura que firmou seu nome internacional ainda em sua própria época. [...]Dürer, porém, não se limitou a levar a Renascença para o Norte (da Europa): de igual modo, trouxe o germanismo para o Sul, sobretudo com sua contribuição em favor da melhor reputação da gravura. Seu grande aporte, por arbitrário que seja destacar um dentre vários, foi a originalidade da invenção, algo que se poderá verificar nesta exposição, de modo central embora não exclusivo, nas peças Santo Eustáquio, A trindade e o popular Rinoceronte, três de suas muitas obras-primas”.

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Serviço:

Desenhos e gravuras do Renascimento Alemão na
Coleção Barão Edmond Rothschild - Museu do Louvre
De 19 de outubro de 2012 a 13 de janeiro de 2013
MASP - Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand
Av. Paulista, 1578
Horários: De 3ªs a domingos e feriados, das 10h às 18h. Às 5ªs: das 10h às 20h.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

A noite escura da alma de Oswaldo Goeldi


 O Museu de Arte Moderna de São Paulo, localizado no Parque do Ibirapuera, está apresentando a exposição “Oswaldo Goeldi: sombria luz”, trazendo a maior retrospectiva da obra do artista do Rio de Janeiro. São cerca de 200 trabalhos que vão dos anos 1920 até sua morte em 1961.


Na tarde gelada deste último domingo, fui ver a exposição. Queria ver de perto as gravuras desse homem melancólico, solitário, que criava suas gravuras numa temática que ia na contramão dos modernistas brasileiros, seus contemporâneos, mais luminosos e coloridos. Oswaldo Goeldi mostra uma cidade do Rio de Janeiro noturna, deserta, habitada por figuras sombrias, sempre solitárias, e por gatos, cachorros, pássaros agourentos.

Na noite escura da alma de Goeldi, ele só escavava suas madeiras baseado em traços, poucos, que fossem suficientes para mostrar ruas e casas iluminadas por postes de luz fraca, ou pelo céu cuja fosforescência partia de baixo para cima. Algumas de suas xilogravuras são, mesmo assim, luminosas. A luz parece explodir de um ponto qualquer, mas todo o resto está imerso na mais profunda escuridão.
São pequenas as xilogravuras de Goeldi. Alguns dos traços de sua goiva são muito tênues, finíssimos, mas que dão a configuração necessária ao que ele quer mostrar, seja um rosto triste contra a luz de um poste, seja um pequeno gato preto deitado num muro. Ele é econômico nos traços: nada de linhas desnecessárias, o observador que complete a imagem em sua mente. Há seres solitários lá, bichos abandonados assim como as pessoas caminhando sozinhas por ruas escuras, observadas por gatos, urubus, cães.
Autorretrato
Depois de uma hora observando de perto o trabalho deste artista, uma certa melancolia acaba nos invadindo também. E acabamos nos questionando: por que ele era tão triste, tão solitário? Que caracterizava sua personalidade? Que experiências de vida ele viveu? Por que sua cidade nada tem de luminosa? Cadê o sol em sua vida?
Oswaldo Goeldi pode ser caracterizado como um artista expressionista, movimento artístico que teve lugar especialmente na Alemanha, no começo do século XX. O Expressionismo foi uma espécie de projeção da subjetividade, baseada numa reação emocional. Os sentimentos angustiados do artista expressam um real deformado, que ele mostra de forma intensa em sua arte. A visão é pessimista, o mundo ameaçador.

