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sexta-feira, 19 de maio de 2017

Isaac Levitan, pintor da paisagem russa

"Eterno silêncio", Isaac Levitan, óleo sobre tela, 1894
Retrato de Isaac Levitan,
por Valentin Serov
Isaac Ilich Levitan nasceu em 1860, em Kybartai, na Lituânia, filho de judeus pobres. Seu pai, Eliashiv Abramovich, era professor particular das línguas francesa e alemã, e com isso pagava as despesas familiares, mas também educava seus filhos. Levitan recebeu suas primeiras lições com seus pais, em casa. Sua mãe, Bert Moiseevna, também havia sido educada e valorizava muito a formação dos quatro filhos. No final da década de 1870, a família se mudou para Moscou. Lá, apesar de uma situação financeira ainda pior, os pais de Levitan queriam incentivar a paixão de seus filhos pela arte, o que mostraram desde o início, e não se opuseram à decisão de Isaac de se tornar um artista e entrar para a Faculdade de Pintura e Escultura de Moscou.

Em 1875, a família sofreu um duro golpe com a morte da mãe. Em seguida o pai ficou gravemente doente de tifo e não podia mais sustentar seus quatro filhos com as aulas particulares. Em 1876 Eliashiv faleceu.

Autorretrato, Isaac Levitan, 1880
Levitan passou sua juventude em extrema pobreza, sendo inclusive expulso da escola por não pagar seus estudos. Seus amigos reuniram o dinheiro necessário, e ele pode retornar às aulas. Mais tarde, o conselho de professores da faculdade decidiu deixá-lo estudar gratuitamente e até mesmo concedeu-lhe uma pequena bolsa de estudos, levando em conta o talento do rapaz. No mesmo ano, foi transferido para o curso de ciências naturais de Vasily Perov, que fazia parte do grupo “Os Errantes” (uma sociedade de artistas realistas russos formada em 1870).

Mais tarde, Levitan foi estudar com o famoso paisagista Aleksey Savrasov, que tomou conhecimento dos talentos de Levitan, assim como de sua pobreza, e lhe ajudou até financeiramente. Em 1877, na quinta exposição de arte de “Os Errantes” em Moscou, exibida no edifício da faculdade, Levitan participou com duas pinturas. Apesar de terem recebido grande aclamação, o Conselho Universitário só lhe ofereceu um diploma que lhe dava o direito de ensinar arte. Mesmo assim, segundo seu amigo Mikhail Nesterov, Levitan havia “trabalhado duro” e merecia o prêmio.

"Dia ensolarado", Levitan,
óleo sobre tela, 1876
Em 1879, o revolucionário judeu Alexander Soloviev tentou matar o czar Alexandre II, disparando seu revólver contra ele. O czar conseguiu fugir, e Soloviev foi condenado à morte por enforcamento. Por causa disso, foi decretada oficialmente a proibição aos judeus de viver na capital russa. Isaac e seus irmãos tiveram que deixar a cidade e se estabeleceram numa pequena casa na província de Saltykova. Nesse mesmo ano ele conseguiu vender sua pintura “Noite depois da chuva”. Continuava pintando sem parar a paisagem de seu país, apesar dos preconceitos que sofria por ter origem judaica. “O menino judeu talentoso incomodava outros professores que diziam que ‘judeu não deve pintar a paisagem russa’”. Mesmo assim, aos 24 anos de idade Isaac Levitan já tinha seu diploma de Pintor pela Faculdade de Pintura e Escultura de Moscou.

No mesmo ano, 1879, Levitan participou de uma segunda exposição de estudantes onde exibiu sua pintura "Um dia no outono em Sokolniki", que foi adquirido por Pavel Tretyakov e, com isso, seu talento foi reconhecido oficialmente.

