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terça-feira, 25 de outubro de 2011

Meia noite em Paris


Neste domingo tive um encontro inusitado, mas bastante satisfatório. Estava passeando entre os corredores de um lugar arborizado, quando resolvi aproveitar a oportunidade das presenças importantes ao meu redor e convocar certas pessoas para uma importante reunião.

Camille Corot, auto-retrato
O primeiro que chamei foi Camille Corot e ele me ajudou a chamar todos os outros: Jacques Louis David, Georges Seurat, Jean-Auguste Dominique Ingres e Eugène Delacroix. Marx Ernst estava ali por perto, mas como não tenho interesse nas ideias dele, deixei de fora. Estávamos todos no cemitério Père Lachaise, com mais dezenas de outras figuras importantes da história francesa.

O encontro foi no Jardim do Crematório, um lugar tranquilo, cheio de flores coloridas bem arrumadas nos canteiros. Achei que era um bom lugar para esse encontro, um lugar fértil, adubado com as cinzas de milhares que já foram incinerados neste forno, cuja chaminé escura paira poderosa ao lado da abóboda do prédio.

Ingres, auto-retrato
Tive muito trabalho, no começo, para acalmar a verdadeira balbúrdia que se instalou entre meus convidados. Ingres queria partir para cima de Delacroix, macambúzio, no seu canto, enquanto Corot queria entender porque David nunca teve coragem de abandonar o atelier e ir pintar ao ar livre, ao que David respondeu que preferia as sombras projetadas dentro de um quarto fechado do que a luz chapada do sol nos campos. "Para isso você bem podia ter sido Barroco, mas faltava arrojo e você preferiu ser o queridinho dos salões!" Deixamos os dois e encontramos Pissarro que, por sua vez, tentava convencer Modigliani de que as figuras não precisavam ser tão esguias assim, nem tão chapadas. Modigliani berrava e gesticulava em italiano, sem ouvir uma palavra do pintor francês.

Georges Seurat tentava estudar os pequenos pontos luminosos que atravessavam as folhas das árvores, dizendo a Corot que ele não precisava ter sido tão literal assim, que bastava olhar para a luz, como ela se comportava em pequenos pontos, mas Seurat, indignado, gritou com ele que esse negócio de pontilhismo é para quem não sabe nem a sombra de como se usa um pincel!

Delacroix, auto-retrato
Enquanto Ingres se inflamava cada vez mais com Delacroix, David também se achou no direito de cobrar deste uma posição política mais definida. "Como assim?", perguntou Delacroix. "Você não viu que eu pintei a maior obra prima da Revolução, A Liberdade guiando o povo?" - Sim, respondeu David, mas eu falo de ação, camarada, de ação! Ao que Delacroix respondeu: você foi tão bonapartista quanto eu! Voilà!

Bom, como vi que a coisa estava cada vez mais fora de controle, dei um berro muito alto, usando da minha autoridade de idealizadora da reunião:

- ARRÊTEZ-VOUS, S'IL VOUS PLAÎT!!! Parem já!

Assustados com meu grito feminino quase histérico, eles me olharam. Continuei:

- Chamei vocês aqui porque tenho coisas importantes a discutir, então esqueçam suas desavenças e gostos pessoais. Esta aqui é uma reunião de trabalho!

Pissarro, auto-retrato
Ingres resmungou, David que já estava mais animado por uma briga, parou estático. Os outros ficaram ali, me olhando; Pissarro com um sorriso debochado. Não liguei.

De longe, à esquerda, ouvia-se a voz de Edith Piaf cantando "Je ne regrette rien", enquanto no lado oposto, mais ao fundo, Mozart solfejava uma sinfonia... O corvo preto que tinha pousado no jardim à nossa frente, levantou vôo, pousou num galho e deu um grito. Os communards (combatentes da Comuna de Paris), aglomerados no canto direito, próximo ao muro, faziam alguma algazarra, enquanto se ouvia a Marselhesa. Também dava para se ouvir berros violentos que vinham do lado onde estava Balzac. Ele gritava à queima roupa no ouvido de Marcel Proust: - Vai conhecer a vida lá fora, irmão! Você não sabe de nada! Rien de rien!

David, auto-retrato
Paul Éluard, abraçado a Apollinaire, cambaleava, bêbado, recitando um poema.

Voltei aos meus amigos e falei:

- É o seguinte, amigos! Estamos vivendo tempos sórdidos, tempos estranhos. Eu sei que o tempo em que cada um de vocês viveram não era lá grande coisa, mas mesmo com as desavenças que havia entre os seus pares não chegava nem aos pés do isolamento em que uma grande parte dos artistas vive hoje.

