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terça-feira, 9 de julho de 2024

Os festeiros do Divino em nossa casa

 8/12/2022

A sala se transformou num terreiro circular, e onde estavam os quatro homens surgiram sumaúmas com suas raízes profundas. Não eram mais quatro vozes, eram milhares, porque toda a ancestralidade se fez presente. Nossas almas se encantavam.

Era meio-dia e tudo estava em silêncio, até os pássaros e os ventos. Domingo claro de sol, céu azul. Terminei de guardar as coisas que trouxe de São Paulo, dei uma olhada geral na casinha alugada de seu Chico, nosso pouso até termos os nossos. Ouvi o som de motor de carro, alguém passando em alguma estrada de terra. Lumena veio da casa de dona Nair, vizinha, mãe de alguns dos filhos de Francisco. Foi logo dizendo: – se prepara, vamos receber visitas!

Minutos depois dois carros chegaram, uma Kombi e um Fiat. De dentro deles saiu uma ruma de gente, vestida de vermelho e branco, carregando um mastro cheio de fitas coloridas, encimado por uma coroa de rosas vermelhas em torno de uma pequena pomba branca. “São os festeiros do Divino Espírito Santo”. Depois de nos cumprimentar, um a uma, se apresentaram: uma moça disse que ela e o esposo eram um dos sete casais escolhidos para fazer a Festa do Divino de 2023. Vinham com ela os festeiros, as rezadeiras. Dois homens portando duas violas, um outro um tambor e um quarto trazia seu triângulo. Pediram licença, entraram em nossa sala.

As mulheres puxaram as rezas e todos nós nos portamos em círculo em volta de uma pomba branca. À Lumena foi destinado o mastro com suas fitas coloridas e as rosas vermelhas. Ela aceitou a obrigação, ouvindo que este mastro trazia bênçãos para nossas casas, famílias, nosso bairro Capinzal. Meus pensamentos, minha racionalidade, meus modos de ser urbanos se afastaram, eu me via novamente surpreendida pelos mistérios do mundo. É quando sou outra.

O canto começou. As duas violas fizeram uma espécie de introdução seguindo o ritmo do tambor e do triângulo. Quatro vozes masculinas, em tonalidades diferentes, entre baixo, contralto, tenor e soprano trouxeram uma música que atravessou tempos, séculos e tradições. Era alguma louvação ao Divino Espírito Santo que lembrava o velho cantochão dos monges da Idade Média. Em ritmo suave, as sílabas se estendiam com a respiração dos quatro camponeses que arrancavam do fundo de suas respirações e almas um novo impulso sonoro, mais grave, mais agudo, mais intenso.

Aquela sala se transformou num terreiro circular, e no lugar exato onde estavam os quatro homens, na verdade surgiram quatro árvores, com raízes muito profundas como Sumaúmas, Ipês e Sibipirunas. Aquele canto virou um canto da Terra, que subia através das raízes e se alastrava pelo ambiente, cujo ritmo alongado, lento, parecendo um lamento, reverberava em nossos corpos, mulheres e homens naquela sala. Não eram mais quatro vozes, eram milhares, porque toda a ancestralidade de todas as pessoas se fez presente. Nossas almas cantavam, encantadas. A música, sabemos, fascina e carrega misteriosos encantamentos capazes de nos arrancar de determinado espaço-tempo. 

Os Festejos do Divino se espalham pelo Brasil inteiro. Foram trazidos pelos portugueses, mas se fala de registros destas festas no século XIII na França. Chegaram na Península Ibérica, alcançaram Portugal, atravessaram o Atlântico. Aqui chegando cruzaram com duas tradições fortíssimas: os indígenas e os africanos. Que acrescentaram de si a esta festa, enriquecendo-a com sons, cores, danças, falas, línguas, culinárias, gestos. Amálgama cultural brasileiro. Antropofagia belíssima que somente acontece nessas terras. No Maranhão, o festejo é dirigido pelas Caixeiras, mulheres que carregam suas “caixas”, espécie de releitura de antigos atabaques. Porque quem dá o tom e o ritmo maranhense da festa do Divino tem sido o povo preto.

Em Cunha, a mistura se fez com brancos, indígenas e africanos. Por isso, naquele canto a quatro vozes, grave, em andamento larghissimo, que eu me esforçava para compreender alguma palavra, podiam conter francês, português arcaico, latim, tupi-guarani, yorubá, português brasileiro… “Tupi or not Tupi”… E ressalte-se que ano que vem, em julho, nos dias dos festejos do Divino de Cunha, haverá a Congada, a tradição africana de origem angolana e congolesa, festa milenar que aqui também passou, como outras, pela nossa oswaldiana canibalização, nossa mania de “comer” o estrangeiro… 

Depois de dois cantos, sabendo que os festeiros recolhiam donativos para a festa do ano que vem, entregamos nossa doação, que foi agradecida com outro canto. Meus olhos estavam marejados, eu mal via os homens e as mulheres de vermelho. Uma das árvores se dirigiu a nós, ao final do canto. E o homem nos chamou para acompanhá-los, para ir comer num sítio vizinho, onde a dona da casa tinha feito um almoço para receber os festeiros e todos os que quisessem se juntar a eles. Lembrei das Festas de Santo nos terreiros de Candomblé, onde todos os presentes se reúnem numa grande ceia, ao fim da festa, se alimentando do Axé do Orixá.

Nos dias do festejo do Divino, tudo também termina num grande almoço. Em Cunha, esta festa, que já dura 300 anos, tem toda a preparação que se inicia meses antes, como agora, onde um casal de festeiro guia os outros para recolher donativos que garantirão a grande festa. No grande dia, mulheres jovens e velhas saem de suas casas carregando suas peneiras para ajudar a catar o feijão do almoço. São sacas e sacas de feijão e arroz, kilos e kilos de carne. Já se chegou a alimentar mais de 20 mil pessoas há alguns anos. Todos são convidados a esta imensa mesa, cheia de axé, cheia de bênçãos, feita por tantas mãos. 

