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segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Os pintores de Skagen

Parte do grupo de pintores de Skagen, fotografia de Fritz Stoltenberg
Em minhas buscas pessoais sobre a pintura, boas surpresas vão me chegando de tempos em tempos. Desta vez vieram novamente dos gelados países escandinavos, Noruega, Dinamarca e Suécia. É bom lembrar que a Suécia é a terra do grande pintor Anders Zorn, e a Noruega é onde vive e pinta o grande Odd Nerdrum, de quem já falei aqui em outros textos.

Pintura de Christian Krohg
Mas o assunto do dia é um grupo de pintores que se reuniam todos os verões entre as décadas de 1870 e 1900, para pintar, conversar e se divertir na casa da família de Anna Brondum (ou Ana Ancher, sobre a qual já falei aqui) em Skagen, localizada numa pontinha do extremo-norte da Dinamarca, em frente ao Mar do Norte. Este grupo ficou conhecido como a Colônia de Skagen e sua pintura me atrai bastante a atenção, pelo estilo solto, dinâmico.

Skagen era um bom destino no verão, pois a localização à beira-mar e a luminosidade da estação atraíam esses artistas para pintar ao vento, ao ar livre, como o fizeram os pintores da chamada Escola de Barbizon francesa.

Os pintores escandinavos, insatisfeitos com a rígidas regras tanto da Academia Real Dinamarquesa de Belas Artes como da Real Academia Sueca de Artes, começaram a mudar seu estilo de pintura, depois de conhecerem alguns dos trabalhos dos pintores franceses que também tinham rompido com sua própria Academia.

Neste grupo estavam: Anna Ancher e Michael Ancher, Peder Severin Kroyer, Holger Drachmann, Karl Madsen, Laurits Tuxen, Marie Kroyer, Carl Locher, Viggo Johansen e Thorvald Niss da Dinamarca; Oscar Björck e Johan Krouthen da Suécia; e Christian Krohg e Eilif Peterssen da Noruega. Nomes totalmente desconhecidos pela maioria de nós que temos acesso apenas aos mesmos conhecidos pintores europeus.

"Autorretrato com Martha", Johansen Viggo
Skagen era também onde se localizava a maior comunidade de pescadores da Dinamarca e eles foram o tema mais comum para os pintores. As longas praias foram também bastante exploradas nas pinturas de paisagens, em especial por Peder Severin Kroyer, um dos mais conhecidos pintores de Skagen. A luminosidade da região o inspirou a fazer grandes telas em que mar e céu parecem se fundir opticamente, como poderão ver nas imagens que ilustram este texto.

Cada um desses pintores tinha seu próprio estilo individual, e não havia uma exigência para aderirem a uma abordagem ou expressão de grupo. Mas obviamente seu interesse comum era pintar a paisagem com seus pescadores, assim como pintavam retratos uns dos outros, suas reuniões, suas celebrações e seus jogos de cartas. Era um grupo de amigos, além de tudo.

Pintores de Skagen,
por Peder Severin Kroyer
Anna Brondum foi a única mulher integrante do grupo de Skagen que se tornou artista, em uma época em que as mulheres não podiam estudar na Academia da Dinamarca. Hoje, o Museu de Skagen, fundado na casa da sua família que era também o local de reunião desses artistas, abriga muitas de suas obras de arte, cerca de 1800 peças no total. Michael Ancher casou-se com Anna, que assumiu seu sobrenome.

O primeiro desses artistas a pintar em Skagen foi Martinus Rorbye (1803–1848), uma das figuras centrais daquele período rico da pintura dinamarquesa. Sua primeira viagem para lá foi em 1833, mas se repetiu até o final de sua vida em 1848. 

Na segunda metade do século XIX, as academias citadas acima se recusavam a mudar suas regras, insistindo que seus alunos continuassem pintando temas de história e do Neoclassicismo. 

