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terça-feira, 1 de março de 2016

A beleza salvará o mundo

"O artista em seu ateliê", Rembrandt van Rijn
“Um dia frio… um bom lugar pra ler um livro…” Hoje São Paulo amanheceu cinza, com garoa e frio, apesar do verão. A música de Djavan amanheceu cantando dentro do meu cérebro, independente do meu controle. Os tempos atuais também são um pouco cinzentos e muitas vezes chove dentro de mim… Lá fora, o mundo em movimento: as crises, todas; as lutas diárias da vida. Mas é preciso respirar, seguir em frente! Falar de arte.

Terminei de ler há pouco tempo o livro do filósofo húngaro radicado em Paris Tzvetan Todorov, “A beleza salvará o mundo”. O título é chamativo, a frase pode ser enfática demais, mas o conteúdo do livro é bastante denso. O autor analisa a vida e obra de três escritores: Oscar Wilde, Reiner Maria Rilke e Marina Tsvetaeva, que fizeram opções radicais de viver intensamente sua arte. Desde o começo a questão é: em que consiste uma vida plena de sentido?


"Madona Sistina", Rafael,
Gemäldegalerie Alte Meister, Dresden,
Alemanha
“A beleza salvará o mundo” é uma frase dita por um personagem do romance “O idiota”, de Fiodor Dostoievsky, que li quando tinha uns 16/17 anos de idade e que marcou muito a minha adolescência. Diz-se que para Dostoievsky a questão da Beleza era um dos grandes temas ao qual ele dedicava suas reflexões. Conta-se também que todo ano o autor russo viajava para a cidade de Dresden, na Alemanha, para contemplar a “Madona Sistina” de Rafael, pintor renascentista italiano, uma Nossa Senhora humana, sem a auréola dos santos, de pés descalços com seu menino no colo. Diz-se que ele ficava longo tempo em frente a esta imagem, contemplando-a.

Talvez foi esta pintura que inspirou esta frase em Dostoievsky? Não sei, mas sabemos que homem culto que era, ele devia conhecer a tríade filosófica que inspirou pensadores desde os tempos da Grécia antiga: o Verdadeiro, o Bom e o Belo. Todo ser possui dentro de si uma espécie de atração por estes aspectos da alma, que lhe conduzem na existência. O grande Umberto Eco, falecido há poucos dias, desenvolveu estes temas em seu esplêndido livro “Arte e Beleza na Estética Medieval”.

Mas voltemos a Todorov e por enquanto fiquemos com sua ideia de Beleza.

Bem no começo de seu texto ele dá um exemplo: há momentos em que nós, diante de uma música linda nosso espírito se eleva a um estado de consciência no qual parecemos participar de um evento excepcional, que nos leva a um lugar sem nome, mas que sabemos que é absolutamente essencial, um local de plenitude. “Nesses momentos não aspiramos mais a um além - já estamos nele”, diz Todorov. Nos sentimos em arrebatamento, nos sentimos inteiros, como se não pudesse haver separação entre nós e todo o universo. Estes momentos, para quem tem a sorte de ter acesso a eles, é uma absoluta necessidade para o ser humano.

Eu mesma passei por um momento desses: quando um dia, há uns cinco anos atrás, me deparei sozinha sentada num banco numa sala do Museu do Louvre, em Paris, literalmente rodeada por pinturas de Rembrandt. Naquele momento parece que o teto da sala se abriu, aquele espaço onde eu estava se deslocou para alguma imensidão e minha alma parecia não caber dentro do meu corpo… Um silêncio absoluto se fez, eu nem respirava. Uma sensação de infinito tomou conta de mim, o tempo parecia pausado… Não sei quantos minutos aquilo durou, mas quando dei conta eu estava em lágrimas… Havia tocado, roçado talvez, o Absoluto!


"O beijo", Rodin
Todorov fala exatamente sobre isso em seu livro e disse que foi esta a sensação do músico italiano ao ouvir uma música de Monteverdi: ele “dá a possibilidade àqueles que o escutam de tocar a beleza com o dedo”. É uma sensação que nos leva a “habitar plena e exclusivamente o presente”, observa Todorov. São momentos que nos tocam e nos fazem pressentir de forma fugidia algum estado de perfeição…

Historicamente, esta necessidade de momentos de plenitude foi interpretada e orientada para dentro da experiência religiosa. Umberto Eco mostra, em seu livro citado acima, como Deus poderia conter em si todos os atributos do Bom, do Belo e do Verdadeiro, e que quando atingimos estes estados, nos fundimos com Deus. Essa fusão seria esse momento de epifania. E esse momento é belo, e foi isso que Dostoievsky pode querer ter dito: a beleza salvará o mundo. Beleza, a harmonia perfeita.

Mas… “arte é a continuação do sagrado por outros meios”, aponta Marcel Gauchet, segundo Tzvetan Todorov. A obra de arte é capaz de nos dar esta sensação de plenitude, este estado de perfeição e realização que buscamos em nossas vidas. Como acontece sempre que nos abrimos para ouvir uma música, contemplar uma obra de arte, ou até mesmo o por do sol… Ou quando temos a sorte de enxergar no olhar de uma pessoa amada este além ao qual o amor nos leva… Além de nós mesmos, a um estado de unidade que é completamente perfeição.