Mas neste domingo, agradecemos o convite para o almoço no sítio vizinho, sem saber como agradecer mais o presente de ver de perto esta tradição e de sentir a força da cultura e da alma do nosso povo. “Ano que vem, nós vamos”, respondemos. “Venham na novena também”, sugeriu a mulher de roupa branca e vermelha, parceira e irmã das ogãs e ekedis de Oxalá e de Ogum. Ou de Oiá. Saravá!

Deixaram conosco um pequeno pacote de sal. “Sal bento”, afirmaram. É pra ser acrescentado ao sal da casa, ao sal dos animais, semear nas plantas. Tudo isso trará fartura e prosperidade para a casa e a família. Saravá! 

E eu mal tinha chegado de São Paulo…

Entre a metrópole e os vagalumes

24/11/2022

A chuva desaba sobre o ranchinho, onde a Ecomunidade começa a existir. De manhã, todos chegam para celebrar juntos, caiando as paredes; um ano de construção! Na cidade, meu coração bate como o desafio dos sapos: Estou? Não estou?

Os preparativos para o começo da construção da minha casa, no terreno da Ecomunidade Bem Viver, estão iniciados. Agora sonho com tijolos, me vejo dentro de paredes erguidas em prazo mais curto do que jamais pude prever, passeio e danço em minha sala redonda.

De novo peguei a estrada, domingo de manhã. Há poucos dias o Presidente Lula foi eleito e a extrema-direita ainda estrebucha. Vi suas marcas em dois pontos do asfalto da rodovia Presidente Dutra, pontos onde queimaram pneus, bloquearam o trânsito, estes fascistas. Manchas ameaçadoras, elas trazem de volta esses seres capazes de gritar as piores barbaridades, de pregar as piores mentiras, de acreditar nos maiores absurdos, cegos de fanatismo. Mas … “a História é um carro alegre, cheio de um povo contente, que atropela indiferente todo aquele que a negue”… Melhor me ligar na voz de Bituca.  

Levo comigo dentro do carro, além de um fogão usado e outros objetos que serão úteis nesta fase inicial da comunidade, a planta baixa da casa e imagens em 3D do projeto. O pensamento volta: que alívio termos derrotado a extrema-direita nestas eleições presidenciais. Novamente podemos sonhar! Todos os nossos projetos, pessoais e coletivos, estão autorizados a serem sonhados e executados. O contrário disso seria viver num país impossível, vendo serem erguidos valores carcomidos pelo tempo e pela história; seria continuar a assistir ao desmonte da cultura, da educação; da derrubada de mais hectares das nossas florestas; da perseguição e da violência contra os indígenas, contra os defensores do meio-ambiente e contra nosso povo preto. As hienas fascistas ainda permanecerão grunhindo por um tempo. Uma hora qualquer se calarão.

Cheguei em Cunha, fui direto pro Capinzal, onde fica a terra. O dia estava nublado, sem sol, mas iluminado. Nuvens cinzentas se avistavam na Mantiqueira, ao longe, e na Bocaina. A previsão é de chover durante a semana toda, mas ainda não começou. Passei na casinha alugada de seu Chico, peguei a chave do rancho que construímos, para deixar lá o fogão. Estava sozinha para carregá-lo mas encostei o carro o mais próximo possível e lembrei da velha máxima de Arquimedes que sempre uso como argumento quando alguém se espanta com a minha força: “dê-me uma alavanca e um ponto de apoio e moverei o mundo”. Mundos movidos, fogão lá dentro, volto para a casinha.

Passei a primeira noite da vida sozinha numa casa de roça. Sensação nova, instigante. A noite veio sem lua no céu, mas ela está lá, cheia, escondida atrás de densas nuvens. Amanhã o Sol a eclipsará totalmente. E como eclipses e luas movem coisas cá embaixo, as nuvens desabaram. Um barulho de vento e chuva e raios e trovões caiu sobre a pequena casa de tijolos de olaria. Mas durou pouco, depois veio o silêncio. Eu já me deitara sob mil cobertas por causa do frio de 10 graus de novembro (!) e ouvia o silêncio… Dentro dele, identifiquei um som longínquo de um avião passando a quilômetros de altura, em sua rota aérea. Depois outro, depois outro… Até que veio a cantoria dos sapos: foi, não foi! Fui, não eu! Foi sim, fui não…

Amanhecido, o dia trouxe Lumena e Guaíra. Douglas pegou sua roçadeira e começou a cortar o mato da minha cota de terra que já ia alto, por causa das primeiras chuvas. Enquanto isso, também limpamos os pés de milho, fava, feijão e abóbora da nossa primeira horta coletiva. Fomos, munidas com o facão, cortar alguns pés de Lírio-do-Brejo, abrindo uma trilha para encontrar o pequeno riacho que margeia nossa mata. Mas as águas tinham subido e o terreno estava encharcado. Resolvemos limpar o mato em volta do nosso lago e plantar mais sementes na horta. Aproveitei, peguei a enxada e fui transplantar três mudas de abacate que tinham sido colocadas bem no local onde ficará minha futura casa. Plantei-as em lugares mais seguros, assim como tinha feito com minha muda da árvore Pau-Ferro, que agora define um dos cinco cantos da minha cota.

Sentei no meio do chão roçado, contemplando meu lugar, tomando posse. A Ecomunidade Bem Viver completou, em 7 de novembro, o primeiro ano de existência. Resolvemos comemorar todos juntos no próximo fim de semana. Quanta coisa aconteceu em tão pouco tempo! Em um ano apenas, compramos o terreno do Capinzal, registramos os documentos todos, roçamos toda a terra, o trator abriu as ruas entre as futuras casas, construímos uma primeira casinha, captamos as primeiras águas da fonte que nos abastece, solicitamos a instalação de eletricidade, demarcamos doze cotas, e duas casas estão prestes a serem erguidas. Mais outras virão, em breve.

