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quarta-feira, 4 de março de 2015

Picasso e a modernidade espanhola, no CCBB-SP

Cerca de 90 obras pertencentes ao Museu Reina Sofia, de Madrid, Espanha, estarão sendo expostas a partir do próximo dia 25 de março no Centro Cultural Banco do Brasil, centro de São Paulo. Com ênfase em obras de Pablo Picasso, que mostram como este artista influenciou a moderna arte espanhola, a mostra ficará em cartaz até o dia 8 de junho próximo. A entrada é grátis. 


Pablo Picasso
A exposição mostrará um pouco do caminho de Picasso como artista, até chegar à realização de “Guernica”, à sua relação com outros artistas da arte moderna espanhola, como Gris, Miró, Dalí, Domínguez e Tàpies, entre outros presentes na mostra. Mas os holofotes principais desta exposição estarão focando especialmente as obras de um dos grandes mestres da arte do século XX, Pablo Picasso (leia mais sobre ele aqui).

Essa exposição foi organizada e realizada em colaboração com o Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía e a Fundación Mapfre. Exposição realizada inicialmente na Fondazione Palazzo Strozzi, Florença, até o mês de janeiro deste ano. Depois de São Paulo, a mostra segue para o Rio, e poderá ser visitada entre 24 de junho e 7 de setembro. Ao todo, serão apresentados 90 trabalhos – metade deles de autoria do mestre cubista. Entre os quadros de Picasso que integram a mostra, estão “Cabeça de Mulher” (1910), “Busto e Paleta” (1932), “Retrato de Dora Maar” (1939) e “O Pintor e a Modelo” (1963).


O catálogo da mesma
mostra na Itália
A arte moderna espanhola mostra a sensibilidade artística dos espanhois e sua forma especial de ver o mundo, como resquícios de uma visão barroca que vem de muito longe. Isto também encontramos no cinema de Luiz Buñuel e Pedro Almodovar. Qualquer um de nós que tenha tido acesso às criações artísticas espanholas consegue identificar uma linha que unifica desde Velázquez ao próprio Almodóvar, numa coisa que podemos chamar de “uma certa espanholice”, conhecida e personificada muito bem por meu amigo Jeosafá Gonçalvez, que descende daquele povo al igual que yo, que traigo en mi nombre un López que viene de hace mucho tiempo...

A arte espanhola é geralmente vista como uma arte de expressão que beira o drama, nunca se identificando com a visão lógica e racional. Não existem medidas lineares na alma espanhola. O próprio Velázquez não obedecia regras vindas “de fora” e se concentrou em seu próprio jeito de pintar, com pinceladas certeiras e livres. Pintava o rei Filipe, mas também os aleijados, os deformados da Corte. Mesmo as tentativas cubistas de Picasso tinham uma razão de ser que vinham do fundo de um artista muito bem informado sobre seu mundo: estraçalhado por uma Europa em frangalhos que em menos de 30 anos passou por duas guerras sanguinolentas. Picasso atravessou diversas circunstâncias históricas, socio-econômicas e políticas que lhe faziam se redefinir gradualmente como artista.


Naquele período a relação com a realidade era difícil: homens matando homens, milhões morrendo na guerra, de fome por causa da guerra, de doenças por causa da guerra. As vidas de todos reviradas. Na Espanha, para piorar, o fascismo de Francisco Franco criou um mundo de terror para os espanhois, milhares dos quais tiveram que fugir de seu país para não morrer, de morte matada ou de fome. Muitos vieram para o Brasil. 

Na minha última viagem à Madrid, em 2013, voltei no avião ao lado de uma senhora espanhola que beirava os 90 anos de idade. Veio conversando comigo as 10 horas de viagem do vôo Madrid-São Paulo, me contando coisas dos tempos de Franco, o fascista. Entre outras coisas, ela me contou: “Era tudo uma loucura! Os vizinhos, os parentes, as pessoas que a gente conhecia, começaram a nos dar medo. Você não podia usar uma correntinha de ouro no pescoço. Teu vizinho ou teu parente te roubava para comprar comida! Em casa, um pão teria que durar vários dias. Minha mãe partia um pequeno pedaço para cada filho, e muitas vezes ela mesma ficava sem o pedaço dela. Meu pai saia atrás de trabalho e não tinha. Todo mundo vivia de cabeça baixa, a gente falava pouco. O medo era geral. A gente ouvia tiros pelas ruas, andava se esgueirando nas calçadas… Meu pai foi preso duas vezes, suspeito de ser comunista.” Por isso, assim como milhares de espanhois, ela - que esqueci o nome - veio morar no Brasil, para onde estava voltando de férias, para visitar umas amigas. Sozinha, e com quase 90 anos. O Brasil é o país que tem o melhor povo do mundo, disse ela.


Ruínas de Guernica, cidade espanhola,
após o bombardeio nazista
Mas voltemos à exposição do CCBB. O público também poderá ver estudos e esboços que resultaram na obra-prima “Guernica”, um painel que Picasso pintou em 1937, e que representa as atrocidades cometidas pelas ações da direita fascista e nazista durante a Guerra Civil Espanhola, que durou de 1936 a 1939. O painel, de 3,49 metros de altura por 7,76 metros de comprimento expõe os horrores causados pelos aviões da força aérea alemã nazista contra a população da pequena cidade de Guernica. Aliados do general Franco, os alemães fizeram deste ataque um treino para posteriores ações contra os aliados. Foram lançados 300 quilos de bombas contra o povo da pequena cidade dos bascos.

Em 2001 eu parei diante deste painel durante umas duas horas, dentro do Museu Reina Sofia aonde ele se encontra, em Madrid. Minha alma chorava. Aqueles corpos despedaçados, desesperados, e aquele cavalo em agonia, me mostravam um mundo em que não vivi, mas que nunca deve ser esquecido, para que esse horror não mais se repita. Mas me levava também a lembrar do horror da ditadura militar no Brasil - que vivi! - que assassinou e torturou centenas de pessoas como eu. Quando vi “Guernica”, para minha sorte, ele já não estava mais protegido por vidro blindado e eu pude vê-lo frente a frente.


Do lado esquerdo do quadro, junto com uma mãe gritando de dor com seu filho no colo, aparece a cabeça de um bovino. Seria a representação do antigo Minotauro, criatura mítica - da antiga mitologia grega - um ser com a cabeça de um touro e o corpo de um homem, ou seja, oscilando entre o humano e o bestial. Picasso já tinha feito, no começo da década de 1930, uma série de estudos sobre a saga do minotauro, relacionando-o com as famosas Touradas do seu país. Picasso acabou colocando a imagem do monstro como parte de sua representação da tragédia do povo de Guernica.