Michael Ancher, Karl Madsen e Viggo Johansen que, no início da década de 1870,  estudavam na Real Academia Dinamarquesa, em Copenhague, começaram a se rebelar e se afastar da escola. Madsen, que já havia visitado Skagen em 1871, convidou Ancher para se juntar a ele em 1874, para pintar os pescadores locais. Ancher se tornou amigo da família Brondum, que tinha uma loja com um bar, que logo se tornou também uma hospedaria. No ano seguinte, ele retornou a Skagen com Madsen e Viggo Johansen, que já estavam fortemente influenciados pelo impressionismo francês, mas ao estilo mais realista dos pintores de Barbizon.

Entre 1876 e 1877, vários outros artistas se juntaram a eles no verão, hospedando-se todos na casa dos Brondums, onde Michael Ancher já frequentava, por causa de sua paixão por Anna, com quem se casou em 1880. 

Pintura de Anna Ancher
Anna Ancher demonstrou muito interesse em pintar, depois que esses artistas começaram a ficar na pousada de sua família, onde deixavam suas pinturas secando em seus quartos. Enquanto eles saíam para suas jornadas, ela os estudou detalhadamente. Em 1875 passou a frequentar o ateliê de Vilhelm Kyhn em Copenhague. Mais tarde, Christian Krohg lhe ensinou a arte de pintar pessoas em sua vida cotidiana e fazer pleno uso das cores. Krohg veio pela primeira vez a Skagen no verão de 1878, encorajado por Georg Brandes, que ele conheceu em Berlim e trouxe consigo muito dos novos estilos de pintar que ele havia conhecido na França e Alemanha, influenciando os outros membros do grupo. Seus encontros com a população local também exerceram forte influência em seu próprio trabalho.

Peder Severin Kroyer, que teve contatos próximos com vários artistas impressionistas em Paris, imediatamente se tornou uma espécie de líder do grupo de artistas. Em 1883, ele criou a "Academia da Noite", um grupo que se reunia para pintar e discutir o trabalho um do outro, muitas vezes aproveitando o champanhe. Em 1884, o pintor alemão Fritz Stoltenberg fotografou os artistas que comemoravam no jardim dos Anchers, logo depois que o casal se mudou para sua nova casa. Uma dessas fotos em particular inspirou Kroyer a pintar “Hip, Hip, Hurra!”, que levou quatro anos para completar.

Em 1890, a chegada da ferrovia em Skagen não apenas levou à expansão da vila, mas também atraiu um número considerável de turistas, atrapalhando as reuniões regulares de verão dos artistas, já que eles não podiam mais encontrar acomodações ou locais adequados para suas reuniões. No entanto, alguns deles compraram casas em Skagen: Kroyer em 1894, Laurits Tuxen em 1901 e Holger Drachmann em 1903.

Retrato de Marie, por Peder Severin Kroyer
Anna e Michael Ancher, Kroyer e Tuxen continuaram a pintar em Skagen até o começo do século 20. De vez em quando recebiam visitas dos outros amigos que moravam fora. Drachmann e Kroyer morreram entre 1908 e 1909, e com isso os encontros chegaram ao fim. 

Mesmo assim, outros artistas mais jovens continuaram a ir a Skagen para pintar, como Jorgen Aabye, Tupsy e Gad Frederik Clement, Ella Heide, Ludvig Karsten, Frederik Lange e Johannes Wilhjelm, alguns dos quais se estabeleceram na área até a década de 1930. 

Todos esses pintores foram atraídos pela comunidade de Skagen, suas paisagens marítimas e sua cultura, tudo muito distante dos efeitos da industrialização da vida nas cidades grandes. Todos reconheciam a luz especial que havia em Skagen, e, segundo alguns relatos, os efeitos da areia no ar. Seus estilos de pintura evoluíram da abordagem neoclássica formal da Real Academia para abraçar as tendências européias em evolução no Realismo e Impressionismo, incluindo a abordagem plein air adotada pela Escola de Barbizon. 

"Anna Ancher e Marie Kroyer passeando na praia no fim da tarde",
por Peder Severin Kroyer
Os atraía especialmente a oportunidade de pintar ao ar livre, concentrando-se nas atividades dos pescadores locais e suas modestas cabanas. Na ausência de regras dentro da colônia, os pintores desenvolveram livremente seus estilos individuais. 

