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quinta-feira, 13 de julho de 2017

Os Itinerantes

Tempo de colheita, Grigoriy Myasoyedov, óleo sobre tela, 1887
Em 1863, um grupo de quatorze alunos decidiu deixar a Academia Imperial de Belas-Artes de São Petersburgo. Eles consideravam as regras da Academia restritivas e os professores conservadores. Também não concordavam com a separação rigorosa entre alunos com mais talento e os com menos, nem com a competição que era muito incentivada pela direção e professores. Eles defendiam que a arte deveria ser levada ao povo e deveria refletir a sociedade russa e não os padrões acadêmicos de então.

Retrato de Fyodor Dostoyevsky,
Vasily Perov, óleo sobre tela, 1872
Esses princípios da Academia ainda se regiam pelas convenções do academismo neoclássico, em grande parte inspirado pela arte italiana, assim como pela academia francesa. Para a Academia de São Petersburgo, além disso, a "grande pintura" era a histórica, gênero mais prestigiado, com temas geralmente retirados da Bíblia, da mitologia greco-romana e dos grandes eventos da história antiga. Somente se mantendo dentro destes limites é que os alunos podiam concorrer à medalha de ouro na competição anual, que dava direito a uma bolsa de estudos no exterior. Outros temas, como a paisagem e natureza-morta eram considerados menores e impróprios para o artista educado lá.

Por exemplo, dois artistas - Mikhail Shibanov e Nikolai Argunov - já haviam tentado pintar outras temáticas, como cenas com camponeses e as vilas do interior, mas encontraram a oposição de professores e da direção da Academia. Em 1840 outro artista, Pavel Fedotov, realizou estudos satíricos sobre a vida burguesa, obtendo mais sucesso que seus colegas e obrigando a Academia a fazer algumas concessões. Algumas obras nesse gênero foram premiadas, o que incentivou outros alunos a se dedicar a uma pintura do cotidiano, mas com avanços mínimos.

Mas em 1861, Vladimir Stasov levantou sua voz em defesa de mais liberdade na Academia. Ele era um influente crítico de arte e não apenas apoiou as inovações que começaram a surgir como criticou diretamente o conservadorismo dos acadêmicos. Também passou a defender que a pintura se voltasse para a realidade nacional e para temas populares.

Pintura de Ivan Kramskoi
Em 1863, veio a gota d’água que faltava para o rompimento definitivo com a Academia. Treze artistas foram selecionados para concorrer à medalha de ouro, conforme as regras do concurso. Anualmente, os jurados sempre determinavam qual seria o tema sobre o qual os artistas deveriam trabalhar. Naquele ano, diferentemente dos anteriores, os jurados resolveram deixar flexível a escolha do tema por parte dos estudantes, mas que levassem em conta seus próprios sentimentos. Vendo que os jurados alargavam seus critérios, os treze artistas solicitaram que fosse dada liberdade completa de escolha do tema. Pedido rejeitado, os jurados resolveram reagir de forma contrária e voltaram às regras antigas do concurso, com tema único, como sempre acontecera. O assunto escolhido foi: "A festa de Odin no Valhala". Revoltados, os pintores, liderados por Ivan Kramskoi, abandonaram a competição e a Academia, formando a Associação dos Artistas Livres.

Mas eles não estavam apenas se insubordinando. Sua rebeldia era também reflexo de suas convicções de que o artista deveria poder escolher seus assuntos de acordo com suas preferências e sua visão de mundo, sem ter de prestar contas disso a instâncias superiores.

Em 1870, esta organização - já ampliada com a presença de outros artistas - foi denominada “Sociedade de Exposições Itinerantes de Obras de Artistas Russos” (Peredvizhniki) - ou simplesmente “Os Itinerantes”. Eles queriam dar às pessoas das províncias a chance de seguir de perto as conquistas da arte russa e ensinar as pessoas a apreciar a arte. A sociedade manteve-se independente de apoio oficial, mas recebeu incentivos da parte de industriais, como Pavel Tretyakov, um grande colecionador de obras de arte, que incentivou exposições dos trabalhos desses artistas e deu-lhes importante suporte material.