Todorov fala que uma imensa mudança ocorreu na história da modernidade quando se deu a passagem de um mundo estruturado pela religião a outro, organizado inteiramente em torno dos seres e valores humanos e terrestres, abrindo espaço para mais autonomia do poder terrestre. Nas guerras religiosas do século XVI, período em que também nascia o capitalismo, crescia a necessidade do poder, independente da igreja. A Ciência começa a se afastar da Religião. A Arte passa a elogiar o ser humano. O auge dessa ruptura iniciada aconteceu na Revolução Francesa de 1789, que transferia poder para as mãos do povo. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, observa Todorov, substituia a Bíblia. Na Alemanha, Friedrich Schiller escreve sua “Carta sobre a Educação Estética do Homem”, onde ele valoriza as belas artes. A Razão se sobrepõe à Fé. Outro alemão, Schiller, afirma que a arte é uma atividade livre que encontra sua finalidade nela mesma e só se submete a ela mesma, pois reune em si o sensível, o inteligível, o material, o espiritual. Ela representa o infinito. Schiller diz mais, diz que a arte e a política se estreitam, e com isso ele dá as bases para o movimento romântico alemão.


Rodin em sua oficina
Há duas formas de “atingir e compreender todas as coisas do céu em sua plena potência”, segundo Wackenroder (em 1797): a contemplação da natureza e a prática artística (em “Fantasias sobre a arte por um religioso amigo da arte”). A prática artística faz o homem semelhante a Deus. Schopenhauer, por seu lado, afirma em “O mundo como vontade e representação” (1844): “Quanto mais viva é a luz com a qual o intelecto é iluminado, mais esse intelecto percebe a miséria de sua condição”. E fala do gênio, aquele que busca o conhecimento e a representação por eles mesmos, sem outro interesse; ele é contrário à natureza das normas sociais: o gênio se sacrifica pessoalmente por um “fim objetivo” e por isso é essencialmente solitário: “não sabe ser feliz à maneira dos outros”.

“Trabalhar - sempre!”, dizia o escultor Rodin a seu secretário o poeta Rainer Maria Rilke, querendo dizer que esta é a máxima daquele artista que verdadeiramente queira se abrir “para o absoluto”. “Sinto que trabalhar é viver sem morrer”, dizia Rodin.

Não se pode separar a vida em dois rios, o da existência e o da criação - continua mostrando Todorov, no capítulo sobre Rilke, o poeta nascido em Praga. Na linha dos filósofos românticos alemães, ele mostra como o artista que se assume em seu verdadeiro sacerdócio, em sua dedicação quase exclusiva a seu ofício de criador, ele se torna essencialmente um solitário: “a grande vítima, aqui, são as relações humanas: seu lugar deve ser limitado, o criador é condenado à solidão”. Por isso Rodin não teve amigos; foi o preço a ser pago para o êxito dele como criador. “Para aceder ao absoluto, deve-se renunciar ao relativo”.

Beethoven também dizia: “Não tenho amigos, devo viver sozinho comigo mesmo, mas sei que em minha arte Deus está mais perto de mim do que dos outros”. Camille Pissarro também inspirou isso em Cézanne que “durante os 30 anos que lhe restavam de vida não fez mais do que trabalhar”. Para Cézanne a “única coisa essencial, mas uma coisa que toque verdadeiramente na essência, no absoluto, (...) é realizar com sucesso o quadro que está pintando no momento”.


Partitura musical - Johann Sebastian Bach
O artista faz sua recusa ao mundo. Rainer Maria Rilke, que conviveu com Rodin durante uns quatro anos, escreveu à sua amiga pintora Paula Modersohn Becker, uma carta que ele intitulou “Requiém”: ele não se conformava que ela havia escolhido a maternidade ao invés da criação artística. “Pois existe em algum lugar uma velha intimidade entre a vida e a obra”, disse Rilke. O trabalho com a obra eleva ao divino: “Então construa sua vida em função dessa necessidade; sua vida deve ser, até em seus instantes mais insignificantes e mais mínimos, a marca e o testemunho dessa urgência.”

Para ele - ainda seguindo Todorov - a dedicação à criação artística era uma espécie de vocação tão exigente quanto o propalado “chamado de Deus” ao sacerdócio. “O ato de escrever tem a virtude de provocar a ascensão do Anjo, e de torná-lo ciumento”, não permitindo que o artista se dedique a nada mais do que à sua arte.

Rilke falava de modo apaixonado sobre a transfiguração do mundo por intermédio da arte. Para ele a arte fazia parte do campo do sagrado. Era preciso “copiar até o fim o ditado da existência”, dizia. “Num único pensamento criador revivem-se milhares de noites de amor esquecidas, que lhe conferem elevação e nobreza”. O objetivo da arte é “encontrar a causa mais profunda e a mais interior, o ser oculto que suscita essa aparência” e por isso é preciso evitar a dispersão. A concentração é “ponto de partida obrigatório de toda a criação artística” e quanto mais o artista se condensa, mais sua obra é universal.

“O artista é aquele a quem cabe, a partir de numerosas coisas, fazer delas uma só e, a partir da menor parte de uma só coisa fazer o mundo”, ainda Rilke. “Essa capacidade, privilégio do verdadeiro artista - a do gênio, portanto - é o que há de mais precioso no mundo, o que dá sentido e valor a uma existência, o que contrabalança suas misérias. Eis porque a vida do artista, mesmo sendo dolorosa, merece ser escolhida entre outras: ela põe não apenas o criador, mas também todo o universo em contato com o absoluto; ora, essa relação é indispensável ao homem”.