Os artistas muitas vezes pagavam aos pescadores para atuar como modelos, complementando seus rendimentos modestos. As obras de Kroyer também incluíam cenas de passeios na praia, noites românticas ao luar e retratos de sua esposa Marie. Com o passar do tempo, Kroyer pintou cada vez mais obras que descreviam a atmosfera especial daquela hora em que a noite se fundia com o mar. Laurits Tuxen pintava as flores em seu jardim e Anna Ancher, por outro lado, concentrava-se nos interiores da sua casa.

Hoje, em pleno funcionamento, o Museu de Skagen - fundado em 1928 na casa da família Brondum - guarda uma grande quantidade de pinturas desse período e onde se pode ver de perto essas obras-primas.

Mais um lugar para eu conhecer, um dia.

Local onde funciona o Museu de Skagen

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Odd Nerdrum, o pintor angustiado

"O abandonado", Odd Nerdrum
Odd Nerdrum é um pintor figurativo contemporâneo, que nasceu em Helsingborg, na Suécia, em 8 de abril de 1944. Ele mora há muitos anos na Noruega. Já bastante conhecido na Europa e Estados Unidos, Nerdrum guarda em sua pintura, ao longo de sua carreira, uma evidente influência de dois grandes mestres, Caravaggio e Rembrandt.

Odd Nerdrum
Sua pintura mantém-se fiel ao estilo clássico, mas é absurdamente atual no sentido de provocar espanto e inquietação. Seus temas em geral são alegóricos, com uma forte influência da mitologia e da cultura dos países gelados do norte europeu. São mundos de sonhos, ou de pesadelos, os que ele pinta sobre o fio tênue entre a realidade e a imaginação. Algumas pinturas revelariam um futuro apocalíptico, em outras um retorno ao passado dos grandes mestres. Odd Nerdrum pinta pessoas atuais vestidas com roupas daquelas épocas.

Ele não gosta de ser chamado de artista e diz que a arte atual - conceitual ou abstrata - não lhe diz respeito e que é uma arte reacionária. Outsider completo, vive recluso em uma pequena cidade gelada da Noruega, onde recebe alunos de vários cantos do mundo que passam uma temporada estudando com ele.

Em sua fase de formação, chegou a estudar com Joseph Beuys, um artista alemão totalmente conceitual, mas que teria lhe acrescentado muito pouco. Em uma entrevista a um site espanhol (www.descubrirelarte.es), Nerdrum conta:

"O assassinato de Baader", Odd Nerdrum, 1977
- O senhor Beuys e eu nos dávamos muito bem a nível pessoal, mas divergíamos em relação a aspectos concernentes à arte. Por exemplo, em uma ocasião ele me disse “esta mesa em que estamos sentados é só um amontoado de moléculas e nada mais, por isso seria impossível pintá-la”. Lhe respondi: “Se tu estivesses no meio de uma tempestade de neve a ponto de morrer de frio e descobrísses uma cabana cujas janelas estavam iluminadas de luz e sabendo que era tua salvação, pensarias que esta cabana é um monte de moléculas? Para mim é uma cabana!”

Na mesma entrevista, Odd Nerdrum faz uma distinção entre os termos “pintura figurativa” e “pintura clássica figurativa”. É importante esta distinção, diz ele, “porque praticamente todos os pintores são figurativos, inclusive Miró” (pintor abstrato espanhol). A pintura de Nerdrum é “difícil de realizar, porque é necessário ter uma grande quantidade de conhecimento técnico. Com 18 anos conheci o trabalho de Rembrandt pela primeira vez e compreendi em seguida que o caminho seria longo, que eu fracassaria muitas vezes antes de chegar a pintar uma tela com maestria aquilo que quisesse fazer”.

