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terça-feira, 9 de julho de 2024

E os sonhos, sonhos são *

 

04/04/2023

O sol saiu, finalmente, e as luzes do outono já tingem as nossas vidas, nossas cidades, a Natureza. Sempre gostei desta luz, mais branda, parece que se espalha mais, porque desnuda mais as coisas do mundo. A luz forte do verão estoura nossa visão com complementares muito sombrias ou muito luminosas. Ou os dias são tórridos e resplandecentes, ou sombrios e acinzentados. E chove, muito. Neste ano então…

No Capinzal, onde se localiza nosso sítio (já podemos chamar nosso pedaço de terra assim, uma vez que já começa a produzir comida), a estrada de terra ficou impossível com a chuvarada deste último verão. Em um determinado trecho, carros atolaram, caminhões evitavam passar, voltavam carregados de material que iriam entregar nas obras. Mas uma ideia surgiu a partir de uma conversa onde estávamos eu, Lumena e Douglas. Lumena falou da ideia de um abaixo-assinado dos moradores do bairro (um aglomerado de pequenos sítios), já tinha redigido o texto, agora era correr a vizinhança em busca de assinaturas de apoio. Douglas contribuiu com a ideia de “então aproveitar e criar um grupo no zap”. Grupo do Capinzal. Assim foi feito, e em dois finais de semana Lumena organizou uma ida a todas as moradias, recolhendo a assinatura do povo. Deu certo. Entregue à prefeitura de Cunha, dias depois um trator e um caminhão vieram consertar o trecho ruim da estrada. E os carros e caminhões voltaram a trafegar…

Minha construção caminha agora a passos mais largos, mesmo com calendário atrasado. Fernando já colocou toda a ferragem dos baldrames, já concretou sapatas e brocas. A etapa seguinte é concretar os baldrames, depois partir para o contrapiso para, enfim, começar a levantar as paredes da minha futura casa.

Dia desses sentei na sombra da árvore vizinha, observando Fernando e Douglas trabalhar. A terra ainda estava úmida das chuvas do verão que foram torrenciais. Me lembrei dos dias e noites de angústia, quando Fernando me dizia que choveu muito à noite e não daria para ir no dia seguinte, ele também angustiado. Quando essa chuva vai parar? Pergunta egoísta, eu sei, a chuva alegra a Natureza, a fertiliza, a prepara para as brotações todas. Então, sob a sombra da árvore, comecei a ver que a chuva tinha feito uma lavagem do terreno todo, uma lavagem do lugar que nos recebia. Para que reclamar? Os mistérios do mundo são maiores, assim o sabem as Iyawôs da Bahia, lavando as escadarias da igreja do Bonfim. Salve Oxalá!

Às cinco horas da tarde, depois do descanso porque o sol estava a pino, fui na casa de dona Nair, uma vizinha. Chamei da porteira, um cachorro latia, bravo. Ela saiu à frente da casa, brigando com o cãozinho e me falando para entrar. Na varanda, seu Chico estava sentado diante do filho, que lhe cortava as unhas. O povo da roça é muito bem humorado, fizeram graça com a cena, seu Chico reclamou da catarata, e eu entrei na cozinha da dona Nair. Tinha ido buscar um queijo que ela mesma faz com o leite das suas vacas, queijo delicioso, no ponto certo do sal. Mas não se vai embora sem o café e o lanche que ela oferece. E ainda levei uma sacola com limões e chuchus, enquanto ela me dizia para voltar dali uns dias porque iria ter laranja e mexerica. Seu Chico já tinha nos dado feijão que ele mesmo tinha plantado e colhido, no alto de seus 81 anos de idade. Tantos presentes temos recebido, nessa acolhida afetuosa, à nós, os que cansaram da vida louca da metrópole, onde o dinheiro é rei e “onde vivem as pessoas que não sabem sonhar a não ser consigo mesmas”, como diz Davi Kopenawa em seu livro “A queda do céu”.

