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segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Amálgama


Algumas observações sobre cultura.

Muito tenho pensado sobre o tema da dominação do pensamento europeu sobre nossa cultura brasileira nestes dias. Há bastante gente também pensando em como isso se deu. Como isso se dá. Porque é justo resgatar do mais fundo de nossas almas o que lá pode estar ainda oculto: o que nos fará mais ricos quando vier à tona em toda a sua potência, talvez uma brasilidade nova que, como uma estrela, iluminará algo dos passos de um mundo que se globaliza...

Somos um país cuja história oficial se iniciou em 1500. Verdade é que povos indígenas já estavam por aqui, mantendo sua vida, sua economia e política, e sua cultura, de modo independente dos povos que já habitavam a Europa e que chegaram até aqui. Portugueses, franceses e holandeses, principalmente, se lançaram sobre o território recém-descoberto com sede de riqueza e lucros para seus reis, imperadores, governantes, e até sacerdotes.

Ocorre que trouxeram consigo além de armas de conquista, sua visão de mundo, sua cultura que, sendo imposta, foi mesclando-se com a cultura indígena, local, assim gestando parte do que somos hoje enquanto povo.

Os conquistadores europeus também arrancaram de suas casas e trouxeram para cá milhões de africanos ao longo de séculos de escravidão. 

Assim como os europeus, os africanos - em posição inferior, obviamente - também trouxeram sua visão de mundo e sua cultura.

Os brancos europeus - “donos” do território conquistado - impuseram sua religião, seus costumes, sua alimentação, suas vestimentas. Indígenas e africanos foram obrigados a aprender sua fala, suas rezas, seus modos à mesa, seus costumes. Foram obrigados a adorar seu Deus, o único; coisa bizarra para duas culturas que eram mais generosas em termos de panteão: possuíam muitos deuses, e não só um.

Mas no meio de tudo, indígenas e africanos mostraram jeitos, comidas, cantos, rezas. Nas caladas das noites, foram-se imiscuindo entre as gentes de pele clara, gerando filhos já não tão claros, verdadeiros nascidos das três raças.

"Lavrador de café",
Portinari
Com o passar dos séculos, tudo se misturou e a mandioca entrou na cozinha: três culturas formam a nossa, mas é claro que com a absoluta primazia dos dominadores brancos europeus. A cultura dominante em nosso país é a cultura das classes dominantes desde 1500. Com toques, na história mais recente, de imposição cultural com fortes traços imperialistas.

Hoje, há gente se esforçando para restaurar a importância - extrema - da cultura africana sobre a brasileira, e da cultura indígena sobre a brasileira. Desde Mário e Oswald de Andrade, tenta-se destacar o papel fundamental de negros e índios em nossa formação. E isso é absolutamente inegável.

O que é inegável também que nos formamos como povo, em termos de educação, de pensamento, de filosofia, de ciência - com todas as narrativas dessas visões de mundo - com o viés dos colonizadores europeus. São Tomás de Aquino, Agostinho de Hipona, John Locke, Montesquieu, Voltaire, Adam Smith; Rousseau, Diderot, Descartes, Immanuel Kant, Karl Marx; Nietzsche, Schopenhauer; Johannes Kepler, Isaac Newton, Galileu Galilei, Albert Einstein, Stephen Hawking; Johann Sebastian Bach, Mozart, Beethoven, Schubert; Leonardo da Vinci, Rembrandt, Velázquez, Ingres, Van Gogh…

Poderíamos fazer uma lista imensa de europeus que formam a nossa visão de mundo, desde filósofos a artistas. Lembrando que a própria Europa é resultado do amálgama biológico de muitos povos, e filosófico de culturas mais antigas, como a grega. Europeus se impuseram sobre as Américas, sobre terras descobertas nos confins da Austrália e Nova Zelândia… Sobre partes da África e da Ásia.

Sua visão de mundo e sua forma de estar no mundo se impôs, e isso é fato. Muito mais recentemente na história, a humanidade branca europeia teve acesso ao conhecimento da filosofia oriental, chinesa, indiana, japonesa. Não levaram a sério (porque eram rudes os conquistadores, além de sedentos por riqueza) as culturas de povos indígenas ou aborígenes que foram encontrando pelo caminho. Não respeitaram o modo de pensar e de ser dos africanos que sequestraram como escravos para o Mundo Novo. Havia que passar por cima de tudo como um trator, porque o interesse maior era o de seus governantes e sua sede de riqueza e lucro. E para dominar, domina-se impondo religião, valores e costumes. Sobre todos os que não são brancos de pele, com suas esquisitices e idiossincrasias.