Os objetivos do grupo eram: educar o povo possibilitando que entrasse em contato com a nova arte russa, formar um novo gosto e conceito de arte, e formar um novo mercado para essa arte nova.

É bom lembrar que, em Paris, Gustave Courbet se revoltou contra a Academia Francesa e inaugurou sua exposição individual intitulada "Realismo"; que Anders Zorn, pintor realista sueco, já causava admiração por onde passava; que Mariano Fortuny, na Espanha, já implementava os conceitos realistas em sua pintura; que Giovanni Boldini, na Itália, se juntara aos Macchiaioli e era um dos líderes deste grupo; que Adolph Menzel também rompera com as regras da academia alemã e se voltava ao realismo; que John Singer Sargent, um dos maiores gênios realistas do século XIX, já encantava e intrigava a todos com sua grande qualidade técnica... Que o Realismo abria espaços amplos para as vanguardas europeias do século XX... E que exercia grande influência sobre os artistas russos, em especial Courbet, Zorn e Fortuny...

As lavadeiras, Abram Archipow,
óleo sobre tela,1901
A primeira exposição pública de "Os Itinerantes" aconteceu em 1871 na própria Academia, com grande repercussão. Foi bem recebida até mesmo por críticos contrários, como Mikhail Saltykov-Shchedrin, sensibilizado com a ideia de que esta mostra deveria não só ser apresentada em São Petersburgo e Moscou mas também deveria percorrer outras cidades do interior. Foi a primeira vez que uma exposição de arte pode ser vista por um público mais amplo, pois até então a maioria das pessoas somente conheciam as novidades da pintura vendo reproduções em jornais, catálogos e gravuras. Esta exposição também foi um sucesso comercial; a própria família imperial adquiriu muitas obras. O colecionador Pavel Tretyakov, que já apoiava o grupo, adquiriu muitas obras.

“Os Itinerantes” foram influenciados pelas ideias de intelectuais como Vissarion Belinsky e Nikolai Chernyshevsky, críticos literários que defendiam idéias liberais. Belinsky dizia que a literatura e a arte deveriam ter responsabilidade social e moral. Como a maioria dos eslavófilos - movimento que defendia a tradição e a cultura russa - Chernyshevsky apoiou ardentemente a emancipação dos servos realizada em 1861. Na época, haviam 20 milhões de pessoas vivendo como servos. Para ele, a servidão, a censura da imprensa e a pena de morte eram influências ocidentais. Ele mesmo tinha sido censurado em seus escritos, por causa de seu ativismo político. Chernyshevsky era considerado um socialista utópico. Escreveu bastante sobre o papel da arte, o que influenciou os artistas Itinerantes.

“Os Itinerantes” retrataram aspectos multifacetados da vida social, muitas vezes criticando as injustiças. Pintavam  não apenas os temas da pobreza, mas também a beleza do estilo de vida do povo; não só seu sofrimento, mas também a força de seus personagens. “Os Itinerantes” condenavam o poder aristocrático e o governo autocrático em sua arte humanista. Retrataram os movimentos de emancipação, a vida social-urbana e, mais tarde, usaram a arte histórica para retratar as pessoas comuns. Tiveram seu apogeu entre 1870 e 1880.

Em seu período de formação (1870-1890), “Os Itinerantes” desenvolveram um ponto de vista amplo para suas pinturas, com imagens realistas, mais naturais. Em contraste com a paleta escura tradicional de seus tempos de estudante da Academia, escolheram uma paleta mais leve, com uma maneira mais livre em sua técnica. “Os Itinerantes” eram a sociedade que unia os artistas mais talentosos do país, que incluía artistas da Ucrânia, Letônia e Armênia.

