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terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Espaços de exposição

Confesso que ando com muita preguiça de escrever neste começo de ano... Faz parte da minha onda atual, mais parecida à maré mansa, àquelas praias sem onda onde a gente pode nadar e boiar por horas, sem nenhum sobressalto. Não que eu não esteja em atividade; pelo contrário, cada pedaço de tempo do meu dia tenho usado lendo, estudando, pintando, trabalhando... Alterno isso com longas horas de sono e ausência. Movimentos de fluxo... e de refluxo... como o mar.

Mas hoje tive vontade de tecer uns comentários, de trás da minha preguiça. É que me perguntaram se é fácil expor em galerias de arte no Brasil... Tive que responder, à contragosto, porque esse assunto também me dá muita preguiça! (Devo estar parecendo Macunaíma que vivia repetindo: "Ai que preguiça!")

Galerias. Em geral são espaços fechados, não só fechados no sentido arquitetônico do conceito. Há alguns, inclusive, que mais lembram bunkers, aquelas estruturas fortificadas e feitas para serem resistentes às armas de guerra. Conheço duas galerias assim, uma na Vila Madalena, outra na avenida Rebouças. Mas há outras um pouco mais simpáticas, quando se vê da rua. Da rua. Até você entrar e se deparar com um sujeito - ou uma sujeita - que vai lhe medir dos pés à cabeça e te ignorar assim que sua "medição" descobrir que você não tem onde cair morto, quanto mais algum recurso para adquirir alguma das "obras" ali expostas...

Galerias não são para os "fracos". Há exceções, claro. Mas aqui em São Paulo não conheço nenhuma, mesmo que aberta a conhecer, caso exista. O modus operandi da velha elite paulistana, mesmo a mais metida a intelectual, ainda se espalha por vários espaços culturais desta cidade, impondo seus gostos, sua estética, seus padrões, seu mercado de arte... Que não é para muitos, pois é para POUCOS!

Fora do Brasil, a situação é outra, pois onde há valorização da cultura e das artes, há infinidades de espaços onde cabem muitos. Mesmo aqui em nossa latina América: em Buenos Aires as galerias se espalham pela cidade e elas são espaços mais democráticos do que aqui. Ah o Brasil... quando chegará a nossa vez? Sinto dizer que está cada dia mais distante a nossa vez... Ando mal humorada - nestes tempos bizarros - e preguiçosa de escrever.

Dito isto, respondi com uma careta: não, não mesmo! A não ser que você faça parte da "galera": a mesma que se autodenomina "artista" porque recria e regorgita conceitos robotizados aprendidos de professores de artes conceituais nas nossas academias que são os mesmos que mandam nas galerias, nas exposições, nas bienais, incentivando experimentações ad nauseam, dentro dos mesmos velhos paradigmas das experimentações artísticas que já tem uma idade de pelo menos 100 anos, quando o mundo era outro mundo, e os artistas mais sérios, porque sabiam o que faziam quando se rebelavam contra o status quo... Hoje o "chique" é ser do status quo da arte dita "contemporânea", embebida em jogos sujos de poder. De todos os tipos dos podres poderes...

E viva a arte e os artistas contemporâneos, que somos todos nós, incluindo nós os da pintura figurativa e realista. Nós que preferimos - enquanto uivam as matilhas - ir estudando a pintura clássica com seus grandes mestres, para aprender deles - nessa timeline que já possui mais de 500 anos! Nós, os que não se contentam somente com a superfície da expressão individual em detrimento do aperfeiçoamento pessoal. Porque o conhecimento - o aprendizado dos instrumentos do ofício - não é só o manejar dos pinceis e o escolher das cores, mas o mundo que tudo isso nos abre: nos enriquece como seres humanos, além de tudo.

"O ateliê do pintor", Gustave Courbet, 1854-55, Museu D'Orsay, Paris

sexta-feira, 29 de julho de 2016

A percepção da "coisa"

"Vênus ao espelho", Velázquez
“Esta coisa é a mais difícil de uma pessoa entender. Insista. Não desanime. Parecerá óbvio. Mas é extremamente difícil de se saber dela. Pois envolve o tempo. Nós dividimos o tempo, quando na realidade não é divisível. Ele é sempre e imutável. Mas nós precisamos dividi-lo. E para isso criou-se uma coisa monstruosa: o relógio.

(...) O relógio de que falo é eletrônico e tem despertador. A marca é Sveglia, o que quer dizer “acorda”. Acorda para o quê, meu Deus? Para o tempo, para a hora. Para o instante. Esse relógio não é meu. Mas apossei-me de sua infernal alma tranquila.

(...) Estou escrevendo sobre ele mas ainda não o vi. Vai ser o Encontro. Sveglia: acorda, mulher, acorda para ver o que tem que ser visto. É importante estar acordada para ver."

Clarice Lispector, em “O Relatório da Coisa”

Começo este texto sobre a percepção humana citando Clarice Lispector, a grande escritora brasileira que tem a capacidade de nos fazer enxergar - muitas vezes com certa angústia - o que há para ser visto do mundo...

Sim, porque não enxergamos direito.

"Autorretrato", Chardin, 1771
A visão humana ainda não se desenvolveu de forma plena ao longo de nossa evolução, segundo afirmou Harold Speed em 1924, no livro “Oil paintings techniques and materials”. Na arte - diz ele - muito mais é transportado à mente pelo olho do que imagens e sensações de cor. Mas pouca gente consegue ter consciência disso. Em geral, as pessoas veem menos do que há para ser visto. Diz ele que percebemos o mundo mais pelo toque do que pela visão e usamos o olhar apenas para conferir rapidamente a forma das coisas, muito mais do que as cores. Ao invés de enxergarmos as massas de cor, notamos mais a aparência sólida das coisas. A cor local de algum objeto qualquer sempre vai ser a forma como as pessoas descrevem os objetos, dizendo, por exemplo: “este vestido é verde”, ”esta mesa é vermelha”, “o céu é azul”, “as nuvens são brancas”... Só que a cor local varia enormemente ao longo do dia; mas ninguém descreve as diversas tonalidades de azul, amarelo, vermelho, ou seja, os valores de iluminação.

Muito lentamente temos desenvolvido a faculdade da visão, ao longo da evolução humana, enfatiza Harold Speed. “Abrimos os olhos gradualmente”.

Primeiro, desenhamos linhas que preenchemos com cor local. Muito tempo depois na história começamos a fazer os sombreamentos para indicar a forma e o volume das coisas de forma simples. Isso só aconteceu com o aparecimento do pintor italiano Botticelli, que viveu entre 1445 e 1510! Conseguir indicar a Luz e a Sombra dos objetos e figuras foi a grande descoberta técnica do século XV! Em seguida, incluímos as leis da perspectiva com os estudos de Masaccio e Leonardo da Vinci, que criou a técnica do sfumato, ou seja, a transição de valor entre a sombra e a luz em degradée, para dar mais volume às figuras.

