sábado, 3 de abril de 2010

O direito de dizer "não gostei"

Andy Warhol
Foi inaugurada na Pinacoteca de São Paulo, neste 20 de março, uma exposição com 170 trabalhos do norte-americano Andy Warhol. São pinturas, gravuras, fotografias, filmes e instalações de um dos ícones preferidos da mídia. E de uma certa categoria de gente (dessa gente que gosta de estar na onda da moda) que “ama de paixão” a arte contemporânea.

Mas... Quem foi Andy Warhol?

Warhol nasceu em 1928, na Pensilvânia, EUA, e era o quarto filho de uma família de operários imigrantes, originários da Eslováquia, fronteira com a Polônia. Em 1945, com 17 anos de idade, entrou na, hoje, Universidade Carnegie Mellon, onde se graduou em Design. Logo depois, mudou-se para Nova Iorque onde começou a trabalhar como ilustrador de revistas como a Vogue e a New Yorker. Também fazia anúncios publicitários e dispositivos para vitrines de lojas. Como artista gráfico e diretor de arte, ganhou diversos prêmios. Sua primeira exposição individual aconteceu em 1952, com quinze desenhos baseados na obra de Truman Capote. E a partir daí começa a se construir o personagem Andy Warhol.

No início dos anos 60, em plena Guerra Fria entre os EUA e a União Soviética, os planos norte-americanos de transformar Nova Iorque num centro cultural já estava em pleno andamento. Jackson Pollock, De Kooning e Mark Rothko já eram figuras de proa no Expressionismo Abstrato daquele país, uma estética que representava – para os mandarins culturais ideológicos dos EUA – a ideologia da liberdade, da livre iniciativa e, sobretudo, anticomunista.

Foi nesse meio que o artista gráfico Andy Warhol se formou e começou a construir a personagem Andy Warhol.

Fui ver esta exposição, que se intitula muito apropriadamente “Mr. America”, em Buenos Aires, em dezembro passado, no MALBA. Foi no mínimo curioso ir ver uma exposição como esta, de Andy Warhol, num museu que se chama de Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires e que ocupava três andares, sendo apenas um reservado para os realmente artistas latino-americanos. É a mesma exposição que passou pela Museu del Banco de Bogotá na Colômbia e que agora se inaugura aqui em São Paulo. Essa mostra traz uma boa parte do trabalho desse artista, o que é útil para aqueles que desejarem um conhecimento maior sobre ele. Ou para se juntar à trupe que o aplaude, ou para simplesmente confirmar, ao vivo, que ele realmente nada tinha a dizer que valesse a pena.

Ou melhor, tinha. Warhol se formou no meio da publicidade e do design. Sua importância, enquanto artista deve-se ao fato de que soube, mais do que ninguém, fazer a aproximação máxima entre arte e capitalismo. Show man e show business em potencial – teve até um programa na MTV – Warhol não tinha vergonha de assumir: “Sou uma pessoa profundamente superficial. As palavras enchem espaço. Prefiro encher a carteira”. Para ele o artista devia ser uma estrela, como as hollywoodianas, e todos deveriam perseguir seus “quinze minutos de fama”.

Logo no começo da mostra, entre os primeiros quadros, um que representa o Tio Sam, claro, pois a mostra se chama “Mr. America”. Seguem-se a ele, alguns auto-retratos com Warhol fantasiado de dragqueen. E mais à frente, as famosas serigrafias e estêncils com a logomarca das Sopas Campbell, seguidos por colagens com notas de dólar, e fotografias da Estátua da Liberdade. Deparo-me com a seguinte frase, entre os quadros: “De nenhuma maneira trato de fazer uma crítica aos EUA e nem mostrar coisas feias”. Anotei esta frase no caderninho que me acompanha nas exposições, para não esquecer. Em seguida, passa-se por alguns quadros representando uma morte em cadeira elétrica, um acidente automobilístico e um suicídio – o máximo de “denúncia social” a que o artista se propôs. Mas diz logo em seguida: “Creio que minha arte representa os EUA, mas não faço crítica social: só pinto esses objetos em minhas obras porque são os que melhor conheço”.