Numa rua de Moscou, Vasily Polenov,
óleo sobre tela, 1878
Entre os temas de “Os Itinerantes”, estava a pintura de paisagem, que floresceu nos anos 1870 e 1880. “Os Itinerantes” pintavam paisagens próximas; alguns entre eles, como Polenov, usava a técnica de plein-air (pintura ao ar livre). Dois pintores, Ivan Shishkin e Isaak Levitan, pintaram apenas paisagens da Rússia. Shishkin - outro paisagista - é considerado o "cantor da floresta" russa, mas as paisagens de Isaac Levitan são mais famosas e expressam seus intensos sentimentos de artista. Os pintores paisagistas russos desejavam explorar a beleza de seu próprio país e incentivar as pessoas comuns a amar e a preservar seus lugares. Levitan disse uma vez: "Só imagino tal graça em nossa terra russa, esses rios transbordantes que trazem tudo de volta à vida. Não há um país mais bonito do que a Rússia! Só pode haver paisagistas na Rússia". “Os Itinerantes” deram este caráter nacional para as paisagens, inclusive permitindo que pessoas de outras nações pudessem conhecer como era a paisagem russa. Estas paisagens são a concretização simbólica da nacionalidade russa. Após “Os Itinerantes”, a paisagem russa ganhou importância como uma espécie de ícone nacional.

Ao longo dos anos, a quantidade de pessoas que viam as exposições de “Os Itinerantes” cresceu muito na população do interior da Rússia. Mas não só, pois elas atraíram também a atenção dos mais acostumados a frequentar exposições, assim como da elite urbana. Fotógrafos criaram as primeiras reproduções das pinturas de “Os Itinerantes”, ajudando a popularizar as obras, que poderiam ser compradas. Revistas, como a Niva, também publicavam artigos ilustrados sobre as exposições.

A origem de seus membros era variada; alguns eram camponeses, outros da burguesia urbana, e havia até nobres, mas todos se moviam com o objetivo comum de mostrar a vida em seu país. Associavam assim um estilo basicamente realista, de qual foram os principais divulgadores, com uma base ideológica de fortes traços românticos, idealistas e nacionalistas.

Velho camponês, Vasily Perov,
óleo sobre tela, 1870
Encaravam seu trabalho como uma missão sagrada. Vladimir Stasov, um dos mais ardentes incentivadores do grupo, disse que "os artistas que desejavam se unir para reformar sua sociedade não o estavam fazendo com o propósito de criar belas pinturas e estátuas com a finalidade única de ganhar dinheiro. Estavam tentando criar um alimento para as mentes e os sentimentos do povo".

Com o sucesso do grupo, que em pouco tempo aglutinou a maioria dos melhores talentos da pintura russa de sua época, a academia já não podia mais ignorá-los, e não só sua influência estética se fez sentir no meio acadêmico, mas também diversos deles foram contratados como professores, como Ilya Repin.

Muitos deles haviam ingressado no grupo porque acreditavam que a arte precisava alcançar um público mais vasto, e que deveria servir como uma força para o avanço social e o combate às injustiças e preconceitos. Mas quando seus ideais foram abraçados pela academia, começou a perder a vitalidade contestadora dos primeiros anos e as pesquisas mais arrojadas começaram a ser banidas pelo próprio grupo, que fora, em sua origem, uma vanguarda rejeitada pela oficialidade. O ciclo se repetia. Então diversos membros deixaram o grupo para prosseguir de forma individual, com mais liberdade. Com o passar dos anos, a arte dos Itinerantes já não espelhava os novos tempos e as mudanças na sociedade, e seu realismo de cunho social foi suplantado pelo decorativismo art nouveau do grupo Mundo da Arte e pelas vanguardas abstratas do modernismo.

Mesmo assim sua proposta original voltou a ser prestigiada quando o governo revolucionário assumiu o poder e estabeleceu as diretrizes para a formação do Realismo Socialista, do qual os Itinerantes foram um precursor, e onde diversos de seus representantes encontraram espaço para continuar em atividade. O Realismo Socialista resgatou as ideias iniciais de “Os Itinerantes”, quando estes artistas estavam convencidos de seu papel social como artistas em um país onde tudo estava em processo de transformação. Da arte à política.

