Mostrando postagens com marcador Mário de Andrade. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Mário de Andrade. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Arte e contemplação

Uma aquarela, feita em 1988, minha autoria
“Vejo que as tempestades vêm aí 
pelas árvores que, à medida que os dias se tomam mornos, 
batem nas minhas janelas assustadas 
e ouço as distâncias dizerem coisas 
que não sei suportar sem um amigo, 
que não posso amar sem uma irmã. 

E a tempestade rodopia, e transforma tudo, 
atravessa a floresta e o tempo 
e tudo parece sem idade: 
a paisagem, como um verso do saltério, 
é pujança, ardor, eternidade. 

Que pequeno é aquilo contra que lutamos, 
como é imenso, o que contra nós luta; 
se nos deixássemos, como fazem as coisas, 
assaltar assim pela grande tempestade, — 
chegaríamos longe e seríamos anônimos. “

(Contemplação, poema de Rainer Maria Rilke)

O frio úmido atravessava os tecidos grossos, dispostos em camadas, sobre as nossas peles nesta São Paulo gelada. Chovia e era noite. Minha alma era alcançada por esse ar glacial e essas gotas d’água, enquanto caminhava pela rua, encolhida de frio. Os tecidos eram poucos para aquecer as angústias da minha alma, enquanto meus pensamentos iam formulando ideias. Mas tem hora que é preciso apartar o coração da mente. Olhava as pessoas na avenida, me lembrando de que “eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta” como diz o poema de Mário de Andrade e que também em mim as “sensações renascem de si mesmas sem repouso”.

Rodin não saía dos meus pensamentos. Ou melhor, seus pensamentos não saíam de mim. Suas conversas sobre Arte com  Paul Gsell, que ando lendo, guiavam meus olhos entre as gotas d’água da chuva buscando ver os rostos sob os guarda-chuvas e capuzes que passavam do meu lado. Os rostos, as mãos, os gestos, os olhos, a alma. “Não se trata senão de ver”, conversava no meu cérebro a conversa de Rodin. Olhar sem ver não é coisa do artista verdadeiro, pois o artista verdadeiro vê a verdade interior que se esconde atrás das aparências, como se escondem hoje esses rostos atrás de seus cachecóis...

Victor Hugo, escultura de Rodin,
1883, bronze
Mas o mestre Rodin ainda ia falando: não basta olhar apenas com os olhos; para ver a natureza em profundidade tem que ser através dos olhos, mas é o coração que vê! Se não for pelo coração, pela alma, não é possível expressar o caráter, o sentido mais profundo e oculto das coisas.

Um pintor só consegue criar uma obra de arte quando ele consegue expressar esse caráter das coisas do mundo: a contração de uma fisionomia, as rugas de um rosto cansado, as mãos em crispação de medo, o olhar longínquo e profundo. Ou a beleza suave do rosto de um filho adormecido, a mão imóvel de sua mãe preparando a sopa. Ou as rugas no rosto do velho Jorge Saracura e suas mãos ágeis batendo no pandeiro. O sorriso largo em forma de canção que se espalha no rosto de Railídia e os pensamentos cravados na testa do poeta Jeosafá...

“Sim – diz Rodin – eu acusei, acentuei e exagerei a natureza, mas nunca a alterei”.

- Como o fez Velázquez, vai me dizendo ele nesta avenida enquanto o vento corta meu rosto: Velázquez deu glória àqueles anões da Corte, esses seres obrigados “a degradar sua dignidade humana” fazendo de conta que é louco, joguete nas mãos de poderosos.

- Ou como fez François Millet – e eu acrescento Courbet, Gustave Courbet. Sim, sim, que eram capazes de representar um camponês cansado que se apóia no cabo de sua enxada, aquele miserável, tostado de sol a sol, lavrando a terra, como uma mula de carga carregando sua vida nos ombros se embrutecendo no dia a dia por seu quinhão de vida...