Como bom publicitário, ele inaugurou a fase (que ainda dura e ninguém aguenta mais tanta variação sobre o mesmo tema) onde se usa uma marca, um objeto, um produto do mercado de consumo, tentando-se elevá-los ao status de obra de arte. Transformando tudo em produto, como é próprio do sistema capitalista, além das sopas Campbell, Andy Warhol brincou com retratos, como o cansativamente reproduzido Marilyn Monroe, mas também com o de Mao Tse Tung e de Lenin. Por isso, quando vemos broches e camisetas do Che à venda em lojas de departamentos – o Che, o grande revolucionário latino-americano, anticapitalista e cuja face foi transformada em produto de grife – devemos isso ao grande inovador da publicidade-pop-arte-capitalista Andy Warhol.

Porque para ele, acima de tudo, arte era um negócio e, no final da vida, também apenas assinava as serigrafias que sua equipe produzia como autêntica. Já estava em pleno funcionamento a sua indústria artística, que era ao mesmo tempo espetáculo. Assim como suas obras, Andy Warhol se transformou também numa logomarca, numa virtualidade incorpórea. Ele era a própria americanização da arte tão desejada pelos autores norte-americanos da Guerra Fria, ou seja, uma forma nova de se fazer e pensar(?) a arte, com o artista e sua obra se transformando em um espetáculo ao qual todos podiam assistir em horário nobre. A imagem acima de tudo, mas uma imagem irreal. Quanto mais distante da realidade mais venerável.

Todos esses não são valores ainda muito atuais? Talvez seja por isso que Andy Warhol tenha ainda uma legião de fãs entre uma maioria de desinformados, porque a marca, o produto de mídia “Andy Warhol” ainda se multiplica e ainda vende. Ele mesmo, em várias de suas famosas tentativas de profetização, declarou que a “arte empresarial é o passo que vem depois da arte”. E acrescenta: “Depois que fiz a coisa chamada 'arte', ou seja lá como chamam, entrei na arte empresarial”, porque “ser bom nos negócios é o tipo mais fascinante de arte”. Nada mais próximo da receita atual de capitalismo e também do modelo de arte do mercado: pega-se um artista – ou um não-artista, melhor ainda se tiver um 'não' antes – e sua brilhante ideia, passa-se pela peneira da midia, transforma-se ambos em uma grande novidade, combina-se que aquela obra foi vendida por milhões de dólares (às vezes é real!), lança-se artista e produto no mercado de ações, assiste-se freneticamente ao subir de suas cotações nas Bolsas de Valores, atinge-se o clímax ao som das notas de dólares preenchendo as carteiras (né, Warhol?) e, após o orgasmo, poucos sobram para continuarem em movimento de sobe-e-desce. Até vir o próximo.

Mas vale a pena ir ver Andy Warhol na Estação Pinacoteca de São Paulo. Aliás, vale a pena ir ver exposições, sempre, sempre, sempre! Mesmo que o que se apresente aos nossos olhos não seja do nosso gosto. Sim! Porque nós PODEMOS dizer que não gostamos – se não gostamos – seja de Andy Warhol ou de Vik Muniz! Porque hoje em dia até mesmo o básico direito de torcer o nariz para os artistas endeusados pela midia e curadores (mercadores) de arte, é recebido como ignorância! “Andy Warhol – dizem “eles” - era um artista rebelde, que via a sociedade com cinismo”, apesar de ter se dado muito bem com essa mesma sociedade! Mas prefiro ficar com o jornalista brasileiro Luciano Trigo, que diz que quem enxerga na obra de Warhol “uma crítica à sociedade de consumo não entendeu nada”.