Era pra chover todos os dias, mas choveu pouco. Mesmo assim, os dias estavam nublados e frios, as noites escuras. A luz amarela que ilumina a casinha aquece pouco o ambiente. Mais aquecem nossas conversas, lembrando de tempos idos de nossas vidas, de tempos futuros que virão e nos encontrarão habitando aquele lugar emoldurado pelas montanhas e pela Mata Atlântica. Lumena acendeu seu cigarro de palha e saiu para fora. Segui-a depois, em silêncio, ouvindo os sapos: – foi, não foi! Foi, não eu! Foi sim, foi não… E assim seguia a arenga que se repete todas as noites. 

De repente, minha amiga aponta para um brilho que não estava só na ponta de seu cigarro. Olhei na mesma direção: eram milhares de pequenos brilhos que se acendiam e apagavam, ritmadamente, acendendo a noite com seu pequeno lume, mas que se multiplicou e rapidamente nos vimos rodeadas destes insetinhos bioluminescentes, os vagalumes. Parecia que as estrelas desceram à terra para brincar com nossa imaginação e nos fazer novamente voltar a ser crianças, duas meninas brincando de correr atrás das luzes enquanto repetiam a cantoria dos sapos, verdadeiras disputas que nos arrancavam gargalhadas. Foi não, foi sim…

O fim de semana trouxe todos os amigos do grupo. Nos vimos, nos abraçamos, sorrimos juntos, não paramos de falar, contentes de nos encontrar fisicamente depois de tantos meses. Semanalmente nos reunimos virtualmente, colocamos o papo em dia, resolvemos coisas, ações a serem tomadas, perrengues a serem enfrentados, decisões. E vamos nos conhecendo mais e mais, constatando que, como um coletivo, temos muita capacidade de criação e de empreendimento. Que grupo de pessoas fortes, aguerridas, dispostas ao imenso desafio de viver valores outros que não os somente impostos pelo sistema sufocante do capitalismo. Comemoramos este primeiro ano com festa e trabalho. Um deles, fazer à mão, com terra e cal, o reboco da primeira casinha que construímos, enfeitando-o com recortes de vidro colorido doados pela artista da modelagem com vidro, Sandra Tami, uma de nós. Tudo orientado por nossa presidenta, Luciana.

De novo estou em São Paulo, de novo me preparando para voltar a Cunha. Hoje, lá fora, o tempo é inamistoso, as ruas estão barulhentas como sempre. Chove forte e meu pensamento voa em direção ao tempo em que eu era pequena, desobediente e rabugenta, sempre pensando em fugir. Estou fugindo deste lugar, baby… Desta vida na metrópole que cresce em verticais e que há algum tempo tem me feito sentir-me de novo deslocada, outsider outra vez. Daqui do meu sofá, nesta cidade, canto como os sapos: – Estou, não estou! Pertenço, não pertenço! Existir… a que será que se destina?

Ponto de Fuga

22/08/2022

São Paulo está sofrendo uma modificação visual como há muito tempo não se via. Praticamente não há bairro, entre a zona oeste e sul, onde inúmeros edifícios não estejam sendo levantados. Residenciais ou não, essas torres se erguem verticalmente ocupando o espaço que antes era de casas e sobrados. À esquerda e à direita do meu campo visual, aqui no bairro onde moro, a visão ampla está sendo bloqueada, incluindo a visão do céu. É como uma espécie de cerco, de redução dos limites, mesmo que visuais, e a sensação vai do desconforto à claustrofobia. Roubaram de mim o horizonte, encurtaram o espaço, aceleraram o tempo, apagaram as estrelas… 

Imagino o futuro: mais densidade demográfica e mais carros, muitos mais. Mais gente disputando espaços, consumindo energia, consumindo… Torres altas, falos verticais finos ou largos, agressivos, ao gosto da arquitetura da vez.  Os modismos arquitetônicos das novas modernidades urbanísticas, vêm afagando o mercado imobiliário e o lucro: em cada andar do prédio, onde antes cabiam dois ou quatro apartamentos, que agora caibam dez, vinte. Porque os tamanhos das moradas das pessoas também foram limitados a 15, 20, 30 metros quadrados. 

Mas se oferece mundos. E Fundos: ou imobiliários abstratos ou bem concretos se você uberizar seu bem. Mas é para o seu bem! Você pode interagir com a vizinhança, caso queira. Há espaços para a malhação coletiva, piscinas, lobbies, spa, espaço co-working, lounge, espaço delivery e rooftop (a língua portuguesa não dá conta de tanta modernidade?)… Ah os rooftops! Pagando para morar apertado, você tem acesso à visão do céu no telhado da torre. Lá, sim, você pode respirar, mesmo que o ar impuro da urbe, e ampliar um pouco mais sua visão, não muito, o suficiente para voltar a ser o escravo que se é, mesmo sem querer, da engrenagem toda do sistema. Enjaulado como um carneirinho, você tem acesso ao mundo, se quiser, nos aplicativos do seu celular. Só que não. A ilusão se perde aos poucos, à medida em que se amadurece. Não se iluda, não me iludo! 

Quando cheguei em São Paulo, há 35 anos, a cidade me era um encanto. Tudo era grande, quantitativa e metaforicamente. Andava pelas ruas do Bexiga com suas casas antigas, testemunhas da passagem do tempo nas vidas de gerações de pessoas. E de Adoniran Barbosa. A avenida Paulista estava logo ali, mais acima, imponente, com prédios modernos. Também caminhei anos pelas ruas da Vila Madalena, onde também morei, bairro habitado por estudantes da USP e antigas famílias portuguesas que, aos domingos, voltava a parecer uma pequena cidade do interior. E pelos meninos do Premeditando o Breque, o velho “Premê”, que encontrei uma ou duas vezes no Sujinho da Vila. Trabalhava, estudava, cuidava de crescer na vida, ia ao cinema, lia, frequentava museus, shows, bares, casas de amigos. São Paulo é tudo isso. 