Somente em meados da década de 1880 sua situação financeira começou a melhorar, graças a trabalho duro e muito sacrifício. Ele conheceu e se tornou grande amigo do escritor russo Anton Tchekhov, quando ainda ambos eram estudantes pobres. Mantiveram contato durante a década de 1880, encontrando-se constantemente em Moscou e nos arredores e foram os melhores amigos até os últimos dias de Levitan. Sua amizade era baseada em uma percepção similar sobre a natureza e sobre o mundo. 

"Depois da chuva", Levitan, óleo sobre tela
Em 1887 realizou seu grande desejo de conhecer o rio Volga, bastante retratado por seu professor de paisagens Savrasov. Mas seu primeiro contato foi frustrante: o dia estava muito frio e muito nublado e o rio lhe pareceu “triste e morto”. 

"Dia de outono", Levitan,
óleo sobre tela, 1879
Voltou no ano seguinte, na primavera, junto com outros artistas como Alexei Stepanov e Sofey Kuvshinikovoy. Durante a viagem, os amigos descobriram a beleza da pequena cidade de Plyos, próxima a Moscou, às margens do Volga. Resolveram ficar por lá um tempo e ele passou três temporadas de verão bastante produtivo, quando executou cerca de 200 obras. Esse esforço lhe rendeu fama e Levitan passou a ser popularmente conhecido como pintor de paisagens.

É desse período sua pintura "O refúgio silencioso". Seus contemporâneos diziam que essa pintura mostrava a natureza russa como "algo novo, mas muito próximo e querido". Desde então, todas as exposições itinerantes, assim como todas as exposições da Sociedade dos Amantes da Arte de Moscou e as exposições internacionais em Munique apresentavam obras de Levitan.

No final de 1889, pela primeira vez Isaac Levitan viajou para a Europa Ocidental, visitando França e Itália. Queria ver a pintura impressionista de perto mas, voltando a seu país, se manteve fiel a seu próprio caminho pictórico. 

Novamente foi obrigado a deixar Moscou em 1892, por ser de origem judaica. Viveu um tempo nas províncias de Tver e Vladimir. Graças a esforços de seus amigos, Levitan obteve uma “permissão especial” para voltar a viver em Moscou. Em seguida, viajou à Finlândia. Neste mesmo ano teve um infarto, do qual não se recuperou mais. 

Faculdade de Pintura, Escultura
e Arquitetura de Moscou
Sua saúde era muito frágil. Seus biógrafos dizem que por causa da fome que passou na infância e de uma vida sempre atribulada, Levitan desenvolveu problemas cardíacos muito cedo. O ano de 1895 foi um ano muito difícil para o artista. A doença do coração lhe trazia muita dor e sofrimento, e juntando a isso problemas em sua vida pessoal, Isaac Levitan vivia melancólico o que levou-o ao desespero e a tentar o suicídio. Mas seu amor pela natureza e pela arte o sustentou e o ajudou a superar sua doença e a fazer novas descobertas na arte. Em 1896 participou de mais uma exposição coletiva, desta vez na província de Odessa.

O melhor amigo, o escritor
Anton Tchekhov
Em 1897 escreveu a Tchekhov: “As coisas estão ruins. Meu coração não bate, sopra. Em vez de tum-tum eu ouço pfff…” Em março, em Moscou, teve um encontro com Pavel Tretyakov. 

Em 1898 recebeu o título acadêmico de “pintor de paisagens” e passou a ensinar pintura na mesma escola em que estudou em Moscou. Lá, criou um local especial para a pintura de paisagem, um lugar onde poderiam trabalhar todos os pintores de paisagens russas. Um de seus estudantes ressaltou a grande influência de Isaac Levitan em sua vida de artista: “sob sua orientação, a pintura ia tomando vida, cada vez de forma nova, como as suas próprias, que eram verdadeiros cantos da mãe natureza que ele percebia mais do que ninguém”. 