Paulo Venancio Filho, especialista na obra de Goeldi e curador da exposição diz, no livreto que fundamenta a mostra, que a proximidade do artista gravador com o expressionismo “é inequívoca, artística e existencial”. Goeldi trazia à tona um lado obscuro do Brasil, um país de tantos contrastes, principalmente sociais. Nada há nele que mostre a face conhecida de um Brasil ensolarado, luminoso, mas – acrescenta Venancio – Goeldi “com os recursos limitados da xilogravura e do desenho a lápis ou carvão, mostrou que sob a luz solar havia um mundo em desassossego e desajuste”.
Oswaldo Goeldi trabalhava sozinho em seu ateliê que era em seu próprio quarto. Morou muitos anos, os últimos de sua vida, na casa de uma casal de amigos, situada no Leblon, na época um bairro simples do Rio. Segundo sua sobrinha-neta, Lani Goeldi, ele se sentiu atraído pelo expressionismo desde que conheceu a obra de Vang Gogh (1853-1890) e Edvard Munch (1863-1944). “Foi dentro dessa linha que ele construiu seu trabalho”, diz ela.
Oswaldo Goeldi em seu ateliê
Mas ele se identificou principalmente com a obra de Alfred Kubin (1877-1959), de quem se tornou amigo. Kubin foi um escritor, desenhista, gravador e ilustrador austríaco. Seus traços também são expressionistas.
Otto Maria Carpeaux (1900-1979), jornalista, ensaísta e crítico literário brasileiro (austríaco de nascimento), disse de Oswaldo Goeldi:
“A arte de Goeldi sempre me lembrou um recurso raro da dramaturgia: o monólogo, que é, por definição, uma arte silenciosa. As figuras, nas suas sombras, parecem cercadas pelo silêncio e pela solidão; esses homens irremediavelmente perdidos e esses bichos abandonados em meio a paisagens suburbanas em decadência. Quando muito, seus pescadores à beira-mar chegam a ver, na hora da madrugada, um sol terrível que se levanta vermelho no horizonte. O resto é noite. Temos que penetrar no sentido dessa escuridão que assombra o mundo de Goeldi”.

Biografia
Oswaldo Goeldi nasceu em 1895 no Rio de Janeiro. Seu pai era o naturalista suíço Emílio Goeldi. Logo após o nascimento do menino, seus pais se mudaram para Belém do Pará, onde Emílio Goeldi foi fazer pesquisa em Zoologia e Botânica. Com seis anos de idade, Oswaldo foi estudar na Suiça. Mas cedo abandonou os estudos politécnicos para ingressar na Escola de Artes e Ofícios de Zurique. Também não concluiu sua formação lá. Continuou estudando sozinho e fez sua primeira exposição individual na cidade suíça de Berna, onde conheceu o trabalho de Alfred Kubin, com quem se corresponderá durante décadas.
Goeldi volta para o Brasil em 1919. A I Guerra Mundial havia acabado, mas a Europa ainda sofria as consequências, inclusive psicológicas, dos horrores causados pela guerra. Aqui no Brasil, ele vai trabalhar como ilustrador de livros e periódicos. Em 1930 lança seu álbum “Dez gravuras em madeira”, com prefácio de Manuel Bandeira. Participou da Bienal de São Paulo e de Veneza, ganhou prêmios e projeção nacional e internacional. Foi também professor da Escola Nacional de Belas Artes.

Lani Goeldi diz que ele vivia “à margem das convenções sociais e familiares. Nunca dividiu suas preocupações, nem seus anseios, nem com os poucos amigos que tinha”. Nunca se casou, não teve filhos.
Morreu no dia 16 de fevereiro de 1961, no Rio.
O poeta pernambucano Manuel Bandeira (1886-1968) assim falou do amigo:
“A imaginação de Oswaldo Goeldi tem a brutalidade sinistra das misérias das grandes capitais, a soledade das casas de cômodos onde se morre sem assistência, o imenso ermo das ruas pela noite morta e dos cais pedrentos batidos pela violência de sóis explosivos – arte de panteísmo grotesco, em que as coisas elementares, um lampião de rua, um poste, a rede telefônica, uma bica de jardim, entram a assumir de súbito uma personalidade monstruosa e aterradora”.

É assim a gravura do artista brasileiro Oswaldo Goeldi: mostra um mundo que ninguém quer ver, mas que está lá atrás das sombras, tão Real quanto o outro.


segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Edíria Carneiro: arte e vida se entrelaçam

Numa tarde de sábado, há alguns meses, passei algumas horas muito agradáveis na companhia de uma artista plástica de longa e impressionante história: Edíria Carneiro. Esse encontro aconteceu em sua casa, no bairro da Bela Vista, em São Paulo. Ela, pessoalmente, abriu-me a porta do apartamento onde mora, com um sorriso muito simpático no rosto e um abraço apertado. Finalmente eu estava diante desta artista que carrega uma experiência de vida das mais ricas!

