terça-feira, 9 de julho de 2024
Ponto de Fuga
Dissonâncias na vida fora dos padrões
Fim de tarde de segunda-feira pegamos a estrada que segue além do terreno da Ecomunidade Bem Viver. Passamos por outros sítios, o do vizinho de cerca e os de logo depois, em busca de um pedreiro, pois vamos construir uma espécie de barracão para guardar ferramentas e servir de oficina. Os três cães vieram nos receber bravos: quem são essas duas mulheres e esse rapaz estranhos a eles? Mas são cachorros de roça, latem mas não mordem. Principalmente se a dona da casa desce para ver quem chegou, seguida por um filhote de gato, esse, sim, amistoso e brincalhão.
O pedreiro ainda não tinha voltado do trabalho; está construindo um fogão à lenha em algum sítio nas redondezas. Mas deve estar pra chegar, disse a esposa. Resolvemos tomar a estrada de volta e quem sabe cruzar com ele, em seu fusca vermelho. Nosso carro tinha ficado numa bifurcação da estrada, logo depois da porteira principal. Como a noite vinha chegando, resolvemos esperar um pouco, sentados dentro do carro.
Seja pela escuridão que começava a apagar as cores do mato, seja por algum pensamento aleatório, começamos a lembrar tempos da ditadura militar no Brasil e das pessoas que resistiram, que foram presas, torturadas, assassinadas. Nossos olhares se estenderam para a América Latina, afinal estávamos no ponto exato da bifurcação da estrada, ponto de convergência: a figura de Simón Bolívar surgiu gigante à nossa frente, herói latino-americano, mas logo lhe pusemos ao lado dos nossos heróis, porque somos um país que tem história de resistência desde que foi invadido por portugueses lá pelos mil e quinhentos… E demos vivas a Zumbi, a Antonio Conselheiro, aos resistentes de todos as cores brasileiras.
Mas a noite caiu e o pedreiro não veio, decidimos voltar para casa. Passamos outra vez ao lado de nossa terra onde Júlio havia trabalhado o dia inteiro, aspergindo seu inseticida natural feito de folhas de várias espécies, fermentadas com água e açúcar mascavo. Essa alquimia natural tem sido fruto de estudo e pesquisa dele nos últimos tempos, trazendo para nós a sabedoria de antigos agricultores de longínquos países asiáticos. Nossos pés de limão e frutas cítricas estão crescendo bem, florindo e produzindo os primeiros frutos, e isso atrai pulgões e outros insetos oportunistas. Júlio é sábio, Júlio acorda e dorme cedo, se interessa por grandes questões do mundo, incluindo a de criar novas formas de vida que respeitem o meio-ambiente. E se preocupa em viver em um mundo mais justo, onde a distribuição de riqueza seja ampla e todos possam viver em paz. Júlio tem vinte e cinco anos…
De volta à casa, em torno da mesa, olhamos mais uma vez para o mapa da nossa terra. O arquiteto encarregado de fazer o desenho da distribuição dos lotes no terreno de três alqueires e meio, apresentou uma proposta. Como nos reunimos semanalmente de forma virtual, o projeto foi cuidadosamente verificado por todos nós e, após poucas mas importantes alterações, o plano de ocupação está aprovado. Cabe agora a ele cuidar de apresentar a versão final, com todas as medidas feitas para que a terra possa ser redesenhada com ruas, lotes, energia elétrica, instalação hidráulica, sanitária, etc.
Com isso, o momento de tomar posse, de fato, do nosso pedaço de terra se aproxima e as coisas se movimentam. Agora é pra valer, as horas estão chegando… O encontro com o lugar do sonho vai se tornando cada vez mais real e o passo em direção à mudança de vida foi iniciado. Entra outra fase: a do planejamento das construções coletivas, a abertura de ruas, a instalação da rede elétrica, a captação de água, a cerca-viva que precisa ser plantada, as buscas por bons pedreiros e as apresentações aos vizinhos, aumentando nossa rede de contatos.