David, para você ter uma ideia, desde que o conterrâneo de vocês, Marcel Duchamp, decretou que tudo é arte ("- que você tá falando?" berrou ele) Isso que você ouviu. Duchamp, que nunca ia a museu algum e que dizia que detestava pintura, acreditem, é hoje a musa principal que inspira a nova academia: a que cria dezenas de alunos que não precisam aprender a desenhar, mas vão aprendendo que uma boa ideia vale mais do que mil palavras! (- "Não estou entendendo nada", resmunga Ingres).  Pois é, amigo, nem você, nem eu, nem ninguém. E para eles quanto menos gente entender melhor. ( - "Mas como não se aprende a desenhar se o desenho é a base de tudo?", insistiu Ingres) Simplesmente porque hoje em dia se você tiver uma formação conceitual dessa academia aí, não precisa mais desenhar. Desenhar o que? Desenhar pra que, se não é preciso criar nada daí? Hoje, artista e designer é tudo a mesma coisa. Se duvidarem de mim, podemos ir agora ao Museu George Pompidou e ver as salas separadas para apresentar a arte dos anos atuais: cadeiras, móveis, enfeites, badulaques de todo tipo, penduricalhos espalhados, mais parece um grande parque de diversões! E na tal da FIAC, então? (- "Que diabo é FIAC?", perguntou Pissarro) A tal da Feira Internacional de Arte Contemporânea. Vocês vão e lá e verão: penduricalhos, badulaques, trastes, trecos pendurados... É isso, hoje a arte é para ser divertida, tocada, brincada, manipulada, ultrapassada... (- "Principalmente ultrapassada", disse Seurat) Voilà, Seurat, isso mesmo!

Túmulo de Ingres, no Père Lachaise
Agora, não para por aí não. Os quadros que vocês fizeram e que nem venderam tanto enquanto vocês estavam vivos, hoje em dia não valem nada, quase nada perto de um tubarão envidraçado ou uma caveira de diamantes! (-"Que conversa é essa?" perguntou Delacroix. "Uma pintura de um tubarão e de uma caveira, o que isso tem de valor?") Não, meu caro Delacroix. Muito pior do que você pensa: o cara pegou um tubarão morto, jogou dentro de litros de formol, fechou num aquário de vidro e vendeu por milhões de dólares! (Os pobres coitados pintores me olhavam abismados) Porque hoje sabe quem manda no que se chama de arte contemporânea? O mercado. No tempo de vocês a igreja, a nobreza ou o Estado eram grandes compradores de arte. Hoje os grandes compradores são uns caras que ganham bilhões na Bolsa de Valores e, se compram alguma pintura de valor, é para ela ficar bem guardada esperando que valorize mais... Corot, ainda bem que seu amigo Gustave Courbet não está aqui hoje. Ele ia querer fazer outra revolução!

Mas meus amigos foram murchando, se movimentando lentos, cabisbaixos. Olharam para mim com pena. Corot ainda me perguntou se valia mesmo a pena ser pintora hoje. Vale, mesmo que seja por mim, respondi. Mas eles foram voltando quietos cada um pro seu canto. Minha reunião acabou sem ter acabado.

Gritei para eles:

- Mas há os que ainda resistem!

Delacroix fez um gesto amigo com as mãos. Ingres me desejou "bonnes chances, allez-y!", boa sorte, vá em frente.

Fui embora pra Bastilha.