Depois, ao longo dos últimos séculos, evoluímos para uma técnica que leva mais em conta o movimento das massas de cor e sua relação com a luz, do que os delineamentos alisados da arte acadêmica, da qual um dos maiores mestres foi o francês Jean Auguste Dominique Ingres. Ticiano introduziu esta forma de pintar, assim como Velázquez na Espanha, com pinceladas que se tornam livres das formas das coisas. Os pintores impressionistas do final do século XIX romperam com a forma delineada “onde erigimos nosso edifício técnico“ (Speed) e passaram a ver o mundo como padrões de cor. Na evolução da visão dos artistas seus olhos não enxergam mais objetos separados no espaço, como entes individuais e sem relação alguma com o seu entorno.

Mas… QUEM enxerga isso?

Muitos poucos!

Detalhe de pintura de Botticelli
A imensa maioria das pessoas ainda se liga na forma dos objetos e não importa se uma pintura segue a receita do delineamento acadêmico ou se ela tem seu foco nas massas de cor e valor. As observações vão ser sempre na mesma linha: céu azul, nuvem branca, mesa quadrada, mar verde, sol amarelo...

É preciso aprender a VER o mundo, pois a maioria não o vê:

“O espírito rítmico que pulsa através do universo e sustenta toda a vida mexe no fundo  do nosso ser e nos impele a buscar relação com a realidade invisível que espreita por trás do véu das aparências”, diz ainda Harold Speed. É este o estímulo básico do pintor. É, como diz James Abbot McNeill Whistler, artista norte-americano do século XIX:

“A Natureza é o teclado no qual o pintor interpreta”.

O que Clarice Lispector nos propõe, assim como Leon Tolstoi, o escritor russo, é o exercício da experiência do despertar. Despertar das banalidades do nosso cotidiano que está absolutamente impregnado de sentidos que não mais percebemos. Resgatar o olhar que se espanta com as coisas, recusando - mesmo que seja apenas como um exercício episódico - recusando as certezas. As banalidades, as trivialidades do dia a dia não podem obscurecer nossa percepção. É preciso pressentir o mistério aonde o óbvio parece dominar. É preciso desfazer os sentidos pré-determinados, tornados automáticos, e dirigir-se a horizontes inesperados; recusar os nomes impingidos às coisas pois as coisas não se resumem a seus nomes! 

“Acorda, mulher, acorda para ver o que tem que ser visto”, clama Sveglia a Clarice.

Pintura de Nicolai Fechin
Ir além do sentido já dado. Prestar atenção. Atenção. Parar e ver. Ver. Enquanto vemos somos vistos, pois a percepção é uma via de mão dupla, como nos mostram as observações científicas do mundo subatômico, onde as cadeias de relações entre tudo torna impossível um experimento que não sofra interferência do observador: “a realidade invisível que espreita por trás do véu das aparências” (Harold Speed).

Exatamente no ano de 1917 o escritor russo Victor Borissovitch Chklovski (1893-1984) publicou um texto intitulado “A Arte como procedimento” onde ele começa citando a frase “a arte é pensamento por imagens”. Neste texto, desenvolve a ideia que o tradutor brasileiro chamou de “Singularidade” e numa tradução francesa se dá o nome de “Estranhamento”. Esse conceito de Chklovski inspirou a estética teatral de Bertolt Brecht, por exemplo. Chklovski era amigo do poeta Maiakovsky e do escritor Maximo Gorki.

Segundo sua teoria, “o procedimento da arte consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção” o que tem o efeito de causar um sentimento de estranhamento, como a visão de um estrangeiro. As imagens, segundo ele, agrupam objetos e suas funções heterogêneas e explicam o desconhecido pelo conhecido. Para ele, há que se fazer um resgate da Singularidade das coisas.

Mostra Chklovski que ao longo dos séculos as imagens pouco se alteram. Uma montanha ainda está lá (pelo menos as grandes), cadeiras e mesas servem do mesmo jeito, assim como camas, mares, pores de sol, planetas, céu, fogo… o ser humano… Todo o trabalho do artista é acumulação e revelação de novos modos de mostrar as mesmas coisas. Mas a cada vez que olhar, ver como se fosse novo!

“Se examinarmos as leis gerais da percepção - diz Chklovski - vemos que uma vez tornadas habituais, as ações tornam-se também automáticas. Assim todos os nossos hábitos fogem para um meio inconsciente e automático; os que podem recordar a sensação que tiveram quando seguraram pela primeira vez uma caneta na mão ou quando falaram pela primeira vez uma língua estrangeira e que podem comparar esta sensação com a que sentem fazendo a mesma coisa pela milésima vez, concordarão conosco”.

"Cristo e a tempestade", Rembrandt
Pois a Arte libera os objetos do nosso automatismo perceptivo:

- “Para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra é pedra, existe o que se chama Arte”.

- “O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como VISÃO e não como reconhecimento” (grifo meu)

- “O ato de percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte é um meio de experimentar o devir do objeto; o que já é “passado” não importa para a arte”.

Chklovski diz que o escritor Leon Tolstoi é um exemplo de artista que vê e mostra os objetos fora de seu contexto e de seu automatismo. Ele viola o ritmo automático, leva à não previsibilidade. Ele jamais se contenta em usar uma palavra que mantenha o leitor em sua posição mais cômoda. Não, ele arranca o leitor do movimento automático dos olhos sobre o livro. Se o leitor está distraído, não acompanha o texto de Tolstoi.

Um leitor distraído e acomodado não lerá com tranquilidade Clarice Lispector. Ela leva às entranhas... Um leitor ansioso jamais lerá "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa. Há que se penetrar no mundo profundo do linguajar do sertão.

Um dos papeis do artista é, então, arrancar os cômodos de seu comodismo, obrigar as pessoas a tropeçar nas quebras de ritmo. Vivemos em um mundo que nos leva aos condicionamentos, ao automatismo cotidiano onde criamos nossa rotina robótica: acordamos, tomamos banho, café, pegamos o transporte, vamos ao trabalho (muitas vezes automático por si), almoçamos, conversamos trivialidades, vagamos pelas ruas com smartphones nas mãos e na atenção principal, retornamos a casa, vemos (ou não) tv, nos relacionamos com a família, dormimos… Fazemos enriquecer uma minoria, porque este automatismo todo interessa, e muito, ao sistema capitalista vigente...

O artista, então, é o que cria obstáculos, é o que surpreende, o que arranca do automatismo, mesmo que seja mostrando que “uma pedra é uma pedra”. E mostra que as as coisas estão diante de nós. Basta ver!

Paisagem com pedras de Gustavo Courbet
"Pescador no mar", William Turner
Natureza-morta de David Leffel
Pintura de Anders Zorn
"O Saltimbanco", de Antonio Mancini
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"Outra Margarida", Joaquin Sorolla
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"Lavabo", Antonio Lopez
"Sinfonia em branco", James McNill Whistler

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Impressão, sol nascendo

Impressão, sol nascente, Claude Monet, 1972
O Museu Marmottan-Monet de Paris, França, está festejando seus 80 anos expondo uma tela das mais importantes de sua coleção, a obra do pintor Claude Monet, intitulada “Impressão, sol nascente”. Realizada em uma manhã de 1872, ela é considerada uma espécie de “Gioconda” do Impressionismo.


