Multidão na Praça ROSA, domingo em São Paulo. O músico Criolo, de azul, de frente pra foto |
Dois terços da população de
São Paulo se espreme em trens e metrôs todo santo dia! Em números? Uns sete
milhões de pessoas! Sete milhões! Sete milhões de paulistanos deixam suas casas
diariamente para trabalhar, estudar, se movimentar nas demandas da vida. Só
quem mora em São Paulo
e já tomou trem ou metrô, pelo menos uma vez em horário de pico, sabe o que
significa viver nesta cidade, trabalhar e estudar nesta cidade, se espremendo
literalmente, empurrando e sendo empurrado trem a dentro trem a fora, pra não
perder a hora...
São Paulo tem um déficit imenso
de moradias: pelo menos 80 mil paulistanos moram em cortiços, milhões moram em
favelas, mais de 15 mil pessoas moram nas ruas! Escolas públicas e creches
também são insuficientes e as disputas por vagas são permanentes. Essa
metrópole onde todos os números são gigantescos, possui alguns números bem
pequenos, como as pouco mais de 100 bibliotecas para seus quase 12 milhões de
habitantes!
Os bairros de São Paulo,
especialmente os da periferia, carecem de tudo. Não existe (ainda) uma política
descentralizadora do emprego, o que obriga esses milhões de paulistanos a
perder horas por dia somente se transportando de um lugar a outro. Mas esses
bairros, em sua maioria, também não têm cinemas, nem livrarias, nem bibliotecas públicas, nem escolas de
qualidade, nem atendimento à saúde em número e qualidade minimamente
suficientes, entre outros itens essenciais à qualidade de vida.
Até 2012, a vida cultural
coletiva se baseava em uma única Virada Cultural por ano, mesmo assim atraindo
uma média de quatro milhões de pessoas. Porque São Paulo não tem muitos espaços
culturais para a sua população. Museus, cinemas e teatros – os que existem –
são caríssimos.
Por isso
não foi pouco o que aconteceu domingo na Praça Roosevelt, nomeada de Praça
Rosa.
O músico Criolo |
Era um Festival. Nomeado
como “Existe amor em SP”, os idealizadores se inspiraram na música do
paulistano Criolo “Não existe amor em SP”, uma espécie de releitura da cidade
nos tempos atuais. É bom lembrar que em dezenas de anos, tivemos só duas
prefeitas interessadas em atender a população mais carente: Luísa Erundina e
Marta Suplicy. Fora elas, são décadas de descaso com a população mais pobre.
São décadas de descaso com a qualidade de vida dos moradores desta cidade. São
décadas de descaso com a vida cultural na cidade de São Paulo.
Por isso não foi pouco,
repito, o que aconteceu domingo na Praça Rosa.
Desde as duas da tarde,
grupos de pessoas, casais, pessoas sozinhas, muitas vestidas de rosa (como sugeria
a organização do evento) se dirigiam à Praça. “A praça é do povo como o céu é
do condor”, já dizia nosso poeta baiano Castro Alves. E o povo não pode ver uma
praça, já vai se aglomerando nela. Assim aconteceu domingo na Praça Rosa. O
povo tomou a praça.
Para dizer uma coisa:
queremos qualidade de vida, queremos cultura, queremos estar juntos, queremos
ser felizes, queremos amor... Coisa pouca, quase nada, apenas as necessidades
de qualquer ser humano: ser feliz e ser amado, cuidado, valorizado. Gente! E
“gente é pra brilhar!” já dizia o outro poeta, Maiakovski.
Na praça, grupos, bandos,
tribos. A imensa maioria era de jovens, mas pessoas de todas as idades se
reuniram lá, de crianças a idosos. Os skatistas, que esqueceram um pouco a
avenida Paulista porque o piso da praça Rosa é mais amplo, estavam às dezenas
com seus skates. Tendas em alguns pontos reuniam bandas e juntavam gente,
enquanto o palco principal aguardava os principais músicos do Festival, como
Criolo e Gaby Amarantos.
O que Criolo deve ter
pensado ao ver aquela multidão, vinte mil pessoas à sua frente reunidas para
dizer que “existe amor em SP”? Teria lembrado de uma música de alguém que
quando chegou por aqui não entendeu nada da “dura
poesia concreta de tuas esquinas
e da deselegância discreta de tuas meninas”?
e da deselegância discreta de tuas meninas”?
Mas Criolo
mandou:
“Não existe amor em SP
Um labirinto místico
Onde os grafites gritam
Não dá pra descrever
Numa linda frase
De um postal tão doce
Cuidado com doce
São Paulo é um buquê”
Um
Onde os grafites gritam
Não dá pra descrever
Numa linda frase
De um postal tão doce
Cuidado com doce
São Paulo é um buquê”
O buquê inteiro, a
multidão, cantava cada letra da música de Criolo. Repetia com ele o refrão de
um tempo que dominou corações e mentes dos moradores desta Paulicéia desvairada
de Mário de Andrade: Não existe amor em SP!
“Os bares estão cheios de
almas tão vazias
A ganância vibra, a vaidade excita
Devolva minha vida e morra afogada em seu próprio mar de fel”
A ganância vibra, a vaidade excita
Devolva minha vida e morra afogada em seu próprio mar de fel”
Neste momento um grito
saiu da garganta e da alma da multidão:
“AQUI NINGUÉM VAI PRO
CÉU!”
Ouviram seus malafaias,
seus russomanos da vida, seus serras, seus conservadores de plantão! Aqui ninguém
quer o céu de vocês, aqui a gente quer “comida, diversão e arte”. E qualidade
de vida! E ser tratado como gente!
Aqui – conservadores –
aqui está fundado – desde Mário de Andrade – o desvairismo!
Gaby Amarantos de rosa |
Desvairismo dos poetas,
dos estudantes, dos skatistas, dos andadores de bicicleta, dos trabalhadores,
dos artistas, das senhoras e dos senhores, das crianças, dos homossexuais, dos
militantes de esquerda que, sim, também estavam lá, dos que querem um mundo bom
para a maioria. “A praça é do povo, como o céu é do condor”!
Era um Festival político
cultural. As frases e palavras de ordem podiam soar diferentes, novas, como
“aqui ninguém vai pro céu” ou “mais amor”. Mas as pessoas estavam lá em
congraçamento festivo, em alegria coletiva, em confraternização de todos com
todos. Não houve nenhum incidente, uma briga, nada. A praça estava sendo coletivamente
cuidada: sacos de lixo espalhados; garrafões de água que qualquer um podia
pegar e se servir; espaços físicos, como os jardins, protegidos por todos;
confecção em grupo dos cartazes; montagem dos palcos; defesa da festa de todos.
Não havia distância entre o palco e o público, entre os artistas e o povo. Um
podia tocar o outro.
Era um festival de quem
cantou junto mas que também pensou sobre viver nesta cidade.
Mais uma vez está
provado: a arte e a cultura têm o poder de juntar gente, multidões; de
inspirar, de ajudar cada um a levar sua vida... E contra todo o descaso do
poder público dos últimos anos, contra essas administrações higienistas,
violentas e desumanas do PSDB-DEM, o que se ouviu na praça Rosa no domingo foi:
- Sim, existe amor em SP!