Praça da Bastilha, Paris

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

“Quando o tempo for propício” *

Há um costume entre as pessoas mais velhas de qualquer período histórico: um olhar para seu passado com certa melancolia, contaminada pelo sentimento de que “naquele tempo, sim, as coisas andavam melhores no mundo”...
Mas vamos e venhamos, vivemos num momento histórico privilegiado, por tantos desafios lançados às mentes humanas nestes tempos nebulosos. Há que se estar atento a cada movimento, quando nos encontramos em meio ao nevoeiro: um pode nos salvar; outro pode ser o fim. E as sereias cantam docemente, enganando até mesmo velhos marinheiros.
Tempo rico, tempo são. Tempo louco.
O mundo anda mal. Crise econômica generalizada atingindo principalmente os países ricos, como os EUA, onde hoje mais de 46 milhões de pessoas vivem na margem da pobreza. Em Nova Iorque de cada cinco, uma pessoa está nessa situação! Fora os cerca de um bilhão de seres humanos no planeta que ainda passam fome em pleno século XXI!
O mundo anda mal também nos aspectos, digamos, mais subjetivos. De uma subjetividade estranha, porque, de tão pesada, atinge a todos nós em pleno fígado. Todos nós??? De quem se trata esse “nós”? “Ele inclui bispos e gerentes de banco?” pergunta Terry Eagleton em seu livro As ilusões do pós-modernismo. Não, porque neste mundo de seres iguais uns são “mais iguais” do que os outros. Esses “mais iguais” são os promotores desse festival de estupidezes a que assistimos, que nós podemos intitular de “o mais novo pensamento dos novos capitalistas neoliberais e pós-modernos”:
- foi decretado que o sonho humano que animava milhões de pessoas pelo mundo não é mais possível: o Socialismo acabou;
Auto-retrato, de Egon Schiele
- foi instaurado o reino do individualismo e agora é o salve-se quem puder, cada um por si, deus contra todos;
- foi instalado o reino do Instantâneo, do Superficial, do Efêmero – contemporâneo do macarrão que se cozinha em 3 minutos e se come em um;
- foi decretada que a Quantidade (de dinheiro, de prazer, de consumo, etc) se sobrepõe à qualidade;
- está deliberado que a Aparência é um valor em si mesmo e que a Visualidade reina sobre qualquer conteúdo. Com isso procure-se qualquer clínica de estética e se re-estetize a você mesmo;
- foi decidido que a Globalização tem predominância sobre as regionalidades e as nacionalidades;
- foi deliberado que o indivíduo narcísico tem mais valor do que qualquer grupo ou coletividade; que do alto do seu posto, o Eu individual NADA PODE fazer para mudar o mundo e reinventar outra ordem social, porque “a história acabou”;
- foi decretado que a mídia é o grande porta voz dos discursos desconstrutores e reconstrutores do mundo, em afinidade com as ideias pós-modernas;
- está deliberado que a Arte Contemporânea continuará sendo a repetição de fórmulas que já duram cem anos, mas que são congruentes com esse espírito que de tão moderno chega a ser pós-moderno, em seus discursos sem sentido.
Porque está decretado que nenhum discurso mais precisa ter sentido, a linguagem está livre para-o-que-der-e-vier e qualquer um pode dizer o que quiser, na língua que desejar, porque TUDO o que importa é a expressão de qualquer discurso.
E também decretou-se que a Arte morreu. Depois re-decretou-se que tudo é arte, incluindo as secreções do corpo humano... Depois decreta-se que arte é discurso e que basta uma boa ideia e um bom curador para que qualquer coisa alcance o status de arte. Mas tem um detalhe importante: quem decide o que é Arte hoje é uma entidade denominada Mercado, porque tudo o que o homem produz nos dias de hoje só tem existência se se transformar na simbologia capitalista que produza mais-valia.
Os mais velhos podem ter alguma razão. Até há poucas décadas atrás (duas, no máximo) o mundo era mais simples: havia o sonho socialista, de um lado, e os que reagiam contra a ideia de que o capitalismo não era o melhor dos mundos: os reacionários.
Mas o capitalismo não é o melhor dos mundos: basta olhar para as ruas ocupadas por multidões sem rumo, engarrafadas, se movimentando em seus automóveis em direção... ao que mesmo? Depende. Pode ser até o shopping center ali da esquina!
Moça gorda, de Lucien Freud
Mas para “re-significar” (eles adoram essas expressões) o pobre coitado que está ali na luta pela sobrevivência, basta algumas horas de reconstrução da sua figura, enfumaçada pelo status quo