Já faz quase 70 anos que o Museu Marmottan-Monet guarda cuidadosamente esta obra emblemática do Impressionismo, uma pequena tela de 50 x 65 cm que nem mesmo foi emprestada ao museu do Grand Palais para uma retrospectiva magistral que aconteceu em 2010. O Marmottan é um museu de caráter especial, uma vez que é ligado à Academia de Belas Artes e dirigido por um de seus membros, Patrick de Carolis, desde o ano passado (2013). Este museu possui uma especial coleção impressionista, assim como objetos e telas da época napoleônica, obras da Idade Média e do Renascimento, reunidos por diversos de seus doadores que pertenciam às famílias Marmottan, Monet, Wildestein, Morisot, Bellio…


Este quadro em destaque, o “Impressão, sol nascente” deve sua notoriedade às contingências históricas que lhe fizeram preciosa ao longo do tempo, assim como o mistério que envolve sua concepção e sua recepção, pois durante uns 50 anos era considerada com sarcasmo. Exposta pela primeira vez em 1874 no estúdio de Nadar, fotógrafo francês, na famosa primeira exposição “impressionista”, essa obra foi a que inspirou, num crítico de arte do jornal satírico “Le Charivari”, o qualificativo pejorativo de pintura “impressionista”. Louis Leroy, o jornalista, teria dito: “Impressão, eu estava seguro disso. Eu também disse isso a mim mesmo, pois fiquei impressionado, deve haver impressão. (...) Qualquer papel pintado em estado embrionário vale ainda mais do que esta marinha!” Com essa crítica, os artistas do grupo de Monet rapidamente tomaram a si o termo e se autodenominaram “impressionistas”.


A tela foi vendida no mesmo ano em que foi exposta para o colecionador Ernest Hoschedé, e revendida quatro anos depois, valendo quatro vezes menos. Adquirida por Georges de Bellio, ela foi doada em 1940, por sua filha, ao Museu Marmottan. Um ano antes, esse quadro e mais uma dezena de outros da coleção Bellio foi enviada secretamente ao castelo de Chambord, junto com outras obras do Louvre. Era tempo da II Guerra e o nazismo era um perigo em todos os aspectos da vida. Era necessário proteger essas obras. “Impressão, sol se pondo” ficou guardada nesse castelo durante seis anos, e foi enviada ao museu no fim de 1945. Com tanta história, essa tela acabou se tornando um mito. No dizer do crítico Roger Marx, “Impressão, sol nascendo” era "a esfera de fogo que vai para cima ou para baixo em um mar de névoa", e torna-se também, para os historiadores de arte, uma testemunha concreta do nascimento do Impressionismo.


A famosa cena, uma marinha ao alvorecer, foi pintada à beira do Havre, uma vila portuária situada a noroeste da França. William Turner, Eugène Boudin, Johan Barthold Jongkind, Gustave Courbet e o próprio Claude Monet pintaram essa visão matinal com tons crepusculares. “O sol sob a névoa e os mastros dos navios apontando para o alto”, é assim que Monet descreve esta tela 25 anos após sua execução. Os reflexos de um sol gordo, a sensação vaporosa, a luz pulverizada, o contraste entre verdes,cinzas e laranjas, a atmosfera ambivalente do limbo… dão a esta tela o valor de um símbolo de um período, o do Impressionismo, mas que já anuncia o Simbolismo.
Estudos de topografia, de astronomia e dos movimentos das marés e boletins meteorológicos da época, dão, segundo o professor de física e astronomia da Universidade do Texas, Donald W. Olson, a precisa data e hora em que Monet pintou este quadro: 13 de novembro de 1872, em torno de 07:35. Uma grande precisão para uma tela que não é nenhum pouco precisa...

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Os Impressionistas

"Impressão do nascer do sol" de Claude Monet, 1872, pintura que inaugurou o Impressionismo
Enquanto aguardamos a inauguração da exposição “Paris: Impressionismo e Modernidade” aqui em São Paulo, no CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil), marcada para iniciar a partir da primeira semana de agosto, faço algumas reflexões sobre o Impressionismo, movimento artístico que influenciou a arte do século XX. Fui buscar informações sobre eles especialmente no livro do professor Carlos Cavalcanti História das Artes, de 1983, assim como nos dois volumes Impressionismo, da Taschen, publicado em 2011.

No século XIX houve, na Europa, uma aceleração da revolução industrial iniciada no Reino Unido em meados do século XVIII. Eram profundas mudanças tecnológicas que traziam  impacto muito grande sobre as relações econômicas, políticas e sociais, influenciando todas as áreas e trazendo uma nova visão sobre o mundo. Vale destacar, no campo da pintura, que a indústria química inventou os tubos flexíveis de tintas a partir de meados do século XIX.

A nova mentalidade começava a ser marcada por uma visão científica do mundo, que concebia a matéria - e a história - com dinamismo. Foi o período em que surgiram as ideias evolucionistas de Charles Darwin (1809-1882), a filosofia materialista-histórica de Marx (1818-1883) e Engels (1820-1895), os estudos microbiológicos de Louis Pasteur (1822-1895), além das descobertas “da eletricidade, do rádio e das ondas hertzianas”. Assim como avançavam as pesquisas científicas no campo da ótica, da luz e da cor. Os artistas também propunham mudanças na maneira de pensar a pintura.

Na França, ainda predominava a arte acadêmica, ou Neoclássica, apegada ao passado e a seus símbolos. O modelo era o greco-romano e os artistas eram levados a pintar os grandes feitos dos poderosos, na pintura de história. Mas no começo do século XIX, novas ideias começam a despontar entre artistas e intelectuais europeus, inicialmente voltados para uma visão romântica da natureza. A vigência do pensamento neoclássico, por sua frieza e rigidez, incomodava certos artistas, e eles partiram para criar obras onde os valores emocionais e individuais fossem enfatizados, em detrimento da mentalidade que buscava imitar os valores estéticos voltados para o passado. O movimento que ficou conhecido como Romantismo marcou presença nas artes europeias, especialmente entre 1820 e 1850.

Na vida política da Corte, alterações também estavam ocorrendo, especialmente após a Revolução Francesa de 1789. Os adeptos do Antigo Regime defendiam os privilégios da nobreza e do clero. Do outro lado, estavam aqueles que defendiam novas formas de vida econômica, social e política e propunham uma mudança de rumos na França. Por isso, desde o fim do século XVIII e durante todo o século XIX os franceses passaram por várias revoluções e modificações na vida do país.

Gustave Courbet: O desesperado
(autorretrato), 1843-45
Na pintura surge o Realismo, como consequência de todo esse novo quadro. Gustave Courbet inaugura uma exposição, em 1855, paralela à promovida por Napoleão e em protesto por ter sido recusado na mostra oficial. À sua exposição, Courbet denomina: “Du Réalisme”, com isso inaugurando nova etapa na pintura francesa. Esse movimento defendia um “maior espírito científico do homem europeu no conhecimento e interpretação da natureza”, observa Cavalcanti. O realismo reagia ao idealismo neoclássico, ao mesmo tempo que também era contrário à “exacerbação emocional do romantismo”.