Muitas vezes saí por aí cantando o Premê: “é sempre lindo andar na cidade de São Paulo, o clima engana, a vida é grana em São Paulo, a japonesa loura, a nordestina moura (eu) de São Paulo, gatinhas punks, um jeito yankee de São Paulo, na grande cidade me realizar, morando num BNH…” Hoje São Paulo não tem mais jeito yankee, seu jeito é hipster! Mas já foi fashion. 

Seu Francisco nunca saiu muito longe de sua aldeia. Seu Dito trocou a vida em Cunha pela vida no sítio, que ele comprou quando era possível a um trabalhador comprar um pedaço de terra naquela região. Seu Francisco não é fashion, seu Dito não é hipster. Há muitos mundos no mesmo mundo meu, que continuo nordestina e carrego em mim a sina da música de Luiz Gonzaga: quem sai da terra natal, em outro canto não pára. Não parei no meu canto nesta cidade grande que é de muitos e é também muito minha. Mas os movimentos de uma vida errante me levam em direção ao Ponto de Fuga que se inicia na pequena área de montanhas que circundam o Vale do Paraíba. Mas como não ando só, vou cantando a música de Chico Maranhão, que vai dizendo: “fique também pensando que o ponto de fuga por ser pequenino não cruza as retas mais curvas que o mundo tem”… 

O trator está rasgando a terra, corte suave para traçar ruas. Como vamos chegar, há que se desenhar um espaço onde viver entre a Serra do Mar e a Serra da Bocaina, em meio ao mar de morros. A primeira construção, coletiva, já está com as paredes levantadas. Há formigas comendo as folhas dos limoeiros e há a braquiária crescendo de novo na horta que preparamos. Ou seja, a Vida pulsa. Há um lago que foi reformatado para ficar bonito. Há o espaço da minha casa a ser construída em breve sendo posto à vista. Já sabemos os nomes dos nossos vizinhos, algo de suas histórias, de seus bichos, da Zina e do Gominho. Já iniciamos novas relações com artistas cunhenses, da cerâmica e das artes plásticas. Já agendamos as datas das festas de São Benedito, do Pinhão, do Divino. Vamos chegando, lentamente, suavemente… pois alguém nos “avisou pra pisar neste chão devagarinho”. 

Pareço um pião neste momento: nas mãos de uma criança, o pião sobe e desce, fazendo caracóis em movimento para a frente e para trás, para cima e para baixo. Meu carro já conhece as direções de um lado e do outro, já se sujou no pó fino da estrada de terra seca por falta de chuvas e se enlameou quando as chuvas vieram grossas, penetrando a terra. Olho para meus três gatos e falo a eles que esperem, que terão dias melhores na liberdade do mar de montanhas. Xavier, Tom e Chico me fitam sérios, parece que querem entender porque de vez em quando eu desapareço do apartamento, escorro pelo elevador do prédio, pelas ruas e estradas em direção àquele Ponto de Fuga… É necessário desenhar e retraçar esses caminhos, é meu ofício, é minha vida de artista e o traço precisa ser feito daqui pra lá, de lá pra cá, quantas vezes for preciso porque viver é preciso e necessário.

Belezas acesas por dentro

 

06/06/2022

O caminho vai se tornando familiar. Chego até à Marginal Tietê em direção à rodovia Ayrton Senna, depois Carvalho Pinto, Dutra e a transversal Paulo Virgínio. Mas ainda estou saindo de São Paulo, carregando comigo minhas coisas e meus pensamentos. A vida anda complexa nestes tempos, exigindo de nós uma autoconsciência ainda maior, no sentido de saber que somos um coletivo e não um indivíduo absoluto pleno de poder sobre todas as coisas.

Deve ser o peso de encarar a vida urbana tão conturbada de hoje em dia que trouxeram esses pensamentos. O neurocientista Sidarta Ribeiro começa seu novo livro “Sonho manifesto” dando um verdadeiro soco no estômago, mostrando as nossas feridas civilizatórias que estão mais abertas do que nunca: 800 milhões de pessoas passando fome no mundo; 800 mil pessoas se suicidam anualmente em todo o planeta, o dobro do número dos homicídios; crianças, mulheres e até caciques indígenas violentados e mortos na Amazônia; jovens sem perspectiva de futuro; trabalhadores esgotados para se manter no Brasil, no Japão e nos EUA; a cada minuto, onze pessoas morrem de fome… E por aí vai a lista tenebrosa. 

Adicione-se a essa receita triste as mudanças climáticas que nos tem atingido e que atingiu minha terra, Pernambuco, nestes últimos dias. Mais de cem pessoas mortas em uma nova tragédia causada pelas mudanças climáticas. Estamos alcançando uma linha de chegada perigosa que, se a cruzarmos, poderá ser o começo de muitos fins. No entanto, ainda há tempo.

Cheguei na casinha da roça no sábado à tardinha. As cores do céu pintadas pelo crepúsculo formavam uma paleta riquíssima de amarelos, laranjas, vermelhos e até violetas e rosas. Alguns verdes da terra se amarelavam para se aproximar do céu ou até se saturavam ainda mais, tornando-se mais verdes, para nos mostrar os avermelhados de algumas nuvens. Opostos magníficos que são cores complementares… Na medida em que seguimos pela estrada de terra e o sol vai baixando no horizonte recortado das montanhas, os verdes e os tons terras vão se tornando escuros. Há um momento em que quanto mais escuro é o que está próximo de nós, mais há luz no céu. E quanto mais luz há no céu do fim do dia, mais escura é a sombra concentrada nas massas de árvores. Pura ilusão óptica, mas um dos mais belos jogos perceptivos da mente humana… ou da alma? O resultado? Beleza! Ainda vou pintar essas cores!

Chegamos trazendo a noite. Uma fogueira já estava acesa e uma roda de amigos novos, visitantes, tinha se formado entre a fogueira e a cozinha, onde Lumena cozinhava pinhão para todos. Todos artistas da modelagem, do desenho, da criação. As conversas foram leves, plenas de risos e do prazer das nossas narrativas pessoais, que são estimulantes e curativas. Depois que eles saíram e que nos prometemos reeditar este encontro no Morro do Querosene em São Paulo, fomos dormir.