- disponibilize-se salas de musculação; cirurgia plástica; lipoaspiração; rejuvenescimento; massagem; maquiagem definitiva; alisamento permanente; botox; alongamento de pênis; depilação masculina e feminina; vitaminas a, b, c do alfabeto inteiro disponíveis; cirurgias de redução do estômago crescido de quem comeu todas as calorias estimuladas pelas indústrias fornecedoras dos supermercados; drogas para dormir, ter tesão, turbinar o cérebro; revistas que dariam inveja ao famoso Jack, estripador: pernas, braços, barrigas-tanquinho, rostos esticados; bundas, coxas de gostosas e gostosos, cabelos loiros e pretos alisados, mais loiros do que pretos; toda a farmacologia disponível e pesquisada pela imensa indústria farmacêutica que promete o aumento da expectativa de vida... ufa! Para viver dez anos a mais nesse inferno?
Distante da ideia do coletivo, o indivíduo lançado ao seu mundinho umbilical pensa que, finalmente, no reino do “eu” ele vive no melhor dos mundos: pois “O Diabo o levou a um lugar alto e mostrou-lhe num relance todos os reinos do mundo. E lhe disse: Eu te darei tudo isto e tudo será teu, se prostrado me adorares!” Diz o espírito do mundo capitalista a quem quiser ouvir...
Primeiros dias da primavera, de Salvador Dali
Mas há uma saída. E ela é coletiva.
Há que se voltar mais uma vez para o Real, para o mundo, para a história, para o homem. “A Modernidade acreditava na história”, diz o poeta Affonso Romano, mas a pós-modernidade é essa ausência de qualquer celebração utópica. O mundo se transformou num grande mercado, ele acrescenta. Os movimentos transformadores do mundo são hoje desmoralizados e desmerecidos. Hoje não se incentiva o agrupamento, a coletividade. A noção de História se encontra confusa, assim como a noção de realidade objetiva tornou-se “suspeita”. O nevoeiro se espalhou por toda parte.


E alcançou até a arte. De tão nebulosa, ela nem precisa ser vista, basta crer, basta ter fé na intenção do artista e pronto. A Arte existe, se é discurso.
Mas, no entanto a Terra se move, como disse Galileu Galilei lá pelos idos de 1615...
E a nós, nos resta engendrar a subversão que porá tudo de pernas pro ar, “quando o tempo for propício”...
(Trecho de oração ao Tempo, Caetano Velloso)

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Voilà, Marcel Duchamp!

O mais novo projeto de arte conceitual não poderia ser mais coerente com seu próprio umbigo. Foi criado em Manhattan, EUA, um “Museu” (pasme-se!) de Arte Invisível! E não é brincadeira! O MONA ( Museum on Non-Visible Art) “apresenta” (a quem quiser arriscar de pagar esse mico) uma série de “obras” que não existem e só podem ser imaginadas quando o visitante lê o texto onde o “artista” descreve sua “obra”.


Acredite: dentro desta moldura tem uma obra de arte! Tenha fé!
Nesses arrazoados espalhados em espaços vazios pode-se ler que aquilo que não está lá e nem existe é uma escultura ou uma imagem qualquer. O corajoso visitante desse “Museu”,ao ler o texto, imagina que ideia estaria por ali, num “espaço” que deve pertencer ao mundo dos espíritos. Vejam que para este tipo de arte, até mesmo a psicografia já está superada! Nem o espírito de Van Gogh precisa mais “baixar” num médium de pincel na mão. Neste “museu”, tudo só é possível de existir na mente do incauto visitante…

Nem Marcel Duchamp seria capaz
de imaginar uma Fonte invisível!
Parece muito ridículo? Pois tem gente que acha que não! Algumas pessoas gostam tanto da imagem que suas mentes produziram que COMPRAM isso! Uma abastada senhora “investiu” nessa asneira a cifra de U$ 10.000,00!

Quem teve a brilhante ideia de criar esse “museu” foi um ator chamado James Franco, porque queria elevar a arte conceitual a um patamar mais alto (ou o que isso queira dizer). Ou ele é a reencarnação de Marcel Duchamp – o rei da arte conceitual – ou nem Marcel Duchamp seria capaz de ir tão longe e ganhar dinheiro com… nada!

Pois é, mas o comprador das subjetividades do “museu” recebe um “certificado de autenticidade” e isso lhe transfere a propriedade sobre a “criação”, mesmo que ela não exista! (nunca usei tantas aspas e pontos de exclamação antes!) E o que o comprador leva para casa, além do certificado? Uma arenga escrita sobre a “grande ideia” do “artista” e uma moldura sem nada dentro. Então emoldura o que? Nada, meu amigo!

Mas essa iludida senhora, que tem por nome Aimee Davidson, é uma “produtora de novas mídias”. Vejam o que ela disse sobre sua compra:

“Como produtora de novas mídias, me identifiquei com a ideologia do projeto e fui particularmente inspirada na frase “Nós trocamos ideias e sonhos como moeda na Nova Economia”. Os meios de comunicação social, que são parte integrante da ”Nova Economia” da Internet, pós Web 2.0, revolucionou o modo como artistas criam, promovem e vendem as suas obras de arte. Senti que o ato de comprar “ar fresco” apoiou a minha tese sobre um conceito que denomino de “você-commerce”, que é o marketing e a monetização da própria persona, habilidades e produtos através do uso das mídias sociais e das plataformas de auto-difusão, como o uso da plataforma de financiamento público para financiar o Museu de Arte Não-Visível. Basicamente, eu queria colocar meu dinheiro onde minha boca está.”