Mas o realismo não era um movimento novo. Ao longo da história, desde seus primórdios, o homem tem se alternado em várias fases realistas. Carlos Cavalcanti diz que a primeira delas vem desde os tempos remotos da pintura nas cavernas da era chamada Madaleniana, ou idade da pedra lascada. Depois, houve uma fase realista grega e romana. Mas com o advento do misticismo medieval, o realismo perdeu espaço para as abstrações da fé cristã. Depois, com o Renascimento, novos artistas realistas apareceram, muitos deles influenciados pelas novidades pictóricas de Ticiano e Rubens. Mais especialmente realista foi a arte Barroca, cujo maior nome é o de Caravaggio, na Itália; de Rembrandt, na Holanda; de Velázquez, na Espanha.

Amor sagrado e amor profano, de Ticiano, 1514:
Ticiano foi um dos mestres preocupados em estudar os efeitos da luz
O IMPRESSIONISMO

Pois bem. Segundo diversos historiadores, incluindo Carlos Cavalcanti, o movimento conhecido como Impressionista derivou diretamente do Realismo, cujos representantes maiores eram Gustave Courbet e Édouard Manet, que se impuseram contra a arte oficial da Academia francesa e abriram espaços para os novos pintores que os novos tempos estavam trazendo.

O Impressionismo teve seu início em 1874, em Paris. Um grupo de pintores jovens resolveu se organizar contra as regras da academia que os impedia de participar das exposições do Salão de Paris. Naquela época, o Salão de Paris era praticamente o único espaço onde os pintores poderiam expor suas obras e encontrar reconhecimento público na França. Mas era controlado rigorosamente pelos membros da Escola de Belas-Artes, que defendiam o estilo neoclássico com unhas e dentes. Por isso, esses novos pintores eram sistematicamente recusados pelos organizadores e viviam em grande isolamento do público. E vários deles em grande penúria, como Alfred Sisley, que morreu na miséria.

Pintura de Édouard Manet:
Claude Monet pintando em seu ateliê, 1874
 
Um dia, o pintor Manet teve a ideia de organizar uma associação profissional com os artistas que não encontravam espaço para expor. Pouco tempo depois, com diversos adeptos, nascia a Sociedade Anônima Cooperativa de Artistas Pintores, Escultores e Gravadores, cujo objetivo maior, segundo seus estatutos, era justamente promover exposições públicas de obras de seus associados. A primeira grande exposição coletiva foi inaugurada, então, no dia 15 de abril de 1874 nas salas do ateliê do fotógrafo Felix Tournachon Nadar (1820-1910).

Entre os primeiros expositores estavam: Auguste Renoir, Edgard Degas, Camille Pissarro, Paul Cézanne, Alfred Sisley, Claude Monet e uma mulher, Berthe Morissot. Foram expostos 150 trabalhos.

Cavalcanti conta que Edmond Renoir, irmão do pintor, foi o encarregado de preparar o catálogo da exposição. E teria dito a Claude Monet que os títulos de suas obras eram monótonos, algo do tipo “Entrada da aldeia, saída da aldeia, manhã na aldeia...” Ao que Monet teria sugerido secamente que ele incluisse a expressão “Impressão”, que foi aceita e incluída no catálogo como, por exemplo, “Impressão do nascer do sol”.

A exposição não foi aceita pela crítica e pelo público, acostumados às pinturas da Academia. Os ataques dos críticos foram agressivos, chamando-os “falsos artistas”, “ignorantes” das regras da boa pintura e da verdadeira beleza.

Entre os críticos mais ferrenhos estava Louis Leroy, que era também gravador e paisagista. Ele escrevia para o jornal Le Chavirari, que tinha um viés humorístico e político e era bastante lido pela população parisiense. Ele escreveu, segundo consta no livro História das Artes:

“Selvagens obstinados, não querem, por preguiça ou incapacidade, terminar seus quadros. Contentam-se com uns borrões, que representam as suas impressões. Que farsantes! Impressionistas!”

Claude Monet: Jardim em Giverny, 1900
Logo, a expressão Impressionistas se popularizou nos círculos mais conservadores que usavam o termo para designar qualquer artista que eles considerassem medíocre. A primeira exposição dos “Impressionistas” durou um mês e foi um fracasso. Em 1875, a Associação resolveu abrir um leilão dos quadros no Hotel Drouot. Mas uma vez a reação contra eles foi dura e “os pregões do leiloeiro eram vaiados pelo público”, conta Cavalcanti.

Mas em 1876 veio a segunda exposição e desta vez resolveram usar o termo com que eram criticados, e deram como título da mostra: “Exposição dos Pintores Impressionistas”.

De 1874 a 1886, os impressionistas fizeram oito exposições em Paris, com mais adesões de outros pintores, entre os quais Paul Gauguin, que se juntou a eles. Aos poucos eles foram sendo respeitados, pela suas pesquisas em torno da luz e das cores. Na última coletiva de 1886, mais dois pintores se aproximaram do grupo: Georges Seurat (1859-1891) e Paul Signac (1863-1935). Estes dois resolveram aplicar em suas telas as descobertas científicas no campo da física e da química das cores, e com isso desenvolveram a técnica de pincelar que já tinha sido iniciada por Monet e Pissarro, que passou a ser chamada de pontilhismo. Van Gogh é um dos exemplos de pintores que usaram o pontilhismo em seus quadros impressionistas.

Após 1886, finalmente os impressionistas começaram a ser reconhecidos pelo público e pela crítica. Novas gerações de artistas aplicavam as mudanças iniciadas pelos seus antecedentes e desenvolviam novas formas de expressão artística. Degas, Monet e Renoir já eram admirados e respeitados.

Mas o que fizeram a mais os Impressionistas, em relação aos outros? Eles simplesmente introduziram na pintura “a observação direta da luz do sol”, conforme explica o professor Cavalcanti, e fixaram as mudanças sutis que a luz do sol produz nas cores do mundo em horários diferentes do dia. Eles retiraram seus cavaletes dos espaços fechados dos ateliês e foram pintar ao ar livre, e por isso foram sobretudo paisagistas. Enquanto os defensores da academia esbravejavam contra eles, diz Cavalcanti, “Claude Monet se imortalizava embriagando-se de luz”. E acrescenta que Monet dizia que não sabia fazer nada, “nem pensar”, quando o sol desaparecia.

Degas: Escola de Dança, 1879
Ao contrário dos pintores acadêmicos que queriam despertar sentimentos e ideias edificantes quando pintavam telas com temas ou históricos, ou mitológicos, ou bíblicos ou alegóricos, os Impressionistas queriam somente mostrar os efeitos coloridos da luz solar sobre o mundo, observados diretamente. E Cavalcanti acrescenta:

“Como bons realistas, além de pintarem apenas o que viam , só pintavam o que estivesse recebendo direta ou indiretamente a luz do sol”.

Mas o autor observa que essa preocupação não era exclusiva dos impressionistas. Antes deles, Leonardo da Vinci (1452-1519) em seu “Tratado da Pintura” faz diversas observações sobre a luz do sol e seus efeitos na natureza. Assim como os pintores venezianos do Renascimento, em especial Ticiano (1477-1576) e Veronese (1528-1588), cujas telas eram repletas de cores que se derramavam em massas luminosas. Assim também foram os mestres holandeses Rembrandt e Vermeer. Assim foi o mestre espanhol Diego Velázquez, que inspirou Édouard Manet, Claude Monet e Auguste Renoir. Também Rubens, o mestre alemão, tinha se voltado para a luz. E os pintores do estilo rococó, franceses e italianos; assim como os paisagistas românticos ingleses, como William Turner.