Anita, a mulher que modernizou as artes brasileiras

“Não posso falar pelos meus
companheiros de então, mas eu,

pessoalmente, devo a revelação do novo
e a convicção da revolta a ela
e à força de seus quadros”.
(Mário de Andrade)



A obra de Anita Catarina Malfatti, uma das pintoras brasileiras de maior destaque, está tendo uma retrospectiva, em exposição do Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília. A mostra, que foi inaugurada no dia 23 de fevereiro e permanecerá até 24 de abril de 2010, apresenta 120 obras de 70 colecionadores particulares e de museus.

Anita Malfatti, nascida em São Paulo no dia 2 de dezembro de 1889, era filha do italiano Samuel Malfatti e de Betty Krug, norte-americana de origem alemã. Uma característica de sua personalidade era enfrentar os próprios medos e limites, desafiando sua própria fragilidade. A prova disso é que fez um esforço para aprender a desenhar com a mão esquerda, por causa da distrofia de que sofria na mão direita. Além disso, ela fez viagens ao exterior, em um tempo onde não era comum uma moça viajar sozinha pelo mundo. Por volta de 1912, ela foi para a Alemanha, patrocinada por um de seus tios maternos, que incentivava seu estudo de pintura. Depois de passar cerca de quatro anos entre Berlim e Dresden, Anita voltou ao Brasil, para depois viajar em mais uma temporada de estudos, desta vez aos Estados Unidos.

Anita Malfatti com 23 anos
Por que Alemanha e Estados Unidos e não Paris, o destino desejado por qualquer artista plástico de sua época? Em entrevista à professora e estudiosa de Arte, Aracy Amaral, a irmã de Anita, Georgina Malfatti, explicou que isso se deu porque sua família vinha desses países, e essas línguas lhes eram familiares.

De sua experiência na Alemanha, disse Anita: “Procurei o homem de todas as cores, Lowis Corinth, e dentro de uma semana comecei a trabalhar na aula desse professor. (…) Não me lembro das comidas, dos cansaços, das viagens desse tempo, só da alegria de descobrir cores. Fiz uma viagem para o sul da Alemanha para ver a primeira grande exposição dos pós-impressionistas. Pissarro, Monet, Sisley, Picasso, o 'douanier' Rousseau, Gauguin e Van Gogh. Vi também Cézanne e Renoir”...

Voltou ao Brasil cheia de entusiasmo com o expressionismo alemão, mas não encontrou forma de compartilhá-lo com sua família. Ninguém lá gostou dos quadros expressionistas que ela trouxe de sua temporada do lado de artistas alemães. Isso impactou a artista de uma forma muito desestimulante, o que se repetiu em vários outros momentos de sua vida.

A estudante, 1915-1916, de Anita Malfatti
Mais uma vez ela obteve possibilidade de fazer novos estudos, desta vez nos Estados Unidos. Lá o grupo “Ash Can School” se solidificava em torno de uma série de pintores realistas americanos empenhados em retratar cenas da vida das cidades que começavam a absorver as populações de origem rural. Anita deve ter chegado aos EUA por volta de 1915. Em 1913 havia acontecido em Nova Iorque o “Armory Show”, um acontecimento artístico que representou para os EUA o que a Semana de 22 representa para nós, brasileiros. A artista encontrou, então, um ambiente de grande efervescência cultural e artística, muito reestimulante para ela. Anita estudou inicialmente na “Art Students League”, mas um pouco decepcionada com essa escola, procurou o atelier de Homer Boss, um pintor já muito conhecido, com quem ela aprendeu muito.

Em Nova Iorque, convivendo mais uma vez com artistas que se empenhavam na pesquisa de novas estéticas, Anita Malfatti viveu uma das fases mais intensas de sua vida artística, e foi uma época onde ela pintou muito, convivendo inclusive com artistas europeus que buscavam nos EUA refúgio contra a guerra e a fome. “Só falavam no cubismo”, ela disse “e nós começamos a fazer as primeiras experiências”.