Só para os desavisados:
isto daqui é uma obra de arte!
Entenderam?

Nem eu.

Mas o próprio “museu” explica…

“Como essas obras de arte invisíveis são compradas, trocadas e revendidas, elas abrem os nossos olhos para o universo invisível que existe em cada momento, e podemos compartilhar esse universo. Trocamos ideias e sonhos como moeda na Nova Economia.”

E os responsáveis por essa estúrdia ainda ameaçam fazer uma turnê pelo mundo apresentando… o que não existe!

Até que ponto o sistema capitalista é capaz de chegar: não satisfeito em transformar obras de arte em mercadoria agora é capaz até de transformar a nulidade, o não existente, o nonada em mercadoria! Isso nem Karl Marx seria capaz de prever! Este é o mundo dos espertos-expertos, de todo tipo de expertise possível! E para cada expertise, um/uma debilóide capaz de adquirir com cifras bem concretas a bobajada toda!

Mas isso também lembra o que Affonso Romano de Sant’Anna fala em seu livro “Desconstruir Duchamp”: a tal da arte contemporânea se aproxima do misticismo e da religião: “Na religião há que ter fé. Em relação às obras contemporâneas, há que “acreditar” nas intenções do artista”.

Ou você, que não é capaz de se emocionar com tanta criatividade, vai queimar no fogo do inferno conceitual cheio de diabinhos conceituais!

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

A escolha do que ver no museu: John Singer Sargent ou Damien Hirst?

O jornalista Philip Hensher, que é também crítico de arte e escritor, publicou em março deste ano uma matéria no jornal londrino Daily Mail, fruto de uma pesquisa que ele fez no museu britânico Tate Britain. Como essa pesquisa traz aspectos bem interessantes e atuais, achei interessante reproduzi-la aqui neste blog.



Carnation, Lily, Lily, Rose, pintura feita entre 1885-1886 pelo pintor realista John Singer Sargent

Mas antes de entrar no texto dele, vale falar um pouco mais de quem é Philip Hensher, um inglês nascido no sul de Londres em 1965. Hensher estudou em Cambridge, onde fez doutorado em pintura satírica do século XIX. É também romancista e crítico literário dos jornais londrinos The Guardian e The Independent. Recentemente ele foi o editor de obras clássicas da literatura inglesa, publicando romances de Charles Dickens, por exemplo. É considerado um dos promissores romancistas ingleses da nova geração.

Segue um resumo do que Hensher escreveu:

As artes plásticas dão ao espectador uma decisão que as outras formas de arte não dão: você pode escolher quanto tempo quer ficar olhando para um quadro ou uma escultura. Uma sinfonia pode durar 40 minutos, um filme pode durar duas horas, uma peça de teatro duas ou três horas… Mas você pode escolher se quer olhar para uma pintura ou escultura por 10 segundos ou por 10 minutos. E essa é uma boa medida do quanto você está interessado por ela.

Minha preocupação inicial era saber se há uma diferença entre o tempo que uma pessoa observa uma obra de arte clássica e uma obra de arte contemporânea.


Obra de Damien Hirst intitulada "Colours: Anthraquinone -1 Diazonium Chloride" - 5 segundos de observação!
Para esse meu experimento científico, o Museu escolhido foi o Tate Britain. A coleção do museu vai desde obras de pintores como William Hogarth e John Singer Sargent até artistas contemporâneos como Tracey Emin, Damien Hirst e Rachel Whiteread. 

Estes últimos são a nova geração de artistas que explodiram na arte contemporânea fazendo coisas extravagantes: exibindo a própria cama desfeita (Tracey Emin) ou um tubarão morto imerso em formol (Damien Hirst). O que pode convencer as pessoas a correr imediatamente para o “outro lado” do Museu, onde estão os pintores.

Mas essas coisas feitas por artistas contemporâneos rapidamente chegam aos jornais e torna famosas essas pessoas mesmo entre os que não se interessam por arte. Nestes dias, pintores como William Turner e John Constable (grandes nomes da pintura inglesa) parecem menos excitantes do que esses artistas-celebridades. Minha pergunta: esses pintores clássicos sobreviveriam a um teste simples a respeito do interesse das pessoas?