Lhe interrompi um segundo: ontem eu vi os olhos de dona Cida da Camisa Verde e Branco, olhar de quem já viu de tudo nessa vida e viu um rapazinho estirado na calçada, com as pessoas passando por cima dele, como se fosse um cachorro, como se fosse um saco. E seus olhinhos – da tia Cida – angustiados sem compreender que mundo é esse que um ser humano é tratado assim? Mas ela exorciza suas angústias soltando sua voz nas rodas de samba, como seus e nossos antepassados negros nas senzalas exorcizavam a escravidão.

La danaîde, Auguste Rodin, 1888, mármore
“A arte expressa os sentimentos da alma humana diante da natureza”, diz Rodin. Ela ensina a sentir o mundo em sua complexidade e beleza. “Revela a seus contemporâneos extasiados mil matizes do sentimento”. Me lembrei de outro livro, de José Parramon, que ensina que os artistas precisam andar no mundo com os olhos bem abertos, com a percepção em sua capacidade total, para que possam captar aqueles momentos – por vezes fugidios – em que o Real se revela, a Natureza se escancara, as coisas do mundo se deixam penetrar profundamente.

O artista realista não é aquele que reproduz somente o exterior. Ele não copia o mundo, mas cria sua obra também baseada no espírito que faz parte da Natureza, que possui uma forma. E Rodin complementa: ele revela “a verdade toda, e não apenas a superfície”. Em seus traços e pinceladas, em suas cores e relações de sombra e luz, o artista expressa a própria alma alcançada pela verdade do que viu, como esse vento gelado alcança minhas mãos enfiadas nos bolsos do sobretudo.

“Em suma, as puras obras-primas são aquelas nas quais não se encontra absolutamente nada que seja inexpressivo, como formas, linhas e cor, mas tudo, absolutamente tudo se resolve em pensamento e em alma”, afirmou o mestre escultor Auguste Rodin a seu amigo Paul Gsell. Que completou: Arte é contemplação - o prazer da mente que penetra a natureza e interpreta o espírito que a anima".

E eu vou sseguindo meu caminho. Vou olhando, vou vivendo. Enquanto meus pensamentos vão formulando ideias. Por que “eu sou trezentos, sou trezentos e cinqüenta”...

"Ôh espelhos, ôh! Pirineus! ôh caiçaras! 
Se um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!"

(trecho do poema Sou trezentos,
de Mário de Andrade)

domingo, 4 de novembro de 2012

Mário de Andrade - Cartas do Modernismo

Mário de Andrade

Mário de Andrade, por Portinari
Uma exposição no Rio de Janeiro estará encerrando as comemorações dos 90 anos da Semana de Arte Moderna, completados neste ano de 2012, com diversas cartas de Mário de Andrade, um dos principais teóricos e idealizadores da semana que marcou as artes e a cultura brasileira no século XX. De 13 de novembro a 6 de janeiro de 2013, o público carioca poderá apreciar esta exposição que terá como local o Centro Cultural dos Correios, no centro da cidade.
Mário de Andrade manteve uma correspondência bastante grande com os mais importantes intelectuais e artistas, entre poetas, músicos, escritores e pintores. Através dessas cartas ele vai delineando seu pensamento sobre o modernismo brasileiro, o tema central das cartas dessa exposição no Rio.

São correspondências trocadas entre Mário e Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Candido Portinari, Di Cavalcanti, Enrico Bianco, Cícero Dias e Victor Brecheret. 

Mário de Andrade,
por Lasar Segall
Mas o outro tema da exposição de cartas são as Artes Plásticas, mostrando como Mário trocou ideias sobre o assunto com Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Henriqueta Lisboa. Mário de Andrade viveu um pouco de tempo no Rio de Janeiro e aprofundou sua amizade com Candido Portinari, como pode ser também observado através das cartas trocadas entre os dois amigos, que hoje pertencem ao acervo do Projeto Portinari.

Mário de Andrade possuiu uma boa coleção de obras de arte, seja porque ele comprou, seja porque tenha ganhado de presente muitas delas. O Instituto de Estudos Brasileiros da USP é que mantém a guarda de parte desse acervo e cedeu algumas dessas obras para a exposição. 