Assim foi e assim ainda é. O real é que todos somos resultado desse amálgama. Com predomínio óbvio da cultura ocidental que, em maior dosagem, permanece fazendo parte de nossas vidas, nossas formas de pensar, nossa ciência, nossa arte.

Mas há os entremeios...  

Há as burlas, as entrelinhas, os buracos na receita desse bolo… Há o não-dito, mas pensado. O sugerido sem ser detalhado. Há as vias tortas, os descaminhos, as sinuosidades. O torto. O imprevisto. O inexplicado. O imponderável. 

E há um Macunaíma dentro de cada um de nós, que ainda vai engrupir e engolir todos "eles"!

Grande Otelo, ator brasileiro representando o personagem no filme "Macunaíma"

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Indústria cultural ou variedade?

Foto referente ao filme "Quero ser John Malcovitch"
No último dia 17 de setembro, o jornal português “Avante!”* publicou um artigo de autoria de Manuel Augusto Araújo, arquiteto e crítico de arte português, intitulado “Tempo de antena cultural”. Como concordo com suas opiniões expressas nesse texto, tomei a liberdade de editá-lo e adaptá-lo à nossa realidade brasileira, que não é muito diferente; talvez seja mesmo pior do que a portuguesa, em termos de descaso das autoridades em relação à problemática da Cultura.

Manuel começa seu artigo criticando o atual governo português, que se deixa levar pela exaltação do mercado financeiro, “o que não desresponsabiliza os artistas, os produtores culturais que concorrem para esse estado de coisas actual. Degrada a cultura nos seus múltiplos sentidos de afirmação da condição humana e da transformação da vida. O que não é compaginável com a sedução pelo dinheiro”.

Ele critica profundamente as políticas culturais baseadas nas regras do Mercado Financeiro. “O que anteriormente tinha um forte vínculo com o saber, a transmissão do saber e do saber-fazer na cultura e na ciência, hoje são achas na fogueira da promoção. O fundamental, o que interessa é vender, vender a qualquer preço”.

No nosso caso brasileiro, estamos passando por uma fase, há décadas, de supremacia das políticas que favorecem as indústrias culturais e suas culturas massificadas. Nossos governos, incluindo o atual, derramam bilhões de reais para manterem os sinais de televisão da péssima Rede Globo, por exemplo, que leva seus padrões de vida, de pensamento, de estilo para todas as regiões do nosso país. Estamos atravessando uma fase que provavelmente nos levará a uma standardização da nossa tão rica e variada cultura brasileira. A uniformidade cultural - já falei isso aqui há algum tempo atrás - é a morte da cultura!

Banda de pífanos de Caruaru
Ver a questão cultural como mais uma forma de agregar mais dinheiro aos bolsos dos já ricos agentes do Mercado Financeiro é o que tem sido a realidade do que vivemos. Mesmo que os agentes públicos atuais neguem esta forma de ver as coisas, mesmo assim não vemos acontecer de serem tratados no mesmo patamar o último espetáculo dançante de Cláudia Raia e os músicos da Banda de Pífano de Caruaru. Se o Estado brasileiro pouco se importa atualmente em incentivar de norte a sul do Brasil as ricas e variadas manifestações culturais do nosso povo, acontece que isto continuará sendo feito por quem quer ter lucro, ou seja, apostando na mais nova dupla sertaneja que gere milhões, porque dar incentivo aos brincantes do Bumba meu Boi da Maioba de São Luís do Maranhão não interessa ao Mercado.

Diz Manuel, muito bem dito: “Para quem detém poder na área da cultura, as manifestações culturais são instrumentos de promoção publicitária dos bens culturais. Uma visão que não se distingue da dos departamentos comerciais, do marketing de qualquer empresa, actue ou não actue no campo da produção de bens culturais”.

Ele continua apontando a visão de mercado que tem seu foco no lucro e não na promoção do saber:

Uma instalação de uma edição qualquer
da Bienal de Arte de Veneza
Bienais de artes, festivais literários, colóquios, exposições, lançamento de livros e discos, e o que a imaginação do mercado endrominar, que se multipliquem não com qualquer objectivo cultural mas a bem da promoção publicitária, da venda do «produto» independentemente do valor efectivo”.

“A cultura é vista como um enorme circo iluminado por um sol enganador em que a omnipresente linguagem dos mercados esvazia de significado da cultura, do que é cultural na diversidade da transmissão e aquisição de saberes”.