Para aquecer a conversa, fomos vendo juntas uma série de fotografias tiradas por ocasião de uma visita recente de Edíria à Escola Florestan Fernandes, do MST. Lá, ela havia recebido uma homenagem por sua doação à Escola do MST de seis telas a óleo, pintadas por ela. Ao final,  foi me contando sobre sua riquíssima experiência de vida como artista, como comunista, como mãe e como esposa de João Amazonas, antigo dirigente do PCdoB.

Primeiras pinceladas


Edíria Carneiro nasceu em Salvador, Bahia. Desde cedo se interessou pelas artes plásticas, indo estudar na Escola de Belas Artes de Salvador. “Lá tínhamos aula de desenho com modelo vivo e tudo", diz ela. "E eu precisava esconder meus desenhos de modelos nus, para minha mãe não ver”, conta, sorrindo. “Imagina o que era isso na década de 30...”

Um de seus lugares de exercício de desenho era na porta do Convento São Francisco, onde os pobres se enfileiravam para receber uma sopa. “A pobreza sempre foi uma coisa que me tocou”, complementa. Em seguida, encaminhou-se para o campo da ilustração e fez desenhos para a revista baiana “Seiva”, um instrumento de luta política e cultural e de resistência ao fascismo, que, naquela época, já estava em ascensão. Na sequência, filiou-se ao PCdoB.

Em 1945, a UNE organizou um Congresso no Rio de Janeiro, do qual Edíria participou. Disse ela que, quando chegou ao Rio e viu toda aquela movimentação política, social e artística da capital federal, pensou e decidiu: “Eu não vou mais voltar para a Bahia”. Lá na sua terra era muito mais difícil, para ela, ser militante do Partido Comunista. “Ir às reuniões do Partido à noite? Minha família não ia deixar...” Ainda havia muito preconceito contra a participação de mulheres tanto na política quanto nas artes.


Decidida a ficar morando no Rio, Edíria se instalou no bairro de Ipanema. Como o Partido estava precisando de uma desenhista, Edíria foi trabalhar como ilustradora do Jornal "A Classe Operária". “Naqueles tempos, observa ela, os jornais não possuíam, como hoje, fotógrafos à disposição. Então o papel dos ilustradores era muito importante”.

Ela lembra que a "A Classe Operária" ainda não estava com todo o corpo de redação completo e não tinha uma sede própria, funcionando na sede do Comitê Nacional, na Lapa, onde ela conheceu seu futuro companheiro João Amazonas. Ele já era um dos dirigentes do Partido, atuando na área sindical. “Aí começou aquele namorico”, diz Edíria entre sorrisos.

Além da “A Classe Operária”, ela também atuava no “Momento Feminino”, um jornal editado por mulheres, cuja diretora era Arcelina Mochel, uma advogada maranhense, cuja família possuía muitos membros atuando como militantes comunistas. Heloísa Ramos - esposa do escritor Graciliano Ramos, também filiado ao PCdoB – também atuava nesse jornal. Então, assim era Edíria, a ilustradora de jornais que também desenhava panfletos, material de propaganda, etc.

Em 1946, ela frequentou o curso livre de Artes Gráficas da Fundação Getúlio Vargas, onde aprendeu a técnica de xilogravura com Axl Leskochek, e de gravura em metal com Carlos Oswald. Nessa escola também estudou pintura com Tomás Santa Rosa.

Uma de suas muitas experiências com artes visuais foi o convite do Barão de Itararé para ela pintar suas faixas de campanha política. Ele era o dono, nessa época, de um jornal intitulado "A Manha". O Barão de Itararé era candidato a Vereador pelo PCdoB do Rio. “Eu fiz as faixas da campanha dele, porque ele queria que tivesse sua caricatura, e o pessoal que fazia faixas não sabia desenhar, só faziam letras. O Barão de Itararé (que era um humorista nato),queria faixas engraçadas e eu fiz. Eu fazia um bocado de faixas para o Partido, eu fazia de tudo”, diz ela mais uma vez sorrindo.

Nas atividades do PCdoB, Edíria “era pau para toda obra” no campo da ilustração e desenho gráfico. Além de manter seu trabalho como artista plástica. Foi convidada, então, para fazer a cenografia de uma Sinfonia de Dmitri Shostakovich, compositor soviético, que seria apresentada no Estádio das Laranjeiras, naquela época um grande estádio de futebol.