“A arte não é um reflexo do mundo, nem uma escolha de seus mais belos segmentos; ela é a transformação integral do mundo em esplendor. Desde que o artista não autorize para si nenhuma exceção a essa regra, ele suplantará as mais amargas experiências e descobrirá a beleza dos mais feios objetos; ele evoluirá na esfera dos anjos”, observa Todorov diante de artistas como Rilke.

Mas isso não quer dizer fugir da realidade. Pelo contrário, o que se chama é a uma fusão com o mundo, pois “a condição de criação artística é o amor pela vida em sua integralidade, tanto do belo quanto do feio, do vil como do bom”. Tolstoi já dizia, aponta Todorov: é preciso aceitar o mundo para poder pintá-lo; é preciso rejeitar o mundo para torná-lo habitável.

“Não se trata de modo algum de viver e escrever, mas de viver-escrever: e escrever é viver”, completa a poeta russa Marina Tsvetaeva que também diz:

“O poeta deve certamente se abrir aos elementos, se fazer porta-voz das forças telúricas, mas deve também saber transformá-las em obra inteligível a todos”. E afirmava ainda: “Não vivo para escrever versos, escrevo versos para viver”.


Músico da Orquestra Sinfônica de Praga
Ao terminar o livro de Tzvetan Todorov uma profunda tristeza invadiu minha alma. Mas isso não vem ao caso agora, pois fala do preço que paguei pelas escolhas que fiz na vida. Isso quer dizer: é preciso pintar para viver! Sem isso a vida não faz sentido algum...

Uma postura que cobra um alto preço e todo artista sabe disso. Especialmente nos dias atuais onde a luta pela sobrevivência e o pragmatismo em que vivemos nos afastam cada vez mais daquelas condições. Desafiar os deuses sempre traz o perigo de morte, como aconteceu com Prometeu e Marsias. Prometeu roubou o fogo dos deuses para aquecer os homens e se viu exilado, com as entranhas à mostra, com seu fígado sendo comido pelas aves de rapina. Marsias desafiou Apolo: tocou sua flauta em disputa com a lira do deus e por isso teve sua pele arrancada e estendida para secar num pinheiro.

- “Marsias, tocador de flauta, cantor harmonioso, nosso irmão! Você já não toca e não ressoa seu canto à noite, para o nosso encanto, que agora é só chorar!”

Das lágrimas do povo que chora a morte do artista surge, ao lado do pinheiro onde sua pele está, um rio que corre e solta murmúrios lamentosos e musicais. A flauta solo exala um lamento. É fim de tarde e o som da flauta sobe até o céu dentro das cores matizadas do pôr do sol. A voz do povo se levanta: "Marsias... Marsias..."

É o lamento do mundo quando um artista abandona seu trabalho criador...

"Marsyas", de Giulio Carpioni

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Alonso Cano, o pintor irascível

Nu feminino, desenho de Alonso Cano, 15 x 16 cm
Alonso Cano Almansa foi um pintor, escultor e arquiteto espanhol e é considerado, pelo conjunto de sua obra, um dos mais importantes artistas do barroco daquele país. Além disso,  foi o iniciador da escola de pintura em Granada, sua terra natal, onde nasceu em 19 de março de 1601. É considerado um dos artistas mais completos do Século de Ouro espanhol, pois também foi gravador, desenhista e criador de retábulos.


Alonso Cano
Seu pai, Miguel Cano, era um conhecido carpinteiro e montador de retábulos (construção de madeira que enfeitam os altares das igrejas) e sua mãe María Almansa também desenhava bem. Alonso começou suas primeiras lições de desenho arquitetônico e de desenho de imagens com seus pais que logo perceberam o talento do filho. Por sugestão de um outro pintor espanhol, Juan del Castillo, Alonso Cano deveria ser enviado a Sevilha para aperfeiçoar seu aprendizado. Sevilha, naquela época, era um próspero centro econômico e social e muitos artistas abriram lá seus ateliês, onde recebiam muitas encomendas de pessoas locais e de outros que as enviavam ao recém-descoberto continente americano.

Seus pais resolveram, então, se mudar para Sevilha, por volta de 1614. Logo, o menino Alonso, que tinha então 13 anos, entrou para o ateliê de Francisco Pacheco, o mesmo mestre de Diego Velázquez. Os dois, Velázquez e Cano, se tornaram grandes amigos, amizade que durou até o fim de suas vidas. Alonso também estudou escultura com o mestre Juan Martínez Montañés, que lhe havia sido apresentado por Pacheco.

Em 1626, Alonso Cano recebeu o título de mestre-pintor. Ele já havia pintado um dos seus primeiros quadros, que pude ver em Sevilha, em minha viagem. A tela intitulada “São Francisco de Borja” é uma pintura de sua fase de jovem aprendiz. 


Cópia de um autorretrato perdido,
óleo sobre tela, 72 x 67 cm,
Museu de Cádiz, Espanha
Enquanto se formava nas artes, Alonso também ajudava seu pai no desenho e montagem para retábulos de igrejas locais. Alcançando a maturidade artística, foi se afirmando como um dos grandes artistas locais e acabou se casando, em 1626, com María de Figueroa, que pertencia à família de um pintor local.  Ela morreu de parto no ano seguinte. Quatro anos depois, Alonso casa-se com a sobrinha de outro pintor (Juan de Uceda), Magdalena de Uceda.

Alonso Cano se relacionou também, além de seus colegas artistas como Pacheco, Martínez Montañés, Velázquez e Zurbarán, com grandes figuras do mundo intelectual de seu tempo. Em sua biblioteca podia-se encontrar obras de autores espanhois como os poetas Luiz de Góngora e Francisco Quevedo, fazendo com que sua arte fosse alimentada com as mais diversas fontes. 