Entre elas estão "As Margaridas de Mário" de Anita Malfatti , "Mulher" de Di Cavalcanti, desenhos e aquarelas de Cícero Dias, Ismael Nery, Portinari, Segall, Zina Aita e Augusto Rodrigues. Também lá estão os três retratos do escritor feitos por Portinari, Lasar Segall e Enrico Bianco. De outras coleções, estão: "Chinesa" de Anita Malfatti e "Menina do Circo" de Di Cavalcanti.


Por causa da fragilidade dos papeis, a maioria das cartas serão apresentadas em fac-símile, e uma parte delas, para melhor compreensão, foi transcrita e impressa.

Carta-desenho de Anita Malfatti a Mário de Andrade
-------------------
Biografia suscinta:
Mário,
por Tarsila do Amaral
Mário Raul de Morais Andrade nasceu em São Paulo no dia 9 de outubro de 1893 e aqui faleceu no dia 25 de fevereiro de 1945. Foi poeta, romancista, historiador, crítico de arte, musicólogo e um dos principais teóricos do movimento modernista brasileiro do século XX.
Em 1922 lançou aquele que seria o ato inicial da poesia moderna brasileira: seu livro Pauliceia Desvairada. Estudou a cultura brasileira a fundo, desde a musicalidade dos nossos índios até o nosso folclore, trazendo à tona os valores culturais do nosso povo, num momento em que a burguesia brasileira conservadora e colonialista, se voltava para a cultura europeia.
Mário foi uma das figuras centrais dos movimentos de vanguarda em São Paulo, que influenciou todo o Brasil. Um dos líderes principais da Semana de Arte Moderna de 1922, ele continuou sua pesquisa sobre o modernismo e a cultura brasileira durante toda a sua vida. Foi poeta, escritor e ensaísta, mas também professor de música e colunista de jornal. Em 1928, resumiu sua pesquisa na cultura do povo brasileiro mais profunda no livro Macunaíma. Nos últimos anos de sua vida foi diretor do Departamento Municipal de Cultura da cidade de São Paulo.
Em homenagem a este grande intelectual, poeta e escritor brasileiro, reproduzimos abaixo um dos seus grandes poemas do livro Pauliceia Desvairada, Ode ao Burguês, que foi lido em um dos dias da Semana de 1922:
Ode ao burguês

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! O homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques zurros!
Que vivem dentro de muros sem pulos,
e gemem sangue de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os "Printemps" com as unhas!
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!
Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
Ao burguês-cinema! Ao burguês-tiburi!
Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano!
"— Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
— Um colar... — Conto e quinhentos!!!
Más nós morremos de fome!"
Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!


Fora! Fu! Fora o bom burguês!...
------------------------------------------
Serviço: 
Exposição: "Mário de Andrade - Cartas do Modernismo"
Abertura: 13 de novembro, às 19h
Visitação: 14 de novembro a 6 de janeiro de 2013
Local: Centro Cultural Correios
Rua Visconde de Itaboraí, 20 - Centro
Rio de Janeiro

terça-feira, 9 de novembro de 2010

São Paulo sem Macunaíma?

Uma herança maldita deixada pela campanha eleitoral pessedebista: as forças obscuras que antes pareciam desmanteladas, ressurgiram de uma forma assustadora durante a campanha para a presidência da República, espalhando ódio e preconceito. Passada a eleição, eleita a Presidenta Dilma Rousseff, a velha elite paulista, retrógrada e conservadora, agora mostra os dentes tintos da mais repugnante xenofobia. Para isso usa, como emissários, seus filhotes internautas.

Grande Otelo interpretando o personagem Macunaíma
Macunaíma, romance do paulista Mário de Andrade, nasceu junto com o movimento modernista brasileiro, na esteira da famosa Semana de Arte Moderna de 1922 e do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade. Eram tempos de descoberta de novos paradigmas trazidos pela modernidade e, como conseqüência, eram tempos de descobrir o Brasil, de conhecer o povo, a cultura e a língua brasileira. Do estrangeiro, propunha Oswald, abocanhemos o que trouxerem de bom, como bons antropófagos que somos.