O quadro parece uma constelação de relações nem sempre apreensíveis. No meio do quadro, há um cavalo que relincha sobre corpos esquartejados. Picasso era comunista, o cavalo representava o povo: mesmo com a cabeça cortada, e com uma expressão de dor, mas não de derrota, o cavalo luta. Acima de sua cabeça, uma luz se acende e um braço estendido apresenta uma lamparina acesa. Por todo lado, corpos esfacelados. Mas há luz, há esperança. Esta é a grande mensagem de Picasso.

Esta exposição do CCBB, portanto, será uma boa oportunidade para ver de perto as obras deste artista espanhol, além dos outros, e em especial, seus estudos para a “Guernica”. Tomara que mais uma vez 400 mil pessoas façam fila para ver uma grande exposição, como o fizeram para ver Ron Mueck. E que a arte dos espanhois sirva para despertar reflexões sobre os momentos em que vivemos nos dias atuais: momentos “peligrosos”, em que forças bestiais subterrâneas resolveram colocar a cabeça para fora… No mundo, e no Brasil.


"Guernica", painel de Pablo Picasso, óleo sobre tela, 1937

terça-feira, 27 de novembro de 2012

“A arte vive um momento deplorável”

Fernando Botero
No começo desta semana, o jornal Folha de São Paulo trouxe uma matéria com o artista plástico colombiano Fernando Botero. Longe, bem longe de textos críticos profundos e densos, a matéria ressalta todo o tempo que os personagens pintados por Botero são gordinhos, numa simplificação que bem representa o estilo editorial desse jornal.

Mas valeu pela entrevista, ou melhor, pelo que Fernando Botero disse na entrevista. Em primeiro lugar, quando o jornalista lhe pergunta por que ele só pinta “personagens gordos”, a resposta do artista veio da profundidade de seu pensamento sobre sua pintura, em contraponto às banalidades perguntadas a ele. Explicou que o que lhe interessa pintar é o volume dos corpos, pela sensualidade dessas formas arredondadas e explicou ao jornalista que não se trata só de uma escolha entre “pessoas magras ou gordas”. Cita o pintor italiano Giotto (1267-1337) que deu volume às formas da pintura praticada em seu tempo, que até então eram formas planas.

Como o jornalista não parava de perguntar sobre a “gordura” de seus "personagens", Botero continuou explicando a ele que um artista vê, muitas vezes, além do que outros enxergam. E contou de seu interesse pela arte pré-colombiana, apesar de sua formação europeia, mas que seu estilo nasceu a partir de suas convicções pessoais e pelo seu “respeito pela arte de formas clássicas”.

Mas a melhor parte da entrevista foi quando ele passou a analisar o estado da arte atual. E aqui reproduzo integralmente os comentários de Fernando Botero, que são muito importantes para ver que não existe - absolutamente - unanimidade sobre a arte praticada atualmente, a chamada "arte contemporânea". Apesar de ser hegemônica e fazer parte de uma certa tendência de origem neoliberal com vontade de impor um “pensamento único”, há os que apresentam outro julgamento.

Fala, Botero:

Folha - Suas influências mais marcantes são artistas clássicos, e o sr. já afirmou que a arte se desintegrou depois de Picasso. Como vê a arte hoje?
BOTERO - Digamos que o problema é uma falta de estrutura. Disseram tanto ao Picasso que ele era um gênio que ele começou a fazer quadros sem estrutura (grifo meu). No final de sua vida, sua obra era um caos total, com uma técnica deplorável. A verdade é que hoje a arte se baseia em ideias superficiais, artistas estão mais interessados em chocar do que em criar obras com qualquer senso de estrutura. Não é um momento glorioso na evolução das artes visuais. Acredito que a arte viva agora um momento deplorável.

Folha - É por isso que o sr. desistiu de patrocinar o tradicional prêmio a jovens artistas que levava seu nome na Colômbia?
BOTERO - Sei que essa foi uma decisão polêmica, mas o júri havia dado o prêmio máximo a um vídeo, que era talvez o primeiro que aquele artista havia feito na vida. Não gostei das obras, nada me interessou, então achei que já não valeria mais a pena patrocinar esse tipo de coisa. Vi que os jurados premiam coisas absurdas, como se morressem de medo do fim das vanguardas artísticas.

Folha - Como lida com seu sucesso comercial? Costuma acompanhar os resultados dos leilões?
BOTERO - Não gosto de leilões porque criaram um gueto para artistas latino-americanos. Gostaria de estar nos leilões com os artistas do resto do mundo, já que tenho obras espalhadas por todo o planeta. Arte é universal, não deve estar identificada por regiões. Ser classificado como latino é ocupar uma categoria inferior, e não me considero inferior a ninguém.

Dança na Colombia, 1980, óleo sobre tela, 188 x 231 cm
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MAIS:

Neste Blog: AS DORES DA COLOMBIA SEGUNDO BOTERO

Entrevista da Folha

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Gustav Klimt, um pintor do seu tempo

Detalhe de "O Beijo" de Gustav Klimt, pintada em 1905
Neste ano de 2012 completam-se 150 anos do nascimento do pintor austríaco Gustav Klimt, um dos mais importantes nomes da arte moderna do começo do século XX. Uma de suas mais célebres obras é a pintura “O Beijo”, de 1908.

Gustav Klimt
Filho de ourives, Klimt usou ouro para envolver as figuras de suas telas, que levam hoje 6 mil pessoas todos os dias ao Museu Belvedere em Viena, Áustria. Este museu recebe anualmente a visita de 2 milhões de pessoas. Desde o dia 13 de julho, o museu - dono da maior coleção de obras de Klimt - está apresentando uma exposição com 23 de suas pinturas, incluindo “O Beijo”.

Mas em outras cidades do mundo, mais exposições estão na programação de museus e galerias. Em Nova York, a Neue Galeria abriu uma mostra com desenhos, pinturas e fotografias de Gustav Klimt. Entre essas obras, o “Retrato de Adele Bloch-Bauer I”, de 1907, que ele decorou ricamente com ouro. Também desde 16 de maio deste ano o Museu de Viena faz uma mostra das obras do início de sua carreira em 1880, até sua morte em 1918. Outros dois museus de Viena também apresentaram mostras.