Mas os Impressionistas foram originais em suas concepções sobre o desenho, a cor e a luz, que eles sistematizaram em princípios básicos da nova forma de pintar. São eles, segundo numerou Carlos Cavalcanti:

Pintura de John Singer Sargent:
Claude Monet pintando, 1885
1 - A cor não é uma qualidade absoluta; a ação da luz modifica as cores constantemente;
2 - Não existe Linha na natureza. A linha é uma abstração mental criada para representar o que vemos;
3 - A sombra não é preta, nem escura; é colorida e pode ser luminosa;
4 - Aplicação de contrastes de cores em complementaridade;
5 - As cores não devem mais ser misturadas na palheta, mas colocadas de uma forma que a visão ótica dê a configuração delas.

Mas nem tudo era paz entre os Impressionistas. Degas, por exemplo, continuou a afirmar o domínio do desenho sobre a cor, e se recusava a pintar ao ar livre. Sua sobrinha, Jeanne Smith, salienta que Degas tinha uma memória visual prodigiosa e ele poderia pintar no ateliê as paisagens que vira alguns dias antes. Renoir, por seu lado, deixou o movimento na década de 1880, voltando depois para ele e com isso nunca conquistou plenamente a confiança dos outros membros. Édouard Manet, um dos fundadores do grupo, se recusou a exibir o seu trabalho com outros impressionistas e preferia continuar tentando o Salão de Paris. Durante a Guerra Franco-Prussiana de 1870, o grupo é marcado pela saída de Cézanne, Renoir, Sisley e Monet, que abandonam o grupo e vão participar do Salão. Muitas disputas depois, o grupo dos impressionistas se separou em 1886, quando Signac e Seurat montaram uma exposição concorrente. Camille Pissarro foi o único artista que participou de todas as oito exposições do grupo.

Os Impressionistas mais conhecidos são: Fréderic Bazille (1841–1870); Eugène Boudin (1824-1898); Gustave Caillebotte (1848–1894); Mary Cassatt (1844–1926), Paul Cézanne (1839–1906); Edgard Degas (1834–1917); Armand Guillaumin (1841-1927); Claude Monet (1840–1926); Berthe Morisot  (1841–1895); Camille Pissaro (1830–1903); Pierre-Auguste Renoir (1841–1919); Georges Seurat (1859-1891); Alfred Sisley (1839–1899); Vincent van Gogh (1853-1890), entre outros.

Destes pintores, estarão em São Paulo e Rio, no CCBB, obras de Édouard Manet, Paul Gauguin, Vincent Van Gogh, Édouard Vuillard, Auguste Renoir, Edgard Degas, Henri de Toulouse-Lautrec, Giovanni Boldini, James Tissot, Claude Monet, Camille Pissarro, Pierre Bonnard, Paul Sérusier, Georges Seurat e Édouard Vuillard.

Além de Gustave Courbet, o pintor que inaugurou o Realismo.

Édouard Manet: O Banho ou Desjejum na relva, 1863

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Paris: Impressionismo e Modernidade

Claude Monet: La Gare Saint-Lazare, 1877, óleo sobre tela, Museu d'Orsay, Paris

A partir do dia 4 de agosto o Centro Cultural Banco do Brasil – CCBB – inaugura em São Paulo uma grande exposição com 87 obras de pintores impressionistas franceses, pertencentes ao Museu d’Orsay de Paris.
O CCBB, no texto apresentativo da mostra, afirma que esta será a primeira de muitas outras grandes exposições que a entidade cultural trará para o Brasil. E foi anunciada uma grande notícia para a vida cultural de São Paulo: em 2015 será inaugurado um grande centro cultural no local aonde funcionou durante décadas o Hospital Matarazzo, perto da Avenida Paulista, entre a rua Itapeva, Pamplona, Rio Claro e São Carlos do Pinhal. O projeto é do designer francês Phillipe Starck. O projeto deve abrigar um grande teatro, salas de cinema e espaços para exposições.
O Brasil começa agora a se tornar também um polo de atração para grandes exposições. Duas grandes mostras de arte que ocorreram aqui, trazidas pelo CCBB, colocaram o Brasil no ranking das exposições com maior público do mundo, pela revista The Art Newspaper: a de Escher, em 2011, com 381 mil visitas e a mais recente, sobre a Índia, com cerca de 400 mil visitantes.
A exposição "Paris: Impressionismo e Modernidade" pretende trazer para cá obras históricas importantes, entre outras: "La Gare Saint-Lazare" (1877) e "La Gare d’Argenteuil" (1872), de Claude Monet, o mesmo que pintou o primeiro quadro dito “impressionista” da história da arte.
Paul Gauguin: Les maules jaunes, 1889, óleo sobre tela
A exposição será organizada em seis módulos, apresentando aqueles pintores que permaneceram vivendo na cidade, especialmente em Paris, ou aqueles que resolveram ir viver no campo. Virão, entre outros: Édouard Manet, Paul Gauguin, Vincent Van Gogh, Édouard Vuillard, Auguste Renoir, Edgard Degas, Henri de Toulouse-Lautrec, Giovanni Boldini, James Tissot, Claude Monet, Camille Pissarro, Pierre Bonnard, Paul Sérusier, Georges Seurat e Édouard Vuillard, além de Gustave Courbet, o pintor que inaugurou o Realismo nas artes.
Claude Monet: O tocador de pífano, 1866, 160x97 cm
óleo sobre tela
A tela O Tocador de Pífano (Le fifre), de Manet, será uma das grandes atrações da exposição. Essa pintura foi recusada no Salão Oficial de Paris, ainda sob a dominação do estilo neoclássico. Ela apresenta um menino humilde, dando a ele a importância que os membros da Academia oficial de Paris não aceitavam. O menino, um pouco manco, está tocando uma flauta de pífano e vestido com o uniforme dos filhos dos oficiais das tropas da Guarda Imperial de Napoleão III. As calças vermelhas com listras pretas, jaqueta preta com botões dourados, a faixa branca e o boné são característicos dos soldados. Considerando este tema comum, o júri do Salão oficial criticou o fato de Manet ter dado um formato grande como se ela fosse uma pintura histórica, e por ter feito o retrato de uma criança desconhecida, como se fosse de alguém famoso. Percebe-se, nesta tela que estará aqui no Brasil, a admiração que Manet tinha pela pintura dos mestres antigos, em especial, Diego Velázquez. O quadro é inspirado nos retratos de grande comprimento do pintor espanhol, como o de Pablo deValladolid, por exemplo, os dois contra um fundo neutro. O escritor Émile Zola escreveu um grande ensaio em defesa desse quadro.
Abaixo, a íntegra do texto disponibilizado no Portal do Museu d’Orsay, sobre a exposição:
Enquanto a velha Paris se apaga sob a influência do barão Haussmann, os pintores Jongkind e Lépine, Manet e Degas, Monet e Renoir, Pissarro e Gauguin, apaixonam-se pela cidade e pela sua vida frenética. Novos temas surgem para os artistas, com boulevards, ruas e pontes animados por um movimento incessante, jardins públicos, vibrantes mercados cobertos e a céu aberto, retraçados sob o céu cinza, bem como grandes lojas e vitrines, iluminadas a gás ou eletricidade, estações de trem, cafés, teatros e circos, corridas, sem falar dos bailes e noitadas mundanas...
Através destes lugares, os artistas pintam igualmente todas as camadas da sociedade: austeras famílias burguesas na obra de Fantin-Latour, burguesia mais elegante e frequentadora dos lugares da moda, moças da fina sociedade tocando piano em Renoir, prostitutas que rodam a bolsinha e sobre as quais artistas como Degas, Toulouse-Lautrec ou Steinlen lançam um olhar livre de qualquer julgamento moral e até empático, como em Toulouse-Lautrec.
Entretanto, a atração pela natureza e o desejo de fugir da cidade também se manifestam de modo imperativo... São os mesmos artistas que se voltam para os temas mais “naturais” das cercanias de Paris (Monet, Bazile, Renoir, Sisley para Fontainebleau, Monet para Argenteuil, Pissarro para Pontoise…). A busca por novas aventuras picturais conduz ao refúgio na região do Midi (Van Gogh, Gauguin e Cézanne) ou na Bretanha (Gauguin, Bernard), ao passo que os artistas do movimento Nabi privilegiam a intimidade de universos interiores.
Comissária: Caroline Mathieu, curadora chefe do Museu de Orsay