E continua contando ao entrevistador: 

- “No princípio da minha carreira me interessei muito por Caravaggio, um pintor que naquela época não era muito conhecido. Foi só depois de 1968 que suas obras passaram a ter um preço muito alto e sua fama a se espalhar pelo mundo. Me acusaram, então, de ser seguidor de Caravaggio… Em seguida, comecei a estudar as esculturas gregas, egípcias e, obviamente, cheguei a Rembrandt. É curioso, porque os críticos de arte diziam que eu estava começando a ficar mais original, quando era exatamente o contrário, eu nunca havia sido original e não estava abandonando essas influências. Na minha opinião a única coisa “pessoal” de verdade é a atração que um mestre exerce sobre nós, pois nem Rodin e nem El Greco foram particularmente “originais”, mas a paixão de suas vidas se manifestou na argila ou na pintura…”

Autorretrato, Odd Nerdrum
Odd Nerdrum costuma ser chamado um “pintor kitsch”, uma palavra de origem alemã cujo significado é meio complicado de explicar, mas a grosso modo seria uma certa relação entre a cultura erudita e a popular expressada através de figuras do imaginário popular entranhadas nas belas artes, no caso da pintura. O pintor norueguês diz que “se tivesse nascido há 300 anos, adoraria ter sido um pintor de retratos. Mas um pintor kitsch é alguém que reinterpreta sua relação com a arte e com a sociedade e que sente uma grande compaixão pela humanidade: suas obras tomam um certo distanciamento irônico para mostrar às pessoas os duplos significados e as distintas leituras. Os antecedentes seriam todos os artistas que buscaram seu próprio modo de expressão de forma independente das modas ou correntes estéticas, como Goya, Rembrandt, Caravaggio, Munch… Ou o grande Velázquez que se tivesse vivido no começo do século XX lhe teriam chamado de “pintor kitsch”...

Sobre seu processo de trabalho e quanto tempo dedica a uma pintura, Odd Nerdrum disse:
"O tempo pode variar de alguns meses até 10 anos ou mais. O pintor nunca acaba de todo um quadro; só as máquinas terminam as coisas. Meu processo de trabalho? Gosto da vida, gosto de trabalhar e também de dormir. Explicar meu processo de trabalho é como falar sobre a circulação do meu sangue. O que posso dizer é que cada vez utilizo mais os dedos para pintar, assim como lixas, trapos e também o pincel. Os três eixos de meu trabalho são grandes composições narrativas, o vazio (o ser humano sem contato com o planeta Terra) e quadros idílicos, com figuras em paisagens de uma harmonia arcádica. Me sinto bem com cada tema desses. Posso dizer que minhas ideias não pertencem aos mitos, mas surgem de leituras filosóficas que faço".

Desenho de Odd Nerdrum
Odd Nerdrum tem sido procurado por artistas de todos os lugares do mundo, e influencia muitos deles de forma evidente, de artistas mexicanos, norte-americanos, europeus de vários países, russos, asiáticos. Neste ano de 2016, o brasileiro Bruno Passos passou uma temporada no ateliê de Nerdrum na Noruega, no começo do ano, tomando umas lições de pintura e, segundo ele, discutindo política e filosofia, temas que “não saiam da pauta”: “a pintura praticamente só entrava se estivesse linkada com um destes temas. Interessante notar como arte é consequência, não causa…” (Leia o relato de Bruno aqui)

Na entrevista ao site espanhol, Nerdrum disse sobre seu interesse em ensinar diretamente a artistas mais jovens: “Simplesmente aconteceu. Estamos vivendo um tempo difícil para a pintura clássica e figurativa, por isso é importante criarmos um lugar nosso, nos ajudarmos mutuamente”.

Muitos dos temas dos quadros de Odd Nerdrum estão baseados na cultura nórdica e refletem o desenvolvimento das sociedades escandinavas. Representa estados psíquicos, usando a si mesmo muitas vezes como modelo para pinturas que nos passam uma certa angústia. O tema da morte, por exemplo, é um dos presentes na pintura do artista norueguês. “A angústia é o meu patrão”, tem dito em suas raras declarações à mídia.

O trabalho de Odd Nerdrum pode ser visto em vários museus do mundo, como o Metropolitan de New York, o San Diego, o de Arte Walker, o de Arte de Milwaukee (todos nos EUA), assim como o Museu de Gotenbourg, Suécia, e na Galeria Nacional de Oslo, na Noruega.

Odd Nerdrum também é profundo conhecedor de História da Arte e Filosofia. E um crítico de seu tempo também, como pode se ler em seu artigo Overcoming the Germanification of Europe.

Algumas de suas pinturas, de vários períodos, abaixo. 

Para saber mais sobre Odd Nerdrum, em seu site (clique aqui)