Em 1899, os médicos o enviaram para passar uma temporada em Yalta, onde vivia Tchekhov, que viu seu amigo chegando ofegante, pesadamente apoiado em sua bengala, falando que a morte se aproximava dele. Seu coração doía quase continuamente…

O pintor Serov, pintando Levitan
Mas os ares de Yalta nada puderam fazer pelo pintor doente. Levitan retornou a Moscou e quase não saía mais de casa. Em maio de 1900, Tchekhov foi visitar o amigo, agora gravemente doente. No dia 22 de julho, por volta das oito horas da manhã, seu coração parou de bater. Faltava pouco tempo para completar 40 anos de idade. Em sua oficina, mais de 40 pinturas estavam inacabadas e deixara mais de 300 esboços. A última pintura em que trabalhou foi “Lago”, também inacabada. Foi enterrado no cemitério judeu de Dorogomilovsky. Em seu funeral, estavam presentes os pintores Valentin Serov, Apolinário Vasnetsov, Konstantin Korovin, entre outros, assim como alguns de seus alunos, amigos e admiradores.

Em 1901 foi realizada uma exposição póstuma de obras de Isaac Levitan em São Petersburgo e Moscou, entre elas a pintura inacabada "Lago", que mostra a natureza russa a partir do sentimentos e pensamentos do artista a respeito da Rússia, que ele considerava sua pátria. Dois anos depois, seu irmão Abel Levitan erigiu um monumento no túmulo de seu irmão.

Em abril de 1941 seus restos mortais foram transferidos para o Cemitério Novodevichy, ao lado dos túmulos de seus amigos Tchekhov e Nesterov. 

Isaac Levitan deixou mais de mil pinturas!

Abaixo, você pode apreciar uma pequena amostra das obras deste grande mestre:


"Savvinskaya sloboda perto de Zvenigorod", Levitan, 1884
"Crepúsculo na dacha", Levitan



"Março", Levitan, 1895

"Nenúfares", Levitan, 1895

"A noite após a chuva", Levitan, 1879
"Noite no rio", Levitan



"Outono dourado", Levitan, 1895

"Ponte em Savvinskaya Sloboda", Levitan, 1884

"Primavera na Itália", Levitan, 1890

"Rosas", Levitan

"Claustro tranquilo", Levitan, 1890

"Vladimir", Levitan, 1892

"Fortaleza na Finlândia", Levitan
"Lago", última pintura de Levitan, 1900 - inacabada

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Andrei Rublev e os ícones russos



"A Trindade", Andrei Rublev, Galeria Tretyakov de Moscou

Fome, doenças, invasões de tártaros e mongóis foram uma constante na vida do povo russo na mesma época em que viveu o monge pintor de ícones, Andrei Rublev. O mais famoso pintor de ícones da história da Igreja Ortodoxa da Rússia é conhecido internacionalmente, especialmente após o lançamento, em 1966, do filme "Andrei Rublev", do diretor de cinema também russo Andrei Tarkovski.

Mas pouco se sabe sobre a vida de um dos mais famosos pintores russos, a não ser que nasceu na década de 1360 e faleceu em Moscou em 1430. Tarkovsi, em seu filme de três horas de duração, mostra como deveria ser a vida naqueles tempos do século XIV, na Rússia de Rublev… A religião oficial já era a Ortoxoda, originária diretamente dos áureos tempos de Bizâncio, e muito das práticas religiosas foram absorvidas diretamente dos monastérios de Constantinopla. Os primeiros pintores de ícones presentes em solo russo eram de origem bizantina. Com eles, os monges russos aprenderam a técnica da pintura de ícones, prática que atravessou toda a história daquele país, é parte profunda de sua cultura e ainda hoje é matéria ensinada nas escolas de arte, como em São Petersburgo.

OS ÍCONES

Fragmento de um  dos ícones
pintados por Rublev
O que é um ícone? Aqui nesta página, temos alguns exemplos de ícones pintados, mas há vasto material de pesquisa de imagens disponíveis na web, além de muitos livros publicados. O ícone que inicia este artigo (acima) “A Trindade”, pintado por Andrei Rublev é um dos mais importantes e dos mais conhecidos.