Em breve cada um tomará posse do lote que lhe coube e irá planejar as construções das moradias. Entre as cotas, onze mangueiras crescem, exuberantes, felizes com a luz que abrimos e a limpeza de mato que fizemos em torno delas. Algumas já passam do nosso tamanho. Lá embaixo, perto da área mais úmida, crescem nossos ipês e outras mudas de árvores. Três abacateiros ainda se esforçam por se adaptar ao bioma. Dar tempo ao tempo… “Aguardaremos, brincaremos no regato, até que nos tragam frutos, teu amor, teu coração…”
Do lado direito, na parte mais baixa do terreno, uma árvore se destaca. Não sabemos ainda de que espécie ela é, que nome tem. É alta, tronco grosso, cascudo. Sua sombra é bem ampla e já sonhamos em limpá-la embaixo, montar um banco de bambu, uma mesinha e, ao lado dela, enterrar fundo um mourão para segurar uma rede… Com a permissão de Oxóssi, Òké Arô! Agô! Levar livros para ler embaixo dela, papeis para escrever e desenhar sob suas folhas, fazer dessa árvore um lugar de encontro e reflexão, onde o pensamento possa viajar para outros mundos, voar como os pássaros de Cunha, pois o “pensamento parece uma coisa à toa” mas os mundos são infinitos quando a gente voa. Ou sonha. Sonhei que uma senhora estava comigo lá e me dizia que esta árvore é a “cereja do bolo”. Essa árvore é a existência de um Brasil mais antigo e mais bonito do que a avenida Faria Lima… Viva o Brasil maior do que a Faria Lima, esse lugar da estreiteza, do egocentrismo, do lucro, das vaidades…
Voltar para São Paulo, ato necessário, para onde a vereda da minha vida ainda aponta. Cidade boa, cidade má, São Paulo é tudo, um mundo. Um dia desses eu esperava o farol abrir para pedestres para atravessar a avenida Liberdade. Um rapaz se aproximou de mim. Não, não era um rapaz. Era uma moça. Não, não era uma moça. Era um homem Trans: corpo de homem, cabelos, adereços e roupas femininas, enfeitando sua longínqua e improvável masculinidade. Parou bem na minha frente. Antes que eu pensasse qualquer coisa, me tascou a pergunta: – moça, a senhora tem preconceito de mim? Olhamo-nos nos olhos, ele aguardando minha resposta que veio tão imediata quanto sua pergunta: não! Jamais! Tive de me segurar para não dar um abraço naquela pessoa, rejeitada por este mundo quadrado que resolveu, em algum momento do passado, estreitar as possibilidades de ser em apenas duas vias, macho e fêmea. Mendigue Trans, havia sido xingade um minuto antes de me encontrar, por uma pessoa a quem foi pedir uns trocados.
Passei dias refletindo sobre tudo isso. Os incômodos que sentimos no caminhar da vida quando esbarramos em momentos dissonantes, é bom que nos movam para debaixo das árvores, estas velhas sábias que estão milênios a nos ensinar que não existe indivíduo, que a vida é em rede…
Guarás e moinhos de vento
20/01/2022
A busca por uma terra possível para implementar todos os sonhos só termina quando a fase da burocracia está completa. Idas e vindas, conversas, solicitações de prazo, negociações, verificação de documentos, consulta a cartórios, contadores e advogados… Espinhosa e necessária burocracia, fase chata, mas que nem de longe amedronta pessoas aguerridas como esta Ecomunidade Bem Viver. Se é assim, vamos vencer mais esta etapa. Para adicionar mais dificuldades, tudo isso foi acontecendo quando tudo estava em suspenso por causa das festas de final de ano. Mas o grupo é um bloco coeso e disposto a enfrentar qualquer parada.
Enquanto isso, eu tiro quinze dias de férias, como todos os anos. Viajo a São Luís, onde vive minha mãe e irmãos. Porém, na retaguarda de todos os cuidados para que tudo caminhe bem, o trabalho colaborativo do meu grupo não foi interrompido nenhum dia, o que me permitiu esta pequena ausência. Assim funcionam as coisas quando somos um coletivo.
No quinto dia da minha viagem peguei o carro alugado e saí de São Luís em direção à Parnaíba, charmosa cidade do norte do Piauí, localizada em pleno delta do rio Parnaíba, que separa aquele Estado do Estado do Maranhão. Este rio gigante nasce lá longe, ao sul, entre os Estados do Tocantins, Maranhão, Piauí e Bahia. E desagua de forma imponente, poderosamente criando inúmeros canais e diversos braços de rios menores que correm para os braços do mar… Dizem que este santuário aquático-terrestre é, em tamanho, o terceiro maior do planeta. Ele recorta diversas pequenas e grandes ilhas, que abrigam uma rica biodiversidade, com manguezais cujas árvores atingem até dez metros de altura.
Depois de umas quatros horas de viagem, tendo passado por Barreirinhas, em plena região dos Lençóis maranhenses, impossível continuar dirigindo sem parar um pouco para admirar aqueles imensos panos brancos de areia que recobrem aquele trecho à nordeste do Maranhão. A vista se perde, buscando o horizonte à frente, atravessando as dunas de areia que se sucedem em ondas até o Oceano Atlântico. Mas uma imagem começa a entrar em foco em meio ao areal branco: grupos de torres de concreto com pás girando ao vento arrancam palavras do meu sobrinho adolescente, que viaja comigo: – que lindo! Concordo com ele enquanto penso que é tão bom ver a humanidade buscando formas alternativas de energia, energia “limpa”… Daí para a frente, esses tipos de moinhos de vento ressurgem na paisagem, como os lençóis de areia, nos trazendo encanto.