Eu, que sempre sonhei e tinha orgulho dos meus sonhos fantásticos, havia parado de sonhar. Há anos, minhas noites vinham sendo um apagar-me de mim, por algumas horas. Breu, ausência, vazio. Restava-me alimentar os grandes sonhos-projetos, como os que me trazem a pintura, a poesia, a arte. Devanear, sonhar acordada, sempre fui boa nisso. Mas sentia falta dos meus sonhos noturnos, quando o corpo descansa e a alma pode voar pelos espaços e tempos infinitos. Graças às minhas recentes aproximações com outros mundos, os mundos dos indígenas brasileiros como Kopenawa e Krenak, ou os mundos da sabedoria africana dos Orixás sagrados, tenho descoberto que a vida é mais rica do que pode imaginar a nossa cada vez mais vã filosofia ocidental…

Neste sentido, essa transição a que me propus, de deixar a vida em São Paulo e ir em direção às raízes, mudando para o campo, tem muitos mais elementos a serem percebidos. Não é só arrumar as coisas, chamar um caminhão de mudança e levar tudo o que tenho, com meus três gatos, para minha nova morada. Ah as chuvas… Tanta reflexão pude fazer enquanto a chuva caía sobre a minha terra, que adiava a feitura da minha casa. Fui lendo Kopenawa e Krenak, fui absorvendo o conhecimento rico e profundo das nossas tradições mais puras, escondidas pelas florestas. Fui me entregando ao Ilê, dançando para os Orixás, me vestindo de branco, reverenciando essas heranças ancestrais que atravessam tempos não-lineares e que me levam a mundos fascinantes, dos quais antes eu não tinha conhecimento. 

Minha formação é padrão branca, ocidental, racional. Um mais um é dois e jamais pode ser três, porque nesse mundo as potencialidades são assim estreitas. Penso logo existo? As aparências de tudo o que posso ver são estas mesmo, nada há por detrás. Nada do que se encantar que não seja dado pelo dinheiro. O Antropocentrismo é inquestionável, a vida humana é a mais importante. A mente humana então? Nada é mais rico no universo. E assim seguimos destruindo nosso planeta e vivendo vidas de merda: sonhando com altos salários, casas na cidade e na praia, os melhores SUVs do momento, as mais caras viagens pelo mundo, enquanto tomamos Diazepans e Rivotrils ou as melhores drogas anti-depressivas e anti-stress aprovadas pela Anvisa… Estima-se que até 2030 a depressão seja a doença mais comum no mundo inteiro…

Quando se volta a sonhar, o mundo se encanta. Tudo está interligado por um sutil encadeamento que faz árvore, pedra, estrela, pássaro, serpente, oceano, cachoeira, galáxia, planeta, buraco-negro, matéria-escura, criança, micróbio, areia, animal, átomo, rio, tudo dançar! E como esse mundo é embriagante, vamos nos embebedar dele,como propõe Baudelaire:

“É preciso estar sempre bêbado. Tudo está certo: única questão.

Para não sentir o horrível fardo do tempo que curva teus ombros e te faz curvar em direção ao chão, é preciso que você se embriague sem medo.

Mas se embriagar do que? De vinho, de poesia, ou de virtude, como você escolher. Mas se embriague!

E se alguma vez, sobre os degraus de um palácio, sobre a erva verde de um fosso, na solitude morna de seu quarto, você se levantar com a bebedeira já diminuída ou desaparecida, pergunte ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que se move, a tudo o que se lamenta, a tudo o que fala, a tudo o que canta, pergunte que horas são; e o vento, a onda, o pássaro, o relógio, irão te responder: – é hora de se embriagar! 

Para não ser mais um escravo martirizado do tempo, embriague-se sem cessar! De vinho, de poesia, do que você quiser.”

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  • * trecho do poema de Calderón de La Barca.

Belezas acesas por dentro

 

06/06/2022

O caminho vai se tornando familiar. Chego até à Marginal Tietê em direção à rodovia Ayrton Senna, depois Carvalho Pinto, Dutra e a transversal Paulo Virgínio. Mas ainda estou saindo de São Paulo, carregando comigo minhas coisas e meus pensamentos. A vida anda complexa nestes tempos, exigindo de nós uma autoconsciência ainda maior, no sentido de saber que somos um coletivo e não um indivíduo absoluto pleno de poder sobre todas as coisas.