Fotografia com Tracey Emin, intitulada Monument Valley - paisagem do oeste norteamericano: a maioria nem parou aqui!
Por isso, fomos ao museu e passamos um dia inteiro sentados entre quatro pinturas clássicas e as obras de quatro dos renomados artistas britânicos contemporâneos. Contamos quantos visitantes pararam em frente de cada um, por quanto tempo ficaram olhando as obras, que exame foi mais longo e que tipo de visitante cada obra parecia atrair.

Surpreendentemente, apesar de toda a promoção pública dos artistas atuais, estes tiveram tanta atenção quanto os do século XVIII e XIX.

Mas as pessoas não ficam muito tempo olhando para essas obras. O Monument Valley, DE e COM Tracey Emin, teve uma média de observações que duraram 5 segundos. A maioria dos visitantes não parou para olhar.

Apesar da fama de Damien Hirst (que conserva animais em formol e expõe como obra de arte), em nossa pesquisa ninguém parou mais do que 5 segundos para olhar para ele. Um único visitante mais entusiasta parou durante 4 minutos em frente a uma ovelha em conserva. Mas você também vai encontrar pessoas olhando para uma vitrine de moscas que pululam em volta de um pedaço de carne apodrecendo, também de Damien Hirst, em exposição na Academia Real de Escultura.


Banheira escura, de Rachel Whiteread, feita em poliuretano: ver uma banheira preta por 5 segundos já foi tempo demais!
Alguns visitantes de fato demonstram entusiasmo em relação a obras contemporâneas, como a "Blak bath" de Rachel Whiteread. Teve um fã que passou quase 5 minutos em frente a ele!

Mas, em sua maior parte, essas obras de expoentes da cena artística atual atraíram apenas olhares de passagem.

É importante ressaltar que essas observações foram feitas numa segunda-feira, quando a maioria dos visitantes de exposições e museus são provavelmente os mais bem informados. Mas nós voltamos também na quarta-feira, onde há mais público, incluindo estudantes que vieram com a intenção de aprender sobre arte.

As pessoas pareciam estar realmente interessadas nas artes visuais. Mas de alguma maneira não pareciam muito interessadas nesses artistas contemporâneos, pois foi a pintura tradicional e clássica que despertou o interesse da maior parte das pessoas em visita ao Tate Britain.

As pessoas gastaram em média 2 minutos em frente ao Roast Beef de William Hogarth, um quadro pintado em 1749. O mesmo aconteceu com a tela de John Everett Millais, “Ophelia”, um dos mais populares enquanto estivemos lá: três visitantes passaram uma meia hora olhando para essa pintura maravilhosa!


O rosbife da Velha Inglaterra, pintura de William Hogarth, pintada em 1749 - 2 minutos em média de observação
Como observamos, as pessoas parecem mais dispostas a estar entre 2 e 6 minutos observando pinturas clássicas como a “Carnation, Lily, Lily, Rose”, pintada entre 1885-1886, pelo pintor realista John Singer Sargent. Esta pintura já foi o cartão postal mais vendido pela loja do Museu. Por que será?


Noturno: Azul e Prata, de James Abbott McNeil Whistler, pintura - os japoneses ficaram aqui 6 minutos
E um grupo de japoneses passou 6 minutos em frente ao “Nocturne” de James Whistler! (tente passar 3 minutos olhando para uma imagem para perceber quanto tempo é isso).

Essa apatia dos freqüentadores de galeria em relação às obras contemporâneas devia ser algo que fizesse com que os curadores profissionais ponderassem sobre o valor real de tudo o que ajudam a mostrar ao público.

Abaixo uma tabela com os resultados da pesquisa de Philip Hensher:
Obra:Total de visitantesTempo médio de visitaTempo máximo
Blach bath
Rachel Whiteread – Escultura em poliuretano
2855 segundos4 min 40 seg
Roast Beef
William Hiogarth – Pintura
2192 min 15 seg6 min 30 seg
Monument Valley
Trace Emin
1775 segundos2 minutos
Carnation, Lily, Lily, Rose
John Singer Sargent –  Pintura
3491 minuto3 minutos
Colours: Anthraquinone -1 Diazonium
Damien Hirst
3795 segundos30 segundos
Ophelia
John Everett Millais – Pintura
5622 minutos30 minutos
Nocturne: Blue and Silver
James Abbot McNeill Whistler – pintura
1042 min 5 seg6 minutos
Animal: Damien Hirst romm
Damien Hirst
47838 segundos4 minutos
 "A heroína de Shakespeare: Ophelia", de John Everett Millais, pintada entre 1885-1886 - teve gente que passou meia hora somente observando esta pintura

domingo, 3 de julho de 2011

O estilo Pictórico e o domínio da Luz


Tem dias que a gente fica horas diante do papel em branco à nossa frente, lápis ou pincel na mão, aguardando a forma que surgirá do desenho. Mas há dias em que a forma insiste em não vir. E não vem.


