terça-feira, 9 de julho de 2024

Ponto de Fuga

22/08/2022

São Paulo está sofrendo uma modificação visual como há muito tempo não se via. Praticamente não há bairro, entre a zona oeste e sul, onde inúmeros edifícios não estejam sendo levantados. Residenciais ou não, essas torres se erguem verticalmente ocupando o espaço que antes era de casas e sobrados. À esquerda e à direita do meu campo visual, aqui no bairro onde moro, a visão ampla está sendo bloqueada, incluindo a visão do céu. É como uma espécie de cerco, de redução dos limites, mesmo que visuais, e a sensação vai do desconforto à claustrofobia. Roubaram de mim o horizonte, encurtaram o espaço, aceleraram o tempo, apagaram as estrelas… 

Imagino o futuro: mais densidade demográfica e mais carros, muitos mais. Mais gente disputando espaços, consumindo energia, consumindo… Torres altas, falos verticais finos ou largos, agressivos, ao gosto da arquitetura da vez.  Os modismos arquitetônicos das novas modernidades urbanísticas, vêm afagando o mercado imobiliário e o lucro: em cada andar do prédio, onde antes cabiam dois ou quatro apartamentos, que agora caibam dez, vinte. Porque os tamanhos das moradas das pessoas também foram limitados a 15, 20, 30 metros quadrados. 

Mas se oferece mundos. E Fundos: ou imobiliários abstratos ou bem concretos se você uberizar seu bem. Mas é para o seu bem! Você pode interagir com a vizinhança, caso queira. Há espaços para a malhação coletiva, piscinas, lobbies, spa, espaço co-working, lounge, espaço delivery e rooftop (a língua portuguesa não dá conta de tanta modernidade?)… Ah os rooftops! Pagando para morar apertado, você tem acesso à visão do céu no telhado da torre. Lá, sim, você pode respirar, mesmo que o ar impuro da urbe, e ampliar um pouco mais sua visão, não muito, o suficiente para voltar a ser o escravo que se é, mesmo sem querer, da engrenagem toda do sistema. Enjaulado como um carneirinho, você tem acesso ao mundo, se quiser, nos aplicativos do seu celular. Só que não. A ilusão se perde aos poucos, à medida em que se amadurece. Não se iluda, não me iludo! 

Quando cheguei em São Paulo, há 35 anos, a cidade me era um encanto. Tudo era grande, quantitativa e metaforicamente. Andava pelas ruas do Bexiga com suas casas antigas, testemunhas da passagem do tempo nas vidas de gerações de pessoas. E de Adoniran Barbosa. A avenida Paulista estava logo ali, mais acima, imponente, com prédios modernos. Também caminhei anos pelas ruas da Vila Madalena, onde também morei, bairro habitado por estudantes da USP e antigas famílias portuguesas que, aos domingos, voltava a parecer uma pequena cidade do interior. E pelos meninos do Premeditando o Breque, o velho “Premê”, que encontrei uma ou duas vezes no Sujinho da Vila. Trabalhava, estudava, cuidava de crescer na vida, ia ao cinema, lia, frequentava museus, shows, bares, casas de amigos. São Paulo é tudo isso. 

Muitas vezes saí por aí cantando o Premê: “é sempre lindo andar na cidade de São Paulo, o clima engana, a vida é grana em São Paulo, a japonesa loura, a nordestina moura (eu) de São Paulo, gatinhas punks, um jeito yankee de São Paulo, na grande cidade me realizar, morando num BNH…” Hoje São Paulo não tem mais jeito yankee, seu jeito é hipster! Mas já foi fashion. 

Seu Francisco nunca saiu muito longe de sua aldeia. Seu Dito trocou a vida em Cunha pela vida no sítio, que ele comprou quando era possível a um trabalhador comprar um pedaço de terra naquela região. Seu Francisco não é fashion, seu Dito não é hipster. Há muitos mundos no mesmo mundo meu, que continuo nordestina e carrego em mim a sina da música de Luiz Gonzaga: quem sai da terra natal, em outro canto não pára. Não parei no meu canto nesta cidade grande que é de muitos e é também muito minha. Mas os movimentos de uma vida errante me levam em direção ao Ponto de Fuga que se inicia na pequena área de montanhas que circundam o Vale do Paraíba. Mas como não ando só, vou cantando a música de Chico Maranhão, que vai dizendo: “fique também pensando que o ponto de fuga por ser pequenino não cruza as retas mais curvas que o mundo tem”… 