Retrato de Madame Heymann,
de 1894, Gustav Klimt
Gustav Klimt nasceu no dia 14 de julho de 1862 em Baumgarten, na periferia de Viena, Áustria. Era o segundo entre os sete filhos de Ernest Klimt, que exercia a modesta profissão de ourives. Sua mãe, Anna Finster, era cantora lírica. Contam seus biógrafos que, desde muito pequeno, Gustav Klimt demonstrava interesse pelas artes e por decoração. Em 1876, ele entrou na Escola de Artes Decorativas de Viena, onde aprendeu as primeiras lições de pintura.

Em 1880, com 18 anos de idade, ele e seu irmão Ernst e mais um amigo, Frantz Matsch, criaram um atelier de pintura decorativa. Rapidamente seu trabalho prosperou e começaram a receber numerosas encomendas para decorar paredes e tetos de casas, assim como teatros e outros edifícios públicos. Em 1890, apenas dois anos depois, Gustav Klimt já era famoso por sua pintura e executava obras que eram encomendadas pelo governo austríaco.

Judith, de Gustav Klimt
Mas, internamente, Klimt se sentia atraído por uma arte mais livre do que as que executava por encomenda. Nesse período ele namorava uma moça que tinha uma casa de costura, Emilie Flöge, e tinha se aproximado dos escritores Arthur Schniltzer, Hofmaansthal e Hermann Bahr, bastante interessado no simbolismo e no impressionismo francês. Em 1895, após uma exposição em Viena, ele descobre a pintura do alemão Max Liebermann, assim como Félicien Rops, Klinger e Auguste Rodin, o escultor francês.

Com alguns amigos, ele funda, em 1897, o jornal “Ver Sacrum”, com a intenção de criar um instrumento consagrado à arte. No mesmo ano, ele participa da fundação da União dos Artistas Figurativos, denominada de “Secessão”, com dezenove outros artistas vienenses. Ele foi o presidente dessa associação que tinha por objetivo interferir na vida artística da época, além de produzir obras de arte que levassem a arte austríaca ao reconhecimento internacional que ela merecia. Tratava-se também, para aqueles artistas, de diminuir a distância entre a arte e as artes ditas menores, de aproximar objetos utilitários dos objetos de arte, e de transformar o mundo por meio da arte. A arte, para eles, deveria despertar a consciência, de forma diferente do que vinha sendo praticado pela arte acadêmica. O jornal “Ver Sacrum” era o porta-voz dessa vontade de mudar o mundo.

Enquanto isso, o arquiteto e também pintor Joseph Marie Olbrich construía um espaço dedicado às artes, como desejavam Klimt e seus amigos da “Secessão”: um lugar para permitir aos jovens artistas figurativos um lugar permanente de exposição para suas obras.

Pallas Athena, Gustav Klimt, 1898
Em 1898 Gustav Klimt pintou a obra “Pallas Athena” que marca o início do seu afastamento da chamada arte oficial. Sob uma forma irônica, ele reinterpreta a representação tradicional da deusa grega, apresentando-a com traços de “femme fatale”, sensual e moderna. Essa pintura foi usada como ilustração para o cartaz da primeira exposição da “Secessão” em 1898.

Durante o ano de 1900, após a sétima exposição do seu grupo, Klimt apresenta a tela “A Filosofia”, a primeira de três que foram encomendadas para ilustrar o teto abobadado onde acontecia a Aula Magna da Universidade de Viena. Esta pintura foi destruída pelos nazistas em 1945. Os outros dois eram “A Medicina” e “A Jurisprudência”. Ele escolheu pintar a filosofia sob a forma de uma esfinge, com contornos fluidos, a cabeça perdida nas estrelas enquanto em torno dela se desenrolavam todos os ciclos da vida, do nascimento à velhice, passando pelos tormentos do amor. Essa tela sofreu duras críticas das autoridades universitárias que esperavam uma representação clássica do tema. Consideraram essa obra uma provocação, apelo à libertinagem e um atentado aos bons costumes. A crítica foi violenta também por parte da imprensa (sempre a velha mídia...) que acusou Klimt de querer perverter a juventude. Alguns questionaram sua sanidade mental ao avaliarem o erotismo de suas pinturas. Os críticos dos jornais atacavam até o fato de Klimt sofrer de depressão.

Filosofia, Gustav Klimt
Mas ele não se deixou influenciar pelos críticos e defensores do conservadorismo. Em suas outras duas pinturas seguintes, “A Medicina” e “A Jurisprudência”, continuou pintando como gostaria e o resultado foi que as críticas se ampliaram ainda mais. “A Medicina” foi representada por uma moça sensual, como em outros quadros, ao lado de representações sobre o sofrimento e a morte. “A Jurisprudência” é representada por um criminoso preso a seus instintos enquanto que a Justiça encontra-se fixa e impassível enquadrada numa espécie de mosaico de inspiração bizantina. Suas pinturas obviamente não foram aceitas para decorar a sala das Aulas Magnas da universidade...

Em 1902, após a décima quarta exposição da “Secessão”, consagrada à música de Beethoven, Klimt apresenta um afresco dividido em sete paineis representando a Nona Sinfonia, destinada a decorar um monumento em memória do compositor, que foi concebido pelo arquiteto Josef Hoffmann. Essa obra foi incentivada por um outro músico, Gustav Mahler, e ela representava a aspiração à felicidade por parte da humanidade sofredora que busca apaziguar seu sofrimento através da arte. Mais uma vez, Gustav Klimt sofreu duras críticas, bastante violentas, em nome da moral.

Jurisprudência, de Gustav Klimt
Os anos 1902-1903 foi um período de intensa produção criativa de Gustav Klimt. Ele inicia o uso do ouro em suas obras com as pinturas “Serpentes de Água” e “Retrato de Adele Bloch-Bauer”, além de “Danaé”.

Em 1904, um rico banqueiro, Adolphe Stoclet, encomenda a ele um mural feito em mosaicos para a sala de refeições de um luxuoso palácio que ele iria construir em Bruxelas, na Bélgica. Mais uma vez ele mostra a riqueza decorativa de suas obras, com “A Espera” e “O Cumprimento”.

O famoso quadro “O Beijo”, sua obra mais conhecida e que continua sendo reproduzida sob diversos materiais decorativos em todo o mundo, foi pintado em 1905. Após 1908 ele abandona o grupo “Secessão”, acompanhado de vários amigos. Para ele, essa associação de artistas já tinha cumprido seu papel e corria o perigo de “se esclerosar”. A partir daí ele se consagra à pintura de paisagens ou de cenas alegóricas, cada vez mais estilizadas e com cores cada vez mais vivas.

Medicina, Gustav Klimt
Também passa a pintar retratos e realiza retratos de mulheres de grandes dimensões com composições ricamente decoradas, para atender a uma clientela rica e burguesa que lhe enchiam de encomendas. Pinta numerosas cenas com mulheres nuas e em poses eróticas.