Diz mais:

“O direito à cultura reduz-se ao direito dos consumidores de escolher um livro, um filme, ir a um concerto, de visitar museus ou exposições de que perdeu o norte nos catálogos de farta oferta em que deliberadamente se confunde o que é entretenimento, padronizado por indústrias que exploram um gosto médio sem espessura, que não obrigam nem incentivam qualquer reflexão, com as da criação artística e cultural que promovem e incentivam a transmissão e a produção de conhecimento”.

Na minha área - a das artes plásticas - por exemplo, nós que não temos um marchand, um agente qualquer do mercado de arte, ficamos à mingua em nossos ateliês, felizes que somos de vender um quadro a cada seis meses, ou de expor nas paredes de algum restaurante, que é o que restam aos artistas que vivem de fora do mercado. Pior do que isso, é a apropriação do Mercado Capitalista sobre o estilo da arte que se quer impor como prática, a tal da “arte contemporânea” que se limita à arte de conceito, à videos, à instalações, à pinturas sem sentido. Eu e mais tantos outros pintores, fazemos arte contemporânea simplesmente porque somos contemporâneos! Estamos vivos e bem vivos! A arte figurativa retoma um grande fôlego nos tempos atuais. Mas no Brasil não há um incentivo à variedade da produção artística, há o artista-standard que agrada aos agentes de Mercado. Em geral, eles são produzidos na ECA-USP e FAAP, em São Paulo, e na Escola do Parque Lage, no Rio. Essas escolas produzem para o Mercado. E prestam um grande desserviço à arte brasileira, quando espalham ideias do tipo “desenhar não é mais preciso”. 

Isso sem falar no fato de que as artes plásticas se converteram em um dos melhores produtos para aqueles que precisam lavar dinheiro. Traficantes e corruptos de todos os tipos têm investido muito dinheiro no chamado "mercado de arte".

Bumba-meu-boi do Maranhão
Mas o Estado brasileiro também se demitiu em promover a cultura e os artistas que não passam pelo crivo da indústria cultural. Parece que em Portugal também, como afirma o crítico Manuel Augusto: “A primeira das muitas causas de não poder haver qualquer expectativa desse género é a demissão do Estado em promover a cultura, nomeadamente através do serviço público de rádio e televisão, meios que tinha a obrigação de utilizar. Em linha com essa demissão, estão os critérios de atribuição de subsídios à criação artística e cultural que deveriam privilegiar a descentralização cultural e não os de uma suposta valorização da produção artística nacional nos mercados internacionais com critérios mais que duvidosos”.

Ele continua criticando essa política de incentivo a uns poucos e de descaso a muitos artistas. “Veja-se o apoio concedido à dupla João Louro/Maria do Corral (artistas portugueses contemporâneos), que se inscrevem na grande farsa que é a arte contemporânea, que tanto deslumbram Barreto Xavier e no apoio recusado à XVII Festa do Teatro/Festival Internacional de Teatro de Setúbal, com significativas diferenças de custos em euros, a bitola da Secretaria de Estado da Cultura, para se perceber os não desígnios culturais da governação”.

“As palavras-chave dessas políticas ditas culturais são mercado e promoção”. 

No nosso caso, repito: a falta de política cultural do governo brasileiro permite que ela seja feita e colocada em prática por quem quer gerar e obter lucro com a produção artística e cultural. O resultado, que já vem ocorrendo há décadas, é uma cultura brasileira que se empobrecerá na direção de uma uniformidade cultural, imposta pela indústria cultural. Não queremos um Brasil standardizado culturalmente! Queremos um Brasil rico culturalmente, com sua cultura variada em seus quatro cantos!

O que Manuel Araújo critica lá, criticamos cá. Nós, produtores culturais, além de tudo somos obrigados a não limitar nossa ação ao que produzimos, mas - para que não morramos como artistas - a promover nós mesmos nossas obras. “Há uma fé ilimitada que todas as acções de promoção, desde que esse seja o objectivo primordial, são boas, não interessando se são excelentes ou medíocres”, diz ele. “Todos sabem, menos os governantes e seus agentes, que promover a mediocridade cultural tem o efeito de amplificar a mediocridade (grifo meu). Legitimar a mediocridade até se atingir o ponto de não retorno da ausência, do vazio cultural, no aniquilamento da qualidade, empurrando os cidadãos para a iliteracia cultural, o que os amputa da capacidade do exercício da cidadania”.

“A afirmação e a convicção de que «a cultura» gera lucro, o ex-libris da Economia da Cultura e dos enormes equívocos das indústrias culturais e criativas, onde se confundem, sem inocência, actividades industrializadas de entretenimento com actividades sem lucro financeiro. Legitima os critérios da economia do dinheiro, os interesses dos patrocinadores, a contabilidade dos públicos.”