Nas décadas de 1620 e 1630 ele se dedicou à escultura e à construção e montagem de retábulos, muito mais do que à pintura. Mas presidiu, em 1630, o Grêmio de Pintores de Sevilha, uma prova de que gozava de grande prestígio entre os colegas.


"A virgem e o menino", Alonso Cano,
óleo sobre tela, 162 x 107 cm
Em 1638 foi convidado a mudar-se para Madrid para trabalhar como pintor e ajudante de câmara no palácio real. Ele não foi imediatamente, mas quando chegou em Madrid já era um mestre reconhecido dentro do ambiente artístico de Sevilha. Para ele, a vida na corte trazia promessas de uma clientela mais sofisticada, mas isso também lhe traria os encargos devidos à proteção pessoal e prestação de favor ao conde-duque Olivares. Por isso, quando seu protetor perdeu o poder no começo de 1643, a ele também foi negado o posto de mestre maior da catedral de Toledo.

Em Madrid, o estilo “tenebrista”, pintura que foi influenciada pelo italiano Caravaggio e que caracterizava a pintura sevilhana, foi sendo abandonado por ele. Quando trabalhou como restaurador dos quadros que foram prejudicados com o incêndio no palácio do Bom Retiro, em 1640, Alonso Cano foi assimilando as técnicas pictóricas flamenga e italiana. Se deixou influenciar especialmente pelos pintores venezianos do século XVI e, do lado dos pintores flamengos, pela pintura de Van Dyck.

Em 1639 recebeu a encomenda de pintar 16 retratos de reis medievais espanhois, que ele deveria fazer de forma imaginária. Quase todos os quadros foram destruídos no incêndio de 1734, que aconteceu no Alcázar de Madrid, com exceção de dois: “Um rei da Espanha” e “Dois reis da Espanha”, que se encontram no Museu do Prado. Nestes dois quadros pode ser comprovado seu interesse pelos efeitos da cor e da transparência, que ele admirava em Van Dyck.


"São Francisco de Borja", pintura
feita em sua juventude
Em 1644, sua segunda esposa foi assassinada. Era o período em que ele estava mais próspero, trabalhando bastante e ganhando bem por isso. Esta morte acabou com sua paz e foi um duro golpe  em sua carreira. A justiça da época imputou o assassinato de Magdalena a um oficial italiano que Alonso hospedava em sua casa e que havia roubado grande parte de seu dinheiro e desaparecido. Mas os juízes começaram a culpar ao próprio Cano e a perseguição começou. Ele foi torturado por seus acusadores, para arrancar uma confissão, mas, por ordem do rei, não tocaram em seu braço direito. De caráter irascível, Cano sofreu todas as torturas sem um gemido sequer. No fim, foi inocentado e voltou a trabalhar para Felipe IV.

Em Madrid até 1652, ele produziu de forma intensa numerosas obras. Sua pincelada estava mais solta e ele continuava usando o esquema de veladuras dos venezianos e a luminosidade de Van Dyck. Todas as pinturas deste período, avaliam os especialistas, foram executadas com maestria por Alonso Cano.

Em 1652, resolveu voltar para sua cidade natal, Granada. Tornou-se, por influência do rei Felipe IV, o mestre-pintor da catedral daquela cidade, que eu também pude conhecer neste último mês de maio. Cano fez uma série de pinturas com temas em Maria, mãe de Jesus, para a capela maior da catedral e uma “Virgem do Rosário” para a catedral de Málaga. Naquele tempo, os pintores viviam basicamente de pinturas religiosas ou de pinturas da aristocracia. Era a forma de sobreviver e tinham sorte aqueles que o conseguiam. Mas a convivência de Alonso Cano com os clérigos da catedral era péssima, pois ele se negava a seguir os parâmetros que eles lhe queriam impor.


Um de seus desenhos
de arquitetura
Ele era de espírito briguento, se envolvia em duelos, para defender quem ele achava que estava certo. Além disso, mesmo ganhando bastante dinheiro, vivia com muitas dívidas, chegando mesmo a ser preso por causa disso. Gênio indomável, não se submetia a nenhuma doutrina, a nenhum mestre, e seguia somente seus impulsos pessoais. 

Teimoso, irritadiço e extravagante, não tinha muita paciência no trato com as pessoas. Nunca perdoava uma ofensa feita. Por exemplo: certa vez um Ouvidor disputava com ele o preço de uma escultura que lhe havia encomendado, dizendo que escultores ganhavam mais que ouvidores. Cano irritado responde que os Ouvidores são como poeira e dá um empurrão na estátua, que cai em pedaços.

Por outro lado, dizem seu biógrafos, este homem tão implacável e tão duro se comovia com a miséria e sempre estava ajudando e socorrendo aos pobres, dando generosas esmolas aos mendigos que encontrava pelas ruas das cidades por onde passou.

No período em Granada, Alonso Cano fez as que são consideradas suas obras mais comoventes. 

Entre 1657 e 1660 voltou a Madrid, onde pintou “São Bento e a visão do globo e os três anjos” e “São Bernardo e a Virgem”.

Voltando a Granada, sua relação com o poder eclesiástico ia de mal a pior. Ele já estava velho e doente. Mesmo assim foi desalojado de seu ateliê na torre da catedral.