O trator está rasgando a terra, corte suave para traçar ruas. Como vamos chegar, há que se desenhar um espaço onde viver entre a Serra do Mar e a Serra da Bocaina, em meio ao mar de morros. A primeira construção, coletiva, já está com as paredes levantadas. Há formigas comendo as folhas dos limoeiros e há a braquiária crescendo de novo na horta que preparamos. Ou seja, a Vida pulsa. Há um lago que foi reformatado para ficar bonito. Há o espaço da minha casa a ser construída em breve sendo posto à vista. Já sabemos os nomes dos nossos vizinhos, algo de suas histórias, de seus bichos, da Zina e do Gominho. Já iniciamos novas relações com artistas cunhenses, da cerâmica e das artes plásticas. Já agendamos as datas das festas de São Benedito, do Pinhão, do Divino. Vamos chegando, lentamente, suavemente… pois alguém nos “avisou pra pisar neste chão devagarinho”. 

Pareço um pião neste momento: nas mãos de uma criança, o pião sobe e desce, fazendo caracóis em movimento para a frente e para trás, para cima e para baixo. Meu carro já conhece as direções de um lado e do outro, já se sujou no pó fino da estrada de terra seca por falta de chuvas e se enlameou quando as chuvas vieram grossas, penetrando a terra. Olho para meus três gatos e falo a eles que esperem, que terão dias melhores na liberdade do mar de montanhas. Xavier, Tom e Chico me fitam sérios, parece que querem entender porque de vez em quando eu desapareço do apartamento, escorro pelo elevador do prédio, pelas ruas e estradas em direção àquele Ponto de Fuga… É necessário desenhar e retraçar esses caminhos, é meu ofício, é minha vida de artista e o traço precisa ser feito daqui pra lá, de lá pra cá, quantas vezes for preciso porque viver é preciso e necessário.

Quando a lua "incandeia"

25/07/2022


O “master plan” finalmente está pronto. Isso significa que o arquiteto escolhido colocou no papel o conjunto das decisões tomadas por nosso grupo, sobre como iremos ocupar nosso terreno em Cunha. O resultado é um desenho, apresentado em “planta baixa”, onde ele indica as curvas de nível do terreno, o arruamento e a disposição de doze cotas que serão distribuídas entre os associados da Ecomunidade Bem Viver. Além disso, indica onde passará a rede de distribuição de energia elétrica, a rede sanitária e a distribuição da água.

Necessário explicar alguns pontos importantes sobre o que um agrupamento de pessoas necessita para habitar uma localidade. O que fazer com ítens básicos: luz, água, esgoto, lixo. Num condomínio comum, segue-se o padrão conhecido, pagando-se por luz e água, captação coletiva de dejetos lançados em qualquer lugar, inclusive nos rios e no mar. Quando resolvemos nos unir nesta associação, decidimos também nos unir à natureza e cuidar dela, como cuidamos de nós e dos nossos animais. A água necessária temos fartamente, provenientes de duas nascentes que iremos cuidar como preciosidades. A energia elétrica será distribuída de forma padrão, inicialmente, mas projetando um futuro em que esta energia virá de placas captadoras da energia do sol. Os dejetos que produzimos passarão por sistemas de biodigestão, que se transformam em adubo rico para plantas que necessitam de ambiente úmido, como as bananeiras. Quanto ao lixo, serão separados: o lixo reciclável que será levado para locais onde seja separado e reutilizado, e o lixo orgânico que irá alimentar nossas composteiras.

Esses temas já foram fruto de conversas do grupo como um todo e das recentes conversas na casinha alugada do nosso vizinho. Conversas de cozinha são sempre inspiradas: enquanto alguém cozinha e todos bebem uma cervejinha ou uma cachaça, os temas vão surgindo. Luciana, antropóloga que viveu anos de experiência nas matas do Pará perto de tribos indígenas, sempre traz boas histórias, como a de alguns que, nas noites mais frescas, dormem literalmente ao lado do fogo das fogueiras e acordam cobertos pelo pó gris das cinzas. Ou se fala dos banheiros secos, comuns na região nordeste e norte do país. São espécies de “toilettes” que não usam vasos sanitários, as pessoas ficam de cócoras mesmo, posição milenarmente mais natural para defecar. Mas já somos “letrados”, viemos da cidade, então os confortos que aprendemos não precisam ser descartados. 