E como o capitalismo é um sistema que se baseia no lucro puramente, vai transformando o mundo num imenso depósito de bens de consumo e transformando a todos em consumidores. Mas nós somos mais do que consumidores neste mundo de meudeus! Somos todos diferentes, e esta é nossa riqueza! Somos seres humanos, cada um com cada cara, cada cor, cada história de vida...


..............
* Jornal Avante!, órgão do Partido Comunista Português

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Tenho por mim

Hoje encontrei este desenho do poeta cubano Nicolás Guillén, que fiz há algum tempo. Porque recebi hoje este poema dele, que reproduzo abaixo, em tradução livre minha do espanhol. Quando terminei de ler o poema, lembrei dos rostos que já desenhei e que caberiam dentro desta poesia. Assim como me lembrei de muitos rostos do meu povo, o brasileiro.

O momento atual no Brasil é preocupante: a elite brasileira, a velha, aquela rançosa, cheia de nhém-nhém-nhéns, mais uma vez quer se apossar do poder político brasileiro pra fazer a gente brasileira voltar para sua senzala, suas favelas, sua pobreza, sua cabeça-baixa, seu nordeste sofrido, sua inferioridade... de onde nunca deveria ter saído! Segundo esta elite vingativa.

Mas todos tinham começado já a se levantar depois de séculos de abandono! 

Ah elite brasileira retrógrada, incapaz de enxergar mais longe... 

("Garoa do meu São Paulo - timbre triste de martírios (...) São sempre brancos e ricos. Garoa sai dos meus olhos!", no dizer de outro poeta, Mário de Andrade.)

Ah Euclides da Cunha, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado, Florestan Fernandes, Mário de Andrade! Ah Ariano Suassuna, Antonio Nóbrega, Rolando Boldrim, Chico Buarque, Marieta Severo, Gilberto Gil! Ah amantes todos do Brasil, do seu povo e sua cultura! 

Se não tomarmos cuidado hoje, a roda volta a girar para trás de novo...



TENHO POR MIM


Nicolás Guillén

Quando me vejo e toco
eu, João sem Nada ontem
e hoje João com Tudo
e hoje com tudo
volto meus olhos e miro
me vejo e toco
e me pergunto como isso pode ser.

Tenho por mim, vamos a ver,
eu tenho o gosto de andar por meu país
dono de quanto existe nele
olhando bem de perto o que antes
não tive e não podia ter.


Safra posso dizer,
monte posso dizer,
cidade posso dizer,
exército dizer,
agora meus para sempre, e teus, nossos
e um amplo esplendor
de raio, estrela, flor.

Tenho por mim, vamos a ver,
tenho o gosto de ir
eu, campesino, operário, gente simples,
tenho o gosto de ir
- quereis um exemplo? -
a um banco e falar com o administrador,
não em inglês,
não falando “senhor”,
mas dizendo “compañero”, como se diz em espanhol.


Tenho por mim, vamos a ver,
que sendo um negro
ninguém pode me deter
à porta de uma festa ou de um bar.
E nem no carpete de um hotel
gritar-me que não tem quarto,
um mínimo quarto, e não um quarto enorme,
um pequeno quarto onde eu possa descansar.

Tenho por mim, vamos a ver,
que não há guarda rural
que me agarre e me prenda em um quartel,
nem me arranque e me expulse de minha terra
no meio do caminho real.


Tenho por mim que como tenho a terra, tenho o mar,
não “country”,
não “jailáif”,
não tênis e não “yatch”,
a não ser de praia em praia e onda em onda,
gigante azul aberto democrático:
enfim, o mar.


Tenho por mim, vamos a ver,
que já aprendi a ler,
a contar,
tenho por mim que já aprendi a escrever
e a pensar
e a rir.

Tenho por mim que já tenho
onde trabalhar
e ganhar
o que preciso para viver.

Tenho por mim, vamos a ver,
tenho o que eu teria que ter.












domingo, 26 de maio de 2013

Viradas culturais

Virada Cultural 2013: e o povo na rua dançando...
Andar pelo centro de São Paulo lotado de pessoas de todas as regiões desta megalópole é uma sensação muito boa. Desde a Pinacoteca do Estado até o Pátio do Colégio, é possível andar a pé nas ruas sem carro, ver a cidade, observar que ainda temos prédios lindos, que contam histórias dos vários passados desta cidade. Ao lado do vale do Anhangabaú, ainda é imponente o edifício Martinelli, que já foi o mais alto do Brasil por mais de dez anos, desde a década de 1930. Essas centenas de pessoas que passeiam noite a dentro pelas ruas do centro, vieram aqui para assistir a shows de música, teatro, dança, cultura popular, cultura clássica. Essa aglomeração que reune anualmente 4 milhões de pessoas no centro de São Paulo é a nossa Virada Cultural.