Era um verdadeiro desafio para a jovem artista, uma vez que seus painéis seriam o pano de fundo da sinfonia em três atos que seria assistida por uma plateia muito grande. Esse era um evento cultural organizado pelos comunistas e mostra, diz ela, o imenso prestígio que tinha o Partido Comunista naquele momento político, social e cultural brasileiro. "Qualquer atividade organizada pelo Partido era muito concorrida!", recorda Edíria.

"A sede Distrital do Partido no Rio, foi doada pelo arquiteto Oscar Niemeyer. Havia uma sala enorme, que eu usei para pintar os painéis”. Diante do desafio de um trabalho tão novo, ela foi
procurar o pintor Tomás Santa Rosa, que já era célebre naquele tempo. Ele era auxiliar de Cândido Portinari, também filiado ao Partido Comunista.

“Eu conhecia bem Santa Rosa e tinha liberdade de lhe pedir algumas dicas e conselhos, já que ele era cenógrafo, acostumado a pintar em tamanhos grandes. Foi ele o cenógrafo, inclusive, da peça “Véu de Noiva”, de Nelson Rodrigues. Ele era muito amigo nosso”.

Em seguida Edíria participou, com um trabalho seu, do Salão Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. Nesse Salão, ganhou uma medalha de bronze, mas nunca pode ir recebê-la porque, em seguida, o Partido caiu na ilegalidade e os deputados comunistas foram cassados. “Nem minha pintura eu pude ir buscar”, completa ela, sempre com o mesmo sorriso, os olhinhos brilhantes e o ânimo tão característico dela.


As cores densas da clandestinidade


Após a decretação da ilegalidade do Partido Comunista do Brasil e a cassação do mandato de deputado de João Amazonas, eles entraram na vida de clandestinidade. Mudaram-se do Rio para São Paulo, onde viveram por uns dois anos, trocando de casa frequentemente para não chamar a atenção.

Nesse período, Edíria só fez uma única ilustração, para um texto do Partido sobre mulheres, que não continha sua assinatura, por motivos de segurança. Ela pouco podia conviver socialmente, e não foi a nenhuma exposição de arte enquanto esteve em São Paulo, diferentemente de sua vida anterior no Rio de Janeiro onde conhecia muita gente dos meios político e artístico.

Após dois anos, voltaram ao Rio, pois João Amazonas tinha novas tarefas lá. A mesma vida difícil da clandestinidade continuava, no entanto. “A gente alugava uma casinha, lembra ela, depois, quando ficava algum tempo naquela casa, mudava para outra, para não ficar conhecido”. Ela disse que desenhava, quando podia, sobre qualquer tipo de papel, mas sem nada poder guardar e levar consigo.

Algum tempo depois, ficou grávida da primeira filha. Próximo ao momento do parto, estourou uma greve importante de operários em São Paulo, para onde seu marido, João Amazonas, foi enviado.

“Foi uma história complicada – conta Edíria entre risos. Me lembro que fui para a Casa de Saúde... Nós morávamos no subúrbio do Rio. Eu fui para o hospital, tive minha filha e na hora de sair eu simplesmente não tinha dinheiro para pagar o hospital.” Edíria, com o bom humor de sempre, completa: “Aí eu fiquei no hospital fingindo que estava doente, até que finalmente lembrei de uma amiga, a mulher do Diógenes Arruda, também dirigente do partido. Ela trabalhava na biblioteca da Câmara Municipal. Mandei um recado para ela ir até o hospital, e lhe contei a história. Ela conseguiu o dinheiro que eu precisava, paguei o hospital e fui para casa.”

O mesmo se passou com o nascimento dos outros dois filhos do casal. Seu companheiro sempre estava viajando em alguma tarefa do Partido. “Nossa vida foi assim, sempre tumultuada. Nunca foi uma vida linear...”, diz ela.