Mas o Macunaima de Mário de Andrade, publicado em 1928, é a síntese do povo brasileiro. Nessa história, Mário revoluciona a escrita literária, trazendo palavras e expressões tiradas diretamente da fala do povo que ele pesquisou de norte a sul. Em Macunaíma, Mário reúne as várias regiões do Brasil, e também une, num só personagem, as três raças brasileiras: negro, índio e branco. Macunaíma nasceu no meio da floresta amazônica, “preto retinto, filho do medo da noite”.

O herói sem nenhum caráter, como diz o subtítulo do livro, vem para São Paulo atrás de sua pedra (um talismã conhecido da cultura indígena), sua Muiraquitã, que foi roubada pelo gigante comedor de gente Venceslau Pietro Pietra que morava aonde? “No fim da Rua Maranhão olhando para a Noruega do Pacaembu”, ou melhor, em Higienópolis, mesma rua, mesmo bairro de um certo FHC pessedebista. Coincidência?

Como o gigante-ladrão morava em São Paulo, “cidade macota do igarapé Tietê”, Macunaíma e seus irmãos descem o rio Araguaia e vão para a metrópole na tentativa de recuperar sua Muiraquitã. A maior parte do romance se passa em São Paulo, onde acontecem diversos embates entre Macunaíma e Venceslau Pietro Pietra. O autor, nessas refregas entre os dois, satiriza alguns aspectos da vida paulistana provinciana. Ao final, Macunaíma mata o gigante e recupera seu amuleto, partindo de volta para o Uraricoera, seu lugar de origem. O defunto Venceslau é um dos únicos do romance que não se transforma numa estrela cadente no céu...

Macunaíma é a síntese do que é ser brasileiro, essa mistura de raças, essa heterogeneidade cultural que é nossa riqueza. É o negro, o índio e o branco convivendo em paz e gerando essa linda gente bronzeada e plena de valor, lembrando o samba de Assis Valente.

Pois bem. Macunaíma – o povo brasileiro – também mora em São Paulo. Mas há uma certa categoria de gente que também mora em São Paulo que não suporta o diferente, que prefere a monotonia da monocromia cultural e racial. Essa gente não suporta sentar-se ao lado de Macunaíma em seus restaurantes e em suas viagens aéreas. Eles querem que Macunaíma volte definitivamente para o Uraricoera, lá no fim do mundo, onde vivem outros macunaímas pobres, mulatos, injustiçados pelo sistema durante séculos, que não lhes tem dado direitos básicos fundamentais.

Só que a elite de Venceslau Pietro Pietra, o gigante comedor de gente e ladrão do que há de mais essencial na cultura brasileira, essa gente que mora nos Jardins e em Higienópolis não consegue admitir que um Macunaíma-Lula-Operário tenha sido por oito anos Presidente de todos os Macunaímas do Brasil! E até da elite! Elite essa muito mal-agradecida que ganhou ainda mais dinheiro nesses últimos oito anos! Esse gigante-anão, que é essa minoria de paulistas com um olho sempre voltado para 1932, também não admite que uma cunhã (mulher, na língua de Macunaíma) tenha sido eleita para ser a Presidenta de todas as cunhãs brasileiras, pobres e ricas, e de todos os Macunaímas e Venceslau Pietros Pietras do Brasil! Sim, porque Dilma Rousseff disse que vai governar para TODOS os brasileiros!

E querem – eles, essa minoria de retrógrados – expulsar Macunaíma de São Paulo!

Esta semana, pós-eleição de Dilma, os filhotes dessa elite vomitaram em seus twits e posts seu ódio de classe e sua repugnante xenofobia: querem que os nordestinos saiam de São Paulo, querem São Paulo higienizada (né, Higienópolis?) de todos os “forasteiros”. Só que forasteiros são exatamente eles! Essa gente que odeia nordestinos, é ela que está fora de lugar, porque aqui em São Paulo, a imensa maioria dos paulistas são, como todos, brasileiros acolhedores, solidários, fraternos. São pessoas de todas as origens, cores, sotaques, culturas. São Macunaíma, a síntese da nossa cultura, a nossa heterogeneidade, a nossa riqueza!