O centro de São Paulo ainda é o ponto de confluência dos paulistanos. Lugar de passagem para o trabalho, espaço de comércio, de escritórios, da Praça da Sé, do Largo de São Francisco e das velhas arcadas da Faculdade de Direito da USP. Mas é também o lugar do abandono de prédios e ruas, da degradação das construções invadidas, transformando antigos belos prédios em favelas verticais, como as que são vistas próximas à Estação da Luz. 

E, principalmente, é onde os pobres, os miseráveis, os moradores de rua, os loucos, os menores abandonados e os menores e maiores melientes se juntam em bandos, para se defender ou para atacar, se preciso for... É onde magotes de pessoas que mais parecem zumbis se juntam também para fumar aquela pedra que está virando epidemia em todo o território brasileiro: o crack. Os molambos humanos da Cracolândia agora espalhada, com seus olhares travados e oleosamente úmidos, mal tem consciência do que se passa. Apenas devem ver mais possibilidades de arrumar uns trocados para comprar a próxima pedra...

É aqui, nesta região toda, bela e triste, encantadora e amedrontadora, que acontece desde 2005 o maior evento cultural da cidade de São Paulo.
Gal Costa, na Virada Cultural 2013

Neste ano de 2013, todos os torcedores contra a gestão petista na maior capital do Brasil fizeram questão de alardear para todas as regiões que a Virada Cultural “Petista” deu em violência, deu em arrastões e roubos, deu em morte. A Polícia Militar - do governo do Estado, nas mãos do PSDB - fez ouvidos moucos e fechou os olhos para o que acontecia. Não podiam sair de suas bases, disseram eles todas as vezes que foram chamados a intervir.

Pois bem. A Virada Cultural foi criada em 2005 pelo governo Serra, do PSDB. Até onde sabemos, essa gente não tem muito interesse em juntar gente e por isso deve ter se surpreendido quando as multidões foram para as ruas. Porque gente gosta de arte, gente precisa de arte para viver. Como de bebida e de comida, e de saúde e educação, e de segurança e transporte público de qualidade. E gente gosta de passear com os outros do lado, mesmo desconhecidos, para celebrar alguma coisa, ou simplesmente para se ajuntar. E se ajuntar para ouvir música, por exemplo, é uma das experiências mais enriquecedoras do espírito humano; milhares de pessoas cantando juntas é um momento de maravilhamento que nos fortalece e nos aproxima ainda mais.

Mas, na minha opinião, este modelo se esgotou.

A Virada Cultural de São Paulo precisa se reinventar, se redistribuir, se descentralizar e, acima de tudo, a Prefeitura da gestão de Fernando Haddad precisa fazer a “Virada Cultural” que a cidade necessita! E não é num evento único anual que isso vai acontecer. A Virada Cultural tem que acontecer no dia a dia da cidade, aproveitando todos os espaços públicos que são muitos, todos os centros culturais que são muitos, todos os museus, bibliotecas, CEUs, escolas municipais, associações de moradores... Esses lugares precisam ter suas atividades culturais em TODOS os finais de semana, dando oportunidade para que o povo se agrupe em redor de trupes de artistas, de bandas de música, de teatro, de todas as intervenções artísticas possíveis.

Anualmente até pode-se fazer um resumo de toda esta efervescência cultural da nossa cidade, fazendo uma Virada de 24 horas de arte e cultura. Mas DESCENTRALIZADA. 

Por que não levar Gal Costa para cantar em São Mateus, por exemplo? 

Por que a Orquestra Sinfônica de São Paulo não pode ir se apresentar no Jardim São Luís e a Daniela Mercury na Vila Sabrina? 

Por que a Viradinha Cultural não pode se espalhar pelos CEUs e escolas municipais da cidade, dando oportunidade para todos os artistas voltados para o público infantil poder se apresentar? 

Por que não se pode abrir todos os Museus da cidade nestas 24 horas com entrada livre e gratuita para que todos possam ver as exposições disponíveis nesses espaços culturais? 

Por que os cinemas não podem se integrar e também passar 24 horas de filmes de qualidade, dos clássicos aos brasileiros, para que o povo possa ter escolha entre uma comédia da Globo Filmes e um filme de Charles Chaplin, por exemplo? 

Por que as Bibliotecas Públicas não podem abrir por 24 horas as suas portas para que o mundo dos livros seja conhecido e absorvido por nossa gente?

