04/04/2023
O sol saiu, finalmente, e as luzes do outono já tingem as nossas vidas, nossas cidades, a Natureza. Sempre gostei desta luz, mais branda, parece que se espalha mais, porque desnuda mais as coisas do mundo. A luz forte do verão estoura nossa visão com complementares muito sombrias ou muito luminosas. Ou os dias são tórridos e resplandecentes, ou sombrios e acinzentados. E chove, muito. Neste ano então…
No Capinzal, onde se localiza nosso sítio , a estrada de terra ficou impossível com a chuvarada deste último verão. Em um determinado trecho, carros atolaram, caminhões evitavam passar, voltavam carregados de material que iriam entregar nas obras. Mas, após uma conversa entre moradores locais, surgiu a ideia de um abaixo-assinado pela vizinhança, para levar à prefeitura de Cunha. Deu certo. Dias depois um trator e um caminhão vieram consertar o trecho ruim da estrada. E os carros e caminhões voltaram a trafegar…
Minha construção caminha agora a passos mais largos, mesmo com calendário atrasado. Fernando já colocou toda a ferragem dos baldrames, já concretou sapatas e brocas. A etapa seguinte é concretar os baldrames, depois partir para o contrapiso para, enfim, começar a levantar as paredes da minha futura casa.
Dia desses sentei na sombra da árvore vizinha, observando o pedreiro trabalhar. A terra ainda estava úmida das chuvas do verão que foram torrenciais. Me lembrei dos dias e noites de angústia, quando ele me dizia que choveu muito à noite e não daria para ir no dia seguinte. Quando essa chuva vai parar? Pergunta egoísta, a chuva alegra a Natureza, a fertiliza, a prepara para as brotações todas. Então, sob a sombra da árvore, comecei a ver que a chuva tinha feito uma lavagem do terreno todo, uma lavagem do lugar que nos recebia. Para que reclamar? Os mistérios do mundo são maiores, assim o sabem as Iyawôs da Bahia, lavando as escadarias da igreja do Bonfim. Salve Oxalá!
Às cinco horas da tarde, depois do descanso porque o sol estava a pino, fui na casa de uma vizinha. Chamei da porteira, um cachorro latia, bravo. Ela saiu à frente da casa, brigando com o cãozinho e me falando para entrar. Tinha ido buscar um queijo que ela mesma faz com o leite das suas vacas, queijo delicioso, no ponto certo do sal. Mas, além do leite, levei uma sacola com limões e chuchus, enquanto ela me dizia para voltar dali uns dias porque iria ter laranja e mexerica. O povo da roça gosta de dar presentes, forma afetuosa de acolhimento. Sempre me surpreendem esses mimos pois, na cidade grande de onde venho, o dinheiro é o rei até mesmo das relações sociais. Talvez seja por isso que nos viciamos a não mais sonhar a não ser conosco mesmos, como acusa Davi Kopenawa, no “A queda do céu”.
Eu, que sempre sonhei e tinha orgulho dos meus sonhos fantásticos, havia parado de sonhar. Há anos, minhas noites vinham sendo um apagar-me de mim, por algumas horas. Breu, ausência, vazio. Restava-me alimentar os grandes sonhos-projetos, como os que me trazem a pintura, a poesia, a arte. Devanear, sonhar acordada, sempre fui boa nisso. Mas sentia falta dos meus sonhos noturnos, quando o corpo descansa e a alma pode voar pelos espaços e tempos infinitos. Graças às minhas recentes aproximações com outros mundos, os mundos dos indígenas brasileiros como Kopenawa e Krenak, ou os mundos da sabedoria africana dos Orixás sagrados, tenho descoberto que a vida é mais rica do que pode imaginar a nossa cada vez mais vã filosofia ocidental…
Neste sentido, essa transição a que me propus, de deixar a vida em São Paulo e ir em direção às raízes, mudando para o campo, tem muitos mais elementos a serem percebidos. Não é só arrumar as coisas, chamar um caminhão de mudança e levar tudo o que tenho, com meus três gatos, para minha nova morada. Ah as chuvas… Tanta reflexão pude fazer enquanto a chuva caía sobre a minha terra, que adiava a feitura da minha casa. Fui lendo Kopenawa e Krenak, fui absorvendo o conhecimento rico e profundo das nossas tradições mais puras, escondidas pelas florestas. Fui me entregando ao Ilê, dançando para os Orixás, me vestindo de branco, reverenciando essas heranças ancestrais que atravessam tempos não-lineares e que me levam a mundos fascinantes, dos quais antes não tinha conhecimento.
Minha formação é padrão: branca, ocidental, racional. Um mais um somam dois, jamais pode ser três, porque nesse mundo as potencialidades são assim pré-definidas. As aparências de tudo o que posso ver são estas mesmo, nada há por detrás. Nada do que se encantar que não seja dado pelo dinheiro. O antropocentrismo é inquestionável, a vida humana é a mais importante. A mente humana então? Nada é mais rico no universo. E assim seguimos destruindo nosso planeta e vivendo vidas secas: sonhando com altos salários, casas na cidade e na praia, os melhores SUVs do momento, as mais caras viagens pelo mundo, enquanto tomamos diazepans e rivotrils ou as melhores drogas anti-depressivas e anti-stress aprovadas ou não pela anvisa… Estima-se que até 2030 a depressão seja a doença mais comum no mundo inteiro…
Quando se volta a sonhar, o mundo se encanta. Tudo está interligado por um sutil encadeamento que faz árvore, pedra, estrela, pássaro, serpente, oceano, cachoeira, galáxia, planeta, buraco-negro, matéria-escura, criança, micróbio, areia, animal, átomo, rio, tudo dançar! E como esse mundo é embriagante, vamos nos embebedar dele, como propõe Baudelaire:
“É preciso estar sempre bêbado. Tudo está certo: única questão.
Para não sentir o horrível fardo do tempo que curva teus ombros e te faz curvar em direção ao chão, é preciso que você se embriague sem medo.
Mas se embriagar do que? De vinho, de poesia, ou de virtude, como você escolher. Mas se embriague!
E se alguma vez, sobre os degraus de um palácio, sobre a erva verde de um fosso, na solitude morna de seu quarto, você se levantar com a bebedeira já diminuída ou desaparecida, pergunte ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que se move, a tudo o que se lamenta, a tudo o que fala, a tudo o que canta, pergunte que horas são; e o vento, a onda, o pássaro, o relógio, irão te responder: – é hora de se embriagar!
Para não ser mais um escravo martirizado do tempo, embriague-se sem cessar! De vinho, de poesia, do que você quiser.”
* trecho do poema de Calderón de La Barca.