A volta ao Brasil, mais uma vez, foi um baque para ela, por causa do conservadorismo reinante na São Paulo provinciana e pequena. “Quando viram minhas telas todos as acharam feias, dantescas, e todos ficaram tristes, não eram os santinhos dos colégios. Guardei as telas”, lamentou ela.

Mas em seguida, apareceu um convite para que ela expusesse esses quadros,, o que aconteceu de dezembro de 1917 a janeiro de 1918. Exposições eram raras por aqui, e apenas ocorriam por obra de viajantes de passagem, portugueses e italianos. O primeiro Salão paulista de Arte só surgiu em 1922.

Mas voltando à exposição de 1917, Anita mostrou que ousara como pintora, e seus quadros, no dizer de Aracy Amaral, “expressavam força, firmeza e vitalidade”. Eram 53 trabalhos entre pinturas, gravuras em metal, aquarelas, desenhos e caricaturas. Essa Exposição de Anita Malfatti, que aconteceu na rua Líbero Badaró, centro de São Paulo, chocou e desestruturou a consciência estética baseada até então num ideal de beleza acadêmico e neoclássico.

Monteiro Lobato escreveu no jornal “O Estado de São Paulo” uma crítica feroz à jovem pintora que tinha tido coragem de atacar os cânones da época. O artigo intitulado “A propósito da Exposição Malfatti – Paranóia ou Mistificação?”, publicado no dia 20 de dezembro de 1917, representava o conservadorismo em pânico, que se via ameaçado por uma jovem artista, frágil, tímida e com distrofia na mão direita, mas com uma vigorosa linguagem expressionista.

A Exposição de Anita de 1917 teve um papel revolucionário. Foi o estopim da pintura moderna no Brasil e o marco inicial de um movimento modernizante que culminou na Semana de Arte Moderna de 1922, e ela atraiu as atenções de um grupo de escritores jovens, como Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Menotti Del Picchia, que tomaram a sua defesa contra os ataques conservadores de setores retrógrados da Paulicéia.

Mário de Andrade escreveu: “Parece absurdo, mas aqueles quadros foram a revelação. E ilhados na enchente de escândalo que tomara a cidade, nós, três ou quatro, delirávamos de êxtase diante de quadros que chamavam “O Homem Amarelo”, “Estudante Russa”, “Mulher de Cabelos Verdes”... (…) Éramos assim”.

O artigo violento de Lobato feriu profundamente a artista. Ela já convivia com a falta de apoio de sua família, a quem era muito apegada, e que preferia que seus quadros seguissem o estilo acadêmico. Anos depois, lembrando deste fato, Mário de Andrade diria: “... (ela) brigava todo dia consigo mesma porque tudo nela dizia 'Faça obra expressionista' porém a vontade berrava 'Faça obra impressionista pros outros lhe quererem bem' e a mão dela indecisa, tremendo entre essas coisas diferentes, se perdia pouco a pouco e se perdeu”.

Mas já estava cumprido seu papel histórico de unir as forças jovens em busca de um novo tempo nas artes. A pintora da “Estudante Russa”, de “A Boba”, de “O Farol”, está registrada como um marco para a pintura contemporânea brasileira. Anita é bandeira de renovação, mesmo que sua carreira não tenha prosseguido com aquela força inicial, e seja marcada pela inconstância. Era uma moça tímida em resistência contra toda uma sociedade atrasada. Era uma pintora, que com seus quadros ameaçava o conservadorismo do seu tempo.

Anita Malfatti: O Farol
Neste dia 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, nada melhor do que relembrar essa figura de Anita Malfatti, que mudou os rumos da pintura brasileira e fez Mário de Andrade afirmar, anos depois: “... (meus companheiros) podem testemunhar se o primeiro espírito de luta, a primeira consciência coletiva, a primeira necessidade de arregimentação foi despertada ou não pelo que se passava na cidade, com a exposição de Anita Malfatti. Foi ela, foram seus quadros que nos deram uma primeira consciência de revolta e de coletividade em luta pela modernização das artes brasileiras. Pelo menos a mim.”