São questões que precisam ser revistas por uma gestão popular na Prefeitura de São Paulo, sob o comando de Fernando Haddad. Já sabemos que a gestão de Dilma Roussef não tem dado a devida importância à Cultura brasileira, não a mesma que foi dada por Luis Inácio. O Secretário de Cultura de São Paulo é ex-Ministro da Cultura do período do Presidente Lula, que apoiou a criação dos Pontos de Cultura, que apoiava o Cultura Viva, que tinha interesse em dar vez aos produtores culturais de todo o Brasil, de norte a sul. Cabe a nós torcer para que ele se volte para a vida cultural de São Paulo que acontece no dia a dia? 

Há milhares de artistas por aqui, de todos os naipes e linguagens, fazendo seu trabalho, uns mais outros menos silenciosamente, diariamente, em todos os recantos, desde a Zona Leste à Zona Sul, do Centro, da Zona Norte e da Zona Oeste. Basta ver o crescimento dos Saraus poético-músico-literários que abastecem com arte as periferias da cidade. Basta ver as feiras de arte, as rodas de samba, as bandas de garagem, os grupos de teatro, de circo, de poetas, de grafiteiros, de hip-hop, os pintores em seus ateliês, os desenhistas urbanos, as festas de padroeiros, os batuques nos terreiros, a dona de casa que canta no tanque de lavar roupa...

Porque o ser humano precisa de Arte para viver, sim! A vida não é só o automatismo do comer-beber-dormir, e trabalhar só para se manter vivo! A vida é mais: exige força, exige combate, exige coragem, exige lucidez para lidar com os embates diários da existência em um sistema injusto onde a distribuição da riqueza produzida pela maioria imensa é apossada por uma minoria absurda! Mas viver também é sonhar, é criar, é imaginar e tudo isso necessita de expressão. Sem arte, sem o simbolismo que a arte proporciona, sem o prazer da alma que a arte propicia e que eleva o ser humano ao status de criador e que produz encantamento, o que resta? Ir para os aglomerados de desesperados que lotam os templos evangélicos ou os infestados caminhos das drogas?

As escolhas são feitas diariamente, senhores. E o caminho da fruição artística e da riqueza cultural do nosso povo e dos nossos artistas está aqui diariamente, senhor Secretário!



terça-feira, 23 de outubro de 2012

Existe amor em SP?

Multidão na Praça ROSA, domingo em São Paulo. O músico Criolo, de azul, de frente pra foto

Dois terços da população de São Paulo se espreme em trens e metrôs todo santo dia! Em números? Uns sete milhões de pessoas! Sete milhões! Sete milhões de paulistanos deixam suas casas diariamente para trabalhar, estudar, se movimentar nas demandas da vida. Só quem mora em São Paulo e já tomou trem ou metrô, pelo menos uma vez em horário de pico, sabe o que significa viver nesta cidade, trabalhar e estudar nesta cidade, se espremendo literalmente, empurrando e sendo empurrado trem a dentro trem a fora, pra não perder a hora...

São Paulo tem um déficit imenso de moradias: pelo menos 80 mil paulistanos moram em cortiços, milhões moram em favelas, mais de 15 mil pessoas moram nas ruas! Escolas públicas e creches também são insuficientes e as disputas por vagas são permanentes. Essa metrópole onde todos os números são gigantescos, possui alguns números bem pequenos, como as pouco mais de 100 bibliotecas para seus quase 12 milhões de habitantes!

Os bairros de São Paulo, especialmente os da periferia, carecem de tudo. Não existe (ainda) uma política descentralizadora do emprego, o que obriga esses milhões de paulistanos a perder horas por dia somente se transportando de um lugar a outro. Mas esses bairros, em sua maioria, também não têm cinemas, nem livrarias, nem bibliotecas públicas, nem escolas de qualidade, nem atendimento à saúde em número e qualidade minimamente suficientes, entre outros itens essenciais à qualidade de vida.

Até 2012, a vida cultural coletiva se baseava em uma única Virada Cultural por ano, mesmo assim atraindo uma média de quatro milhões de pessoas. Porque São Paulo não tem muitos espaços culturais para a sua população. Museus, cinemas e teatros – os que existem – são caríssimos.

Por isso não foi pouco o que aconteceu domingo na Praça Roosevelt, nomeada de Praça Rosa.

O músico Criolo
Era um Festival. Nomeado como “Existe amor em SP”, os idealizadores se inspiraram na música do paulistano Criolo “Não existe amor em SP”, uma espécie de releitura da cidade nos tempos atuais. É bom lembrar que em dezenas de anos, tivemos só duas prefeitas interessadas em atender a população mais carente: Luísa Erundina e Marta Suplicy. Fora elas, são décadas de descaso com a população mais pobre. São décadas de descaso com a qualidade de vida dos moradores desta cidade. São décadas de descaso com a vida cultural na cidade de São Paulo.