Sua obra, muito grande e variada, hoje se encontra dispersa em vários lugares e muitas delas mal-conservadas. Ao longo do tempo, incêndios, guerras, saques e roubos atingiram grande parte de seu legado, tão rico e tão variado, uma vez que ele pintava e esculpia, além de ter criado obras relevantes de arquitetura. Alonso Cano preencheu Granada, Málaga e Sevilha de obras e monumentos de alto nível em todas as técnicas que dominava: pintura, escultura e arquitetura.

Morreu em 3 de outubro de 1667 e seus restos mortais foram enterrados na Catedral de Granada.


São Francisco de Assis e a Porciúncula, Alonso Cano, 1659, 300 x 273cm
"São Bernardo e a Virgem", Alonso Cano,
Museu do Prado, 185 x 267 cm
"Um rei espanhol", Alonso Cano

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Tiziano poeta

Danae, Ticiano, 1551-1553, óleo sobre tela, 192x114 cm, Apsley House, Londres
Danae, Ticiano, 1565, 129x181 cm, óleo sobre tela, Museu do Prado, Espanha
Tiziano Vecellio, ou simplesmente Ticiano (em nossa língua), pintor italiano que nasceu por volta de 1477 e morreu em 1576, continua impressionando todos os que amam a pintura. Ele é considerado um dos maiores expoentes da chamada Escola Veneziana e era chamado, pelos seus próprios contemporâneos, de “o sol entre as estrelas”, por causa da sua imensa versatilidade no manejo do pincel, criando obras-primas que atravessam séculos. Ele foi um dos primeiros pintores a buscar exprimir o essencial na pintura, valorizando mais as massas de cores do que as linhas do desenho.
Na fase mais amadurecida de sua carreira, Ticiano começou a experimentar pintar sem desenhos preparatórios, de forma mais rápida e, alguns diriam, imprecisa. Imprecisa no sentido de que ele abria mão da descrição absoluta e pincelava o que era necessário para expressar-se. Queria captar a realidade no momento preciso. Por isso, não há mais contornos definidos e as pinceladas são mais soltas e mais densas, aparecendo mais. Isso era absolutamente novo na pintura daquela época, e o resultado é mais movimento, uma pintura mais viva, diferente da execução detalhada que obedecia basicamente ao desenho.
Foi exatamente nesta fase, depois de 1550, que Ticiano criou um conjunto de 6 pinturas que ele mesmo denominou de “Poesias”. São obras de temas mitológicos que ele pintou para o rei espanhol Felipe II, provavelmente encomendadas por este. Estas “Poesias” demonstram como Ticiano criou sua própria interpretação de temas mitológicos como o de Cupido e Vênus, carregando as cenas de erotismo, de valorização do feminino e mostrando a sensualidade do corpo da mulher.
Perseu e Andrômeda, Ticiano, 1556, 183x199 cm
São estas “Poesias” que o Museu do Prado, de Madrid, Espanha, está mostrando ao público desde o dia 19 de novembro de 2014 até 1º de março próximo. Trata-se de: “Danae” (Londres, Apsley House), “Vênus e Adônis” (Museu do Prado), “Perseu e Andrômeda” (Londres, Coleção Wallace), “Diana e Acteão” e “Diana e Calisto” (National Gallery, Edimburgo e Londres) e “O rapto de Europa” (Isabella Stewart Museum de Boston).
O curador da exposição, Miguel Falomir, explica que nas cartas enviadas por Ticiano a Felipe II, o pintor chamou-as de “Poesias”, pois queria reinvindicar um antigo desejo dos pintores de se assemelhar-se aos poetas. Ele mesmo deu sua interpretação aos textos antigos. Na obra “Vênus e Adonis”, exemplifica o curador, o protagonista masculino tenta se livrar do abraço de Vênus, de costas para o observador. Esta cena é uma invenção de Ticiano, pois não se encontrava em nenhum texto, e foi motivo de inspiração para muitos escritores, entre os quais William Shakespeare.
Estas obras, antes da exposição, passaram por um processo de restauração dentro do Museu do Prado, dirigido por Elisa Mora, uma das especialistas do museu. O trabalho consistiu em eliminar tudo o que interferia na leitura correta das obras, realizando uma limpeza nos vernizes que já haviam oxidado. Também foram eliminados toques de re-pintura, realizados em anos anteriores.
Diana e Acteão, Ticiano, 93x107 cm
Esta é a primeira vez que as pinturas “Danae” e “Vênus e Adonis” se mostram lado a lado. Uma outra versão de “Danae” de Ticiano, do acervo do Prado, também se encontra na mostra. É uma “Danae” posterior, de 1565, que fazia par com “Vênus e Adônis” nas chamadas abóbodas de Ticiano no antigo Alcazar madrilenho. Foi Velázquez quem a adquiriu em sua primeira viagem à Itália, e é considerada mais erótica do que a versão que se encontra em Londres, na Apsley House.