sábado, 22 de outubro de 2011

No atelier de Delacroix

Uma das últimas palhetas de Eugene Délacroix, exposta no museu
Ontem de manhã peguei o metrô aqui na Place de la Nation, em Paris, e fui em direção a Saint-Germain de Près. Meu destino era a casa onde viveu o pintor francês Eugène Delacroix, onde hoje funciona o Museu Delacroix, sustentado e organizado pela Associação dos Amigos de Eugène Delacroix.


A Rua de Furstemberg, onde fica o Museu, é uma dessas ruas tranquilas, estreitas, quase sem movimento, aqui em Paris. No meio da rua há uma espécie de mini-praça, com árvores à volta, cujas folhas estão ressecadas e caindo, por causa do outono, e do frio que já começa a queimar as folhas verdes. Essas fotos, que ilustram o texto, foram tiradas por mim ontem, nessa visita.


Cavalete onde trabalhou Eugene Délacroix
Uma moça me atendeu ao final da escada de entrada. Muito simpática, me indicou a direção por onde começa a exposição. Nem são muitos quadros dele, porque os mais importantes estão espalhados por vários museus. No Museu do Louvre está um dos seus mais conhecidos: "A Liberdade guiando o povo às barricadas", que eu já tinha visto na véspera.


No Museu Delacroix estão alguns desenhos seus, várias litogravuras, pasteis, pinturas suas e de artistas amigos, mas principalmente estão lá alguns objetos que pertenceram a Delacroix, principalmente seus material de trabalho: cavalete, mesinha onde ele guardava tintas e pincéis, uma de suas últimas palhetas, móveis diversos, e lembranças das muitas viagens que ele fez ao Marrocos.


Desci até seu atelier, no fundo do terreno, uma espécie de edícula, como conhecemos no Brasil. A janela maior dá para um jardim, com bancos diversos, sob algumas árvores. O atelier é dividido em dois compartimentos, uma salinha de entrada com uma lareira, e a sala maior, onde ele trabalhava.


Delacroix dependeu muito do mecenato oficial para viver como pintor. Mas somente na velhice ele foi reconhecido pelos que representavam oficialmente a pintura. Só em 1855, pode expor em um dos principais eventos de exposição da época, a Exposição Universal de Paris. Em 1857, foi eleito para ser membro do Instituto da França (uma instituição acadêmica francesa), com a peremptória oposição do pintor neoclássico Ingres, seu adversário de sempre. Mas mesmo sendo eleito, a academia não lhe permitiu exercer o posto de professor de Belas Artes que ele esperava.


Auto-retrato de 1837
Mas essas oposições, incluindo a de Ingres, tinha razão de ser, porque Délacroix soube ir além de sua formação clássica em nome de renovar a pintura que era feita no período, quando predominava o estilo Neoclássico, cujo representante maior, e mais genial, é mesmo Jean-Dominique Ingres.


Delacroix morreu de turbeculose no dia 13 de agosto de 1863, nesta mesma casa da rua de Furstemberg, que visitei ontem. Depois que ele morreu, diversos artistas organizaram emocionantes homenagens a ele, especialmente o pintor Gustave Courbet. Delacroix é considerado um pintor dentro do estilo do Romantismo, e um dos seus principais símbolos.


Delacroix teve uma governanta, Jenny de Guillon, uma senhora que cuidou dele e de sua casa de 1835 até a morte do artista. Ela era mais do que uma servente, era uma pessoa muito próxima a ele, a quem ele considerava uma pessoa de um coração extremamente dedicado e aberto. Fez dela uma pintura a óleo e deixou para Jenny quase tudo o que possuía, incluindo móveis e objetos pessoais. Muitos desses objetos foram conservados intactos e podem ser vistos hoje no Museu Delacroix.


Sob a coordenação de um artista, o Museu dispõe de workshops semanais, na terça-feira, quando fecha para visitação pública. Essas oficinas são destinadas a adultos ou para estudantes em fase escolar. São feitas dentro da sala principal do atelier de Delacroix, em meio às suas obras. Como a sala não é muito grande, as turmas são limitadas a 20 pessoas. Lá, artistas e estudantes, podem estudar e copiar as obras do mestre, seja desenhando, seja pintando.


Vista do atelier de Delacroix, a partir do jardim de sua casa

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Franz Hals, Rembrandt, Vermeer: mestres holandeses em busca da Luz

Vista de Delft, Jan Vermeer, óleo sobre tela, 98,5×115,7cm, 1660-61



Sintéticos; estudo minucioso e sistemático; pinceladas enérgicas; marcas evidentes do pensamento pictórico; soberano virtuosismo da técnica; domínio pleno do pincel; violentos contrastes de claro-escuro; apaixonada busca do movimento da Luz – assim poderíamos sintetizar o que foram esses três grandes mestres barrocos da pintura holandesa: Hals, Rembrandt, Vermeer.

O estilo Barroco, iniciado ainda na Itália renascentista, se espalhou por diversos países, e era o “espelho dos acontecimentos sociais, políticos, científicos, culturais e religiosos que agitaram profundamente o mundo europeu”, como fala a introdução do livro Barroco, da Visual Encyclopedia of Art. Acrescenta que a corrente inaugurada por Caravaggio impôs-se como uma revolucionária forma naturalista de pintar, e ele – Caravaggio – teve uma profunda influência sobre a arte holandesa, especialmente sobre os três pintores nos quais nos debruçamos neste texto. Havia diversos pintores "caravaggescos" em Utrecht, Holanda, que teriam trazido o estilo do mestre Caravaggio para os Países Baixos.