Por isso não foi pouco, repito, o que aconteceu domingo na Praça Rosa.

Desde as duas da tarde, grupos de pessoas, casais, pessoas sozinhas, muitas vestidas de rosa (como sugeria a organização do evento) se dirigiam à Praça. “A praça é do povo como o céu é do condor”, já dizia nosso poeta baiano Castro Alves. E o povo não pode ver uma praça, já vai se aglomerando nela. Assim aconteceu domingo na Praça Rosa. O povo tomou a praça.

Para dizer uma coisa: queremos qualidade de vida, queremos cultura, queremos estar juntos, queremos ser felizes, queremos amor... Coisa pouca, quase nada, apenas as necessidades de qualquer ser humano: ser feliz e ser amado, cuidado, valorizado. Gente! E “gente é pra brilhar!” já dizia o outro poeta, Maiakovski.

Na praça, grupos, bandos, tribos. A imensa maioria era de jovens, mas pessoas de todas as idades se reuniram lá, de crianças a idosos. Os skatistas, que esqueceram um pouco a avenida Paulista porque o piso da praça Rosa é mais amplo, estavam às dezenas com seus skates. Tendas em alguns pontos reuniam bandas e juntavam gente, enquanto o palco principal aguardava os principais músicos do Festival, como Criolo e Gaby Amarantos.

O que Criolo deve ter pensado ao ver aquela multidão, vinte mil pessoas à sua frente reunidas para dizer que “existe amor em SP”? Teria lembrado de uma música de alguém que quando chegou por aqui não entendeu nada da “dura poesia concreta de tuas esquinas
e da deselegância discreta de tuas meninas”?

Mas Criolo mandou:

“Não existe amor em SP
Um
labirinto místico
Onde os grafites gritam
Não dá pra descrever
Numa linda frase
De um postal tão doce
Cuidado com doce
São Paulo é um buquê”
O buquê inteiro, a multidão, cantava cada letra da música de Criolo. Repetia com ele o refrão de um tempo que dominou corações e mentes dos moradores desta Paulicéia desvairada de Mário de Andrade: Não existe amor em SP!
“Os bares estão cheios de almas tão vazias
A ganância vibra, a vaidade excita
Devolva minha vida e morra afogada em seu próprio mar de fel”
Neste momento um grito saiu da garganta e da alma da multidão:
“AQUI NINGUÉM VAI PRO CÉU!”
Ouviram seus malafaias, seus russomanos da vida, seus serras, seus conservadores de plantão! Aqui ninguém quer o céu de vocês, aqui a gente quer “comida, diversão e arte”. E qualidade de vida! E ser tratado como gente!
Aqui – conservadores – aqui está fundado – desde Mário de Andrade – o desvairismo!
Gaby Amarantos de rosa
Desvairismo dos poetas, dos estudantes, dos skatistas, dos andadores de bicicleta, dos trabalhadores, dos artistas, das senhoras e dos senhores, das crianças, dos homossexuais, dos militantes de esquerda que, sim, também estavam lá, dos que querem um mundo bom para a maioria. “A praça é do povo, como o céu é do condor”!
Era um Festival político cultural. As frases e palavras de ordem podiam soar diferentes, novas, como “aqui ninguém vai pro céu” ou “mais amor”. Mas as pessoas estavam lá em congraçamento festivo, em alegria coletiva, em confraternização de todos com todos. Não houve nenhum incidente, uma briga, nada. A praça estava sendo coletivamente cuidada: sacos de lixo espalhados; garrafões de água que qualquer um podia pegar e se servir; espaços físicos, como os jardins, protegidos por todos; confecção em grupo dos cartazes; montagem dos palcos; defesa da festa de todos. Não havia distância entre o palco e o público, entre os artistas e o povo. Um podia tocar o outro.
Era um festival de quem cantou junto mas que também pensou sobre viver nesta cidade.
Mais uma vez está provado: a arte e a cultura têm o poder de juntar gente, multidões; de inspirar, de ajudar cada um a levar sua vida... E contra todo o descaso do poder público dos últimos anos, contra essas administrações higienistas, violentas e desumanas do PSDB-DEM, o que se ouviu na praça Rosa no domingo foi:
- Sim, existe amor em SP!