Desde que cheguei, ouvi com estranhamento o mugido de um boi nas redondezas. Dentro do silêncio da noite, aquele som era tão triste que me tocou, trazendo um sentimento de solidariedade àquele ser que sofria. Fiquei com muita vontade de procurar e abraçar aquele bicho, porque seu mugido era um verdadeiro e doloroso lamento. Mas não saberia me guiar pelos meandros da noite escura e encontrar o animal que, num intervalo de alguns minutos, repetia seu grito. 

Adormeci, enquanto ouvia o lamento do boi que foi se misturando a um som da minha infância, que veio de lá do fundo da minha memória: os aboios que meu pai cantava. Ele muito cedo aprendeu a guiar o gado pelas pastagens ou a levá-los de volta ao curral, entoando esses cantos chamados de “aboio”, que todo sertanejo nordestino pratica. O gado reconhece a voz do dono e parece ficar em silêncio, encantado pelos aboios cantados do vaqueiro. Porque nesses mundos por muitos de nós esquecidos, homens, mulheres e natureza se entendem, falam a mesma língua. Porque “já houve um tempo em que eles conversavam, entre si e com os homens, é certo e indiscutível pois que bem comprovado nos livros das fadas carochas”, diz Guimarães Rosa em “Conversa de bois”.

Amanhecido o dia, soube que o bicho era uma vaca. Homens tinham vindo comprar bezerros e tinham levado o dela porque era chegada a hora do desmame. Na mesma hora meu sentimento materno emergiu e me identifiquei de imediato com a dor que essa mãe sentia. Mais tarde, deparamo-nos com ela: uma vaca preta que, ao nos ver, abriu a boca num novo som que parecia querer atravessar todas as montanhas e que trouxesse seu bezerro de volta. Parecia nos ameaçar… Foram seres como nós que lhe causaram essa consumição. Mas “não, ela é boazinha”, disse o dono dela depois. Só estava sofrendo. “Em dois dias passa”, completou seu Francisco, homem acostumado à dinâmica dos bois.

Ainda estamos naquela fase de aprender tudo desse lado do mundo: o tempo das sementes e da colheita, como cortar a braquiária, usar a enxada e a foice, podar, coroar as árvores tomadas pelo mato. E o aprendizado inclui as temporalidades todas: quando é tempo de semear e de colher, no ritmo da natureza em cuja rede está envolvida até a Lua! Já sabemos que é melhor colher bambu na lua minguante… Até mesmo os mais céticos das crenças populares se calam diante do fato de que os bambus colhidos em lua cheia, por exemplo, racham mais porque soltam mais líquido. 

Uma das grandes lições que tenho aprendido desde que resolvi me alinhar à esta rede dos que defendem a interrupção do modo de vida atual que nos leva à morte, é que toda a nossa racionalidade ajuda, mas não basta.  “Compreender” as coisas só com a mente é limitante, pois somos também feitos de coração. Nossos mundos reais são entremeados do imaginário individual e coletivo. É justo resgatar do mais fundo de nossas almas o que lá pode estar oculto o que nos faz mais ricos: a percepção de que somos parte desse grande mistério que chamamos Vida. Oxalá isso se torne consciência nesse mundo que parece ter decretado seu fim. Epa Babá!

As noites de outono em Cunha, na lua minguante ou na nova, trazem um presente especial. A Via Láctea surge no céu quase ao alcance de nossas mãos e podemos admirar as nuvens de poeira cósmica que se formam em redor de constelações e estrelas. Ali atrás da casinha está “subindo” no céu o Cruzeiro do Sul. Oposto a ele, me virando mais para o Norte, o Sete-Estrelo, como chamamos as Plêiades no Brasil. O Sete-Estrelo da lenda Tupi, que são os sete filhinhos que Sy, a mãe, abandonou. Girando meu corpo um pouco mais, encontro as Três Marias do Cinturão de Órion. Maria da Glória, Maria da Penha, Maria das Dores?… Assim sigo dançando na noite, tocada pelas estrelas e pela minha imaginação que agora vê o “gado” celeste se movimentando junto comigo, dançando a dança do universo… 

Vou me deitar porque a noite é gelada também. A vaquinha finalmente silenciou, a dor amainou. Entro murmurando a música de Lulu Santos, inspirada por minha visão noturna: 

“Tudo o que se vê não é

Igual ao que a gente viu há um segundo

Tudo muda o tempo todo no mundo…”

Eu vim do Cunha...

 

4/04/2022

O tempo voou entre janeiro e abril, quando retomo estas crônicas sobre meu novo projeto de vida, a mudança da cidade para o campo. Nesse meio-tempo, adquirimos um pouco mais de três alqueires de terra em meio ao mar de montanhas da região de Cunha. Nesse meio-tempo, perdi um gatinho, o Miguilim, meu amigo felino que deixou a vida com apenas um ano de idade, e me fez refletir muito sobre a natureza da Vida em seu sentido maior. Meu gatinho me ensinou, em seus doze dias finais de vida, que se faz cada vez mais necessário, além de ter consciência ambiental e respeito à Natureza, o respeito pela Vida que pulsa em tantas outras formas. Fomos educados na cultura ocidental branca a ter respeito somente ou prioritariamente à vida humana, e caminhando dentro do conceito do homocentrismo nos damos todas as prerrogativas para ocupar, expandir, limitar, destruir, adaptar, queimar e até matar outros seres vivos que atravessarem nossos projetos e nosso desenvolvimentismo a todo custo. Miguilim me ensinou sobre a Vida…

Viajei para Cunha há poucos dias carregando comigo, além desses pensamentos, vários itens para nosso futuro trabalho na terra: enxada, cavadeira, tesoura de poda e rastelo, mas também vários itens para equipar a casinha de roça que alugamos enquanto não temos nosso primeiro teto. Cheguei no fim da manhã, sozinha, pois meus amigos viriam em outro carro um pouco mais tarde… Fiz uma arrumação geral em tudo, preparando para a chegada deles. O céu estava se fechando e um vento forte começou a cantar em todas as direções. Uma frente fria tinha chegado em São Paulo e, nas montanhas, ela vinha com mais força ainda. Por volta das 18 horas, fui pra porta da casa, ficar de olhos e ouvidos atentos. Mas o vento forte trouxe consigo uma chuva intermitente e isso era preocupante, uma vez que a noite estava caindo e a estrada de terra é sempre um perigo a enfrentar, em especial na escuridão molhada.