Ticiano é um dos mestres da pintura ocidental. Mesmo passados exatos 438 anos de sua morte, sua obra permanece como exemplo e referência de grande altitude, pois em sua genialidade teve coragem de enfrentar suas próprias questões técnicas e se afastar do modo padronizado de pintura do seu tempo. Assim como Velázquez, assim como outros que vieram depois em vários países. O que nos faz refletir: não importa o modismo estético da época, importa a busca individual pela perfeição pictórica e pela liberdade de expressão a que esse caminho conduz.
Abaixo, mais algumas "Poesias" de Ticiano...
Vênus de Urbino, Ticiano, 1538, óleo sobre tela, 165x119 cm, Galeria degli Uffizzi, Florença

Vênus vendando os olhos de Cupido, Ticiano, 1565,
óleo sobre tela, 185x118 cm, Galleria Borghese, Roma

Vênus recreando-se com a música, Ticiano, 1550, óleo sobre tela, 222x138cm, Museu do Prado 
Vênus recreando-se com o Amor e a Música, Ticiano,
1555, óleo sobre tela, 218x150 cm, Museu do Prado 
O rapto de Europa, Ticiano, 205x185 cm, Museu Isabella Stewart, Boston
Vênus e Adônis, Ticiano, 207x186 cm, Museu do Prado
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segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A alma do mundo

Gustave Courbet: A onda, óleo sobre tela, 1870
Acabei de ler o texto “Sobre a relação das artes plásticas com a natureza”, do filósofo alemão Friedrich Wilhelm von Schelling (1775-1854). Esse texto foi escrito para seu discurso de entrada na Academia Bávara de Ciências, em Munique, Alemanha, e foi proferido no dia 12 de outubro de 1807. A repercussão do texto foi grande, e até Goethe o felicitou. Schelling foi contemporâneo de Hegel, um dos filósofos que mais escreveu sobre Estética e sobre Arte.


Schelling
Pela atualidade do tema e por descobrir grande convergência entre a visão de Schelling sobre a pintura e minhas próprias convicções pessoais sobre arte Realista, faço abaixo uma tentativa de expor um resumo dessas ideias.


A arte realista busca beber na fonte inesgotável da realidade do mundo, realidade em permanente mudança, buscando ir além das aparências até alcançar o movimento interno que gera a vida. A pintura realista considera que expressar a forma de um objeto ou figura significa também expressar seu movimento interno, sua alma pulsante na alma do artista, num jogo dialético que abrange espaço, tempo, forma, cor, luz, valor, mas também conceito e visão de mundo.


Vale lembrar que a pintura realista sempre esteve presente nas artes plásticas desde tempos imemoriais. No período da Idade Média, incluindo o Renascimento, os artistas eram obrigados - por força das circunstâncias da época (econômicas, políticas, culturais e filosóficas) - a pintar o mundo idealizado do reino celestial com suas figuras de anjos e santos, além de ilustrar as histórias bíblicas e seus diversos personagens. Ticiano e Caravaggio inovaram a pintura de seu tempo, incluindo como modelos pessoas reais (Caravaggio) e uma forma de ver o mundo através do movimento das cores que rompiam as linhas do desenho (Ticiano). Depois deles, gerações de artistas se voltaram para o mundo concreto, para o Real e seu sentido de inesgotabilidade, de permanente mudança e movimento contínuo. Esse Real do qual não se vê mais do que a aparência, que é fugidio, se desnuda para a observação profunda e a contemplação silenciosa dos artistas.


Neste ponto, nos encontramos com Schelling, e com ele prosseguimos.


Logo no começo do seu discurso, ele traça uma diferença entre formas de descrever o mundo. Uma delas é por meio do discurso, da eloquência, da exposição oral. “Mas a arte - diz ele - possui essa vantagem de ser dada visualmente”, apresentando de uma maneira diferente - para os olhos - aquilo que é difícil de ser apreendido por palavras. E neste sentido a arte plástica se torna Poesia, “poesia muda”, como ele acrescenta. Silenciosa, a arte plástica cria um vínculo, uma ponte entre a alma humana e a Natureza, o Real.


O verdadeiro modelo e “fonte primordial” da arte plástica é a Natureza. Mas Schelling aponta os questionamentos que dizem que isso já é feito pela ciência e que há “tantas representações” da natureza quanto “os diferentes modos de vida”. Sim, mas mesmo aí há também diferentes tratamentos para o mesmo tema e isso é o que cria a enorme diferença de visão de mundo a partir das artes plásticas, o que se torna ainda mais claro nos dias atuais.


Schelling já falava daqueles (incluindo pintores) para quem o mundo não passa de um amontoado de eventos e objetos e coisas sem vida, como “uma imagem muda”, “completamente morta”:

“Um esqueleto oco de formas a partir do qual uma imagem igualmente oca
deveria ser transportada para a tela.”


Observa Schelling que esse era o modo rude de ser dos povos antigos e que somente com os gregos é que o mundo pulsante passou a ser visto como tal. E com isso, admitiu-se que “o perfeito está misturado ao imperfeito, bem como o belo àquilo que é destituído de beleza.” Em outras palavras: o mundo como ele é, ou como aparenta ser. Pois também aqui há que se ter mais acuidade: uma coisa é ver as formas do mundo separadas do todo, ou mesmo vazias, abstratas. Outra é enxergar através da forma a sua essência, acessível ao nosso espírito (mente). E Schelling adverte: àquele que enxerga do mundo somente a sua casca “jamais será facultado atingir o processo profundo”.


Mas sem idealização, pois as “formas ideais” estão tão mortas quanto aquelas que parecem sem vida a um observador sem alma. Portanto, é preciso - para apreender o Real - “acrescentar o olho do espírito, para penetrar sua casca e sentir a força que nelas se efetua”. Entenda-se esse “olho do espírito” como o olho da mente. O entendimento, portanto, não é fruto de uma observação passiva de um dado evento ou objeto, mas surge da interação entre a mente que observa (a inteligência) e a coisa observada efetivamente. Este é um tema muito antigo e para o qual Karl Marx também atentou: o mundo objetivo tem precedência sobre as ideias. Mais Schelling:


“... os artistas decerto mantiveram, desde tal época, um certo ímpeto idealista, bem como representações de uma beleza que se eleva acima da matéria, mas tais representações assemelhavam-se às belas palavras que não correspondem aos atos.