Em 1959, Edíria e João mudaram-se para o Rio Grande do Sul, onde puderam ter uma vida um pouco mais dentro da normalidade. “Em Porto Alegre, eu voltei a frequentar exposições e fui procurar fazer um curso de artes plásticas.” Tornou-se aluna do pintor Iberê Camargo, com quem fez um curso de pintura, que era patrocinado pela Prefeitura de Porto Alegre. Além disso, frequentava teatros, ia a concertos, a exposições. Lá viveram de dois a três anos.

Mas nessa época, as divergências dentro do Partido Comunista tinham chegado a uma situação difícil, até que houve o rompimento: João Amazonas seguiu com o PCdoB e Prestes, por outro caminho, à frente do PCB. Mais uma vez, Edíria e João tiveram que mudar de cidade.

Retornaram ao Rio de Janeiro, sem dinheiro, sem lugar para morar. Ela então escreveu uma carta a seu pai, que era Juiz de Direito e morava na Bahia, pedindo ajuda. Ele enviou o dinheiro e ela e os filhos passaram alguns meses com seus pais. João permaneceu no Rio providenciando uma situação melhor.

Já estavam em São Paulo, quando a Ditadura Militar lançou seu manto trágico sobre o Brasil. Em 1968, o PCdoB começou a organizar a Guerrilha do Araguaia, como ato de resistência à ditadura, e João Amazonas seguiu para a região, deixando a família em São Paulo. Um certo dia, Edíria recebe um recado de que deveria encontrar-se com João. “Ele me disse que ia fazer uma viagem à China e combinou de nos encontrarmos em Paris, uns meses depois.” Nessa época, os filhos já estavam todos adultos.

A ideia era que Amazonas voltasse ao Brasil. Mas em 1976 aconteceu o episódio da Queda da Lapa, uma reunião do Comitê Central do PCdoB que foi estourada pelo Exército, onde foram assassinados os dirigentes comunistas Ângelo Arroyo e Pedro Pomar, além dos outros que foram presos e selvagemente torturados.

“Com isso – disse Edíria – o João não podia voltar! Ele acabou ficando em Paris, com documentação de português. Era Monsieur Pereira”, diz ela, sorridente. E completa: “Cheguei lá e vi que ele estava muito doente! Então lhe disse que eu não voltava para o Brasil, que não ia deixar ele doente lá!” O casal se instalou, então, na capital francesa, aonde viveram exilados por quatro anos, voltando ao Brasil depois da decretação da Anistia, em 1980.


Uma artista no estrangeiro

Em Paris, Edíria voltou aos cursos de artes plásticas. Esteve com Friedlaender, um gravador muito conhecido e já muito velhinho. Ele perguntou por Lívio Abramo, que foi seu aluno. Segundo Edíria, ele não queria mais ter alunos e indicou o “Atelier 17” de Stanley William Hayter, de nacionalidade inglesa.

Por ocasião da II Guerra Mundial, Hayter, como Edíria o chama, mudou-se para os EUA. Lá deu aulas de gravura, tendo como um de seus alunos o pintor expressionista abstrato norte-americano Jackson Pollock, que também trabalhou no atelier do artista. Passaram pelo “Atelier 17” de Stanley W. Hayter muitos artistas famosos, como Miró, Picasso, Vieira da Silva, Giacometti...


Neste ponto da conversa, Edíria me convida a ir conhecer seu atelier, do outro lado da rua “no porão da casa da minha filha”. Fomos. Ela se apoiando no meu braço direito, para caminhar com mais apoio, enquanto atravessávamos a rua. Nossa primeira parada foi na sala, onde ela me mostrou pinturas e gravuras penduradas na parede. Ia mostrando, enquanto me explicava a técnica que havia aprendido com o gravador Hayter.

“Ele era químico, explica ela, e por isso ele criou e desenvolveu uma técnica de gravura que permite obter várias cores com uma única impressão”. Foi com essa técnica aprendida com Hayter que Edíria realizou muitas de suas gravuras. A tinta deve ter níveis de viscosidade diferentes, uns mais líquidos, outros mais viscosos. O resultado é que essa mistura entre tintas de viscosidades diferentes cria um efeito de repulsão entre elas que permite um bom acabamento em várias cores, com uma única passada pela prensa. Edíria, provavelmente, é a única gravadora brasileira atualmente que passou pelo Atelier 17, de Hayter.