Após a Reforma protestante, iniciada pelos idos do século XVI com a publicação das 95 teses de Martinho Lutero, que se rebelava contra a doutrina da igreja católica, a Europa foi dividida, e pequenos países mais ao norte, como a Holanda, sofreram os efeitos dessa divisão. A Bélgica permaneceu católica, mas a região dos Países Baixos, que estavam sob o domínio de governantes católicos espanhóis, resolveu se rebelar contra seus governantes e sua religião oficial, aderindo ao Protestantismo.


Franz Hals: Dois meninos cantando
1625, óleo sobre tela, 76x52cm
Essa tendência “protestante” e rebelde foi evidente entre os pintores dos Países Baixos, como atesta Gombrich em seu livro A História da Arte. Lá, antes da Reforma, os pintores eram forçados a pintar sob a censura de cunho religioso. Com a Reforma, a pintura de retratos se desenvolveu. Mercadores e burgueses queriam ser pintados e levar seus retratos à posteridade, assim como agrupamentos sociais diversos, que solicitavam retratos em grupo. Isso garantia trabalho e condições de vida melhores aos pintores.

Nessa Holanda livre, surgem estes mestres. Eles seguiram o caminho dado pela arte barroca, que teve uma rápida difusão por causa “da própria natureza dos estilos de arte, que sempre refletem ou traduzem as constantes transformações históricas e sociais por que estão passando as coletividades humanas”, na observação de Carlos Cavalcanti em seu livro Conheça os Estilos de Pintura.

As forças econômicas e sociais se desenvolviam na Holanda protestante. Esse país teve um crescimento grande do comércio, num momento em que a burguesia industrial e mercantil ascendia na Europa, tornava-se mais rica e poderosa, preparando-se para tomar o poder, o que aconteceu com as revoluções após o século XVIII. O Barroco, uma forma de arte onde o movimento predomina, era a representação do próprio dinamismo da sociedade que começava a surgir a partir da ascensão da burguesia.

Em meios às grandes mudanças que ocorriam desde o início do século XVII, vivem Frans Hals, Rembrandt  van Rijn e Johannes Vermeer.

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FRANZ HALS


Franz Hals: Palhaço com o alaúde, 1623-1624,
óleo sobre tela, 70x62cm Museu do Louvre, Paris


Ele nasceu por volta de 1580 e era da mesma geração de Rubens, o pintor belga. Seus pais tinham abandonado o sul da região, por terem aderido ao protestantismo, e foram parar na cidade holandesa de Haarlem. Gombrich diz que se sabe muito pouco sobre a vida de Halz, a não ser que teve uma existência precária, sempre endividado.

Mas sua pintura é leve e é livre. A burguesia rica de Haarlem, onde ele vivia, queria ser pintada, queria celebrar suas conquistas cívicas e militares. Frans Hals era o pintor perfeito para representar esse espírito da época, onde a vida parecia boa. Ele pintava homens e mulheres cheios de vida, sorridentes. Nada em sua pintura tem rigidez; muito pelo contrário, séculos antes do Impressionismo ele deu vigorosas pinceladas sintéticas que definiam o que precisava ser definido em uma pintura, como podemos observar claramente em suas telas.


Franz Hals: Grupo dos membros do Hospital Santa Elisabeth de Haarlem,
1641, óleo sobre tela, 153×252 cm



Mas Hals pintou muitos retratos de pessoas das mais diferentes classes sociais: burgueses ricos, mercadores, militares, comerciantes, advogados, funcionários públicos, músicos, cantores de rua, pescadores que “renderam muito pouco dinheiro a Hals e sua família”, como observa Gombrich… Mas Hals dava a esses rostos o tratamento do velho mestre Caravaggio, ou seja, eles eram realistas. Ele sabia como usar a Luz como um dos valores fundamentais para dar expressão às suas pinturas. Seus retratos apresentam pessoas vivas, humanas, em seus olhares cheios de vida e simpatia. Franz Hals teria se deixado influenciar pelos pintores caravaggescos de Utrecht, quando ainda era um estudante no atelier de Carel Van Mander.

Dá a impressão, ao ver algum de seus quadros, que a pessoa que vemos lá parece ser de alguma forma bem familiar a nós. Porque Frans Hals tinha essa capacidade de captar o momento expressivo, e eternizar aquilo, resolvendo em poucas pinceladas, que podem ser perfeitamente observadas.


Franz Hals: A cigana, 1628-30, 58x52cm, 
óleo sobre tela, Museu do Louvre, Paris
Heinrich Wölfflin, estudioso alemão, diz em seu livro Conceitos Fundamentas de História da Arte que esse tipo de pintura feita por Hals não pretende que o caminho do pincel pareça invisível, quando, com isso, perderíamos “o melhor” da tela. Não, essas pinceladas enérgicas e evidentes podem dar ao observador a possibilidade de acompanhar o “pensamento” pictórico do artista e com isso podemos medir o arrojo e a perfeição com que o artista dominava sua arte.

Era comum, entre os pintores da época, inclusive Rubens, compor a pose de seus retratados para dar-lhes dignidade. Mas Franz Hals não; ele colhia aquele momento em pinceladas audaciosas, pintando um cabelo despenteado, uma manga enrugada, um rosto marcado por uma expressão momentânea.

Na velhice, pobre, Frans Hals passou a receber uma pensão do Asilo Municipal de Velhos, cuja Junta foi pintada por ele. Morreu já bem velhinho, com mais de 80 anos de idade.

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REMBRANDT VAN RIJN


Rembrandt: Autorretrato, 1658


Nasceu em 1606, sete anos após dois outros grandes pintores: Van Dyck, holandês, e Velázquez, espanhol. Era natural de Leiden, cidade que abrigava uma universidade. Conta-se que ainda criança ele abandonou os estudos para começar seu aprendizado como pintor.

Com 25 anos mudou-se para Amsterdam, onde estudou com Pieter Lastman, considerado o maior pintor de cenas históricas da Holanda. Lastman tinha vivido uns anos na Itália e havia conhecido as obras de Caravaggio. Com esses conhecimentos, Rembrandt voltou para Leiden onde abriu um atelier. Começou a sequencia de autorretratos que ele fez. Conta-se que ele usava dois espelhos para isso, e contorcia o rosto, criando expressões que ele pintava, em seu estudo pessoal. 

Também se sabe que ele dava grande importância ao teatro, e estimulava seus alunos a frequentarem eventos teatrais, para que estudassem os movimentos e as expressões dos atores em cena. Também diz-se que ele era um homem de profundas reflexões e sempre questionava o papel do pintor no mundo.

Rembrandt: Filósofo em meditação,
óleo sobre tela, 1632
Quando voltou a morar em Amsterdam, construiu rapidamente uma nova vida: tornou-se pintor de retratos, casou com uma moça rica, comprou uma casa, virou colecionador de obras de arte. Mas sua esposa morreu e ele, endividado, viu sua casa ser tomada pelos credores, assim como sua coleção de quadros.

Rembrandt pintou muitos autorretratos durante a sua vida, mostrando um rosto de “um ser humano real”, como observa Gombrich em A História da Arte. Não há sinal de que fizesse pose, ou que demonstrasse alguma vaidade com o próprio retrato, mas – continua Gombrich – “apenas o olhar penetrante de um pintor que examina atentamente suas próprias feições, sempre disposto a aprender mais e mais sobre os segredos do rosto humano”. Ele considerava uma pintura acabada “quando seu objetivo tinha sido alcançado”.