Em 1910, Klimt participa da Bienal de Venesa, onde ele obtém muito sucesso. Passou a ser conhecido como o representante na pintura da intelligentsia austríaca e como inventor da arte decorativa.

Ele morreu em 1918, após um ataque cardíaco, deixando diversas obras inacabadas.

Pintor denegrido por mais de dez anos em sua terra, seu trabalho foi, no entanto, a expressão de um período histórico de mudanças que aconteciam pelo mundo e por isso ele é uma referência na história da pintura. Gustav Klimt é o exemplo e a expressão de um pintor de seu tempo, corajoso, ativo, altamente criativo e que participou ativamente das profundas transformações pelas quais o mundo passaria a partir do começo do século XX, em todos os ramos da vida humana, incluindo as artes.
O Beijo, de Gustav Klimt

Danaé, de Gustav Klimt
A Música, de Gustav Klimt

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Pão e Rosas para Todos




A galeria de exposições da Caixa Cultural, localizada na avenida Paulista em São Paulo, apresenta uma exposição com parte da obra gráfica do artista plástico brasileiro Carlos Scliar. A mostra iniciou no dia 9 de novembro e vai até o dia 8 de janeiro de 2012.


Auto-retrato com roupão listrado
Guache encerado / 54 x 40 cm
Paris, 1949 / coleção Michel Loeb
Essa exposição, bastante sintética, evidencia algo da atuação política e social desse artista gaúcho nascido em 1920. São algumas serigrafias, alguns desenhos que ele fez no período da II Guerra Mundial, na Itália; gravuras com temas gaúchos; telhados de casas de Ouro Preto; litografias, ilustrações, etc. São quase 100 obras que dão uma idéia do peso desse artista na arte moderna brasileira.


Carlos Scliar nasceu no dia 21 de junho de 1920 em Santa Maria da Boca do Monte, no Rio Grande do Sul. Foi desenhista, pintor, gravador, ilustrador, cenógrafo, roteirista e designer gráfico. Ao longo da vida, participou de muitas exposições no Brasil e no exterior. Como sempre preocupado com as questões sociais do povo brasileiro, filiou-se ao Partido Comunista do Brasil e foi ativo militante de esquerda. Produziu cartazes, ilustrou livros e revistas com temática política e social.


Scliar sempre buscava inovar no uso dos materiais: fez gravuras, serigrafias, óleo, têmpera, guache, acrílica. Fez pinturas, ilustrações, murais. Foi um artista das artes gráficas também, fazendo capas de livros e revistas, ilustrações.


Carlos Scliar em sua primeira exposição,
antes de ir para a Guerra em 1944
Sua primeira participação em exposições foi em Porto Alegre, em 1935, na Exposição do centenário Farroupilha. Em 1938 participou da Fundação da Associação Riograndense de Artes Plásticas Francisco Lisboa, que questionava os cânones da arte acadêmica e neoclássica que ainda influenciava a pintura brasileira, com origens na Europa. Em 1940 mudou-se para São Paulo e juntou-se aos artistas paulistas do Grupo Santa Helena e da Família Artística Paulista. Mas em 1944, convocado pela Força Expedicionária Brasileira, foi para a Itália, como soldado. Sua observação dos campos de batalha produziu desenhos onde ele retratou a si mesmo e aos outros soldados. Fez também croquis de casas e paisagens do norte da Itália. Uma parte desses desenhos está exposta na galeria da avenida Paulista.


Mas Carlos Scliar também participou ativamente de movimentos pela paz, inclusive em Paris, onde morou a partir de 1947. Inicialmente pensava em se instalar na capital francesa, mas logo percebeu que sua arte tinha uma profunda raiz na sua terra, o Brasil. Voltou para cá em 1950, indo primeiro para o Rio Grande do Sul, onde participou da criação do Clube de Gravura de Porto Alegre. Mas tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo, sua atividade como artista foi intensa, inclusive nas artes gráficas. Fez ilustrações para romances de Jorge Amado, seu amigo, e para a peça “Orfeu da Conceição” de Vinícius de Moraes.


Desenho feito durante a guerra
na Itália
Depois de 1960 dedicou-se especialmente à pintura, realizando diversas exposições. Diz o texto do site do Instituto Carlos Scliar: “Os anos 60 fizeram aflorar um artista sensível, sintonizado com o seu povo e com o mundo em que vive. Sua formação humanista, o espaço cubista, a atmosfera metafísica de Morandi, o rigor do desenho perseguido nos clubes de gravura e uma espécie de sensibilidade "elliotiana"  a trabalhar com a noção do tempo de uma maneira dinâmica e questionadora, tudo isso foi formando, até o fim da vida, a personalidade do artista.”


Abaixo, alguns textos recolhidos no site do Instituto Cultural Carlos Scliar, que funciona em Cabo Frio, Rio de Janeiro, na mesma casa onde ele viveu até sua morte em 2001. Lá funciona uma espécie de casa-ateliê, onde crianças e adolescentes carentes têm aula de arte, artesanato e noções de marcenaria. Bem no espírito desse artista profundamente humano e envolvido com os problemas de seu tempo.


Os textos abaixo são de amigos, companheiros, camaradas, que falam desse artista de uma forma que pode nos dar uma ideia muito boa de quem era o artista e o homem Carlos Scliar.


Niemeyer, Scliar e Vinícius de Moraes
Oscar Niemeyer:


"Scliar é um querido amigo. Um companheiro dos velhos tempos do Café Amarelinho, do PCB, da luta política que sempre nos comoveu. E ele, como eu, a seguir os acontecimentos sem recuos, sem temores, consciente de que a miséria nos cerca e que ao lado dela, dos nossos irmãos mais pobres, devemos caminhar. Esse é o lado humano do nosso camarada. O outro, que o ocupou também inteiramente, é o de sua carreira, artista plástico, de pintor de talento, que hoje, passados tantos anos, é por todos admirado."


"É sempre bom falar dos amigos, e, quando se trata de um velho e querido companheiro como Carlos Scliar, é melhor ainda. Dizer como é importante este grande brasileiro, voltado para sua pintura a vida inteira, mantendo-a – tão vasta – dentro da unidade e no nível superior por todos procurados. E, principalmente, lembrar como se faz atuante e solidário diante desta miséria, deste mundo injusto em que vivemos."