Mas não foi fácil ser aluna de professor tão concorrido. Edíria foi procurá-lo em seu atelier e ouviu como resposta: “Eu não aceito mais nenhum aluno”. Ela interrompe a história e fala, como se precisasse argumentar com ele: “mas eu tinha que estudar com algum gravador!”

Como a primeira resposta foi negativa, Edíria começou a frequentar um outro atelier, menos importante, o de Joeles Serve, em uma rua que, segundo ela lembra, possuía “um bocado de ateliers”. Mas todos os dias, voltava ao Hayter, sempre com a mesma pergunta: já tem um lugar pra mim? Até que finalmente a chance apareceu, “para minha sorte”.

Hayer não gostava da idéia do artista solitário, separado da sociedade. No Atelier 17, artistas de várias partes do Mundo, de tendências e personalidades muito diversas, trabalhavam juntos e trocavam suas experiências e vivências. A personalidade forte e marcante de Hayter determinava um grande respeito pelo trabalho de cada um, não havendo lugar para críticas depreciativas ou desrespeito às exigências naturais do bom funcionamento de um atelier coletivo.

Ele dava grande importância à poética do traço. Instintivo que ele fosse, seria um ato de criação. Periodicamente Hayter fazia os alunos praticarem exercícios de desenho automático (com os olhos fechados) e todos aprendiam o manejo dos buris. Havia alunos de tendências diversas – abstratos e figurativos. Cada um respeitava o trabalho do outro. O próprio Hayter nunca criticava o trabalho de um aluno por seguir esta ou aquela tendência. E nenhum aluno tinha o direito de criticar o trabalho de um colega.

Ediria mostrou-me várias gravuras que fez com a técnica de Hayter. Numa delas, um casal ao centro, em meio a manchas disformes. Ela aponta e ri, dizendo: “Este quadro eu pus o nome de “Encontro”, porque este casal representa nós dois, maltratados, machucados”...

Perguntei-lhe sobre a vida em Paris: “Naquela época eu, como estrangeira, tinha que me apresentar a cada três meses ao serviço de imigração. Eu era a única brasileira. E Hayter, então, me dava um atestado de que eu era sua aluna. Eu levava esse papel na imigração e eles renovavam meu visto por mais alguns meses”.

Além dela, muitos outros artistas estrangeiros estudavam lá. “A vida cultural era fervilhante, lembra ela. Em Paris havia muito atelier, seja de gravura, seja de pintura. Tinham vários onde se davam sessões com modelo vivo. Qualquer um podia ir lá fazer seus desenhos e pinturas, pagando ao final da sessão”.

O atelier atual de Edíria está bem instalado e equipado, com três prensas para impressão de gravura, incluindo uma prensa elétrica. Ao fundo, uma mapoteca, onde ela guarda dezenas de cópias de gravuras, que nós duas fomos tirando uma a uma, enquanto ela ia contando suas histórias. Num armário, potes e potes de tinta, assim como pincéis, bisnagas de tinta a óleo, buris, todo o material de trabalho do artista.

“Tudo isso eu trouxe de Paris, inclusive esse rolo imenso que foi transportado de navio para cá. Fiz questão de trazer todo o meu material de trabalho, quando nós voltamos ao Brasil”, complementa Edíria.
De volta ao Brasil em 1980, tendo sido anistiada junto com seu marido, Edíria Carneiro trouxe consigo toda a experiência adquirida nesses quatro anos na França, convivendo com artistas de várias partes do mundo. Experiência que se somou a toda a sua trajetória de artista plástica, desde os primeiros anos de jovem estudante da Escola de Belas Artes da Bahia.

Entre suas experiências nas artes plásticas, convém destacar:


No Brasil:
Fez parte do Núcleo de Gravadores de São Paulo desde sua fundação (década de 60); II Bienal de Artes Plásticas de Salvador, Bahia; Bienal de Artes de Santos, São Paulo (década de 70); X e XI Bienais Internacionais de São Paulo (1969 e 1971); Salão Paulista de Arte Moderna (de 1963 a 1968); Salão Paulista de Arte Contemporânea (1969 a 1974); exposição no Memorial da América Latina, em São Paulo (2005); Câmara Federal de Brasília (2006); exposição individual ”Folclore Brasileiro”, Campos do Jordão, São Paulo (2006).


