segunda-feira, 18 de abril de 2011

Trabalho inútil? - Uma defesa da repetição

Sísifo, de Tiziano, pintura de 1549
Nestes dias, minhas tarefas como membro de um atelier de arte realista têm-me suscitado reflexões e angústias. Há uma luta que travo com o que desenho, luta livre entre eu e a forma que teima em me dominar. E eu que teimo em dominá-la. Nessa dialética, olho para o mundo à minha volta. E quando olho, acho que devo voltar ao meu desenho.

Viver atualmente, especialmente nas grandes metrópoles, é submeter-se a padrões de vida estonteantes. A velocidade da máquina desse sistema formado pela tecnologia e pela informação, parece impor às pessoas a necessidade de uma rapidez de mesma intensidade. Transformando os indivíduos em frenéticas partículas mantenedoras do sistema maior, o capitalismo contemporâneo.

Com isso, temos uma sociedade ansiosa, pautada pelo efêmero, que parece repudiar o que é lento, sistemático, metódico. Num tempo em que a superficialidade predomina e onde reina a estética pessoal que incentiva o individualismo, há ainda, mesmo assim, os que resistem.

Falo agora de Arte.

A chamada Arte Contemporânea é, assim como o sistema todo atual, efêmera, passageira. Criar, hoje, é  ter uma ideia instantânea; seu produto é um objeto construído em instantes, para uma observação apenas superficial. O “produto” desse ato criador não necessariamente precisa ser mais do que um simples arrazoado escrito ou transformado em vídeo. Ou qualquer coisa.

Há ainda, mesmo assim, os que resistem.

Desenhar – um ato que não se pratica mais no sistema de arte atual – é um trabalho lento, moroso, doloroso até. Dura talvez meses, talvez anos, talvez uma vida inteira. O artista fica lá, arqueado sobre uma folha de papel, ou sobre uma tela, repetindo movimentos, extraindo formas, linhas, massas, numa árdua tarefa de buscar a perfeição que faz o Mestre. Coisa mais “fora de moda”, para o sistema acima, não pode ter...

Lembro de uma entrevista com meu amigo, o artista Rubens Ianelli que recorreu a um dito do pintor Van Gogh onde este comparou o ato de desenhar ao trabalho de abrir um buraco numa chapa de ferro, usando-se apenas uma lima... Porque é isso, porque há um poder intrínseco à repetição... Como diz o poeta Affonso Romano de Sant’Anna, Poesia (num sentido amplo) é repetição. Acrescento: Música é repetição, Pintura é repetição...

Penso no mito grego de Sísifo, o que desafiou os deuses. Por sua afronta, foi condenado a, por toda a eternidade, empurrar uma pedra montanha acima, até o topo. Chegando perto do topo, a pedra rolava para baixo e ele tinha que recomeçar tudo. A vida do artista se assemelha muito ao trabalho de Sísifo. Aparentemente inútil, aparentemente uma condenação. Albert Camus, escritor franco-argelino disse certa vez que Sísifo é a imagem daquele que vive sua vida ao máximo e que mesmo que outros não vejam sentido no que faz, ele continua executando sua tarefa diária. E compara esse mito com a vida dos trabalhadores: "O operário de hoje trabalha todos os dias em sua vida, faz as mesmas tarefas. Esse destino não é menos absurdo, mas é trágico quando em apenas nos raros momentos ele se torna consciente", diz ele. Mas diz também, e tão bem, o poeta Vinícius de Moraes em Operário em Construção: “O operário faz a coisa e a coisa faz o operário”... Nessa aparente falta de sentido de seu trabalho, oculta-se a genialidade.

E o domínio técnico, que transforma simples mortais em gênios. A repetição cria o mestre. Cria também calos nas mãos, marcas no corpo e na alma. Assim como cria vícios, acomodamentos e dores. Porque há momentos em que o artista necessita se recriar, rolar de novo a pedra montanha acima. Recomeçar. Nunca mais do zero, pois a experiência anterior joga a seu favor.

Ainda bem que a vida não se resume à tensão masoquista pós-moderna. Há ainda o trabalho lento, metódico, de bordadeiras, de rendeiras, de artesãos, de poetas, de pescadores solitários lançando sua rede, de agricultores silenciosos lançando sementes ao solo. E de músicos. Há o trabalho diário do violonista, sentado horas e horas diante da partitura, violão abraçado ao peito, dedilhando acordes fáceis e complexos, num ritual sagrado de repetição em busca da perfeição, do domínio absoluto do instrumento, do seu violão que vai tocar aquela sonata que irá enlevar a alma dos que o irão ouvir...

Ou o trabalho solitário e silencioso do pintor em seu atelier, anos a fio debruçado sobre uma folha em branco, ou sobre uma tela, trabalhando o desenho, achando a proporção certa, dada pela observação dos movimentos da luz. Trabalho quieto de olhar para as coisas do mundo e ver na realidade o que a maioria não vê. E transformar o que vê no desenho ou na pintura perfeitos. Não uma mímese perfeita do real, mas a captação do momento pictórico tornado perfeito. Tornada perfeita a expressão dos movimentos da luz que incide sobre o mundo, em suas infinitas gradações que vão da sombra mais profunda à luminosidade mais incandescente...

Sim, é necessário empurrar a pedra morro acima, diariamente. Repetição é movimento e movimento é Vida.

4 comentários:

  1. Oi Mazé, identifiquei-me muito com o texto, tanto porque continuo praticando a repetição, como continuo repitindo as minhas falhas. Falei hoje com a Elisa que por mais que descubra novas coisas no desenho que servem para a pintura, continuo "apanhando" dela. Ainda me é um ser estranho. E por que não desisitir? Porque sou pintor... Essa é a pedra que carregamos.
    Abs.

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  2. Mazé: A imagem pergunta ao pintor: quando nos vemos novamente? O poema pergunta ao poeta: voltas amanhã? O violinista nem bem fechou o violino no estojo e a música soca a tampa dele por dentro: "Exijo que amanhã seja imediatamente". E o artista se torna essa figura redundante, previsível, que retorna a seu objeto como uma abelha retorna à flor. Até que um dia a flor não esteja mais lá. Porém, nesse dia, diferente da abelha, o artista inventa a flor

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  3. Dostoiévski disse : Existe a vantagem das vantagens que não se enquadra em nenhuma classificação, e devido à qual todos os sistemas e teorias se desmancham, com todos os diabos! “O homem precisa unicamente e uma vontade independente, custe o que custar essa independência e leve aonde levar.” Diz ainda: “ Se a vontade se combinar um dia completamente com a razão, passaremos a raciocinar em vez de desejar, justamente porque não podemos , por exemplo, conservando o uso da razão, querer algo desprovido de sentido e, deste modo, ir conscientemente contra a razão e desejar aquilo que é nocivo a nós próprios...” ( Dostoiévski)
    Continue teimando Mazé.
    Bjs.
    Rosa Lima

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  4. Te amei, mazé!!!

    Era justamente isso que eu andava pensando sobre o fazer artístico. Algo que senti na dança, nas artes marciais e na poesia. Bem, a dureza está sendo passar isso para a minha graduação em economia. rsrs

    Abraços
    Vinícius

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