O passo seguinte ao desenho do “master plan” é contratar um profissional especialista em traduzir o desenho feito pelo arquiteto e dar a ele concretude: medir espaços, fincar pequenas estacas de bambu demarcando terrenos e ruas. Na sequência, outro profissional com sua máquina de terraplanagem irá rasgar as ruas, transformando o desenho do arquiteto em um traçado tridimensional, real. E seguindo nesse planejamento, um pedreiro já foi contratado para construir um barracão de ferramentas, que também servirá de oficina. Esta primeira construção é necessária para que possamos acionar o quarto profissional, o que irá puxar o fio da rede elétrica municipal que passa ao largo, trazendo luz para todos nós…

Enquanto a conversa seguia na cozinha onde Luciana preparava uma sopa de lentilhas para nós, incluindo Gabi, Vitor, Kawni e Alê, saí para fora para ver a que alturas subia a lua cheia. Ela brilhava gigante, tão brilhante que despertou-me um sentimento de reverência. Era um pedaço de luz amarela no céu, um amarelo espalhafatoso, quase escandaloso que tinha subido acima das colinas e ofuscava a vista, revelava a natureza em volta. 

Que diferença das noites escuras das luas novas e minguantes, onde o “lá-fora” da casinha é um todo completo de escuridão. Desta vez, há sombras por todo lado: de árvores, de cercas, de folhas. Até meu corpo projeta uma sombra angulada, dobrando o meu tamanho. Dá para imaginar a pequenina sombra projetada por alguma ave noturna, meio incandiada por tanta luz. Incandiar é uma palavra que aprendi ainda criança em Caruaru: significa ficar com a vista ofuscada diante de qualquer luz, inclusive a do candeeiro. “Incandeia, incandeia, incandeia, incandeia meu candiá”, canta Zeca Pagodinho e canta o povo nas rodas de samba por aí… Me incandeia, Lua! Luz-me, Lua!

Pensei nos pequenos pés de abacate que plantei recentemente e que lutam para se adaptar. Que pequenas sombras estarão projetando agora? Um frio na barriga me fez retornar à casa, porque acabei de ver em pensamento o que será brevemente minha vida que até há pouquíssimo tempo não passava de um sonhar.

Compramos uma roçadeira no dia seguinte. Queremos aprender a roçar, é necessário manter sob controle a braquiária e o mato acostumado a crescer livre e sem controle. Já cobriram os pés de mandioca, antes quase sufocaram as mangueiras e as frutas cítricas. 

Andar pelo terreno agora é diferente. Já visualizamos jardins, bancos, flores, casas, nossas casas. Ali será o pomar, onde vamos cuidar coletivamente de legumes e folhas que nos alimentarão. Acolá, aquele lago ainda feio, informe, feito por mãos um pouco descuidadas, será nosso reservatório de água e em volta dele plantaremos flores, colocaremos pilhas organizadas de pedras para enfeitar o entorno. A nossa mata crescerá ainda mais bela, porque lhe adicionaremos mais árvores. Os passarinhos se multiplicarão em volta das miríades de flores que teremos e as abelhas captarão o néctar produzido pelas glândulas vegetais, levando-o para as colmeias que teremos.

Isto é o sonho.

O pesadelo é o Brasil de hoje.

Soubemos que no Paraná um aniversariante petista foi assassinado a tiros por um militante bolsonarista. O criminoso que preside o Brasil se anima em ameaças cada vez mais explícitas contra a nossa democracia fragilizada. E deixa de mãos amarradas os partidos, a oposição, os movimentos sociais, o povo, a todos nós. Um sequestro de um país inteiro! Sob essa onda proto-fascista, notícias horríveis vêm de todos os lados: menina de 11 anos estuprada e obrigada a dar à luz; um homem negro levado para trás de uma viatura e assassinado a tiros pela polícia; mais negros mortos violentamente em mais lugares; mais mulheres violentadas e assassinadas por seus parceiros em mais novos crimes; mais assaltos, mais roubos de celulares, mais sequestros, mais medo, mais doenças mentais, mais gente passando fome! E nas florestas, árvores sendo derrubadas, minérios sendo roubados, indígenas sendo assassinados…

Ontem saí para dar uma volta na avenida Paulista. O parágrafo acima caiu-me em cheio, pesado. Um homem empacotado com uma bandeira de Bolsonaro caminhava entre os transeuntes, talvez sem saber que carregava sobre os ombros a violência e incorporava a própria Morte… 

“Mudar o mundo, meu amigo Sancho, não é loucura, não é utopia, é  justiça.” Apesar desta necropolítica, seguiremos sonhando. E cantando. “Incandeia, incandeia, incandeia, incandeia meu candiá!”…