Que foi tomando conta do lugar. À noite, toda a variação de verdes possíveis dos morros e montanhas se tornam uma mesma massa cinza escura. O mistério parece descer sobre a terra… Ventos vindos de direções variadas arrancavam sonoridades diferentes para meus ouvidos: estalos nos bambus, farfalhar das folhas das árvores, algum barulho surdo de algo que cai e as águas que dançam na ventania, estalando sobre as folhas e o mato. O mistério se fez maior, e uma pontinha de medo me deu um leve arrepio. Lembrei do poema do Drummond “Anoitecer”, que Zé Miguel Wisnik musicou:

“É a hora em que o sino toca
mas aqui não há sinos; (…)
Hora de delicadeza
gasalho, sombra, silêncio.
Haverá disso no mundo?
É antes a hora dos corvos
bicando em mim meu passado
meu futuro, meu degredo…”

Esse clima de mistério que se abateu sobre mim, sozinha nas montanhas, numa cabana isolada, sem internet, sem telefone, sem possibilidade de comunicação, me trouxe à lembrança uma conversa que tive com minha mãe recentemente. Falávamos de vida na roça, como foi a vida dela até a adolescência, vivendo no meio do sertão do agreste pernambucano, onde viveram seus pais, meus avós e bisavós, e outros antepassados que saíram de Portugal para tentar a vida no Brasil selvagem e nunca mais voltaram. Lá pelas tantas, minha mãe me lembrou do nome do lugar onde nasceu e viveu meu pai, meu avô, meu bisavô… Cunha! Cunha! No mesmo momento em que ela pronunciou a palavra, ouvi a voz do meu pai me chamando muito pequena para ir para “o Cunha”! Assim mesmo no masculino ele falava, pois resumia numa expressão que o lugar onde meu avô vivia tinha esse nome.

Cunha! Mistérios da vida, dos giros que o mundo dá, como esse vento que sopra em redemoinhos trazendo gotas d’água e mais frio pra dentro da cabana. Me veio a vontade de agradecer a meus ancestrais; talvez eles tenham a ver com o fato de eu estar me mudando, a esta altura da minha vida, para Cunha? Nem o vento soube me responder pois soprava ainda mais forte qualquer braveza, entrando pelas frestas do telhado, me fazendo ir lá dentro buscar um cachecol de lã de lhama. O que importa? Mistérios são para serem contemplados, ficarem pulsando na alma como possibilidade de poesia, infinitamente… 

Mais de sete da noite e meu ouvido alerta não detectava nem sinal de meus amigos… Pensei: aguardo mais uma hora e se ninguém aparecer tento sair para ver se não encalharam em algum lamaçal da estrada. Mas uns quarenta minutos depois ouço vozes: da Sandra, da Paty, da Jane? Peguei minha lanterna e meu guarda-chuva, pronta pra ajudar a abrir as duas porteiras que separam a casa da estrada. Mas encontro elas e Luciana carregando malas e mochilas nas costas, sob a chuva. O carro não alcançou a última subida. Fui com a Paty até ele buscar o resto das coisas e Kawni, que lá tinha ficado de guarda. E a noite foi só festa e alegria, finalmente todas juntas.

Em breve teremos uma espécie de mapeamento do nosso terreno: onde ficará a casa-sede, onde estarão as cotas individuais, onde estará nossa horta, como canalizar a água do riacho que, sim, corre solto e limpo pela terra. Nos dois dias seguintes fomos, as seis pessoas prontas a acariciar nossa terra: limpamos em redor das fruteiras cítricas e das cinco mudas de árvores que plantamos, todas um pouco sufocadas pela braquiária e pelos lírios. Respiraram, estão crescendo. Logo nosso primeiro Ipê plantado, por nove mãos, será uma imensa árvore que vai nos dar sombra, flores e beleza. Colhemos macaxeira (mandioca ou aipim, nas línguas do sudeste) e dela fizemos a sopa que aqueceu nossa próxima noite. Fizemos fogueira e comemos pinhão, numa roda ao redor do fogo, com Jéssica e Leo que se juntaram a nós. Lumena, Flávio e Johnny desta vez não vieram, mas foram incluídos na roda do afeto. 

Na tarde seguinte foi preciso cobrir os dois quartos com as lonas que tinha trazido. Aquele vento frio insistia em nos castigar à noite, minhas amigas tinham dormido mal e nada como uma noite mal-dormida para trazer maus pensamentos, dúvidas, medos, toda espécie desses monstros mentais que nos atacam nas horas da escuridão. Mas essas devem ser as horas “da delicadeza, gasalho, sombra, silêncio”… Lonas colocadas e a próxima noite foi passada mais confortavelmente.

Não sabemos ainda ao certo quando será o momento de chegar e ficar em Cunha, de forma definitiva. Em alguns momentos vem a vontade de ser logo, em breves meses; em outros, é claro que domina a dúvida e ela pede tempo. Tempo pra pensar, pra sentir, pra resolver as paradas todas de quem se enrolou muito numa cidade grande como São Paulo. Nesse rolê metropolitano, mil garras nos seguram, verdadeiras teias nos enredam. E há os diversos cantos de sereias urbanas enganadoras que nos iludem com promessas as mais diversas como as oferecidas por uma grande cidade e seus bares, restaurantes, cinemas, teatros, museus e shows aos quais quase nunca vamos com a frequência que deveríamos… ou gostaríamos. Enquanto isso, o tempo passa… Mas a música de Criolo confirma e decreta e não me deixa duvidar:

“Os bares estão cheios de almas tão vazias
A ganância vibra, a vaidade excita
Devolva a minha vida e morra
afogada em seu próprio mar de fel!
Aqui ninguém vai pro céu!”