Há duas questões a se levar em conta: a beleza presente no conceito emanado da alma e a beleza da forma. O que une esses dois elementos numa pintura? Ele responde: “Se a arte não fosse capaz de estabelecer tal vínculo, tal como o faz a natureza, então, em geral, ela não estaria apta a criar nada.” E ele aponta que o artista que somente foi capaz de tomar como ponto de partida a forma em si, mesmo que tenha alcançado o mais alto refinamento de seu trabalho como pintor, ainda assim sua obra será a expressão do vazio. Pois não é possível CRIAR através “da mera forma”.


“Antes de mais nada, a natureza vem ao nosso encontro de modo hermético e sob uma forma mais ou menos rígida. Assemelha-se à beleza sóbria e serena, que não chama a atenção por meio de sinais gritantes e nem atrai o olhar vulgar. Como podemos fundir, digamos, do ponto de vista espiritual, aquela forma aparentemente rígida a fim de que a força mais clamorosa das coisas flua juntamente com a força de nosso espírito, transformando-as num só molde? Temos que ultrapassar a forma, para, aí então, readquiri-la como algo inteligível, vívido e verdadeiramente sentido. (grifo meu)


Leonardo da Vinci: Dama com arminho,
1485-90
Mais à frente em seu discurso, Schelling felicita aquele pintor que consegue, em seu espírito criador, nos mostrar uma obra em que a atividade consciente do seu espírito se une à força inconsciente presente na Natureza. Complementa: “a arte transfere à sua obra, com a mais elevada claridade do entendimento, aquela realidade inescrutável mediante a qual ela termina por se assemelhar a uma obra da natureza.”


Mas nada disto significa copiar. O filósofo alemão criticava aqueles que apenas copiavam o que viam, com “fidelidade subalterna”: “talvez lhe fosse dado produzir larvas, mas de modo algum obras de arte”, diz ele. Pois o critério para definir uma obra de arte é que ela possua em si aquela dupla união entre a forma e o conceito. Que, diga-se de passagem, vai muito além da simples discussão entre “forma e conteúdo”, temas que despertaram calorosos debates nos últimos cem anos. Em muitas pinturas dos mestres não só chama a atenção a sua qualidade técnica, mas também seu “pensamento”. É o que Schelling afirma, junto com outros estudiosos: “Esse espírito da Natureza, que atua no interior das coisas e fala por meio da forma e da figura como que através de imagens-sentido, decerto deve ser emulado pelo artista, haja vista que só quando este o captura com uma vívida imitação lhe é dado criar algo verdadeiro.”


Pois obras que emergem de uma composição de formas, ainda que belas,
seriam destituídas de toda beleza, já que a única coisa que concede beleza à
obra ou ao seu todo já não pode ser a forma. Trata-se de algo que está além 
da forma; é a essência, o universal, vislumbre e expressão do imanente
espírito da natureza.”


As imitações, inclusive levadas ao nível da ilusão, continua Schelling, sempre aparecerão falsas. “Ao passo que uma obra na qual vigora o conceito, termine por lhe arrebatar com a plena força da verdade, transpondo-o de saída ao mundo legitimamente efetivo”.


Michelangelo: Tondo Doni
Avaliando a evolução histórica da arte, desde sua tenra juventude dos tempos mais remotos até os dias atuais, Schelling destaca que a arte suprime algo que não é, segundo ele, essencial: o Tempo. Não “tempo” no sentido histórico humano, mas no sentido mais amplo do tempo como movimento que não se repete. O tempo daquele instante único capturado pelo pincel do artista e que o torna eterno: o instante em que a leiteira derrama o leite dentro de um recipiente e que foi eternizado por Jan Vermeer; aquele momento em que o velho Tiziano, com o rosto já marcado com os sofrimentos da vida, decidiu pintar seu autorretrato; ou o instante do olhar do filho Titus que foi marcado para sempre numa tela por seu pai Rembrandt; ou o momento de angústia de Gustave Courbet detido por sua participação ativa na Comuna de Paris…


Outra das grandes ideias defendidas por Schelling e que deve sempre nos nortear é a da percepção da totalidade das coisas, tendo consciência de que nada no mundo se encontra em separado. Tudo existe em relação. Eu me relaciono com o mundo em que vivo, sofrendo todo o tempo as influências do tempo presente, com sua cultura pulverizada, que tem pregado, nestes tempos pós-modernos, o reino da individualidade e do particular. A “maioria considera o particular em chave negativa”, diz o filósofo, ou seja, o particular como algo que não é parte do todo. Mas o particular só existe em face da totalidade: “morta e insuportavelmente rígida seria a arte que tencionasse expor a casca vazia ou a limitação daquilo que é individual.”