No exterior:
Expôs na Associação Brasil-Estados Unidos, em Washington, EUA (1961); no Salon d'Automne, em Paris, França ( de 1977 a 1981); Musée des Beaux Arts de Caen, França (1981); Salon des Artistes Françaises, em Paris ( de 1977 a 1981); Salon Internacional del Grabado, em Madri, Espanha ( de 1977 a 1981); Feira Internacional de Arte de Paris (1986); exposição no Museu de Arte Colonial a convite do Centro Wilfredo Lam, em Havana, Cuba (1991); Bienal de Gravura de Taiwan, China (1991); Mostra Internacional de Minigrabados em Madri, Espanha ( de 1994 a 1998).


Edíria tem obras nos acervos dos museus: Museu de Arte Moderna de São Paulo; Museu de Arte Moderna de Skoplje, Macedônia, antiga Iugoslávia; Museu del Grabado de Buenos Aires, Argentina; e no Cabinet d'Estampes de la Bibliothèque National de Paris, França e na Prefeitura de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. - É verbete no Dicionário das Artes Plásticas no Brasil (Roberto Pontual), no Dicionário de Artistas Plásticos – Instituto Nacional do Livro (MEC) e na Grande Enciclopédia Delta Larrouse (Edição Brasileira ano 1970).

Incansável, apesar da idade, Edíria ainda pinta telas a óleo. Ela é a representante, ainda viva, de um momento riquíssimo da história das artes plásticas brasileiras, pós-Semana de 1922, crescendo em meio ao movimento modernista, no qual se destacaram muitas mulheres pintoras, do porte de Anita Malfatti e Tarsila do Amaral. Assim é Edíria Carneiro Amazonas.



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NOTA DO BLOG:

A artista Edíria Carneiro faleceu em dezembro de 2011.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

São Paulo sem Macunaíma?

Uma herança maldita deixada pela campanha eleitoral pessedebista: as forças obscuras que antes pareciam desmanteladas, ressurgiram de uma forma assustadora durante a campanha para a presidência da República, espalhando ódio e preconceito. Passada a eleição, eleita a Presidenta Dilma Rousseff, a velha elite paulista, retrógrada e conservadora, agora mostra os dentes tintos da mais repugnante xenofobia. Para isso usa, como emissários, seus filhotes internautas.

Grande Otelo interpretando o personagem Macunaíma
Macunaíma, romance do paulista Mário de Andrade, nasceu junto com o movimento modernista brasileiro, na esteira da famosa Semana de Arte Moderna de 1922 e do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade. Eram tempos de descoberta de novos paradigmas trazidos pela modernidade e, como conseqüência, eram tempos de descobrir o Brasil, de conhecer o povo, a cultura e a língua brasileira. Do estrangeiro, propunha Oswald, abocanhemos o que trouxerem de bom, como bons antropófagos que somos.

Mas o Macunaima de Mário de Andrade, publicado em 1928, é a síntese do povo brasileiro. Nessa história, Mário revoluciona a escrita literária, trazendo palavras e expressões tiradas diretamente da fala do povo que ele pesquisou de norte a sul. Em Macunaíma, Mário reúne as várias regiões do Brasil, e também une, num só personagem, as três raças brasileiras: negro, índio e branco. Macunaíma nasceu no meio da floresta amazônica, “preto retinto, filho do medo da noite”.

O herói sem nenhum caráter, como diz o subtítulo do livro, vem para São Paulo atrás de sua pedra (um talismã conhecido da cultura indígena), sua Muiraquitã, que foi roubada pelo gigante comedor de gente Venceslau Pietro Pietra que morava aonde? “No fim da Rua Maranhão olhando para a Noruega do Pacaembu”, ou melhor, em Higienópolis, mesma rua, mesmo bairro de um certo FHC pessedebista. Coincidência?