Nove horas depois de iniciada a viagem, chegamos a Parnaíba, na casa de um jovem casal, simpático e afetuoso. Nossa aventura pelo Delta se iniciava e, enquanto viajamos em direção à Pedra do Sal (uma ponta de praia na primeira e grande ilha que visitamos), os dois iam nos explicando a realidade das torres de energia eólica. Que esses parques onde se encontram as turbinas se estendem por várias regiões dos Lençóis maranhenses e do Delta do Parnaíba, tendo sido implantados sem respeito à natureza e aos habitantes da região: lagoas são aterradas, moradores afastados de seus lugares, e os que continuam nas vizinhanças são obrigados a suportar o imenso barulho feito pelas pás gigantes sendo movidas pelo vento forte. E, o que é pior: diversos pequenos povoados, onde vivem pescadores e pequenos agricultores, ou não possuem energia elétrica ou não recebem energia advinda dessas gigantes torres… Que contradição! A captação de energia é realizada por essas turbinas, favorecidas pelos ventos constantes do lugar, mas a eletricidade gerada vai para muito longe dali: as torres de sustentação com seus gigantescos cabos carregam a energia produzida pelo vento para alimentar empresas capitalistas…
O sol estava se pondo no horizonte e a gente estava sentado perto de umas pedras onde as ondas do mar batiam com toda a força do mundo! De vez em quando uma onda maior, e mais brava, estourava mais alto e jogava água em nossa direção… O mar parecia querer gritar que como as coisas estão indo, assim não permanecerão… As agressões do desenvolvimentismo a todo custo estão esgotando o planeta. Enchentes causadas pelas chuvas se espalham por todo o Brasil, criando tragédias familiares, enquanto ondas de imenso calor atingem o sul do Continente… Isso sem falar nos vírus mortais soltos pelo planeta inteiro…
Em nossa linha de visão do crepúsculo, uma torre de energia eólica se imiscuiu entre nós. Lembrei de Dom Quixote, o velho guerreiro de Miguel de Cervantes, que empunhou sua espada contra aquelas monstruosidades dos moinhos de vento que surgiram em seu caminho. Eu já tinha perdido o encanto com a visão daquelas imensas torres. Meu sobrinho e meus amigos também. Passamos a odiá-las, a querer erguer as nossas lanças também contra o desenfreado capitalismo, destruidor da vida. Fiquei com vontade de gritar, junto com o mar, contra aquelas pás gigantes, a mesma coisa que gritou Dom Quixote: “— Ainda que movais mais braços do que os do gigante Briareu, heis-de mo pagar!”
Mas eram dias de férias e nossos amigos nos levaram até um cais, onde pegamos um barco em direção à Ilha das Canárias. Trinta minutos de barco e mais quarenta de quadriciclo, chegamos no povoado Torto, pequena comunidade de pescadores. Fomos recebidos por seu Chico e dona Dica, em sua casa simples e confortável. Seu Chico nos levou em seu pequeno barco a motor para visitar dunas de areia à beira de um dos canais do Parnaíba. Depois, serpenteando pelas curvas do rio, passando por manguezais que abrigam desde caranguejos, até macacos e aves, chegamos numa pequena ilha-dormitório da ave Guará e suas penas vermelhas, que brilham ainda mais em contraste com o verde vivo do mangue: estas aves chegam aos bandos, pousando nas árvores onde passam a noite. Não nos aproximamos demais. Seu Chico desligou o motor do barco. Em silêncio, ficamos observando inúmeros pontinhos vermelhos se movimentando, se aconchegando sobre o verde das folhas. Seu Chico explicou, baixinho: – Elas voam em formação em V, aproveitando a aerodinâmica do grupo para alcançar longas distâncias. Ou uma atrás da outra, em fila. A que está na frente empresta sua energia às que estão atrás. Quando a líder se cansa, outra assume o seu lugar e a ave recupera suas energias se posicionando atrás da nova líder…
Exemplo de vida colaborativa! Me emocionei ao ouvir o pescador, na beira do mangue, contemplando os Guarás, no Delta do Parnaíba. Lembrei do meu grupo e que escolhemos viajar como esses pássaros, em cooperação uns com os outros e com o meio-ambiente. As lições a que nos dispusemos reaprender, nestes novos e difíceis tempos, já nos foram dadas pela Natureza, nestes seis milhões de anos em que existimos como espécie: a Vida acontece em colaboração.