Engendrando o sonho

16/12/2021

A primeira das duas vezes em que li “Os sertões” de Euclides da Cunha, tive que vencer uma primeira grande dificuldade: passar pela primeira das três partes que compõem o livro, A Terra. O autor parece testar o leitor, numa linguagem tão áspera quanto culta: é preciso atravessar as cadeias de montanhas da região sudeste, contemplar o eterno conflito entre o mar e a terra ao longo do litoral brasileiro, atravessar sertões e caatingas, para poder ter acesso ao sonho de um homem, Antonio Conselheiro, e sua Canudos. Aquele sonho que habitava o coração de Antonio Vicente, o Conselheiro – criar uma comunidade alternativa ao sistema – permanece como paradigma.

Lembrei deste livro fundamental quando me juntei aos buscadores da terra, deste meu grupo de amigos. Porque a realização do grande sonho coletivo – aí incluídos todos os sonhos individuais – envolve um chão. A primeira vez que fui com parte deles, fomos para São Luiz do Paraitinga ver uma propriedade que ficava mais próxima do distrito de Lagoinha, pequena cidade do Vale do Paraíba. O sol estava a pino, a natureza exuberantemente verde, após as primeiras chuvas. O olhar que percorre as montanhas em 360 graus se enche de encanto, porque há uma verdadeira ondulação harmônica de montes, morros, subidas, descidas. 

Mas “olhar” uma terra é muito diferente de ver um apartamento ou uma casa na cidade. É necessário andar sobre ela, calçar bem os pés, proteger pernas e braços, porque há plantinhas que machucam a pele e diversos pequenos animais que podem picar. Ainda é preciso vencer as subidas e descidas, observar veios d’água, possíveis áreas cultiváveis ou construíveis, percorrer trilhas, passar por “bambuzeiros”, como dizem os habitantes desta parte do interior de São Paulo. Tudo isso com o sol ardendo sobre as cabeças e a respiração resfolegante, coração acelerado… E de repente “ver” aquele pedaço de terra ocupado por nossas casas, com flores nas janelas, com floresta, hortas, viveiros, ateliês, galinhas, oficinas, ovelhas e muito afeto.

O caminho até chegar ao sonho também é áspero. Há estradas de terra a serem percorridas, com buracos, pedras, cascalhos, curvas, subidas. Os automóveis que usamos nas cidades sofrem nesses trechos, não foram feitos para isso. Mas há que esgotá-los, tirar deles seu máximo de potência. Essas máquinas não foram feitas para nos dar maiores pernas? Então! Mas o preço da gasolina está caro, então nos apertamos em um ou dois, adicionando mais massa a ser transportada em direção ao sonho…

Na segunda vez que fomos, passamos por várias propriedades na montanhosa região de Cunha. Até encontrarmos uma área mais plana, mais habitável, mais próxima da cidade próxima, portanto mais viável em diversos aspectos. Cunha é uma cidade que atrai muitos turistas em busca do sossego – ou da aventura – nas montanhas. Lá também residem diversos artistas que trabalham com cerâmica. E há uma rica vida cultural do povo, com a Festa do Divino, as tradições da Semana Santa e Corpus Christi, cavalaria de São Benedito, Festa do Pinhão, Festival de Música no inverno, além da festa da Padroeira, Nossa Senhora da Conceição…

… Oxum, Ora Yê-iê, Ô! Nossa senhora, rainha das águas doces, dos rios e cachoeiras que banham as montanhas de Cunha. Montanhas de Baba Okê, onde Oxalá também faz sua morada e recebe suas oferendas. E onde também habita Xangô em suas pedras – Kao kabecilê! – o rei das tempestades, dos raios e dos trovões, livrai-nos do mal! Mas também tem, pairando nos ares, o deus Tupã, que criou os céus e as estrelas, as águas e a terra. É Nhanderuvuçu  que nos fala no som das tempestades, cujas águas escorrem nos riachos protegidos por Iara, a Mãe-Dágua, entrando e saindo das matas onde mora o Caipora. Tupã nos deu o poder de criar ou destruir!

A esta altura de nossas vidas, escolhemos criar. Parar de ser parte da destruição geral!

Contratamos um casal, arquiteta e engenheiro ambiental, para nos apresentar um estudo de viabilidade de ocupação do terreno que nos agradou. A propriedade possui em torno de oito hectares (ou três alqueires e meio), contendo uma Área de Preservação Permanente (APP) que ocupa quase um terço do terreno. Há também uma área de cobertura florestal, uma pequena mata preservada, onde vivem muitas espécies de bichinhos da terra e do ar. Há um pequeno córrego que talvez um dia tenha sido um rio, do qual pretendemos cuidar que volte à sua origem. Caso seja esta a terra escolhida.

Em torno de 50% da área total, há espaço e possibilidade de ocupação, segundo atestam as fotografias minuciosas do drone do engenheiro. Essa parte que pode ser ocupada encontra-se, no entanto, dividida em três trechos. Há estrada de servidão, nome engraçado que significa que outras pessoas podem fazer uso dela, passando por esta terra. Ainda no relatório dos dois profissionais, consta que a gleba possui rede de distribuição de energia elétrica e vias de acesso bem mantidas. E o relatório conclui, quase como um poema para nós:

“Ainda, sob o aspecto ambiental, contém adequada proporção de vegetação nativa já consolidada, aclives e declives suaves frente ao contexto geomorfológico cunhense, e é abastecida por curso d’água perene.”