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Os números da exposição de Escher e de museus brasileiros


Centro Cultural Banco do Brasil, São Paulo

Há dois meses, a revista britânica The Art Newspaper divulgou o resultado de uma pesquisa anual sobre o número de visitas a museus e exposições de arte mais visitados do mundo. Pela primeira vez, o Brasil ganha destaque entre as exposições e museus mais visitados do mundo, como a exposição “O Mundo Mágico de Escher” que atingiu um milhão de visitantes, somando Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo.


CCBB, Brasília
Esta notícia é realmente surpreendente, mas – pode-se dizer – previsível, dentro do novo quadro político e social que atravessa o Brasil, desde que surgiu como uma das potências que crescem no mundo de hoje. O Brasil pós-presidente Lula, é o país onde o desemprego diminuiu, onde mais de vinte milhões de brasileiros tiveram alguma ascensão social, onde vemos aeroportos lotados de gente que “nunca antes na história deste país” tinha viajado de avião.


E é também, agora, o país onde seus museus passam a ser os mais frequentados do mundo!


Museu de Arte de São Paulo
As informações sobre o Brasil foram fornecidas pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram/Ministério da Cultura) à revista inglesa The Art Newspaper, especializada em artes. Claro está que o Museu do Louvre de Paris, o British Museum de Londres e o Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque ocupam os três primeiros lugares, mas o Centro Cultural Banco do Brasil ocupa o 14º, à frente de museus como o Reina Sofia de Madri e o Tate Britain de Londres, só para ficar em dois exemplos.


Nosso país agora também é reconhecido como detentor de cinco dos museus de arte mais visitados do mundo: os CCBB do Rio de Janeiro, Brasília e São Paulo, o MASP e a Pinacoteca do Estado de São Paulo.


Pinacoteca de São Paulo
Essa pesquisa tem uma importância que não pode ser desprezada e só demonstra – mais uma vez – a altíssima importância que a Arte tem para as pessoas. Mesmo que apenas São Paulo, Rio e Brasília se destaquem nesse cenário mundial, é preciso reconhecer que os números da economia brasileira, favoráveis à prosperidade econômica de mais pessoas, sejam responsáveis pelo fato de que verdadeiras multidões queiram ir a museus e exposições, buscar preencher sua alma com o imenso prazer estético que as artes podem dar... Sim, o povo brasileiro é um povo que aspira crescimento econômico, mas aspira também a ver seu direito básico do acesso à cultura e às artes, garantido, incentivado, realizado!


Mais uma vez é preciso dizer que o governo brasileiro precisa – com urgência cada vez maior, dada a extrema importância das artes – investir mais do seu orçamento no setor! Fruição de Arte – da boa arte – não é um bem supérfluo ou destinado apenas aos endinheirados, ou a essa elite que se julga a única capaz de se emocionar com a 9ª Sinfonia de Beethoven ou com a música de Bach; ou com os quadros de Caravaggio, Rembrandt, Rubens, Cézanne; ou com as esculturas de Michelangelo, Bernini, Aleijadinho; ou com o teatro de Shakespeare, Molière e Artaud; ou com a literatura de Dostoievski, Goethe, Dante Alighieri, Balzac, Victor Hugo, Kafka; ou com a poesia de Camões, Walt Whitman, Fernando Pessoa, Carlos Drumond de Andrade...


Para não esquecer dos "pequenos": Museu Histórico e
Artístico de São Luís do Maranhão
Mais uma vez: é Direito do cidadão e Dever do Estado o acesso à Cultura. Mais uma vez: a crescente privatização – que se vê – desses espaços de produção, fruição e consumo de arte, é prejudicial à democratização do acesso a elas, e precisamos ampliar cada vez mais as filas dos brasileiros nas portas de teatros, cinemas, casas de show, centros culturais, museus, bibliotecas!


Não podemos esquecer que o Brasil possui quase três mil municípios que não têm um único centro cultural, um único museu! E que, por esse e por inúmeros outros motivos, o Estado brasileiro precisa investir em Arte, e apoiar os artistas. 


Há milhões de músicos, atores, palhaços, cantores, cantadores, poetas, escritores, pintores, escultores, produtores de cultura espalhados por este imenso país sonhando com o dia em que a sua obra seja exposta de algum jeito à fruição pública e que ele – artista – veja que todo o esforço diário sobre o cavalete, o livro, a lona, o palco, a caneta... não foi em vão, pois chegou o grande momento em que ele pode abraçar e ser abraçado por seu povo, reconhecido pela beleza do que produz, pelo prazer que gera com o que cria, pela vida que dá, com a sua Arte.


Até chegar o dia em que a Arte brasileira também estará no topo do mundo!


O ranking da revista The Art Newspaper