Deve ser o peso de encarar a vida urbana tão conturbada de hoje em dia que trouxeram esses pensamentos. O neurocientista Sidarta Ribeiro começa seu novo livro “Sonho manifesto” dando um verdadeiro soco no estômago, mostrando as nossas feridas civilizatórias que estão mais abertas do que nunca: 800 milhões de pessoas passando fome no mundo; 800 mil pessoas se suicidam anualmente em todo o planeta, o dobro do número dos homicídios; crianças, mulheres e até caciques indígenas violentados e mortos na Amazônia; jovens sem perspectiva de futuro; trabalhadores esgotados para se manter no Brasil, no Japão e nos EUA; a cada minuto, onze pessoas morrem de fome… E por aí vai a lista tenebrosa. 

Adicione-se a essa receita triste as mudanças climáticas que nos tem atingido e que atingiu minha terra, Pernambuco, nestes últimos dias. Mais de cem pessoas mortas em uma nova tragédia causada pelas mudanças climáticas. Estamos alcançando uma linha de chegada perigosa que, se a cruzarmos, poderá ser o começo de muitos fins. No entanto, ainda há tempo.

Cheguei na casinha da roça no sábado à tardinha. As cores do céu pintadas pelo crepúsculo formavam uma paleta riquíssima de amarelos, laranjas, vermelhos e até violetas e rosas. Alguns verdes da terra se amarelavam para se aproximar do céu ou até se saturavam ainda mais, tornando-se mais verdes, para nos mostrar os avermelhados de algumas nuvens. Opostos magníficos que são cores complementares… Na medida em que seguimos pela estrada de terra e o sol vai baixando no horizonte recortado das montanhas, os verdes e os tons terras vão se tornando escuros. Há um momento em que quanto mais escuro é o que está próximo de nós, mais há luz no céu. E quanto mais luz há no céu do fim do dia, mais escura é a sombra concentrada nas massas de árvores. Pura ilusão óptica, mas um dos mais belos jogos perceptivos da mente humana… ou da alma? O resultado? Beleza! Ainda vou pintar essas cores!

Chegamos trazendo a noite. Uma fogueira já estava acesa e uma roda de amigos novos, visitantes, tinha se formado entre a fogueira e a cozinha, onde Lumena cozinhava pinhão para todos. Todos artistas da modelagem, do desenho, da criação. As conversas foram leves, plenas de risos e do prazer das nossas narrativas pessoais, que são estimulantes e curativas. Depois que eles saíram e que nos prometemos reeditar este encontro no Morro do Querosene em São Paulo, fomos dormir.

Desde que cheguei, ouvi com estranhamento o mugido de um boi nas redondezas. Dentro do silêncio da noite, aquele som era tão triste que me tocou, trazendo um sentimento de solidariedade àquele ser que sofria. Fiquei com muita vontade de procurar e abraçar aquele bicho, porque seu mugido era um verdadeiro e doloroso lamento. Mas não saberia me guiar pelos meandros da noite escura e encontrar o animal que, num intervalo de alguns minutos, repetia seu grito. 

Adormeci, enquanto ouvia o lamento do boi que foi se misturando a um som da minha infância, que veio de lá do fundo da minha memória: os aboios que meu pai cantava. Ele muito cedo aprendeu a guiar o gado pelas pastagens ou a levá-los de volta ao curral, entoando esses cantos chamados de “aboio”, que todo sertanejo nordestino pratica. O gado reconhece a voz do dono e parece ficar em silêncio, encantado pelos aboios cantados do vaqueiro. Porque nesses mundos por muitos de nós esquecidos, homens, mulheres e natureza se entendem, falam a mesma língua. Porque “já houve um tempo em que eles conversavam, entre si e com os homens, é certo e indiscutível pois que bem comprovado nos livros das fadas carochas”, diz Guimarães Rosa em “Conversa de bois”.