“Os Itinerantes”, ao longo dos anos, produziram mais de 3.500 pinturas que foram vistas por mais de um milhão de pessoas em um grande número de cidades. O grupo durou até 1923, quando muitos de seus membros passaram a integrar a Associação de Artistas da Rússia Revolucionária (AKhRR, sigla em russo).

Abaixo, algumas das obras representativas de "Os Itinerantes":

Os rebocadores do Volga, Ilya Repin, óleo sobre tela, 1870-73

Procissão religiosa na província de Kursk, Ilya Repin, óleo sobre tela, 1880–83

Resposta dos cossacos de Zaporozhian, Ilya Repin, óleo sobre tela, 1880-91
Vigília, Arkhip Kuindzhi, óleo sobre tela, 1905-1908
Sessão do Tsar Michael I com a Duma Boyarda, Andrei Ryabushkin, óleo sobre tela, 1893
Procissão de Páscoa, Illarion Pryanishnikov, óleo sobre tela, 1893
Campo de centeio, Ivan Shishkin, óleo sobre tela, 1878
Chuva na floresta, Ivan Shishkin, 1891
Sonhos, Vasily Polenov, óleo sobre tela, 1895
Retrato de Isaac Levitan, Valentin Serov, óleo sobre tela, 1893
Ponte na floresta, Rafail Levitsky, óleo sobre tela, 1895-96
Pobres recolhendo carvão, Nikolay Kasatkin, óleo sobre tela, 1894
Retrato de Vladimir Solovyov, Nikolai Yaroshenko, óleo sobre tela, 1892
Os cegos, Nikolai Yaroshenko, óleo sobre tela, 1879
Consertando a estrada, Konstantin Savitsky, óleo sobre tela, 1874
Cristo no deserto, Ivan Kramskoi, óleo sobre tela, 1872
Retrato de uma desconhecida, Ivan Kramskoi, óleo sobre tela, 1883

terça-feira, 11 de abril de 2017

A Academia de Belas-Artes de São Petersburgo


Academia de Belas-Artes de São Petersburgo
Buscando as raízes do movimento artístico moderno russo, vamos fazer uma passagem pela história da importante Academia de Belas-Artes de São Petersburgo.

Em meio ao século XVIII a Rússia ainda era percebida - pelos europeus - como uma potência bárbara incapaz de produzir alguma forma de arte “evoluída”. O professor Basile Baudez da Universidade da Sorbonne, Paris, afirma, em seu artigo, que logo no começo do século XIX a situação era absolutamente diferente e certos historiadores franceses do final daquele século, como Emile Veuclin, atribuiam isso à “influência benéfica da civilização francesa”. Ao contrário dele, os pesquisadores soviéticos preferiam falar dos efeitos nefastos da preponderância da arte francesa na arte da Rússia naquele período. O fato é que, desde Pedro, o Grande, foi crescente a influência da cultura francesa sobre a cultura russa, coisa que deu origem às querelas entre “eslavófilos” e “ocidentalistas” dentro do próprio país russo. Falaremos disto em outro momento. Mas todos concordam em encontrar as fontes da arte moderna russa na Academia de Belas-Artes de São Petersburgo.

Desenho da Academia
de Belas-Artes de São Petersburgo
Mas o que é o conceito de Academia? - se pergunta Basile Baudez. Nascido durante o Renascimento Italiano no século XV, a “academia” era um local de estudos e formação artística, como a “Accademia del Disegno” de Florença. Se inspirava também no conceito clássico, retratado pela pintura de Rafael, a "Escola de Atenas". Desde então, o que caracteriza basicamente a academia é a convicção do papel central, primordial, do desenho e “a afirmação do caráter intelectual da atividade artística”. Até então, o pintor ou escultor era visto apenas como um artesão, um trabalhador manual. A partir do Renascimento teve seu papel elevado ao do intelectual, do pensador. Esta e outras teses da academia italiana alcançaram sucesso dentro da França a partir do século XVII. Mas, diz Baudez, a função de ensinar “não era a principal preocupação dos fundadores da Academia Real de Pintura e Escultura francesa, apesar do que se poderia pensar”. Mas foi o que fizeram muitas academias fundadas no século XVIII, dizendo-se seguir o modelo francês.