Scliar e Jorge Amado
Jorge Amado:


“Já se passaram mais de quarenta anos do primeiro impacto sofrido por mim ao contemplar em São Paulo trabalhos de quem era então quase um menino, apenas um adolescente, recém-chegado do Rio Grande do Sul com telas e pincéis, uns olhos claros e ternos, o coração pleno de sonhos, um caráter já inflexível, o dom da amizade, o talento incomum. Eram uns quadros enormes, ambiciosos, ninguém poderia ficar indiferente ante tanta força, tamanha decisão, a vocação definitiva de um pintor que ali estava ainda em gestação, aquela presença que não podia deixar a mínima dúvida sobre o dia de amanhã. (...)
Humanismo, eis a palavra que resume o trabalho de Carlos Scliar, no qual a beleza se supera a cada pincelada."



Vinícius de Moraes:


"Para Scliar a vida conta em seus mínimos detalhes. Pode ele não ser talvez - por se tratar de artista notavelmente equilibrado - um participante desabrido, no sentido picasseano, pois em Scliar a coragem de viver é sempre amenizada por uma grande ternura por tudo o que existe. É difícil encontrar criatura menos egoísta. (...) Sua arte traduz um refinamento orgânico, fruto de sua evolução como homem; constitui uma síntese sem perda de substância. (...) Buscando extrair dos objetos (que são, ademais de criação do homem, seus melhores amigos) o máximo de sua essencialidade, Scliar revela de saída, para quem souber ver, toda a pureza de seu humanismo dialético, do seu intenso mas disciplinado amor pelo homem através do que o homem cria com suas próprias mãos. (...) Como se o pintor oferecesse ao homem, seu semelhante, certos segredos e nuanças de sua própria obra que este, sempre voltado para o prosaismo do seu cotidiano, não pudesse ou não soubesse mais ver.


Num meio artístico aloprado como o nosso, a coerência de Scliar como pintor é admirável. E a coisa linda também nesse poeta do objetivo é que o sucesso e a prosperidade em nada afetaram o seu angelismo, em nada comprometeram a sua inata disciplina e frugalidade. Eu, simplesmente, gosto de Scliar, isso é tão simples. E independente da grande admiração que tenho por ele."


Jaguar:


"Só respeito pintor que saiba desenhar. Picasso e Matisse eram desenhistas geniais. Dos vivos, o inglês David Hockney, pintor da minha predileção, é um desenhista excepcional. Portinari desenhava paca, Sagall também. Misturar cores para dar um efeito bonito é fácil, mas desenhar, eu diria, à maneira de Noel, é que é o X do problema. Essa volta toda foi para falar do Scliar, que sabia tudo de pintura e foi  embora no fim de abril."


Clarice Lispector:


"Nenhum pintor é obrigado a ser inteligente. Mas Carlos Scliar é, e muito. Ele diz, por exemplo, que se considera um homem rico de tudo o que os outros construíram para ele. E só espera poder retribuir (com arte). Uma frase que define Carlos Scliar é uma que ele me disse há anos: 'Gostaria que meus quadros incutissem esperança e força a todos.


A obra de Scliar oferece-nos, assim, uma tranqüila reedificação do mundo, um espetáculo de ordem, onde o visual tangencia um rigor quase matemático, um pré-modo de ser, uma espécie de assembléia-geral."

sábado, 3 de abril de 2010

Anita, a mulher que modernizou as artes brasileiras

“Não posso falar pelos meus
companheiros de então, mas eu,

pessoalmente, devo a revelação do novo
e a convicção da revolta a ela
e à força de seus quadros”.
(Mário de Andrade)



A obra de Anita Catarina Malfatti, uma das pintoras brasileiras de maior destaque, está tendo uma retrospectiva, em exposição do Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília. A mostra, que foi inaugurada no dia 23 de fevereiro e permanecerá até 24 de abril de 2010, apresenta 120 obras de 70 colecionadores particulares e de museus.

Anita Malfatti, nascida em São Paulo no dia 2 de dezembro de 1889, era filha do italiano Samuel Malfatti e de Betty Krug, norte-americana de origem alemã. Uma característica de sua personalidade era enfrentar os próprios medos e limites, desafiando sua própria fragilidade. A prova disso é que fez um esforço para aprender a desenhar com a mão esquerda, por causa da distrofia de que sofria na mão direita. Além disso, ela fez viagens ao exterior, em um tempo onde não era comum uma moça viajar sozinha pelo mundo. Por volta de 1912, ela foi para a Alemanha, patrocinada por um de seus tios maternos, que incentivava seu estudo de pintura. Depois de passar cerca de quatro anos entre Berlim e Dresden, Anita voltou ao Brasil, para depois viajar em mais uma temporada de estudos, desta vez aos Estados Unidos.

Anita Malfatti com 23 anos
Por que Alemanha e Estados Unidos e não Paris, o destino desejado por qualquer artista plástico de sua época? Em entrevista à professora e estudiosa de Arte, Aracy Amaral, a irmã de Anita, Georgina Malfatti, explicou que isso se deu porque sua família vinha desses países, e essas línguas lhes eram familiares.

De sua experiência na Alemanha, disse Anita: “Procurei o homem de todas as cores, Lowis Corinth, e dentro de uma semana comecei a trabalhar na aula desse professor. (…) Não me lembro das comidas, dos cansaços, das viagens desse tempo, só da alegria de descobrir cores. Fiz uma viagem para o sul da Alemanha para ver a primeira grande exposição dos pós-impressionistas. Pissarro, Monet, Sisley, Picasso, o 'douanier' Rousseau, Gauguin e Van Gogh. Vi também Cézanne e Renoir”...

Voltou ao Brasil cheia de entusiasmo com o expressionismo alemão, mas não encontrou forma de compartilhá-lo com sua família. Ninguém lá gostou dos quadros expressionistas que ela trouxe de sua temporada do lado de artistas alemães. Isso impactou a artista de uma forma muito desestimulante, o que se repetiu em vários outros momentos de sua vida.

A estudante, 1915-1916, de Anita Malfatti
Mais uma vez ela obteve possibilidade de fazer novos estudos, desta vez nos Estados Unidos. Lá o grupo “Ash Can School” se solidificava em torno de uma série de pintores realistas americanos empenhados em retratar cenas da vida das cidades que começavam a absorver as populações de origem rural. Anita deve ter chegado aos EUA por volta de 1915. Em 1913 havia acontecido em Nova Iorque o “Armory Show”, um acontecimento artístico que representou para os EUA o que a Semana de 22 representa para nós, brasileiros. A artista encontrou, então, um ambiente de grande efervescência cultural e artística, muito reestimulante para ela. Anita estudou inicialmente na “Art Students League”, mas um pouco decepcionada com essa escola, procurou o atelier de Homer Boss, um pintor já muito conhecido, com quem ela aprendeu muito.