Na concepção da ortodoxia russa, o ícone (pintura da divindade ou de santos) é muito mais do que uma simples pintura, como ocorre na arte ocidental. Mais do que uma representação figurativa, o ícone era a incorporação mesma da energia da divindade feita pintura, uma espécie de Teofania (Revelação) do divino. Ou como uma janela que se abre para o céu, através da qual se pode contemplar o mundo espiritual, como me explicou há muitos anos atrás um monge ortodoxo aqui em São Paulo. Alguma coisa similar a isso, encontramos na tradição ocidental católica com as relíquias dos santos (pedaços de tecidos, pertences ou mesmo parte dos corpos de santos, como pedaços da cruz onde Cristo teria sido crucificado, ou mesmo o Santo Sudário, lençol onde estaria impressa a imagem de Jesus).

Em todo o território russo, os ícones fazem parte da vida e da cultura de sua população. Há ícones em todo lugar, nas paredes das casas, nos relicários domésticos… Os cristãos ortodoxos veneram seus ícones e persignam-se (fazem o sinal da cruz) diante deles.

Na história da iconografia russa encontramos a informação de que originalmente os monges foram os primeiros pintores de ícones. Eles jejuavam e oravam durante muitos dias antes de começar a pintar as faces de santos e anjos. Dizia-se que a mão do “Espírito Santo” é que movia o pincel do artista, num momento de completa união do humano com a divindade, numa Epifania de fato. Havia numerosas exigências para que um pintor se pusesse à disposição para este trabalho: oração, jejum, penitências. Pois o artista era apenas um instrumento através do qual se manifestava o Sublime. Além de se submeter àquelas regras, o pintor recebia a bênção de outro monge e pedia ao Espírito Santo que lhe inspirasse em sua pintura, que guiasse sua mão, que “benza e bendiga este ícone para que todos quantos se aproximem dele com veneração, obtenham saúde, santificação e bênçãos". Uma das orações era:

“Oh Tú, Dono Divino de tudo o que existe
Ilumina e dirige a alma, o coração e o espírito de teu servidor
Guie minhas mãos para que possa representar digna e perfeitamente
a Tua imagem, a de Tua Santa Mãe e a de todos os Santos.
Para glória, alegria e embelezamento de Tua Santa Igreja.”

Esta característica do ícone faz com que, na tradição russa, esta imagem não seja pura e unicamente uma pintura, mas um objeto de contemplação. Neste trabalho, não se dava importância alguma ao indivíduo que pintava. Sua personalidade e sua subjetividade estavam submetidas às fórmulas e técnicas que ainda são seguidas nos dias atuais, quando se pintam ícones quase da mesma forma que no século VIII.

"Cristo Pantocrator", ícone do séc. XIII
Os ícones não poderiam ser uma representação realista, uma vez que estava se desenhando ao próprio Deus e seus santos, e não à Natureza ela mesma. Enquanto observamos a Natureza (o Real) com nossos olhos físicos, não se dá o mesmo com a “realidade” espiritual, que se vê com os “olhos” da alma. Nos ícones, a figuras sempre são vistas de frente, com reduzidíssima profundidade, ou seja, pintadas de forma plana, sem muita expressão que as humanizaria e lhes tiraria o caráter sagrado.

O fundo dos ícones devem ser dourados, feitos com lâminas muito finas de ouro que se aplicam sobre o suporte. Com isso, não há paisagem no fundo, mas essa luminosidade que o ouro reflete. Essa forma de pintar irá influenciar toda a arte bizantina até a chegada do Renascimento, que descobriu a paisagem.

Após o Renascimento, mesmo na Rússia se vêem os efeitos das novas formas de pintar, que a partir de então muda um pouco os ícones russos, no sentido de que foram incluídas paisagens nas pinturas e muitos pintores de ícones aplicaram sobre suas figuras a técnica do sfumato, que até então não acontecia. O sfumato dá ideia de tridimensionalidade ao quadro, de profundidade. Imita a Natureza, coisa que nas regras iniciais da pintura de ícones não era permitido.