Amanhecido o dia, soube que o bicho era uma vaca. Homens tinham vindo comprar bezerros e tinham levado o dela porque era chegada a hora do desmame. Na mesma hora meu sentimento materno emergiu e me identifiquei de imediato com a dor que essa mãe sentia. Mais tarde, deparamo-nos com ela: uma vaca preta que, ao nos ver, abriu a boca num novo som que parecia querer atravessar todas as montanhas e que trouxesse seu bezerro de volta. Parecia nos ameaçar… Foram seres como nós que lhe causaram essa consumição. Mas “não, ela é boazinha”, disse o dono dela depois. Só estava sofrendo. “Em dois dias passa”, completou seu Francisco, homem acostumado à dinâmica dos bois.

Ainda estamos naquela fase de aprender tudo desse lado do mundo: o tempo das sementes e da colheita, como cortar a braquiária, usar a enxada e a foice, podar, coroar as árvores tomadas pelo mato. E o aprendizado inclui as temporalidades todas: quando é tempo de semear e de colher, no ritmo da natureza em cuja rede está envolvida até a Lua! Já sabemos que é melhor colher bambu na lua minguante… Até mesmo os mais céticos das crenças populares se calam diante do fato de que os bambus colhidos em lua cheia, por exemplo, racham mais porque soltam mais líquido. 

Uma das grandes lições que tenho aprendido desde que resolvi me alinhar à esta rede dos que defendem a interrupção do modo de vida atual que nos leva à morte, é que toda a nossa racionalidade ajuda, mas não basta.  “Compreender” as coisas só com a mente é limitante, pois somos também feitos de coração. Nossos mundos reais são entremeados do imaginário individual e coletivo. É justo resgatar do mais fundo de nossas almas o que lá pode estar oculto o que nos faz mais ricos: a percepção de que somos parte desse grande mistério que chamamos Vida. Oxalá isso se torne consciência nesse mundo que parece ter decretado seu fim. Epa Babá!

As noites de outono em Cunha, na lua minguante ou na nova, trazem um presente especial. A Via Láctea surge no céu quase ao alcance de nossas mãos e podemos admirar as nuvens de poeira cósmica que se formam em redor de constelações e estrelas. Ali atrás da casinha está “subindo” no céu o Cruzeiro do Sul. Oposto a ele, me virando mais para o Norte, o Sete-Estrelo, como chamamos as Plêiades no Brasil. O Sete-Estrelo da lenda Tupi, que são os sete filhinhos que Sy, a mãe, abandonou. Girando meu corpo um pouco mais, encontro as Três Marias do Cinturão de Órion. Maria da Glória, Maria da Penha, Maria das Dores?… Assim sigo dançando na noite, tocada pelas estrelas e pela minha imaginação que agora vê o “gado” celeste se movimentando junto comigo, dançando a dança do universo… 

Vou me deitar porque a noite é gelada também. A vaquinha finalmente silenciou, a dor amainou. Entro murmurando a música de Lulu Santos, inspirada por minha visão noturna: 

“Tudo o que se vê não é

Igual ao que a gente viu há um segundo

Tudo muda o tempo todo no mundo…”

Guarás e moinhos de vento

 

20/01/2022

A busca por uma terra possível para implementar todos os sonhos só termina quando a fase da burocracia está completa. Idas e vindas, conversas, solicitações de prazo, negociações, verificação de documentos, consulta a cartórios, contadores e advogados… Espinhosa e necessária burocracia, fase chata, mas que nem de longe amedronta pessoas aguerridas como esta Ecomunidade Bem Viver. Se é assim, vamos vencer mais esta etapa. Para adicionar mais dificuldades, tudo isso foi acontecendo quando tudo estava em suspenso por causa das festas de final de ano. Mas o grupo é um bloco coeso e disposto a enfrentar qualquer parada.

Enquanto isso, eu tiro quinze dias de férias, como todos os anos. Viajo a São Luís, onde vive minha mãe e irmãos. Porém, na retaguarda de todos os cuidados para que tudo caminhe bem, o trabalho colaborativo do meu grupo não foi interrompido nenhum dia, o que me permitiu esta pequena ausência. Assim funcionam as coisas quando somos um coletivo.