Mas a mente mesquinha dessa gente medíocre que quer São Paulo para si, não faz ideia do que seria esta imensa cidade sem a mistura encantadora dos mil sotaques que se ouvem nas avenidas. São Paulo, a imensa realidade que cai sobre cada migrante que aqui chega, parece amedrontar quando se mostra do “avesso do avesso do avesso do avesso”.

Mas é aqui que se esconde a Muiraquitã de todos os Macunaímas, brasileiros ou estrangeiros. Nesta Babel de línguas e culturas, São Paulo é mais luz, é mais cor, é mais vida. Sem os nordestinos, as tonalidades de cinza dos céus deste lugar pesariam ainda mais sobre a alma dos que aqui habitam. Tudo seria mais triste sem o canto, a dança, a poesia, o trejeito, o molejo, a fala mansa, o coração quente, o trabalho e o abraço imenso do povo do nordeste que por aqui se aventura e que só deixou seu “cariri no último pau de arara”!

Para as gralhas xenófobas que estrilam seus gritos de morte, faço um convite nordestino:

“Batucada, reuni vossos valores
Pastorinhas e cantores
Expressão que não tem par, ó meu Brasil!
Esquentai vossos pandeiros,
Iluminai os terreiros que nós queremos sambar!”

Xilogravura de J. Borges


sábado, 3 de abril de 2010

Nós, os antropófagos, e a Semana de 22

Cartaz da Semana de Arte Moderna de 1922
Em junho de 1556, os índios caetés – que habitavam uma parte do litoral alagoano – fizeram um verdadeiro banquete antropofágico: devoraram o primeiro bispo do Brasil (que era português), dom Pedro Fernandes de Sardinha. Por causa disso, os índios foram dizimados em cinco anos de guerra. “Tupi, or not tupi, that is the question”, diria Oswald de Andrade, 370 anos depois, em seu Manifesto Antropófago.

Em 1913, a Pinacoteca de São Paulo realizou uma Exposição de Arte Francesa, trazendo da Europa exemplares de mobiliário e decoração franceses, além de pinturas, com o intuito de inspirar, na sociedade paulistana, a estética do bom gosto europeu. A elite brasileira fazia questão, desde o século 19, de se manter em conformidade com a cultura europeia, importando os valores estrangeiros. Isso gerava também, é claro, alguns aspectos de distinção de classe, uma vez que não desejava ser confundida com negros, índios, mulatos, mestiços. Mais uma vez Oswald: “Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental”...

Mas o que esses dois fatos têm em comum? Exatamente a Semana de Arte Moderna de fevereiro de 1922, que se realizou há exatos 88 anos completados no próximo dia 13 de fevereiro.

A nata da sociedade paulistana que, naquelas três noites, subiu as escadas do Teatro Municipal de São Paulo – vestida rigorosamente à caráter para assistir a apresentações musicais de Heitor Villa-Lobos e Guiomar Novais, conforme dizia um pequeno reclame escondido num canto dos jornais da época – jamais poderia imaginar de que seria, muito à contragosto, testemunha histórica de um momento de virada na vida artística e cultural brasileira. Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Graça Aranha, Menotti Del Picchia, Di Cavalcanti, Anita Malfatti e outros jovens artistas brasileiros convencidos de que um salto havia que ser dado – um salto para DENTRO do Brasil, pois os ventos da modernidade forçavam esse salto – chocaram a platéia do teatro lotado, enquanto Ronald de Carvalho declamava em alto e bom som o poema “Os Sapos”, de Manuel Bandeira, que criticava o gosto da refinada poesia parnasiana:

“Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!"
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado.”