Em Nova Iorque, convivendo mais uma vez com artistas que se empenhavam na pesquisa de novas estéticas, Anita Malfatti viveu uma das fases mais intensas de sua vida artística, e foi uma época onde ela pintou muito, convivendo inclusive com artistas europeus que buscavam nos EUA refúgio contra a guerra e a fome. “Só falavam no cubismo”, ela disse “e nós começamos a fazer as primeiras experiências”.

A volta ao Brasil, mais uma vez, foi um baque para ela, por causa do conservadorismo reinante na São Paulo provinciana e pequena. “Quando viram minhas telas todos as acharam feias, dantescas, e todos ficaram tristes, não eram os santinhos dos colégios. Guardei as telas”, lamentou ela.

Mas em seguida, apareceu um convite para que ela expusesse esses quadros,, o que aconteceu de dezembro de 1917 a janeiro de 1918. Exposições eram raras por aqui, e apenas ocorriam por obra de viajantes de passagem, portugueses e italianos. O primeiro Salão paulista de Arte só surgiu em 1922.

Mas voltando à exposição de 1917, Anita mostrou que ousara como pintora, e seus quadros, no dizer de Aracy Amaral, “expressavam força, firmeza e vitalidade”. Eram 53 trabalhos entre pinturas, gravuras em metal, aquarelas, desenhos e caricaturas. Essa Exposição de Anita Malfatti, que aconteceu na rua Líbero Badaró, centro de São Paulo, chocou e desestruturou a consciência estética baseada até então num ideal de beleza acadêmico e neoclássico.

Monteiro Lobato escreveu no jornal “O Estado de São Paulo” uma crítica feroz à jovem pintora que tinha tido coragem de atacar os cânones da época. O artigo intitulado “A propósito da Exposição Malfatti – Paranóia ou Mistificação?”, publicado no dia 20 de dezembro de 1917, representava o conservadorismo em pânico, que se via ameaçado por uma jovem artista, frágil, tímida e com distrofia na mão direita, mas com uma vigorosa linguagem expressionista.

A Exposição de Anita de 1917 teve um papel revolucionário. Foi o estopim da pintura moderna no Brasil e o marco inicial de um movimento modernizante que culminou na Semana de Arte Moderna de 1922, e ela atraiu as atenções de um grupo de escritores jovens, como Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Menotti Del Picchia, que tomaram a sua defesa contra os ataques conservadores de setores retrógrados da Paulicéia.

Mário de Andrade escreveu: “Parece absurdo, mas aqueles quadros foram a revelação. E ilhados na enchente de escândalo que tomara a cidade, nós, três ou quatro, delirávamos de êxtase diante de quadros que chamavam “O Homem Amarelo”, “Estudante Russa”, “Mulher de Cabelos Verdes”... (…) Éramos assim”.

O artigo violento de Lobato feriu profundamente a artista. Ela já convivia com a falta de apoio de sua família, a quem era muito apegada, e que preferia que seus quadros seguissem o estilo acadêmico. Anos depois, lembrando deste fato, Mário de Andrade diria: “... (ela) brigava todo dia consigo mesma porque tudo nela dizia 'Faça obra expressionista' porém a vontade berrava 'Faça obra impressionista pros outros lhe quererem bem' e a mão dela indecisa, tremendo entre essas coisas diferentes, se perdia pouco a pouco e se perdeu”.

Mas já estava cumprido seu papel histórico de unir as forças jovens em busca de um novo tempo nas artes. A pintora da “Estudante Russa”, de “A Boba”, de “O Farol”, está registrada como um marco para a pintura contemporânea brasileira. Anita é bandeira de renovação, mesmo que sua carreira não tenha prosseguido com aquela força inicial, e seja marcada pela inconstância. Era uma moça tímida em resistência contra toda uma sociedade atrasada. Era uma pintora, que com seus quadros ameaçava o conservadorismo do seu tempo.

Anita Malfatti: O Farol
Neste dia 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, nada melhor do que relembrar essa figura de Anita Malfatti, que mudou os rumos da pintura brasileira e fez Mário de Andrade afirmar, anos depois: “... (meus companheiros) podem testemunhar se o primeiro espírito de luta, a primeira consciência coletiva, a primeira necessidade de arregimentação foi despertada ou não pelo que se passava na cidade, com a exposição de Anita Malfatti. Foi ela, foram seus quadros que nos deram uma primeira consciência de revolta e de coletividade em luta pela modernização das artes brasileiras. Pelo menos a mim.”

"Vejo o tempo obrar a sua arte..."

Tela "Os operários" de Tarsila do  Amaral, uma das pintoras modernistas brasileiras.
Tela "Os operários" de Tarsila do Amaral, uma das pintoras modernistas brasileiras.
"Vejo o tempo obrar a sua arte
tendo o mesmo artista como tela
Modelando o artista ao seu feitio

O tempo, com seu lápis impreciso
Põe-lhe rugas ao redor da boca
Como contrapesos de um sorriso”.

(Tempo e artista, Chico Buarque, 1993)

Muiitas vezes nos perguntamos o porquê de necessitarmos, de vez em quando, olhar para o passado. É como nossa âncora, que, apoiada no leito do rio, nos fornece segurança. Olhar para trás com “o olho de águia do pensamento”, como dizia Marx, para sabermos exatamente onde pisamos. Ou para compreendermos melhor o momento presente, o que facilita nossa ação.

Voltemos à Semana de Arte Moderna de fevereiro de 1922 no Brasil, um evento que, por si só, seria desimportante, não fosse o contexto histórico em que se deu, tanto nacional quanto internacionalmente.

O mundo capitalista produzira uma Primeira Guerra sangrenta, enquanto na Rússia a Revolução Socialista saíra vitoriosa em 1917. O Brasil, especialmente São Paulo, se industrializava, e uma parcela muito grande de imigrantes chegava, em busca de trabalho. Greves operárias muito importantes estouraram em 1917, mesmo ano em que a pintora Anita Malfatti expôs pela primeira vez suas pinturas com clara influência do Expressionismo alemão, que tanto chocou o escritor Monteiro Lobato, avesso às novidades vindas de fora.

No próprio ano de 1922, enquanto os cabeças do movimento modernista preparavam a Semana de Arte Moderna, tenentes começavam a se sublevar nos quartéis e a preparar a famosa Revolta do Forte de Copacabana. Também germinava e frutificava a criação do Partido Comunista do Brasil, em 25 de março. Nas Artes, os sopros das mudanças que ocorriam na Europa desde o século passado, começava a incomodar nossos artistas, levando-os a buscar novos caminhos, na literatura, na música, na pintura...

