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quinta-feira, 25 de julho de 2013

Arte e contemplação

Uma aquarela, feita em 1988, minha autoria
“Vejo que as tempestades vêm aí 
pelas árvores que, à medida que os dias se tomam mornos, 
batem nas minhas janelas assustadas 
e ouço as distâncias dizerem coisas 
que não sei suportar sem um amigo, 
que não posso amar sem uma irmã. 

E a tempestade rodopia, e transforma tudo, 
atravessa a floresta e o tempo 
e tudo parece sem idade: 
a paisagem, como um verso do saltério, 
é pujança, ardor, eternidade. 

Que pequeno é aquilo contra que lutamos, 
como é imenso, o que contra nós luta; 
se nos deixássemos, como fazem as coisas, 
assaltar assim pela grande tempestade, — 
chegaríamos longe e seríamos anônimos. “

(Contemplação, poema de Rainer Maria Rilke)

O frio úmido atravessava os tecidos grossos, dispostos em camadas, sobre as nossas peles nesta São Paulo gelada. Chovia e era noite. Minha alma era alcançada por esse ar glacial e essas gotas d’água, enquanto caminhava pela rua, encolhida de frio. Os tecidos eram poucos para aquecer as angústias da minha alma, enquanto meus pensamentos iam formulando ideias. Mas tem hora que é preciso apartar o coração da mente. Olhava as pessoas na avenida, me lembrando de que “eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta” como diz o poema de Mário de Andrade e que também em mim as “sensações renascem de si mesmas sem repouso”.

Rodin não saía dos meus pensamentos. Ou melhor, seus pensamentos não saíam de mim. Suas conversas sobre Arte com  Paul Gsell, que ando lendo, guiavam meus olhos entre as gotas d’água da chuva buscando ver os rostos sob os guarda-chuvas e capuzes que passavam do meu lado. Os rostos, as mãos, os gestos, os olhos, a alma. “Não se trata senão de ver”, conversava no meu cérebro a conversa de Rodin. Olhar sem ver não é coisa do artista verdadeiro, pois o artista verdadeiro vê a verdade interior que se esconde atrás das aparências, como se escondem hoje esses rostos atrás de seus cachecóis...

Victor Hugo, escultura de Rodin,
1883, bronze
Mas o mestre Rodin ainda ia falando: não basta olhar apenas com os olhos; para ver a natureza em profundidade tem que ser através dos olhos, mas é o coração que vê! Se não for pelo coração, pela alma, não é possível expressar o caráter, o sentido mais profundo e oculto das coisas.

Um pintor só consegue criar uma obra de arte quando ele consegue expressar esse caráter das coisas do mundo: a contração de uma fisionomia, as rugas de um rosto cansado, as mãos em crispação de medo, o olhar longínquo e profundo. Ou a beleza suave do rosto de um filho adormecido, a mão imóvel de sua mãe preparando a sopa. Ou as rugas no rosto do velho Jorge Saracura e suas mãos ágeis batendo no pandeiro. O sorriso largo em forma de canção que se espalha no rosto de Railídia e os pensamentos cravados na testa do poeta Jeosafá...

“Sim – diz Rodin – eu acusei, acentuei e exagerei a natureza, mas nunca a alterei”.

- Como o fez Velázquez, vai me dizendo ele nesta avenida enquanto o vento corta meu rosto: Velázquez deu glória àqueles anões da Corte, esses seres obrigados “a degradar sua dignidade humana” fazendo de conta que é louco, joguete nas mãos de poderosos.

- Ou como fez François Millet – e eu acrescento Courbet, Gustave Courbet. Sim, sim, que eram capazes de representar um camponês cansado que se apóia no cabo de sua enxada, aquele miserável, tostado de sol a sol, lavrando a terra, como uma mula de carga carregando sua vida nos ombros se embrutecendo no dia a dia por seu quinhão de vida...

Lhe interrompi um segundo: ontem eu vi os olhos de dona Cida da Camisa Verde e Branco, olhar de quem já viu de tudo nessa vida e viu um rapazinho estirado na calçada, com as pessoas passando por cima dele, como se fosse um cachorro, como se fosse um saco. E seus olhinhos – da tia Cida – angustiados sem compreender que mundo é esse que um ser humano é tratado assim? Mas ela exorciza suas angústias soltando sua voz nas rodas de samba, como seus e nossos antepassados negros nas senzalas exorcizavam a escravidão.

La danaîde, Auguste Rodin, 1888, mármore
“A arte expressa os sentimentos da alma humana diante da natureza”, diz Rodin. Ela ensina a sentir o mundo em sua complexidade e beleza. “Revela a seus contemporâneos extasiados mil matizes do sentimento”. Me lembrei de outro livro, de José Parramon, que ensina que os artistas precisam andar no mundo com os olhos bem abertos, com a percepção em sua capacidade total, para que possam captar aqueles momentos – por vezes fugidios – em que o Real se revela, a Natureza se escancara, as coisas do mundo se deixam penetrar profundamente.

O artista realista não é aquele que reproduz somente o exterior. Ele não copia o mundo, mas cria sua obra também baseada no espírito que faz parte da Natureza, que possui uma forma. E Rodin complementa: ele revela “a verdade toda, e não apenas a superfície”. Em seus traços e pinceladas, em suas cores e relações de sombra e luz, o artista expressa a própria alma alcançada pela verdade do que viu, como esse vento gelado alcança minhas mãos enfiadas nos bolsos do sobretudo.

“Em suma, as puras obras-primas são aquelas nas quais não se encontra absolutamente nada que seja inexpressivo, como formas, linhas e cor, mas tudo, absolutamente tudo se resolve em pensamento e em alma”, afirmou o mestre escultor Auguste Rodin a seu amigo Paul Gsell. Que completou: Arte é contemplação - o prazer da mente que penetra a natureza e interpreta o espírito que a anima".

E eu vou sseguindo meu caminho. Vou olhando, vou vivendo. Enquanto meus pensamentos vão formulando ideias. Por que “eu sou trezentos, sou trezentos e cinqüenta”...

"Ôh espelhos, ôh! Pirineus! ôh caiçaras! 
Se um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!"

(trecho do poema Sou trezentos,
de Mário de Andrade)