Fragmento de pintura da
Catedral da Anunciação, séc. XVIII
A pintura era feita sobre tábuas de madeira levemente curvadas para dentro e cobertas com uma tela de tecido onde se aplicava uma camada de gesso. A pintura era feita em têmpera, técnica onde se misturam os pigmentos com ovos. Também se adicionavam materiais e pedras preciosas para alguns detalhes. Além disso, o que é uma característica da pintura de ícones daquele período, havia o uso da perspectiva inversa, onde as figuras em primeiro plano podem ser menores do que as dos planos subsequentes. Neste caso, o Ponto de Fuga está invertido, encontra-se no olho do próprio espectador, pois o ícone é um “lugar” intermediário entre o espectador e a divindade. A perspectiva inversa exige que os pés das figuras não estejam apoiados no solo, fiquem como se flutuassem no quadro, o que dá ainda mais o caráter espiritual a elas. Além disso, se o Ponto de Fuga se encontra no olho do espectador, que contempla através do ícone o mundo espiritual, isto também traz uma mensagem: o espectador é muitíssimo pequeno diante da grandiosidade daquele mundo contemplado.

A Perspectiva Inversa aparece também nas pinturas orientais da China e do Japão e foi objeto de muito estudo, assim como a Perspectiva Ocidental cujos estudos mais inaugurais aconteceram no Renascimento italiano. Para nossa cultura, influenciada pela europeia, a perspectiva inversa cria um certo estranhamento, como se as coisas estivessem fora de lugar e sem proporção. São simplesmente modos de perceber o mundo. Em algum momento traremos aqui alguns estudos sobre o assunto da perspectiva inversa.

Os ícones russos, então, adquiriram muita importância naquele período, de tal forma que acabou gerando uma enorme disputa, causa de batalhas e guerras no Império Bizantino, uma querela que durou do ano 726 ao 843. Foi um período onde se destruiu muitas imagens e muitos ícones. Mas este é um assunto para o próximo artigo, que deixamos em separado, pois essa "Querela Iconoclasta" ainda traz muita reflexão...

ANDREI RUBLEV

Ícone de Andrei Rublev
Como dissemos antes, pouco se sabe da vida do maior pintor de ícones russos, a não ser por informações dispersas e através do próprio filme de Tarkovski, que fez uma vasta pesquisa sobre este artista russo. Sua vida, no entanto, faz parte de crônicas e vidas de santos, já que ele foi canonizado em 1988 e passou a ser chamado de "Santo André Iconográfico", cuja festa se celebra no começo de julho. 

Sabe-se que ele foi famoso por toda a Rússia, conhecido por príncipes e monges, pois ele trabalhou em igrejas e mosteiros de Moscou, Vladimir e Zvenirogod. Em um manuscrito do século XVII, “A lenda dos pintores de ícones”, Andrei Rublev é chamado de santo-pintor. Redescoberto no século XIX, Rublev se tornou uma referência da pintura icônica e tradicional russa. Mesmo no período da Revolução Soviética, seu nome era símbolo da cultura antiga russa. Em 1960, foram celebrados os 600 anos de seu nascimento e antes disso foi criado o "Museu de Cultura Antiga Russa Andrei Rublev". 

No tempo em que Rublev viveu, a Rússia passava por terríveis invasões de tártaros e mongóis que, por onde passavam, destruíam cidades, saqueavam igrejas e mosteiros, levavam pessoas cativas. Ao mesmo tempo, uma guerra sangrenta entre Moscou e Tver tornou muito perigosa a vida entre 1364 e 1366. Moscou foi incendiada em 1365 e em 1638 foi atacada pelos lituanos. Além disso, a partir de 1371 a fome assolou a cidade.