Mas a história ainda não acabou, ou apenas começou. Outra área surgiu como possibilidade na mesma região. Se apareceu, há que se olhar de perto. Há que se comparar… Há que se resolver… Estamos, no momento, como se estivéssemos arando a terra, preparando-a para nos acolher. E por isso, ainda é preciso caminhar mais sobre ela, e suar mais e sonhar mais, para poder chegar à nossa Canudos e ver de perto o sonho arquetípico de uma terra sem males…

segunda-feira, 8 de julho de 2024

Tempo de tecer comunidade

O mar de morros e montanhas de Cunha

20/09/2021

Minha primeira participação nas reuniões domingueiras do grupo Eco-comunidade Bem-Viver se deu no começo de setembro. Como se tornou comum nesta pandemia, reunião virtual, onde vemos nossos rostos e ouvimos nossas vozes, basicamente. E porque não vemos corpos ao vivo, tête-à-tête, nos escapam algumas sutilezas de gestos, de olhares, de pequenos movimentos musculares de rostos reagindo, movimentos de mãos. Como apenas o microfone de quem fala está ligado, não ouvimos espirros, tosses, pigarros, murmúrios. Mesmo assim é um passo no movimento em busca da tribo.

As primeiras imagens da sala virtual me mostraram, logo de cara, uma característica bela deste grupo: a grande maioria formada por mulheres, fortes, destemidas. E os homens que se agregaram possuem todo um profundo respeito por esta maioria feminina. Com um detalhe a enfatizar também: todas e todos dispostos a uma vida coletiva com respeito à diversidade de gênero, de raça, de credo, de costumes. As primeiras conversas nas quais me incluí falavam da importância de priorizar antes de tudo, o grupo, o coletivo. De recuperar a dimensão da ideia de comunidade. Uma disponibilidade geral de construção de afetos, de cuidado, de generosidade e solidariedade uns com os outros. Não há como não fazer uma ligação com tempos longínquos onde o matriarcado prevaleceu em algumas sociedades.

Olhando para esse projeto coletivo, também miro os exemplos das populações indígenas e quilombolas que nos mostram formas diferentes de estar no mundo em sociedade. Até mesmo os projetos de cooperativas e formas coletivas de produzir incentivadas pelo MST são alento e exemplo nestes dias. São fonte de inspiração, porque carregamos dentro de nós esta memória de vida comunitária como forma de existir, em colaboração, em co-habitação, quando observávamos os ritmos da Natureza como ritmos dos nossos próprios corpos, quando nossas atividades em comum abriam espaço temporal para o fruir da vida. Esta memória cultural é preciso resgatar nos dias de hoje: o ritmo do existir coletivo incluído nos ritmos da natureza, do tempo, das sazonalidades naturais. Aquela forma de existir que poupava os esforços de todos: bastavam poucas horas de trabalho para nos suprir e podíamos cantar, dançar, sonhar, criar, ter prazer, gozar a vida.

Semanalmente, e quase diariamente, este grupo vai se fortalecendo, se aproximando e criando laços cada vez mais íntimos. Isto é necessário, um passo prioritário antes da execução inicial de compra de uma terra. É preciso ir se alinhando, se conhecendo, construindo os combinados que vão apertando os laços da confiança, nesse processo conjunto de abrir o coração. Porque somos humanos, cada um com sua singularidade, seus mundos vividos, com seus potenciais e com seus limites. A riqueza maior disso tudo é juntar tanta gente diferente, mas sem medo de se ser quem se é, porque todos se dispõem ao convívio. Quase um casamento.

Há muita ousadia nesta convergência de vidas, porque a proposta é muito diferente do modo de vida mais comum hoje, no mundo dominado por valores capitalistas da competição e da produção em escala gigante. Pessoas sendo moídas nessa máquina desumana que impõe formas de viver individualizadas e egóicas. Eu vivo num prédio de dez andares de dois blocos com 40 apartamentos cada. Não conheço meus vizinhos e o contato social se reduz a cumprimentos formais no elevador. Cada um vive em sua própria cápsula, relegado ao medo e desconfiança do outro, pertencendo a um coletivo gigante (esta cidade de 12 milhões de habitantes), um bando de gente insegura que cada vez se tranca mais e constrói muros cada vez mais altos. E toma remédios cada vez mais fortes para suportar a carga diária desse sistema moedor de gente.

Então celebrar esse encontro se fez necessário! Dia desses, reunidos na casa de uma das mulheres onde o almoço foi preparado por todos, enquanto as conversas se desenvolviam – e o afeto também – realmente festejamos e brindamos ao nosso encontro, ao nosso casamento. Somos um grupo agora, e o “eu” se transformou em “nós”, mesmo que a “euzinha” aqui seja uma pequena parte desse grupo de “nós”, e isso me fortalece, me alegra, me dá esperança… Acho que nisso também falo por “nós”…

Estamos no momento de tecer essa comunidade, esse sonho coletivo. Pretendemos viver com valores que podemos chamar de pós-capitalistas: pra começo de conversa, abolimos a necessidade da propriedade privada. O grupo irá adquirir um lote de terra onde caibam todos e a todos os projetos coletivos, mas ninguém será “dono” da parte que lhe tocará, sua cota de mil metros quadrados, onde poderá construir sua morada, seu jardim, seu quintal. A propriedade como um todo será coletiva, da Associação Eco-comunidade Bem-Viver. Procuraremos aproveitar o que a terra nos oferece para construção de nossas casas, pretendemos ter nossa própria horta, nosso pomar, nossos pequenos animais parceiros de um modo de vida em que haja troca, reciclagem, cuidado do meio-ambiente. Pretendemos plantar árvores, fazer brotar nascentes de água, usar a energia limpa que vem do sol e dos ventos, na medida do possível.

Será fácil? Nem um pouco! Os desafios são gigantes, são de toda ordem: desde a escolha e a compra de uma terra adequada aos projetos, todas as construções que serão necessárias, a adaptação a valores existenciais diversos do “comum”, e até os pequenos perrengues diários que, sim, surgirão. Mas somos grupo, somos “juntos, somos fortes, somos flecha e somos arco, todos nós no mesmo barco não há nada pra temer”!

Os primeiros passos foram dados!