Como o gigante-ladrão morava em São Paulo, “cidade macota do igarapé Tietê”, Macunaíma e seus irmãos descem o rio Araguaia e vão para a metrópole na tentativa de recuperar sua Muiraquitã. A maior parte do romance se passa em São Paulo, onde acontecem diversos embates entre Macunaíma e Venceslau Pietro Pietra. O autor, nessas refregas entre os dois, satiriza alguns aspectos da vida paulistana provinciana. Ao final, Macunaíma mata o gigante e recupera seu amuleto, partindo de volta para o Uraricoera, seu lugar de origem. O defunto Venceslau é um dos únicos do romance que não se transforma numa estrela cadente no céu...

Macunaíma é a síntese do que é ser brasileiro, essa mistura de raças, essa heterogeneidade cultural que é nossa riqueza. É o negro, o índio e o branco convivendo em paz e gerando essa linda gente bronzeada e plena de valor, lembrando o samba de Assis Valente.

Pois bem. Macunaíma – o povo brasileiro – também mora em São Paulo. Mas há uma certa categoria de gente que também mora em São Paulo que não suporta o diferente, que prefere a monotonia da monocromia cultural e racial. Essa gente não suporta sentar-se ao lado de Macunaíma em seus restaurantes e em suas viagens aéreas. Eles querem que Macunaíma volte definitivamente para o Uraricoera, lá no fim do mundo, onde vivem outros macunaímas pobres, mulatos, injustiçados pelo sistema durante séculos, que não lhes tem dado direitos básicos fundamentais.

Só que a elite de Venceslau Pietro Pietra, o gigante comedor de gente e ladrão do que há de mais essencial na cultura brasileira, essa gente que mora nos Jardins e em Higienópolis não consegue admitir que um Macunaíma-Lula-Operário tenha sido por oito anos Presidente de todos os Macunaímas do Brasil! E até da elite! Elite essa muito mal-agradecida que ganhou ainda mais dinheiro nesses últimos oito anos! Esse gigante-anão, que é essa minoria de paulistas com um olho sempre voltado para 1932, também não admite que uma cunhã (mulher, na língua de Macunaíma) tenha sido eleita para ser a Presidenta de todas as cunhãs brasileiras, pobres e ricas, e de todos os Macunaímas e Venceslau Pietros Pietras do Brasil! Sim, porque Dilma Rousseff disse que vai governar para TODOS os brasileiros!

E querem – eles, essa minoria de retrógrados – expulsar Macunaíma de São Paulo!

Esta semana, pós-eleição de Dilma, os filhotes dessa elite vomitaram em seus twits e posts seu ódio de classe e sua repugnante xenofobia: querem que os nordestinos saiam de São Paulo, querem São Paulo higienizada (né, Higienópolis?) de todos os “forasteiros”. Só que forasteiros são exatamente eles! Essa gente que odeia nordestinos, é ela que está fora de lugar, porque aqui em São Paulo, a imensa maioria dos paulistas são, como todos, brasileiros acolhedores, solidários, fraternos. São pessoas de todas as origens, cores, sotaques, culturas. São Macunaíma, a síntese da nossa cultura, a nossa heterogeneidade, a nossa riqueza!

Mas a mente mesquinha dessa gente medíocre que quer São Paulo para si, não faz ideia do que seria esta imensa cidade sem a mistura encantadora dos mil sotaques que se ouvem nas avenidas. São Paulo, a imensa realidade que cai sobre cada migrante que aqui chega, parece amedrontar quando se mostra do “avesso do avesso do avesso do avesso”.

Mas é aqui que se esconde a Muiraquitã de todos os Macunaímas, brasileiros ou estrangeiros. Nesta Babel de línguas e culturas, São Paulo é mais luz, é mais cor, é mais vida. Sem os nordestinos, as tonalidades de cinza dos céus deste lugar pesariam ainda mais sobre a alma dos que aqui habitam. Tudo seria mais triste sem o canto, a dança, a poesia, o trejeito, o molejo, a fala mansa, o coração quente, o trabalho e o abraço imenso do povo do nordeste que por aqui se aventura e que só deixou seu “cariri no último pau de arara”!

Para as gralhas xenófobas que estrilam seus gritos de morte, faço um convite nordestino:

“Batucada, reuni vossos valores
Pastorinhas e cantores
Expressão que não tem par, ó meu Brasil!
Esquentai vossos pandeiros,
Iluminai os terreiros que nós queremos sambar!”

Xilogravura de J. Borges