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quarta-feira, 16 de julho de 2014

Pobre Anteu!

"A terra, ou o combate de Hércules e Anteu", pintura decorativa do teto de uma das salas
do Museu do Louvre em Paris, de Auguste Couder (1790-1873)
 Estou quase concluindo a leitura de um livro do poeta francês Paul Valéry, intitulado “Degas danse dessin” (Degas dança desenho), publicado em 1938 em Paris. Valéry escreve sobre seu amigo o pintor Edgar Degas, o célebre pintor das bailarinas. De tão importante, farei um próximo post sobre este livro aqui neste Blog, pois Degas é um dos grandes mestres franceses, pela vida e pela obra.

Mas antes vou falar de Anteu, porque Anteu me tocou, ao ler o que dele falou Paul Valéry. 


Vaso grego antigo, representando
a luta dos dois gigantes
Dá para falar deste gigante da mitologia grega sob diversas formas e vou me focar na que mais me toca: ele não podia ser separado de sua mãe, a Terra; precisava ter seus pés todo o tempo tocando o chão, sob pena de morrer.

Na lenda grega Anteu era filho de Poseidon (o Oceano) e de Gaia (a Terra). Ele habitava os desertos da Líbia, em uma caverna em cima de um monte, na região de Irasa, próximo ao Estreito de Gibraltar. Anteu havia prometido a seu pai, Poseidon, construir em sua honra um templo feito com todos os crânios dos humanos que atravessassem suas terras. Qualquer um que se aproximasse dele era vencido, pois Anteu possuía uma enorme força. Em suas lutas, cada vez que seu corpo era lançado contra a terra ele se levantava ainda mais firme, porque a Terra lhe restituía as forças.


Hércules e Anteu, gravura de
Gabriel Salmon (1485-1535), de 1528
Um belo dia surge em sua frente um outro gigante, Hércules. Na luta entre os dois, Anteu caiu três vezes por terra, mas isso só lhe fazia ainda mais forte. Hércules percebeu que quando Anteu caía, recuperava o vigor. O gigante, então, segurou Anteu pela cintura elevando-o para que não tocasse mais a terra. Com isso, Hércules manteve Anteu erguido no alto até que ele parasse de respirar. E ele morreu sem seu chão… Depois Hércules tomou para si a esposa do gigante morto.

Anteu foi sepultado na cidade de Tingis, que havia fundado, embaixo de um monte de terra. Conta a lenda que cada vez que se retirava alguma porção de terra da cova de Anteu logo começava a chover sem parar até que o buraco fosse fechado.

Essa lenda inspirou artistas ao longo da história, desde a antiga Grécia onde a luta entre os dois gigantes decoravam vasos e taças; na Idade Média, muitos desenhos foram feitos inspirados nessa fábula. E no século XVII o pintor espanhol Francisco de Zurbarán pintou um grande quadro intitulado “Hércules lutando com Anteu”.


"Hércules e Anteu", pintura
de Gregorio di Ferrari (1647-1726)
Para minha interpretação pessoal, essa é a história de todos os que são separados de sua terra, de todos os migrantes, dos quais faço parte, pois fui levada embora de Caruaru quando tinha 12 anos. Sair da terra natal para nunca mais voltar é a história de milhões de pessoas pelo mundo e de brasileiros como eu; e como eu sentem que uma parte de nós ficou para trás, de forma irrecuperável, enquanto carregamos dentro de nossas almas essa eterna sensação de deslocamento, de não-pertencimento a lugar nenhum, a gente alguma. 

Algo dentro de nós nos torna melancólicos por causa dessa separação que não tem volta. Mesmo se voltamos à nossa terra, já não somos nós, já não é ela a mãe, que agora se juntou a outro marido, o tempo que passou, que na lenda é o gigante Hércules. Quantas e quantas poesias, cordéis e canções foram feitas pelos meus conterrâneos nordestinos com esse tema da separação da terra natal! Desde a canção cantada por Luiz Gonzaga que vaticina: “Quem sai da terra natal em outro canto não para!” até o “Lamento sertanejo” de Dominguinhos, cujo refrão é cruelmente o retrato do que sentimos nós, os exilados: “Sou como rês desgarrada nesta multidão, boiada caminhando a esmo…” E o grande Graciliano Ramos que expressou os sentimentos inexpressáveis de quem vai embora, em seu livro “Vidas Secas”. 

Não, ninguém que não tenha vivido esta experiência é capaz de compreender profundamente a fábula de Anteu! Exatamente no momento em que ele é erguido e segurado acima do chão, separado de sua terra, e vai aos poucos vendo sua vida se esvair nessa agonia imensa de querer voltar a se sentir com os pés firmes sobre o chão, e sem poder…. esse momento de agonia, retratado no rosto da pintura de Gregório di Ferrari acima, é a agonia que toma conta do coração da gente que foi embora para sempre de sua terra… Esse sentimento permanece lá num recanto qualquer de nosso ser, como uma agonia. Eu saí de Caruaru; Caruaru não saiu de mim… Voltar jamais seria uma solução, pois o corte irremediável já foi feito!

E o mito se renova...


"Hércules lutando com Anteu", Francisco de Zurbarán, 136 x 153 cm, 1634