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terça-feira, 9 de julho de 2024

Os festeiros do Divino em nossa casa

 8/12/2022

A sala se transformou num terreiro circular, e onde estavam os quatro homens surgiram sumaúmas com suas raízes profundas. Não eram mais quatro vozes, eram milhares, porque toda a ancestralidade se fez presente. Nossas almas se encantavam.

Era meio-dia e tudo estava em silêncio, até os pássaros e os ventos. Domingo claro de sol, céu azul. Terminei de guardar as coisas que trouxe de São Paulo, dei uma olhada geral na casinha alugada de seu Chico, nosso pouso até termos os nossos. Ouvi o som de motor de carro, alguém passando em alguma estrada de terra. Lumena veio da casa de dona Nair, vizinha, mãe de alguns dos filhos de Francisco. Foi logo dizendo: – se prepara, vamos receber visitas!

Minutos depois dois carros chegaram, uma Kombi e um Fiat. De dentro deles saiu uma ruma de gente, vestida de vermelho e branco, carregando um mastro cheio de fitas coloridas, encimado por uma coroa de rosas vermelhas em torno de uma pequena pomba branca. “São os festeiros do Divino Espírito Santo”. Depois de nos cumprimentar, um a uma, se apresentaram: uma moça disse que ela e o esposo eram um dos sete casais escolhidos para fazer a Festa do Divino de 2023. Vinham com ela os festeiros, as rezadeiras. Dois homens portando duas violas, um outro um tambor e um quarto trazia seu triângulo. Pediram licença, entraram em nossa sala.

As mulheres puxaram as rezas e todos nós nos portamos em círculo em volta de uma pomba branca. À Lumena foi destinado o mastro com suas fitas coloridas e as rosas vermelhas. Ela aceitou a obrigação, ouvindo que este mastro trazia bênçãos para nossas casas, famílias, nosso bairro Capinzal. Meus pensamentos, minha racionalidade, meus modos de ser urbanos se afastaram, eu me via novamente surpreendida pelos mistérios do mundo. É quando sou outra.

O canto começou. As duas violas fizeram uma espécie de introdução seguindo o ritmo do tambor e do triângulo. Quatro vozes masculinas, em tonalidades diferentes, entre baixo, contralto, tenor e soprano trouxeram uma música que atravessou tempos, séculos e tradições. Era alguma louvação ao Divino Espírito Santo que lembrava o velho cantochão dos monges da Idade Média. Em ritmo suave, as sílabas se estendiam com a respiração dos quatro camponeses que arrancavam do fundo de suas respirações e almas um novo impulso sonoro, mais grave, mais agudo, mais intenso.

Aquela sala se transformou num terreiro circular, e no lugar exato onde estavam os quatro homens, na verdade surgiram quatro árvores, com raízes muito profundas como Sumaúmas, Ipês e Sibipirunas. Aquele canto virou um canto da Terra, que subia através das raízes e se alastrava pelo ambiente, cujo ritmo alongado, lento, parecendo um lamento, reverberava em nossos corpos, mulheres e homens naquela sala. Não eram mais quatro vozes, eram milhares, porque toda a ancestralidade de todas as pessoas se fez presente. Nossas almas cantavam, encantadas. A música, sabemos, fascina e carrega misteriosos encantamentos capazes de nos arrancar de determinado espaço-tempo. 

Os Festejos do Divino se espalham pelo Brasil inteiro. Foram trazidos pelos portugueses, mas se fala de registros destas festas no século XIII na França. Chegaram na Península Ibérica, alcançaram Portugal, atravessaram o Atlântico. Aqui chegando cruzaram com duas tradições fortíssimas: os indígenas e os africanos. Que acrescentaram de si a esta festa, enriquecendo-a com sons, cores, danças, falas, línguas, culinárias, gestos. Amálgama cultural brasileiro. Antropofagia belíssima que somente acontece nessas terras. No Maranhão, o festejo é dirigido pelas Caixeiras, mulheres que carregam suas “caixas”, espécie de releitura de antigos atabaques. Porque quem dá o tom e o ritmo maranhense da festa do Divino tem sido o povo preto.

Em Cunha, a mistura se fez com brancos, indígenas e africanos. Por isso, naquele canto a quatro vozes, grave, em andamento larghissimo, que eu me esforçava para compreender alguma palavra, podiam conter francês, português arcaico, latim, tupi-guarani, yorubá, português brasileiro… “Tupi or not Tupi”… E ressalte-se que ano que vem, em julho, nos dias dos festejos do Divino de Cunha, haverá a Congada, a tradição africana de origem angolana e congolesa, festa milenar que aqui também passou, como outras, pela nossa oswaldiana canibalização, nossa mania de “comer” o estrangeiro… 

Depois de dois cantos, sabendo que os festeiros recolhiam donativos para a festa do ano que vem, entregamos nossa doação, que foi agradecida com outro canto. Meus olhos estavam marejados, eu mal via os homens e as mulheres de vermelho. Uma das árvores se dirigiu a nós, ao final do canto. E o homem nos chamou para acompanhá-los, para ir comer num sítio vizinho, onde a dona da casa tinha feito um almoço para receber os festeiros e todos os que quisessem se juntar a eles. Lembrei das Festas de Santo nos terreiros de Candomblé, onde todos os presentes se reúnem numa grande ceia, ao fim da festa, se alimentando do Axé do Orixá.