Na pintura, predominava a arte acadêmica, monitorada pela Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. Mantinha a tradição, ou, melhor dizendo, mantinha os ensinamentos que começaram com a chegada da Missão Artística Francesa, lá pelos idos de 1816. Predominava a pintura de figuras ilustres, de cenas bíblicas, de heróis e acontecimentos nacionais relevantes. É quando surge o pintor Almeida Júnior, formado inicialmente dentro do ambiente acadêmico. Este artista, depois de uma temporada na França de onde voltou em 1882, resolveu voltar os olhos para a temática regional, afirmando sua vontade de identidade com uma nação que fosse soberana. Inspirado na revolução estética do Realismo de Gustave Courbet (que preferia “pintar a verdade do que a formosura”), inaugurou o Realismo no Brasil e a primeira grande mudança nas Belas Artes brasileiras, voltando seu cavalete para a gente do povo. Ele foi a semente da futura ruptura estética causada pela Semana de 22.

O movimento modernista e modernizante, de um Brasil que se industrializava e caminhava para o seu segundo ciclo civilizatório representado pela Revolução de 30, espalhou-se em ondas pelo país, afetando as nossas artes.

Mário Zanini, Igreja de São Vicente, 1940
Em 1935, no centro de São Paulo, um grupo de trabalhadores iniciou o que ficou conhecido por Grupo Santa Helena. Eles se reuniam aos finais de semana no atelier de Francisco Rebolo localizado no Edifício Santa Helena, Praça da Sé. Para lá acorriam os pintores de parede Alfredo Volpi e Mário Zanini, o ferroviário Clóvis Graciano, o ourives Manoel Martins, o mecânico Alfredo Rizzoti, o dono de açougue Fúlvio Penacchi, o figurinista e bordadeiro Aldo Bonadei e o professor de desenho Humberto Rosa. Todos de origem humilde. Todos inscreveram seus nomes com fortes tintas na História da Arte brasileira! Pesquisando e estudando sozinhos, foram reconhecidos muito depois dos eventos da Semana de Arte Moderna, pela qualidade de suas obras.

No Rio de Janeiro, em 1931, cria-se o Núcleo Bernardelli. Seu primeiro presidente foi o artista Edson Motta, ligado à Escola Nacional de Belas Artes, mas que sonhava em trazer o modernismo para sua cidade. Organiza um Salão de Artes em 1931 com a finalidade de apresentar uma nova linguagem artística. É lá que se destacam pela primeira vez os artistas Manoel Santiago, Roberto Burle Max, Quirino Campofiorito, Rui Campelo, Cândida Cerqueira, entre outros.

Em 1938, no Rio Grande do Sul, é criada a Associação Riograndense de Artes Plásticas Francisco Lisboa, onde despontou a genialidade do artista Carlos Scliar (que foi durante muito tempo filiado ao PCdoB, como tantos artistas pelo Brasil a fora).

No Paraná, em 1940, destaca-se o gravurista Poty Lazzarotto e em 1948 é criada a Escola de Música e Belas Artes de Curitiba, com destaque para o pintor Lóio Pérsio.

Em Fortaleza, Ceará, em 1941, criou-se o Centro Cultural Belas Artes, onde se destacaram os artistas Antonio Bandeira, Inimá de Paula e Aldemir Martins. Este último, ganhou diversos prêmios com seus temas nordestinos, como na Bienal de São Paulo em 1955, e de Veneza em 1956.

Na Bahia, a partir de 1944 começou a ofensiva modernista em Salvador, com Carlos Bastos, Genaro de Carvalho, Rubem Valentim, Carybé, e outros.

Ainda em 1944, em Minas Gerais, o prefeito de Belo Horizonte Juscelino Kubitschek, organiza a primeira Mostra de Arte Moderna, além de apresentar ao público a arquitetura de Oscar Niemeyer.

Em Recife, no ano de 1950 criou-se a Sociedade Moderna do Recife, com os artistas Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres, Reinaldo Fonseca e Francisco Brennand. Cícero Dias sempre se manteve fiel à temática de sua terra natal e seus quadros refletem a rica cultura pernambucana.

Em Natal, Rio Grande do Norte, em 1951 aconteceu a Primeira Mostra Moderna, nos Salões da Cruz Vermelha, destacando-se os artistas Dorian Gray Caldas, Newton Navarro e Ivan Rodrigues.

No Maranhão criou-se o Núcleo Eliseu Visconti, em 1959, com os artistas e intelectuais Ferreira Gullar, Luci Teixeira, Floriano Teixeira, Lago Burnett e Bandeira Tribuzi, que tinham a finalidade de renovar as artes maranhenses.

Ainda nos anos 40 foram criados o Museu de Arte de São Paulo (MASP), com o patrocínio de
Assis Chateubriand, assim como o Museu de Arte Moderna, também na capital paulista, e o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Em 1951, fruto de todo esse processo, é realizada a primeira Bienal de Arte de São Paulo.

Cena da peça de teatro do CPC da UNE:
A mais-valia vai acabar seu Edgar
Indo um pouco mais além, podemos dizer que os ventos da modernidade brasileira alcançaram os anos 60, com a fundação de Brasília, a Bossa Nova, o Teatro de Arena, o CPC da UNE, as Neovanguardas, o Cinema Novo, o Tropicalismo. Todos esses eram movimentos que guardavam uma crença na história e no sujeito, o que nos leva a refletir: nós, artistas, emitíamos nossos pontos de vista naquela época! Emitimos hoje? Alguém ouve o que não é dito? Ou diz-se hoje para uma minoria de iniciados que tratam o público dos museus e exposições como ignorante e atrasado porque simplesmente o público não “entende” e não gosta da sua “arte”? Como disse o poeta Ferreira Gullar sobre uma Instalação artística: “De gato morto e ovo frito no prato, sinceramente não sou obrigado a gostar!”

Porque hoje assistimos a essa “arte” que se voltou a falar para si mesma, quando deveria abandonar esse autismo-narcisismo e voltar a falar do mundo e da vida. A arte da moda, a arte-mercadoria, arte-coisa, arte-objeto, arte-conceito, arte discurso. Antiarte não é Arte. O cálculo, mesmo que conceitual, da arte contemporânea me faz lembrar o bom e velho Mário de Andrade em sua Ode ao Burguês, de onde extraio o verso que encerro por hoje a minha revolta:

“Fora os que algarismam os amanhãs!”