A própria arquitetura dos prédios das academias expressava aquele pensamento clássico. O modelo arquitetural deveria se inspirar no antigo panteão romano, com colunas paralelas sustentando um frontão triangular. Os espaços pedagógicos somente ao longo do tempo foram ganhando importância e amplitude. Foi seguindo esta tradição que o arquiteto Vallin de La Mothe concebeu o edifício de São Petersburgo em 1763.

As reformas de Pedro o Grande, imperador russo, se estenderam a todos os domínios da vida naquele país, mas em especial em relação à educação e à cultura. “Os primeiros projetos da Academia de Belas Artes nasceu sob seu reinado”, diz Baudez.

Mesmo antes da criação da Academia de Belas-Artes, algumas escolas de ensino normal ensinavam os fundamentos de desenho e de pintura a seus alunos, antes de 1757. Até mesmo a escola de formação do Corpo de Cadetes, criada em 1731, ensinava desenho como último estágio da formação cultural militar. Alguns raros ateliês, que existiam porque seus pintores eram empregados da Corte, também ensinavam pintura e desenho. Enquanto isso, a pintura de ícones (veja os posts anteriores sobre este tema) continuava muito viva até o século XVIII.

O prédio original fundado em 1725, se denominou “Academia de Ciências” de São Petersburgo. Só em 1747 passou a se chamar “Academia de Ciências e Belas-Artes”, que dispunha de um curso de desenho. O departamento de Gravura se manteve com sucesso ao longo de todo o século XVIII, por causa das necessidades editoriais da Academia de Ciências, em especial durante o período em que realizou o trabalho de cartografia do império.

Estudo feito na Academia
Os meados do século XVIII foram, então, um período “extremamente favorável” para o florescimento da arte ocidental na Rússia. A nobreza e outros segmentos mais elitizados começaram a viajar ao exterior e a encomendar obras de arte ou construção de edifícios. Entre 1756 e 1762 houve uma verdadeira invasão dos modos franceses na aristocracia russa, que se espalhou para a esfera política. “É neste contexto que a Academia de Belas Artes foi fundada”, acrescenta Basile Baudez.

Ivan Chouvalov foi o fundador da primeira universidade civil do império russo, a Universidade de Moscou. Ele era o protegido da imperatriz Elisabeth Petrovna e amigo do poeta Mikhail Lomonossov. Os dois procuravam dotar a Rússia de instituições de ensino superior segundo o modelo das universidade do mundo germânico. 

A Academia de Belas-Artes, fundada em 4 de novembro de 1757, deveria permitir ao país produzir as obras de arte e os objetos de luxo que eram importados do estrangeiro a grandes custos. Foi construída na ilha Vassilievsky, que já reunia a escola do Corpo de Cadetes e a Academia de Ciências. Os primeiros estudantes, que tinham entre 13 e 20 anos de idade, ou vinham da Universidade de Moscou, ou eram enviados pela Corte ou foram escolhidos entre as crianças da vizinhança. Tinham, portanto, vários níveis de formação. Já os professores eram escolhidos entre os melhores que tivessem se formado nas Academias de Paris ou de Roma.

Uma sala com modelos para estudo
Em março de 1763, Ivan Chouchalov torna-se o diretor da Academia, indicado por Ivan Betskoï, o idealizador de um vasto plano de reforma do ensino secundário russo, desejado pela nova imperatriz Catarina II. Seguindo o modelo de outras escolas de Moscou e São Petersburgo, a Academia de Belas-Artes passou a aceitar como alunos crianças de apenas seis anos, educando-as nos métodos inspirados nas filosofias de Locke e Rousseau. Em linha com os princípios de Pedro o Grande, Ivan Betskoï procurava criar uma nova cultura na sociedade russa, rompendo com o passado bárbaro e inculto. 