Jan Vermeer: A leiteira, 1658-1661
Nada pode ser separado de nada, nem o sólido do frágil, nem o determinante do determinado. Uma coisa pressupõe a outra e só pode existir em conjunto. Por isso, mesmo aquilo que não é belo, torna-se belo “mediante a harmonia do todo”. Por outro lado, Schelling faz uma admoestação ao artista: na distribuição do espaço, da luz, da sombra e do reflexo, há que se levar em conta as gradações da beleza, para que o quadro não se revele uma “antinatural monotonia”. Há que se particularizar um ponto da obra em que a beleza plena se destaca. Não é possível dar a todo o conjunto a mesma medida de beleza, mas, como Rafael, saber romper sua regularidade para que a expressão mais bela possa brilhar no centro do quadro. Schelling disse também que o “caráter” de uma pintura é aquilo que se extrai do ritmo interno, da “unidade de múltiplas forças” que agem em conjunto para “lograr uma certa harmonia e uma determinada medida”. Somente é possível criar uma unidade viva “se as forças, levadas à sublevação por meio de alguma causa, saírem do equilíbrio.” É a necessária assimetria que cria vida.


Ou seja: o edifício teórico que sustenta uma boa pintura é pleno de conceitos, de movimentos dialéticos entre o olhar do artista e sua observação do mundo.


Ticiano: Autorretrato, óleo sobre tela, 1550
Isto é fácil? Não, dificílimo! Por isso, essa postura tem sido não somente esquecida, mas deixada de lado pela arte dita contemporânea. Pois é melhor atender ao pragmatismo exigido pelo sistema de artes atual (que inclui o Mercado capitalista), mesmo que para isso seja feita uma mutilação no conjunto da teoria, que vem sendo enriquecida ao longo de toda a história humana. Esquece-se o rico legado teórico que herdamos e que poderia nos levar ao lado e além dos mestres do passado, em troca do utilitarismo pragmático que nada cria, a não ser fumaça. Ou que corta um pedaço do pé, para que caiba no sapato da teoria acadêmica atual...


Mas, diz Schelling, a pintura enobrece, modela as almas ou pelo menos indica o poder da alma que nela existe. Ao criar sua obra, o artista leva ao público observador uma possibilidade de mergulho na unidade do mundo, que eleva e dignifica. Mas que também lhe mostra seu potencial e capacidade de criador de seu próprio mundo. Também podemos lembrar do que pensava seu contemporâneo, o filósofo Hegel, que considerava a obra de arte como o meio privilegiado “através do qual o espírito humano se realiza”.


Ao final do seu discurso, Schelling faz menção a alguns dos grandes mestres do passado:


Rafael: Retrato de Agnolo Doni, 1505-06
- Michelangelo, “aquele espírito gigante”, atraído “pelos fundamentos mais recônditos da forma orgânica e, em especial, da figura humana, ele não evita o assustador, senão que o procura intencionalmente, despertando-o de seu repouso nas obscuras oficinas da natureza”;


- Leonardo da Vinci e Correggio apaziguam a violência inicial e “o espírito da natureza transfigura-se em alma” (entenda-se “espírito da natureza como a vida das coisas”). “A expressão geral dessa alma sensível é o claro-escuro (...) pois aquilo que o pintor põe no lugar da matéria é o escuro; sendo esse o estofo no qual ele deve afixar a fugidia aparência da luz e da alma”;


- Rafael “toma posse do sereno Olimpo e, consigo, conduz-nos da Terra à assembleia dos deuses”. “O florescer da vida perfeitamente formada, o perfume da fantasia e o tempero do espírito exalam, juntos, de suas obras. Ele já não é pintor, mas sim filósofo, sendo, a um só tempo, poeta.”;


Abaixo, destaco algumas questões colocadas por Schelling naquele 12 de outubro de 1807 e que até hoje rondam as cabeças de muitos artistas:


- “Como ainda seria possível contemplarmos essas obras dos antigos mestres, de Giotto ao professor de Rafael, movidos por uma espécie de devoção, inclusive por uma certa predileção, se a fidelidade de seus esforços e a grande seriedade de sua serena e espontânea limitação não nos impusesse respeito e admiração?”;


- “(...) temos de recriar a arte seguindo o mesmo trilho que eles seguiram, mas com nossa própria força, para nos igualarmos a eles.”;


- “Tudo o que cresceu a partir de inícios árduos e pequenos, mas terminou por adquirir vasto poder e altura, tornou-se grande por intermédio do entusiasmo. Isso vale tanto para impérios e Estados quanto para as artes e ciências. Não é porém a força do indivíduo que leva isso a efeito; tal tarefa cabe apenas ao espírito, o qual se espraia pelo todo.”;


- Ao artista, ninguém “pode ajudá-lo, já que ele mesmo deve ajudar-se; tampouco pode ser gratificado com algo que esteja fora de si, pois tudo aquilo que viesse a produzir sem vontade própria tornar-se-ia, de imediato, nulo; justamente por isso ninguém pode comandá-lo ou prescrever-lhe o caminho que deve peregrinar. Se é lamentável que tenha de lutar contra sua época, é tanto mais desprezível se com ela for indulgente.”


- “Apenas uma mudança operada nas próprias ideias é, pois, capaz de erguer a arte de seu esgotamento; somente um novo saber e uma nova crença estariam aptos a incitá-la ao trabalho por meio do qual ela revela, numa vida rejuvenescida, uma opulência semelhante àquela do passado. Com efeito, uma arte exatamente igual, em todas as suas determinações, à arte dos séculos precedentes jamais retornará; pois a natureza nunca se repete. Não haverá um Rafael como aquele de outrora, mas um outro a quem, de maneira particularmente similar, será facultado atingir o vértice da arte. Desde que se atenda àquelas condições básicas, a arte revitalizada mostrará o objetivo de sua determinação, tal como mostrara, em suas primeiras obras, a arte que a antecedeu”.
Rembrandt: Titus, óleo sobre tela, 1655