Nós, os antropófagos, e a Semana de 22

Cartaz da Semana de Arte Moderna de 1922
Em junho de 1556, os índios caetés – que habitavam uma parte do litoral alagoano – fizeram um verdadeiro banquete antropofágico: devoraram o primeiro bispo do Brasil (que era português), dom Pedro Fernandes de Sardinha. Por causa disso, os índios foram dizimados em cinco anos de guerra. “Tupi, or not tupi, that is the question”, diria Oswald de Andrade, 370 anos depois, em seu Manifesto Antropófago.

Em 1913, a Pinacoteca de São Paulo realizou uma Exposição de Arte Francesa, trazendo da Europa exemplares de mobiliário e decoração franceses, além de pinturas, com o intuito de inspirar, na sociedade paulistana, a estética do bom gosto europeu. A elite brasileira fazia questão, desde o século 19, de se manter em conformidade com a cultura europeia, importando os valores estrangeiros. Isso gerava também, é claro, alguns aspectos de distinção de classe, uma vez que não desejava ser confundida com negros, índios, mulatos, mestiços. Mais uma vez Oswald: “Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental”...

Mas o que esses dois fatos têm em comum? Exatamente a Semana de Arte Moderna de fevereiro de 1922, que se realizou há exatos 88 anos completados no próximo dia 13 de fevereiro.

A nata da sociedade paulistana que, naquelas três noites, subiu as escadas do Teatro Municipal de São Paulo – vestida rigorosamente à caráter para assistir a apresentações musicais de Heitor Villa-Lobos e Guiomar Novais, conforme dizia um pequeno reclame escondido num canto dos jornais da época – jamais poderia imaginar de que seria, muito à contragosto, testemunha histórica de um momento de virada na vida artística e cultural brasileira. Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Graça Aranha, Menotti Del Picchia, Di Cavalcanti, Anita Malfatti e outros jovens artistas brasileiros convencidos de que um salto havia que ser dado – um salto para DENTRO do Brasil, pois os ventos da modernidade forçavam esse salto – chocaram a platéia do teatro lotado, enquanto Ronald de Carvalho declamava em alto e bom som o poema “Os Sapos”, de Manuel Bandeira, que criticava o gosto da refinada poesia parnasiana:

“Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!"
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado.”

As linhas neoclássicas dos detalhes arquitetônicos do Teatro Municipal pareciam vir abaixo! Vendo-se pega numa espécie de flagrante, a elite paulistana desabou em uivos, gritos e vaias, e o caos tomou conta da Semana de Arte Moderna de 1922. Nos dias que se seguiram, os jornais registravam aquele evento como uma “verdadeira falta de respeito” à gente tão refinada, à nata da sociedade paulistana! Um bando de rapazes e moças enlouquecidos, recitando poemas sem rima, sem metro, e mostrando pinturas e esculturas que eram um acinte ao gosto neoclássico e parnasiano da época! Um horror! As damas e os cavalheiros de Higienópolis e dos Campos Elíseos tinham sido acintosamente agredidos por aquele bando de loucos futuristas (denominação que se dava aos modernistas na época).

Mas além dos gritos histéricos e dos apupos, as senhoras e os senhores deixaram bilhetes malcriados atrás das pinturas expostas no hall do teatro, incapazes de achar beleza num homem que parecia sofrer do fígado de tão verde, numa tela de Anita Malfatti. Os modernistas haviam conseguido sacudir a modorrenta e provinciana elite de São Paulo, como o desejara Di Cavalcanti, que havia sugerido a Paulo Prado (escritor) a realização de "uma semana de escândalos literários e artísticos de meter estribos na burguesiazinha paulistana".

Eram os índios caetés de volta ao palco, sobre os ombros de Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Mário de Andrade, Di Cavalcanti e dos outros! A elite brasileira concentrada no Rio de Janeiro e em São Paulo, vivia sob os eflúvios da vida europeia, sua referência para todos os seus valores. A Europa estava lá para ser imitada e idolatrada! Nada da cultura da gentalha nacional, “peste dos chamados povos cultos e cristianizados”, diria Oswald de Andrade.

A Semana de Arte Moderna amplificou-se ao longo das décadas, e suas influências se seguiram além das três noitadas caóticas e ruidosas. Teriam feito ruído, os índios, enquanto comiam o bispo? Sua antropofagia alcançou os tempos novos que começavam com o modernismo brasileiro: já que “o de fora” é inevitável e deve ser assimilado, que ele seja primeiro deglutido! Deglutição pós deglutição, nas artes plásticas, Anita Malfatti e Di Cavalcanti, e depois Portinari, Tarsila do Amaral, Clovis Graciano, Carlos Scliar, Quirino e Hilda Campofiorito, Lívio Abramo – e tantos outros – expressaram em suas obras o efeito colateral da refeição cujo prato era (sempre) o modelo europeu: já que a nova estética exigia novos pincéis e novas formas de pintar, que se pintasse o Brasil. Que se modernizasse o Brasil.

Alguns dos modernistas de 22:
Mário de Andrade e outros
Essa onda modernista alcançava também o outro lado da cidade, a região do Brás e do Cambuci, aonde viviam os operários e os imigrantes pobres, como o pintor Alfredo Volpi. Esses artistas que estavam desse lado da cidade, criaram o chamado Grupo Santa Helena, que era uma comunidade de artistas que se encontravam para trabalhar e aprender juntos num mesmo prédio do centro de São Paulo. Desses modernistas de outro calibre – uma vez que não eram intelectuais como os outros – surgiram pintores como Rebolo, Aldo Bonadei, Clovis Graciano, Mário Zanini, etc, que foram reconhecidos a partir da década de 30.

Hoje, ano 454 da Deglutição do Bispo Sardinha, os efeitos da Semana de Arte Moderna de fevereiro de 1922 ainda continuam lançando suas questões: como defender a cultura brasileira em meio a um mundo “globalizado”? Como defender as artes plásticas dessa “arte” vazia de sentido e conteúdo, minimalista e cansativa (e já agonizante)? Como argumentar contra o idealismo conceitual que antecede a obra? Como permitir que possibilidades infinitas não sejam subjugadas pela mesmice estética imposta pelo sistema de arte atual? Como vencer o velho problema da falta de espaço para os reclames (e obras de arte) que não sejam os preferidos da mídia? Como continuar engolindo os novos Sardinha e não sofrer de indigestão? Como voltar a meter estribos na burguesiazinha metropolitana?

Oitenta e oito anos depois da eclosão modernista no Brasil, ainda vemos, felizmente, que os componentes e as facetas da realidade são riquíssimos e inumeráveis! À contragosto do atual establishment...

Como bons antropófagos, comamos-lhe!