Melhor ler. Conceitos fundamentais de História da Arte, de Heinrich Wöllflin. Conceitos densos, complicados. E eu tentando entender a linearidade do mundo. E meu coração pictórico.

Pego um poeta para ler: João Cabral de Melo Neto, pernambucano que nem eu. Leio lá em “Lição de Poesia”:


“Toda a manhã consumida
como um sol imóvel
diante da folha em branco:
princípio do mundo, lua nova.”

Estudo em pastel sobre papel cartão

Vi que não estou só, neste domingo nublado, quase frio. Estudando os conceitos do Estilo Pictórico que praticamos no Atelier do qual faço parte, vamos assim, entre a pintura e o texto, fazendo descobertas profundas sobre o mundo da Pintura. E sobre o Mundo. 

Até a Renascença, o estilo de pintura que se fazia (que incluía a pintura de Leornardo Da Vinci, e todos os outros que vieram antes de Rafael de Sanzio) era Linear. Ou seja, a linha delimitava os espaços, dava contornos às figuras, ajudava o olhar a traduzir o que viam em termos de imagens. Para dar um exemplo bem simples: se pedimos a qualquer pessoa, criança ou adulto, que faça qualquer desenho sobre uma folha de papel, a imensa maioria vai traçar linhas, seja configurando um rosto, uma flor, um barco. Essa é, em sentido bem primário, uma forma linear de desenhar o mundo.

Mas nem isso eu conseguia fazer neste domingo, nem uma linha sobre uma folha em branco. Pensamentos e sentimentos inquietos só acalmavam de volta ao livro, ou ao Poema:

“Já não podias desenhar
sequer uma linha;
um nome, sequer uma flor
desabrochava no verão da mesa:
nem no meio-dia iluminado,
cada dia comprado,
do papel, que pode aceitar,
contudo, qualquer mundo.”



Detalhe de estudo em pastel sobre papel cartão
Nessa conversa entre mim e João Cabral, procuro desvendar o mundo, tentando uma interpretação pictórica dele. Vendo a realidade em suas infinitas formas, aprendo a observar o mundo como jogos de valores, de massas, de sombras e de Luz. Principalmente de Luz. Lá no Atelier de Arte Realista, meu ponto de encontro de todos os sábados, enquanto desenhamos e pintamos, conversas muito profundas acontecem, fora os encontros mensais do Grupo de Estudo de Arte Realista.

Pintar com a Luz. Desenhar com a Luz. Em plena São Paulo. Em pleno século XXI.
Estudo em pastel sobre papel cartão
Minha luta de hoje também era explicar tudo isso, em termos de palavras, para este Blog, um dos que resistem ao pensamento dominante. Um Blog que trata de Arte e de Realidade, de Arte Realista, de Real. O Real que é o resistente. Fala, João:



“A noite inteira o poeta
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.
Monstros, bichos, fantasmas
de palavras, circulando,
urinando sobre o papel,
sujando-o com seu carvão.”


Estudo em pastel sobre papel cartão
Carvão. Passei meses sobre folhas de papel cartão, aprendendo a dominar o carvão. No Estilo Pictórico, dentro da visão Realista da Arte, sujando meus dedos, minhas mãos, meu rosto. Para buscar a pureza da visão pictórica do mundo. 
Antes de Rafael Di Sanzio (1483-1520), a pintura seguia o estilo Linear. O Renascimento estava no auge, quando houve a ruptura do Linear ao Pictórico, e isso foi feito por Rafael, enquanto pintava a Stanza d’Eliodoro, entre 1512 e 1514. Aos olhos do mundo, diz Wöllflin, ele executou essa ruptura, que influenciou milhares de pintores nos século seguintes, a começar do Barroco. Exatamente no afresco “A Expulsão de Heliodoro do Templo”, um mural de 5 metros de altura, por 7 metros e meio de largura, localizado no Vaticano.

“Carvão de lápis, carvão
da idéia fixa, carvão
da emoção extinta, carvão
consumido nos sonhos.”