As linhas neoclássicas dos detalhes arquitetônicos do Teatro Municipal pareciam vir abaixo! Vendo-se pega numa espécie de flagrante, a elite paulistana desabou em uivos, gritos e vaias, e o caos tomou conta da Semana de Arte Moderna de 1922. Nos dias que se seguiram, os jornais registravam aquele evento como uma “verdadeira falta de respeito” à gente tão refinada, à nata da sociedade paulistana! Um bando de rapazes e moças enlouquecidos, recitando poemas sem rima, sem metro, e mostrando pinturas e esculturas que eram um acinte ao gosto neoclássico e parnasiano da época! Um horror! As damas e os cavalheiros de Higienópolis e dos Campos Elíseos tinham sido acintosamente agredidos por aquele bando de loucos futuristas (denominação que se dava aos modernistas na época).

Mas além dos gritos histéricos e dos apupos, as senhoras e os senhores deixaram bilhetes malcriados atrás das pinturas expostas no hall do teatro, incapazes de achar beleza num homem que parecia sofrer do fígado de tão verde, numa tela de Anita Malfatti. Os modernistas haviam conseguido sacudir a modorrenta e provinciana elite de São Paulo, como o desejara Di Cavalcanti, que havia sugerido a Paulo Prado (escritor) a realização de "uma semana de escândalos literários e artísticos de meter estribos na burguesiazinha paulistana".

Eram os índios caetés de volta ao palco, sobre os ombros de Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Mário de Andrade, Di Cavalcanti e dos outros! A elite brasileira concentrada no Rio de Janeiro e em São Paulo, vivia sob os eflúvios da vida europeia, sua referência para todos os seus valores. A Europa estava lá para ser imitada e idolatrada! Nada da cultura da gentalha nacional, “peste dos chamados povos cultos e cristianizados”, diria Oswald de Andrade.

A Semana de Arte Moderna amplificou-se ao longo das décadas, e suas influências se seguiram além das três noitadas caóticas e ruidosas. Teriam feito ruído, os índios, enquanto comiam o bispo? Sua antropofagia alcançou os tempos novos que começavam com o modernismo brasileiro: já que “o de fora” é inevitável e deve ser assimilado, que ele seja primeiro deglutido! Deglutição pós deglutição, nas artes plásticas, Anita Malfatti e Di Cavalcanti, e depois Portinari, Tarsila do Amaral, Clovis Graciano, Carlos Scliar, Quirino e Hilda Campofiorito, Lívio Abramo – e tantos outros – expressaram em suas obras o efeito colateral da refeição cujo prato era (sempre) o modelo europeu: já que a nova estética exigia novos pincéis e novas formas de pintar, que se pintasse o Brasil. Que se modernizasse o Brasil.

Alguns dos modernistas de 22:
Mário de Andrade e outros
Essa onda modernista alcançava também o outro lado da cidade, a região do Brás e do Cambuci, aonde viviam os operários e os imigrantes pobres, como o pintor Alfredo Volpi. Esses artistas que estavam desse lado da cidade, criaram o chamado Grupo Santa Helena, que era uma comunidade de artistas que se encontravam para trabalhar e aprender juntos num mesmo prédio do centro de São Paulo. Desses modernistas de outro calibre – uma vez que não eram intelectuais como os outros – surgiram pintores como Rebolo, Aldo Bonadei, Clovis Graciano, Mário Zanini, etc, que foram reconhecidos a partir da década de 30.

Hoje, ano 454 da Deglutição do Bispo Sardinha, os efeitos da Semana de Arte Moderna de fevereiro de 1922 ainda continuam lançando suas questões: como defender a cultura brasileira em meio a um mundo “globalizado”? Como defender as artes plásticas dessa “arte” vazia de sentido e conteúdo, minimalista e cansativa (e já agonizante)? Como argumentar contra o idealismo conceitual que antecede a obra? Como permitir que possibilidades infinitas não sejam subjugadas pela mesmice estética imposta pelo sistema de arte atual? Como vencer o velho problema da falta de espaço para os reclames (e obras de arte) que não sejam os preferidos da mídia? Como continuar engolindo os novos Sardinha e não sofrer de indigestão? Como voltar a meter estribos na burguesiazinha metropolitana?

Oitenta e oito anos depois da eclosão modernista no Brasil, ainda vemos, felizmente, que os componentes e as facetas da realidade são riquíssimos e inumeráveis! À contragosto do atual establishment...

Como bons antropófagos, comamos-lhe!