Catarina surge, então, como a verdadeira fundadora da Academia, em 1764. Catarina a Grande, ofereceu grandes privilégios à academia, visando com isso assegurar à instituição autonomia jurídica e financeira. Ao mesmo tempo, liberdade de ação, coisa muito importante para os membros daquela escola naqueles meados de século. Ao colocar os acadêmicos em níveis tão elevados, dava ao artista formado naquela escola um grande status.

A direção da escola era gerida pelo Diretor, escolhido pelo imperador, mas também era gerida pela Assembleia Acadêmica, pouco convocada, e por um Conselho composto pelo diretor, pelo secretário de conferências e por professores de artes liberais. Não havia representação estudantil.

A instituição dispunha de ajuda financeira anual que alcançava 60 mil rublos, dinheiro este que não era controlado e que levou a escola a períodos de deficit de recursos, que chegaram a ameaçar seu funcionamento no final dos anos 1760.

Seus cerca de 300 alunos e 60 funcionários e professores viviam no local. Os alunos mais velhos moravam com seus mestres em apartamentos disponibilizados pela Academia. Todos tinham uniforme e faziam as refeições juntos. A disciplina era rigorosa.

Inauguração da Academia, pintura a óleo de Valery Jacobi
Mas o ambiente também era muito propício para que surgissem lideranças entre eles, que organizavam desde grupos de teatro amador a concertos de música. A música ocupava um lugar importante entre os alunos, o que acabou despertando vocações entre vários que se tornaram compositores de renome. Os líderes estudantis também incentivavam qualquer iniciativa artística ou de trabalhos manuais, mesmo se estavam fora da grade de matérias originalmente definida.

A Academia de Belas-Artes contava com fãs na aristocracia russa ou estrangeira e isso permitia estabelecer ligações com artistas europeus, favorecendo a venda de trabalhos de alunos ou professores e reproduções de sua coleção de pinturas.

A partir de 1764, a Academia, a cada três anos, abria inscrições para novos alunos entre 5 ou 6 anos de idade. O desejo inicial de Ivan Betskoï de somente aceitar alunos russos pobres foi respeitado. A imensa maioria entre eles era feita de filhos de simples soldados, camponeses, artesãos ou pequenos funcionários. Um dos objetivos da Academia de Belas Artes era permitir a formação intelectual e artística que fizesse diferença na sociedade russa, diz Baudez.

Desenho de Nicolai Fechin
O curso completo durava 15 anos, distribuídos em cinco fases de três anos. Nos três primeiros, os alunos eram introduzidos gradualmente ao desenho. Com a idade de doze anos eles tinham que escolher que caminho seguir, como a Pintura, por exemplo. “Junto com o ensino geral, particularmente focado no estudo de línguas estrangeiras, os alunos recebiam uma educação completa, que tinha como objetivo formar cidadãos e homens capazes de evoluir em círculos cosmopolitas da nova Rússia”, continua o professor da Sorbonne.

Mas diferenças ideológicas surgiam e foram crescendo até atingir o paroxismo no final dos anos 1780, quando a guerra entre os defensores da educação francesa e os que defendiam a cultura russa chegou ao fim com a vitória destes últimos, que contavam com o apoio do diretor Ivan Betskoï e do escritor Iakov Kniajnine. O Conselho da Academia passou a não aceitar mais professores estrangeiros, que foram sendo substituídos por russos. O ensino de línguas estrangeiras foi abolido e substituído por curso de Literatura e História Russa. A Academia era parte do movimento patriótico que atingiu seu momento máximo nos primeiros anos do século XIX.

O método de ensino era comum à maioria das academias. O estudantes seguiam cursos regulares de desenho e de anatomia. Eles se beneficiavam de uma importante coleção de obras de arte, doadas por alguns indivíduos, mas também da coleção de Ivan Chouchalov, desenhos da coleção de Ivan Betskoï e de obras de arte doadas pela nobreza.

Mas a fama da Academia era baseada em sua coleção de modelos de esculturas romanas antigas enviadas de Roma desde 1758, além de uma biblioteca que continha no final do século mais de 1500 originais, 4.500 cópias e mais de 7.000 desenhos e esboços arquitetônicos, disponíveis para alunos e professores, ao contrário do que aconteceu em Paris.