No quinto dia da minha viagem peguei o carro alugado e saí de São Luís em direção à Parnaíba, charmosa cidade do norte do Piauí, localizada em pleno delta do rio Parnaíba, que separa aquele Estado do Estado do Maranhão. Este rio gigante nasce lá longe, ao sul, entre os Estados do Tocantins, Maranhão, Piauí e Bahia. E desagua de forma imponente, poderosamente criando inúmeros canais e diversos braços de rios menores que correm para os braços do mar… Dizem que este santuário aquático-terrestre é, em tamanho, o terceiro maior do planeta. Ele recorta diversas pequenas e grandes ilhas, que abrigam uma rica biodiversidade, com manguezais cujas árvores atingem até dez metros de altura.

Depois de umas quatros horas de viagem, tendo passado por Barreirinhas, em plena região dos Lençóis maranhenses, impossível continuar dirigindo sem parar um pouco para admirar aqueles imensos panos brancos de areia que recobrem aquele trecho à nordeste do Maranhão. A vista se perde, buscando o horizonte à frente, atravessando as dunas de areia que se sucedem em ondas até o Oceano Atlântico. Mas uma imagem começa a entrar em foco em meio ao areal branco: grupos de torres de concreto com pás girando ao vento arrancam palavras do meu sobrinho adolescente, que viaja comigo: – que lindo! Concordo com ele enquanto penso que é tão bom ver a humanidade buscando formas alternativas de energia, energia “limpa”… Daí para a frente, esses tipos de moinhos de vento ressurgem na paisagem, como os lençóis de areia, nos trazendo encanto.

Nove horas depois de iniciada a viagem, chegamos a Parnaíba, na casa de um jovem casal, simpático e afetuoso. Nossa aventura pelo Delta se iniciava e, enquanto viajamos em direção à Pedra do Sal (uma ponta de praia na primeira e grande ilha que visitamos), os dois iam nos explicando a realidade das torres de energia eólica. Que esses parques onde se encontram as turbinas se estendem por várias regiões dos Lençóis maranhenses e do Delta do Parnaíba, tendo sido implantados sem respeito à natureza e aos habitantes da região: lagoas são aterradas, moradores afastados de seus lugares, e os que continuam nas vizinhanças são obrigados a suportar o imenso barulho feito pelas pás gigantes sendo movidas pelo vento forte. E, o que é pior: diversos pequenos povoados, onde vivem pescadores e pequenos agricultores, ou não possuem energia elétrica ou não recebem energia advinda dessas gigantes torres… Que contradição! A captação de energia é realizada por essas turbinas, favorecidas pelos ventos constantes do lugar, mas a eletricidade gerada vai para muito longe dali: as torres de sustentação com seus gigantescos cabos carregam a energia produzida pelo vento para alimentar empresas  capitalistas…

O sol estava se pondo no horizonte e a gente estava sentado perto de umas pedras onde as ondas do mar batiam com toda a força do mundo! De vez em quando uma onda maior, e mais brava, estourava mais alto e jogava água em nossa direção… O mar parecia querer gritar que como as coisas estão indo, assim não permanecerão… As agressões do desenvolvimentismo a todo custo estão esgotando o planeta. Enchentes causadas pelas chuvas se espalham por todo o Brasil, criando tragédias familiares, enquanto ondas de imenso calor atingem o sul do Continente… Isso sem falar nos vírus mortais soltos pelo planeta inteiro…

Em nossa linha de visão do crepúsculo, uma torre de energia eólica se imiscuiu entre nós. Lembrei de Dom Quixote, o velho guerreiro de Miguel de Cervantes, que empunhou sua espada contra aquelas monstruosidades dos moinhos de vento que surgiram em seu caminho. Eu já tinha perdido o encanto com a visão daquelas imensas torres. Meu sobrinho e meus amigos também. Passamos a odiá-las, a querer erguer as nossas lanças também contra o desenfreado capitalismo, destruidor da vida. Fiquei com vontade de gritar, junto com o mar, contra aquelas pás gigantes, a mesma coisa que gritou Dom Quixote: “— Ainda que movais mais braços do que os do gigante Briareu, heis-de mo pagar!” 