Nos dias do festejo do Divino, tudo também termina num grande almoço. Em Cunha, esta festa, que já dura 300 anos, tem toda a preparação que se inicia meses antes, como agora, onde um casal de festeiro guia os outros para recolher donativos que garantirão a grande festa. No grande dia, mulheres jovens e velhas saem de suas casas carregando suas peneiras para ajudar a catar o feijão do almoço. São sacas e sacas de feijão e arroz, kilos e kilos de carne. Já se chegou a alimentar mais de 20 mil pessoas há alguns anos. Todos são convidados a esta imensa mesa, cheia de axé, cheia de bênçãos, feita por tantas mãos. 

Mas neste domingo, agradecemos o convite para o almoço no sítio vizinho, sem saber como agradecer mais o presente de ver de perto esta tradição e de sentir a força da cultura e da alma do nosso povo. “Ano que vem, nós vamos”, respondemos. “Venham na novena também”, sugeriu a mulher de roupa branca e vermelha, parceira e irmã das ogãs e ekedis de Oxalá e de Ogum. Ou de Oiá. Saravá!

Deixaram conosco um pequeno pacote de sal. “Sal bento”, afirmaram. É pra ser acrescentado ao sal da casa, ao sal dos animais, semear nas plantas. Tudo isso trará fartura e prosperidade para a casa e a família. Saravá! 

E eu mal tinha chegado de São Paulo…

Entre a metrópole e os vagalumes

24/11/2022

A chuva desaba sobre o ranchinho, onde a Ecomunidade começa a existir. De manhã, todos chegam para celebrar juntos, caiando as paredes; um ano de construção! Na cidade, meu coração bate como o desafio dos sapos: Estou? Não estou?

Os preparativos para o começo da construção da minha casa, no terreno da Ecomunidade Bem Viver, estão iniciados. Agora sonho com tijolos, me vejo dentro de paredes erguidas em prazo mais curto do que jamais pude prever, passeio e danço em minha sala redonda.

De novo peguei a estrada, domingo de manhã. Há poucos dias o Presidente Lula foi eleito e a extrema-direita ainda estrebucha. Vi suas marcas em dois pontos do asfalto da rodovia Presidente Dutra, pontos onde queimaram pneus, bloquearam o trânsito, estes fascistas. Manchas ameaçadoras, elas trazem de volta esses seres capazes de gritar as piores barbaridades, de pregar as piores mentiras, de acreditar nos maiores absurdos, cegos de fanatismo. Mas … “a História é um carro alegre, cheio de um povo contente, que atropela indiferente todo aquele que a negue”… Melhor me ligar na voz de Bituca.  

Levo comigo dentro do carro, além de um fogão usado e outros objetos que serão úteis nesta fase inicial da comunidade, a planta baixa da casa e imagens em 3D do projeto. O pensamento volta: que alívio termos derrotado a extrema-direita nestas eleições presidenciais. Novamente podemos sonhar! Todos os nossos projetos, pessoais e coletivos, estão autorizados a serem sonhados e executados. O contrário disso seria viver num país impossível, vendo serem erguidos valores carcomidos pelo tempo e pela história; seria continuar a assistir ao desmonte da cultura, da educação; da derrubada de mais hectares das nossas florestas; da perseguição e da violência contra os indígenas, contra os defensores do meio-ambiente e contra nosso povo preto. As hienas fascistas ainda permanecerão grunhindo por um tempo. Uma hora qualquer se calarão.

Cheguei em Cunha, fui direto pro Capinzal, onde fica a terra. O dia estava nublado, sem sol, mas iluminado. Nuvens cinzentas se avistavam na Mantiqueira, ao longe, e na Bocaina. A previsão é de chover durante a semana toda, mas ainda não começou. Passei na casinha alugada de seu Chico, peguei a chave do rancho que construímos, para deixar lá o fogão. Estava sozinha para carregá-lo mas encostei o carro o mais próximo possível e lembrei da velha máxima de Arquimedes que sempre uso como argumento quando alguém se espanta com a minha força: “dê-me uma alavanca e um ponto de apoio e moverei o mundo”. Mundos movidos, fogão lá dentro, volto para a casinha.