Autorretrato de
Ivan Kramskoi
O sistema de competição entre os alunos se inspirava na academia de Paris. No entanto, a atenção pessoal dada a cada aluno era característica da academia russa. A educação foi dada até 1770 por professores estrangeiros que mesmo assim incentivavam o espírito patriótico em seus alunos, oferecendo apenas os temas ligados a seu país.

Num segundo período, quando antigos residentes russos retornaram de Paris e Roma, eles adaptaram as antiguidades romanas ao amor russo pelos ornamentos e pelas coisas grandiosas.

Outra peculiaridade da Academia de São Petersburgo é a de ter oferecido aos estudantes que não puderam entrar nas aulas de arte, o aprendizado de algum ofício ensinado por mestres artesãos empregados e abrigados pela instituição.

No fim do ciclo de estudos, os melhores alunos - não só em termos de qualidade, mas também de comportamento - eram enviados a Paris para se formar com aqueles que os acadêmicos consideravam como os melhores artistas da Europa. E também à Roma, para conhecer as grandes obras de arte e seus mestres italianos. Os alunos tinham que fazer, a cada três meses, relatórios de seus trabalhos, que representariam o que de mais completo a Rússia possuía em termos de pensamento e de produção de arte.

Retrato de Tolstoi, cópia feita por mim
em óleo sobre papel a partir da pintura
original de Ilya Repin
Mas apesar do sucesso encontrado em sua formação, considerada a melhor do império, a Academia não conseguia encontrar mercado suficientemente grande e dar suporte que garantisse a seus alunos uma carreira artística. Um deles, conta o professor Baudez, Anton Losenko, morreu na miséria por falta de encomendas... Mas, apesar disso, a Academia de Belas Artes de São Petersburgo inicia o século XIX como a maior autoridade no campo da arte.

Em uma cidade ainda nova como São Petersburgo, dentro da imagem para a sociedade que seus fundadores lhe queriam atribuir, a Academia de Belas-Artes representou o apogeu do movimento acadêmico, tanto na sua realização arquitetônica quanto em seus objetivos educacionais. Seus membros acreditavam no poder da educação como capaz de transformar simples filhos de soldados ou camponeses sem instrução em artistas que pudessem competir com os melhores mestres das nações europeias.

Em meados do século XIX, os acadêmicos russos bastante influenciados pelos franceses - em especial por Ingres -  começaram a ser contestados por uma nova geração de artistas, formados na academia, mas que queriam ter liberdade para pintar temas realistas e ligados a seu país. Este primeiro movimento foi intitulado de “Os Itinerantes” e foi inicialmente dirigido pelo pintor Ivan Kramskoi, cuja qualidade de sua pintura pude averiguar pessoalmente há poucos dias em Londres, numa exposição de arte russa na Royal Academy of Art. 

Em 9 de novembro de 1863, considerado como o dia da "Revolta dos Quatorze", Ivan Kramskoi iniciou o movimento de artistas realistas que, como Ilya Repin e Mikhail Vroubel, passaram a viajar por diferentes cidades russas fazendo exposições de suas obras.

Após a Revolução Russa de 1917, a Academia passou também por algumas transformações. Em 1933 foi denominada “Academia Russa de Belas Artes” e, em 1947, “Academia de Belas Artes da União Soviética”, voltando a se chamar “Academia Russa de Belas Artes”, em 1991. Atualmente, é uma escola de extensão universitária e se intitula “Instituto de Pintura, Escultura e Arquitetura Ilya Repin”. Mas popularmente nunca deixou de ser chamada "Academia de Belas-Artes de São Petersburgo".


Referências bibliográficas:
- L’académie impériale des beaux-arts de Saint Pétersbourg, du Moujik à l’artiste, Basile Baudez, 2000
- História Concisa da Rússia, Paul Bushkovitch, 2015
- Tudo o que é sólido desmancha no ar, Marshall Berman, 1990
Academia de Belas-Artes, hoje Instituto Ilya Repin
Academia de Belas-Artes de São Petersburgo, século XIX