Mas eram dias de férias e nossos amigos nos levaram até um cais, onde pegamos um barco em direção à Ilha das Canárias. Trinta minutos de barco e mais quarenta de quadriciclo, chegamos no povoado Torto,  pequena comunidade de pescadores. Fomos recebidos por seu Chico e dona Dica, em sua casa simples e confortável. Seu Chico nos levou em seu pequeno barco a motor para visitar dunas de areia à beira de um dos canais do Parnaíba. Depois, serpenteando pelas curvas do rio, passando por manguezais que abrigam desde caranguejos, até macacos e aves, chegamos numa pequena ilha-dormitório da ave Guará e suas penas vermelhas, que brilham ainda mais em contraste com o verde vivo do mangue: estas aves chegam aos bandos, pousando nas árvores onde passam a noite. Não nos aproximamos demais. Seu Chico desligou o motor do barco. Em silêncio, ficamos observando inúmeros pontinhos vermelhos se movimentando, se aconchegando sobre o verde das folhas. Seu Chico explicou, baixinho: – Elas voam em formação em V, aproveitando a aerodinâmica do grupo para alcançar longas distâncias. Ou uma atrás da outra, em fila. A que está na frente empresta sua energia às que estão atrás. Quando a líder se cansa, outra assume o seu lugar e a ave recupera suas energias se posicionando atrás da nova líder… 

Exemplo de vida colaborativa! Me emocionei ao ouvir o pescador, na beira do mangue, contemplando os Guarás, no Delta do Parnaíba. Lembrei do meu grupo e que escolhemos viajar como esses pássaros, em cooperação uns com os outros e com o meio-ambiente. As lições a que nos dispusemos reaprender, nestes novos e difíceis tempos, já nos foram dadas pela Natureza, nestes seis milhões de anos em que existimos como espécie: a Vida acontece em colaboração.

Engendrando o sonho

16/12/2021

A primeira das duas vezes em que li “Os sertões” de Euclides da Cunha, tive que vencer uma primeira grande dificuldade: passar pela primeira das três partes que compõem o livro, A Terra. O autor parece testar o leitor, numa linguagem tão áspera quanto culta: é preciso atravessar as cadeias de montanhas da região sudeste, contemplar o eterno conflito entre o mar e a terra ao longo do litoral brasileiro, atravessar sertões e caatingas, para poder ter acesso ao sonho de um homem, Antonio Conselheiro, e sua Canudos. Aquele sonho que habitava o coração de Antonio Vicente, o Conselheiro – criar uma comunidade alternativa ao sistema – permanece como paradigma.

Lembrei deste livro fundamental quando me juntei aos buscadores da terra, deste meu grupo de amigos. Porque a realização do grande sonho coletivo – aí incluídos todos os sonhos individuais – envolve um chão. A primeira vez que fui com parte deles, fomos para São Luiz do Paraitinga ver uma propriedade que ficava mais próxima do distrito de Lagoinha, pequena cidade do Vale do Paraíba. O sol estava a pino, a natureza exuberantemente verde, após as primeiras chuvas. O olhar que percorre as montanhas em 360 graus se enche de encanto, porque há uma verdadeira ondulação harmônica de montes, morros, subidas, descidas. 

Mas “olhar” uma terra é muito diferente de ver um apartamento ou uma casa na cidade. É necessário andar sobre ela, calçar bem os pés, proteger pernas e braços, porque há plantinhas que machucam a pele e diversos pequenos animais que podem picar. Ainda é preciso vencer as subidas e descidas, observar veios d’água, possíveis áreas cultiváveis ou construíveis, percorrer trilhas, passar por “bambuzeiros”, como dizem os habitantes desta parte do interior de São Paulo. Tudo isso com o sol ardendo sobre as cabeças e a respiração resfolegante, coração acelerado… E de repente “ver” aquele pedaço de terra ocupado por nossas casas, com flores nas janelas, com floresta, hortas, viveiros, ateliês, galinhas, oficinas, ovelhas e muito afeto.