Passei a primeira noite da vida sozinha numa casa de roça. Sensação nova, instigante. A noite veio sem lua no céu, mas ela está lá, cheia, escondida atrás de densas nuvens. Amanhã o Sol a eclipsará totalmente. E como eclipses e luas movem coisas cá embaixo, as nuvens desabaram. Um barulho de vento e chuva e raios e trovões caiu sobre a pequena casa de tijolos de olaria. Mas durou pouco, depois veio o silêncio. Eu já me deitara sob mil cobertas por causa do frio de 10 graus de novembro (!) e ouvia o silêncio… Dentro dele, identifiquei um som longínquo de um avião passando a quilômetros de altura, em sua rota aérea. Depois outro, depois outro… Até que veio a cantoria dos sapos: foi, não foi! Fui, não eu! Foi sim, fui não…

Amanhecido, o dia trouxe Lumena e Guaíra. Douglas pegou sua roçadeira e começou a cortar o mato da minha cota de terra que já ia alto, por causa das primeiras chuvas. Enquanto isso, também limpamos os pés de milho, fava, feijão e abóbora da nossa primeira horta coletiva. Fomos, munidas com o facão, cortar alguns pés de Lírio-do-Brejo, abrindo uma trilha para encontrar o pequeno riacho que margeia nossa mata. Mas as águas tinham subido e o terreno estava encharcado. Resolvemos limpar o mato em volta do nosso lago e plantar mais sementes na horta. Aproveitei, peguei a enxada e fui transplantar três mudas de abacate que tinham sido colocadas bem no local onde ficará minha futura casa. Plantei-as em lugares mais seguros, assim como tinha feito com minha muda da árvore Pau-Ferro, que agora define um dos cinco cantos da minha cota.

Sentei no meio do chão roçado, contemplando meu lugar, tomando posse. A Ecomunidade Bem Viver completou, em 7 de novembro, o primeiro ano de existência. Resolvemos comemorar todos juntos no próximo fim de semana. Quanta coisa aconteceu em tão pouco tempo! Em um ano apenas, compramos o terreno do Capinzal, registramos os documentos todos, roçamos toda a terra, o trator abriu as ruas entre as futuras casas, construímos uma primeira casinha, captamos as primeiras águas da fonte que nos abastece, solicitamos a instalação de eletricidade, demarcamos doze cotas, e duas casas estão prestes a serem erguidas. Mais outras virão, em breve.

Era pra chover todos os dias, mas choveu pouco. Mesmo assim, os dias estavam nublados e frios, as noites escuras. A luz amarela que ilumina a casinha aquece pouco o ambiente. Mais aquecem nossas conversas, lembrando de tempos idos de nossas vidas, de tempos futuros que virão e nos encontrarão habitando aquele lugar emoldurado pelas montanhas e pela Mata Atlântica. Lumena acendeu seu cigarro de palha e saiu para fora. Segui-a depois, em silêncio, ouvindo os sapos: – foi, não foi! Foi, não eu! Foi sim, foi não… E assim seguia a arenga que se repete todas as noites. 

De repente, minha amiga aponta para um brilho que não estava só na ponta de seu cigarro. Olhei na mesma direção: eram milhares de pequenos brilhos que se acendiam e apagavam, ritmadamente, acendendo a noite com seu pequeno lume, mas que se multiplicou e rapidamente nos vimos rodeadas destes insetinhos bioluminescentes, os vagalumes. Parecia que as estrelas desceram à terra para brincar com nossa imaginação e nos fazer novamente voltar a ser crianças, duas meninas brincando de correr atrás das luzes enquanto repetiam a cantoria dos sapos, verdadeiras disputas que nos arrancavam gargalhadas. Foi não, foi sim…

O fim de semana trouxe todos os amigos do grupo. Nos vimos, nos abraçamos, sorrimos juntos, não paramos de falar, contentes de nos encontrar fisicamente depois de tantos meses. Semanalmente nos reunimos virtualmente, colocamos o papo em dia, resolvemos coisas, ações a serem tomadas, perrengues a serem enfrentados, decisões. E vamos nos conhecendo mais e mais, constatando que, como um coletivo, temos muita capacidade de criação e de empreendimento. Que grupo de pessoas fortes, aguerridas, dispostas ao imenso desafio de viver valores outros que não os somente impostos pelo sistema sufocante do capitalismo. Comemoramos este primeiro ano com festa e trabalho. Um deles, fazer à mão, com terra e cal, o reboco da primeira casinha que construímos, enfeitando-o com recortes de vidro colorido doados pela artista da modelagem com vidro, Sandra Tami, uma de nós. Tudo orientado por nossa presidenta, Luciana.

De novo estou em São Paulo, de novo me preparando para voltar a Cunha. Hoje, lá fora, o tempo é inamistoso, as ruas estão barulhentas como sempre. Chove forte e meu pensamento voa em direção ao tempo em que eu era pequena, desobediente e rabugenta, sempre pensando em fugir. Estou fugindo deste lugar, baby… Desta vida na metrópole que cresce em verticais e que há algum tempo tem me feito sentir-me de novo deslocada, outsider outra vez. Daqui do meu sofá, nesta cidade, canto como os sapos: – Estou, não estou! Pertenço, não pertenço! Existir… a que será que se destina?