Eu e meus carvões. Eu e meus pasteis. E a tela em branco. Mas na minha cabeça, os conceitos todos:
- criar a impressão de Movimento 
- pintar o essencial
- não há contornos definidos por linha, mas volumes
- tudo é grande, vaporoso
- buscar a unificação das grandes massas

Enfim, olhar para o mundo e ver que tudo se relaciona, mesmo os opostos, nem que seja por um simples matiz de luz. Ou por pequenos toques, como diz
Maurício Takiguthi. Sim, porque o estilo pictórico pensa o mundo como massas: Luz e Sombra são seus elementos. Luz e sombra dão Movimento. Dão Vida.


No estilo linear, a linha funciona como um guia que é seguro e dá segurança ao artista. Eu delimito as formas, as figuras, os espaços, deixando simplesmente a linha correr da minha mão para o papel.

Estudo em pastel sobre papel cartão
Mas no estilo Pictórico, o mundo se torna instável, inseguro. Porque o movimento disperso da massa de Luz não dá em parte alguma um limite, um fim. Tudo se espalha, o carvão espalha massas e valores. O pastel e a tinta teimam em se esvair além da forma. A tinta se espalha, as cores e as tonalidades se derramam buscando as profundezas, como diz Wöllflin. Os limites se tornam fluidos; limites que não são um fim em si, são infinitos.


E o artista - nesse descontrole - aprende a controlar essas massas, descontrolando-as. Meio louco, mas é assim mesmo! Pois a pintura deve passar a impressão de mudança contínua. Em lugar da Linha, uma "área terminal indefinida".


Partes da Pintura ou do Desenho parecem avançar ou recuar no espaço. Espaço que é profundo, diferente dos espaços claros, lógicos e até mesmo elegantes do estilo linear. Na arte Pictórica, "o olho é atraído para o fundo e para insondáveis profundezas", diz Wöllflin. O estilo é livre, nessa desordem pictórica.

Mas é preciso agora falar dessa “Liberdade”.
Detalhe de estudo em pastel sobre papel cartão
Não é a "liberdade" apregoada atualmente, que diz a qualquer um que o bom é “ser livre” e executar qualquer coisa do jeito que se quiser, sem regras. Abaixo as regras, dizem eles, que criaram essa regra canônica e dogmática. Mas não praticam a Liberdade, a verdadeira que se consegue quando se tem o domínio sobre o caos das massas e da Luz. É que ser livre dá trabalho! 

Eles, parece, não sabem, como o Poeta, o que significa:

“A noite inteira o poeta
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.”

Mas voltando ao Estilo Pictórico, sem mais distrações. Numa obra de arte pictórica, o eixo do quadro é obliquo e o ordenamento é assimétrico. O ponto de gravidade é deslocado, criando tensão. Tudo é jogo de Luz e Sombra, onde nem tudo precisa ficar claro. Há partes veladas, objetos sobrepostos, massas sobrepostas. Movimento. Aquilo que parece estar oculto pelas sombras do quadro, parece que “luta para entrar na luz”. Esse Wöllflin...

Detalhe de um estudo com pastel
Numa pintura Pictórica (não tem nada a ver com “colorida”), tudo está em correspondência, através da Massa que equilibra o Todo. Tudo forma um Conjunto, uma Unidade. Não se busca extrair da cor individual toda sua força e pureza, mas criar Harmonia na relação entre as cores, de modo que uma cor realce o efeito individual de outra. A cor local está subordinada a uma TONALIDADE GERAL e sua força individual, enquanto Cor, surge nas múltiplas transições dadas por essa subordinação.

Isso tudo parece complicado demais? Isso tudo é lindo demais! Porque foi depois de conceber o mundo deste ponto de vista que o Pintor começou a trazer as multidões para seus quadros, e não somente indivíduos. Foi com esse pensamento que novos pintores trouxeram para suas telas os temas humanos, a presença humana.

A ciência da Luz, que surgiu em paralelo desde o século XIII, trouxe no século XX a grande novidade da dupla função onda-partícula da Luz, mostrando a todos que o mundo é uma cadeia de relações e que nada, absolutamente nada, se encontra isolado, sem sofrer e causar consequências. Como no desenho onde as massas conversam entre si, num jogo de sombras e de luz, que configuram uma Forma, que o olho humano vê, interpreta e dá um nome.

E o mais bacana é que esse modo de pensar é real e atual: se pratica aqui em São Paulo, no Atelier da Rua Frei Caneca.

Mauricio Takiguthi faz uma demonstração aos alunos do Atelier de Arte Realista