O caminho até chegar ao sonho também é áspero. Há estradas de terra a serem percorridas, com buracos, pedras, cascalhos, curvas, subidas. Os automóveis que usamos nas cidades sofrem nesses trechos, não foram feitos para isso. Mas há que esgotá-los, tirar deles seu máximo de potência. Essas máquinas não foram feitas para nos dar maiores pernas? Então! Mas o preço da gasolina está caro, então nos apertamos em um ou dois, adicionando mais massa a ser transportada em direção ao sonho…

Na segunda vez que fomos, passamos por várias propriedades na montanhosa região de Cunha. Até encontrarmos uma área mais plana, mais habitável, mais próxima da cidade próxima, portanto mais viável em diversos aspectos. Cunha é uma cidade que atrai muitos turistas em busca do sossego – ou da aventura – nas montanhas. Lá também residem diversos artistas que trabalham com cerâmica. E há uma rica vida cultural do povo, com a Festa do Divino, as tradições da Semana Santa e Corpus Christi, cavalaria de São Benedito, Festa do Pinhão, Festival de Música no inverno, além da festa da Padroeira, Nossa Senhora da Conceição…

… Oxum, Ora Yê-iê, Ô! Nossa senhora, rainha das águas doces, dos rios e cachoeiras que banham as montanhas de Cunha. Montanhas de Baba Okê, onde Oxalá também faz sua morada e recebe suas oferendas. E onde também habita Xangô em suas pedras – Kao kabecilê! – o rei das tempestades, dos raios e dos trovões, livrai-nos do mal! Mas também tem, pairando nos ares, o deus Tupã, que criou os céus e as estrelas, as águas e a terra. É Nhanderuvuçu  que nos fala no som das tempestades, cujas águas escorrem nos riachos protegidos por Iara, a Mãe-Dágua, entrando e saindo das matas onde mora o Caipora. Tupã nos deu o poder de criar ou destruir!

A esta altura de nossas vidas, escolhemos criar. Parar de ser parte da destruição geral!

Contratamos um casal, arquiteta e engenheiro ambiental, para nos apresentar um estudo de viabilidade de ocupação do terreno que nos agradou. A propriedade possui em torno de oito hectares (ou três alqueires e meio), contendo uma Área de Preservação Permanente (APP) que ocupa quase um terço do terreno. Há também uma área de cobertura florestal, uma pequena mata preservada, onde vivem muitas espécies de bichinhos da terra e do ar. Há um pequeno córrego que talvez um dia tenha sido um rio, do qual pretendemos cuidar que volte à sua origem. Caso seja esta a terra escolhida.

Em torno de 50% da área total, há espaço e possibilidade de ocupação, segundo atestam as fotografias minuciosas do drone do engenheiro. Essa parte que pode ser ocupada encontra-se, no entanto, dividida em três trechos. Há estrada de servidão, nome engraçado que significa que outras pessoas podem fazer uso dela, passando por esta terra. Ainda no relatório dos dois profissionais, consta que a gleba possui rede de distribuição de energia elétrica e vias de acesso bem mantidas. E o relatório conclui, quase como um poema para nós:

“Ainda, sob o aspecto ambiental, contém adequada proporção de vegetação nativa já consolidada, aclives e declives suaves frente ao contexto geomorfológico cunhense, e é abastecida por curso d’água perene.”

Mas a história ainda não acabou, ou apenas começou. Outra área surgiu como possibilidade na mesma região. Se apareceu, há que se olhar de perto. Há que se comparar… Há que se resolver… Estamos, no momento, como se estivéssemos arando a terra, preparando-a para nos acolher. E por isso, ainda é preciso caminhar mais sobre ela, e suar mais e sonhar mais, para poder chegar à nossa Canudos e ver de perto o sonho arquetípico de uma terra sem males…