"Cristo Pantocrator",
ícone mais recente, pós-renascentista
Em meio a esse caos, Andrei foi crescendo e se desenvolvendo como pintor. Infelizmente nada se sabe sobre sua família, nem o ambiente do qual ele veio. Mas seu sobrenome parece sugerir sua origem, segundo estudiosos. Em primeiro lugar, somente os nobres, naqueles tempos, tinham um sobrenome. Em segundo, ele indica um ofício, que pode ter sido o do seu pai ou de um antepassado próximo. A palavra Rublev vem de “rubel”, um instrumento para enrolar couro, o que pode indicar que sua família era de curtidores de couro. Também não se sabe com quem Rublev teria aprendido a pintar. A primeira e mais antiga menção ao seu nome se encontra nas crônicas de 1405, onde foi relatado que três monges teriam pintado a Catedral da Anunciação: Teófanes o Grego, Prokhor o Velho e Andrei Rublev. Nesse escrito se dizia que Rublev era um mestre respeitado. Seu nome ter aparecido em terceiro lugar significa que ele era o mais novos dos três.

Provavelmente ele teria feito seus votos monásticos no Monastério da Trindade, como discípulo de Sérgio de Radonezh, futuramente canonizado como São Sérgio. Sobre isso se fala também em manuscritos do século XVIII. Sérgio desempenhou um grande papel no renascimento espiritual da Rússia e foi ele quem teria passado a Andrei Rublev a experiência da oração permanente e do silêncio como prática contemplativa hoje conhecida com o nome de Hesicasmo. Assim, Andrei estava completamente mergulhado em seu mundo como pintor de ícones…

Catedral russa do século XV
Nas crônicas de 1408 ele é mais uma vez citado como o pintor da Catedral de Vladimir, cidade a leste de Moscou, fundada em 1098. Este trabalho, Rublev dividiu com Ikonikov Daniel Cherny, de quem se tornou grande amigo. Daniel pode ter sido grego ou sérvio, e seu apelido era “Preto”. A amizade entre Daniel e Andrei durou até o fim da vida deste. A Catedral de Vladimir havia sido construída no século XII e suas pinturas foram muito prejudicadas com as invasões mongóis. Daniel e Andrei, chamados para renovar as pinturas da igreja, pintaram um “Juízo Final” em suas paredes. Pouco resta destas pinturas, mas seus estudiosos dizem que eles conseguiram transformar o que poderia ser uma cena terrível em um festa de Justiça, onde afirmavam pictoricamente o valor moral do ser humano.

Em meados da década de 1420, Andrei e Daniel Preto trabalharam na pintura da Santíssima Trindade na Catedral do Mosteiro da Trindade. Essas pinturas não sobreviveram, mas somente algumas que fazem parte do iconostasis (local intermediário entre o altar principal e a nave central, onde se reunem diversos ícones). Foi lá que Andrei Rublev pintou seu famoso quadro “A Trindade”, o que foi considerado um feito altíssimo do ponto de vista espiritual, pois apenas um pintor que estivesse profundamente envolvido em sua vida de hesicasta seria capaz de uma tal demanda…

Rublev também era um leitor de livros, coisa rara naquela época. Somente os mosteiros possuíam bibliotecas e seu acesso era restrito aos monges. Rublev também pintou iluminuras nos livros. Além de ícones de madeira, também pintava afrescos.

Os últimos anos de sua vida ocorreram enquanto pintava a Catedral de São Salvador, em Moscou. Foi acometido de uma praga que assolava a cidade desde 1428. Tendo conquistado reconhecimento em vida, coisa incomum para artistas, ele não foi esquecido após sua morte. No século XV o local de seu sepultamento já era lugar de peregrinação. Mas somente em 1988 é que foi oficialmente canonizado e reconhecido como santo russo.

Seu trabalho como artista teve grande reconhecimento fora dos círculos religiosos. Redescoberto no século XIX, era enaltecido como artista da cultura medieval russa. Como aquele que incorpora o Sublime e a Beleza Espiritual, assim como o potencial humano de alcançar altos níveis intelectuais. Sua criatividade representa um dos pináculos da cultura russa em toda a sua história. Grande parte de seu trabalho se encontra exposto nos salões da Galeria Tretyakov de Moscou, onde desperta a atenção de multidões de visitantes de todas as origens.

Cartaz do filme de Andrei Tarkovsky