Rembrandt: Homem do capacete de ouro,
Gemäldegalerie, Berlim
Gombrich ressalta que, no interesse profundo que Rembrandt possuía em apreender a alma humana, “como Shakespeare, ele era capaz, por assim dizer, de penetrar fundo na pele de todos os tipos de homens, e saber como se comportariam em qualquer situação”.

Ele era sobretudo humano. As figuras representadas por ele são pessoas reais, com sentimentos que podem ser adivinhados. Ele era capaz de ver o mundo cotidiano da forma extraordinária que só o olhar aguçado do pintor possui. Um mundo que ele traduzia em massas de valores, de cores. Era o que ele fazia, assim como a escola que vinha desde Caravaggio: buscava a Luz, da qual foi mestre na observação, obtendo resultados que o colocam entre os maiores do mundo. 

Com isso, do fundo de telas onde o marron escuro predomina, surge uma figura humana, iluminada, grandiosa, muitas vezes salpicada com o dourado da luz que inunda tudo o que precisa ser inundado. A dramaticidade de muitos de seus retratos, inclusive seus próprio autorretratos, é fornecida diretamente pela maestria com que ele dominava a gradação necessária da luz para trazer um rosto à vida, à observação.

Rembrandt, à “semelhança de Caravaggio, também atribuía à verdade e à franqueza um valor mais alto do que à harmonia e à beleza”. Ele, como outros pintores holandeses do século XVII, diz Gombrich, descobriram “a beleza pura do mundo visível”. Eles já não estavam mais subordinados a pintar temas grandiosos, ou figuras proeminentes. A liberdade que a religião protestante lhes dava abria para eles possibilidades infinitas, a partir da simples percepção do mundo real.

Rembrandt, mesmo velho e empobrecido, continuava buscando novas formas de expressão em sua pintura. Morreu em 1669. Gérard de Lairesse, outro pintor holandês do período disse de Rembrandt: “Ele era capaz de fazer tudo o que a arte e o pincel podem realizar”.


A noiva judia, Rembrandt, 1665-69, óleo sobre tela
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JAN VERMEER VAN DELFT


Moça com brinco de pérola, 1665,
Mauritshuis, Haia, Holanda
Ele nasceu em 1632 e quase nada se sabe de sua vida. Foi o segundo filho de Reynier Jansz, um comerciante de seda de Amsterdam. Depois que se casou, mudou-se para Delft, onde nasceu Vermeer. Lá, seu pai acabou trabalhando como negociante de arte e, com isso, mantinha relações com alguns pintores como Balthasar van der Ast, Pieter Steenwyck e Pieter Groenewegen. Eles podem ter sido a primeira influência recebida por Vermeer, que foi admitido como mestre na Guilda de São Lucas em 1653, uma espécie de organização de pintores, vidreiros e comerciantes de arte, além de outros profissionais artesãos. Sabe-se que para ser aceito nessa Guilda, a pessoa tinha que ter passado seis anos como aprendiz de algum artista reconhecido. Também fala-se que ele teria sido aluno de Carel Fabricius, um dos aprendizes de Rembrandt.

O Geógrafo, 1668-69
Vermeer casou-se em 1653 com Catharina Bolnes, cujos pais tinham uma boa situação financeira. Vermeer era calvinista e sua esposa católica. Por causa da rejeição da mãe dela ao casamento, fala-se que ele teria se convertido ao catolicismo e, em certo sentido, se rendido aos costumes da família de Catharina, com quem logo tiveram que ir morar. O casal teve 15 filhos, sendo que quatro morreram ainda bem novos.

Mas sabe-se muito pouco de sua vida e, olhando para suas pinturas o problema de saber quem era esse homem é ainda mais acentuado. Ele produziu muito pouco, em torno de 35 quadros, que ele pintava de forma lenta, metódica. Possuía uma incrível capacidade para sugerir formas e texturas, comunicando o máximo com o mínimo de pinceladas.

Sua metódica postura de estudioso mostrava a sua verdadeira paixão pelos efeitos provocados pela luz. “A característica mais notável de Vermeer é a qualidade da luz”, disse o crítico de arte francês do século XIX, Théophile Thoré.
Mas seu trabalho como pintor, nem de longe era suficiente para o sustento de sua grande família. Por isso, ele tinha uma segunda ocupação que parece ter sido a de negociante de arte, como seu pai, ganhando seu sustento vendendo os quadros dos outros mais do que os seus próprios. Mesmo assim ele sempre que precisava preencher algum formulário que lhe indagava sobre sua profissão, não titubeava e escrevia: “pintor”.


A carta de amor, 1669-70
A cada ano que passava, a situação de vida de Vermeer e sua família piorava. Tinha que recorrer frequentemente a empréstimos, o que aumentava mais suas dívidas. Em 1672 estourou a guerra entre a Holanda e a França, sendo que os soldados franceses avançavam em direção ao norte da Holanda. Os holandeses, para resistir à invasão francesa, romperam os diques, e extensas áreas de terra foram alagadas, incluindo uma parte de terra que pertencia à família de Catharina e que era uma fonte regular de renda para os Vermeer. Para piorar, ele não conseguia vender mais nenhum quadro. Anos depois sua esposa disse que por causa dessa guerra e das despesas grandes da família, eles se endividaram imensamente e com isso Jan Vermeer “caiu numa tal depressão e letargia que perdeu a saúde no espaço de um dia e meio e morreu”. Foi enterrado no dia 15 de dezembro de 1675, numa sepultura familiar, em Delft, cidade que ele nunca deixou.

Parece que, ainda em vida, Vermeer era muito conhecido pelos seus contemporâneos e apreciado como artista. Em 1696 houve um grande leilão que incluía quadros dele, cujos preços eram os mais altos de todos os outros artistas, o que demonstra sua popularidade como pintor.


Senhora escrevendo uma carta e sua criada, 1670
A pintura de Vermeer parece possuir uma certa intemporalidade. Sua forma de pintar é, por vezes, quase cristalina. Mas nessa quietude e luminosidade que invade espaços sombrios, podemos observar que ele se aproxima do “tenebrismo” de Caravaggio. Em sua época, a chamada pintura histórica, em voga, incluía os acontecimentos da Antiguidade Clássica, mas também os mitos e lendas de santos, e os temas bíblicos. Mas na segunda metade de 1650 ele voltou sua pintura para as cenas domésticas.

Nenhum dos quadros da fase de "pintura de gênero" representa uma cena muito importante, do ponto de vista temático. A maioria representa pessoas simples, dentro de suas casas, em geral solitárias, costurando, tocando algum instrumento, lendo cartas, estudando. Sua verdadeira obsessão era a Luz, que invadia os ambientes através de janelas abertas, muitas vezes janelas de vidro, como a dizer que ao abrir-se para o mundo, nada pode impedir que a luz tome conta e banhe tudo de cor. E com isso todos os objetos e figuras humanas compõem um conjunto inseparável.

Vermeer usava também cores brilhantes, assim como o azul intenso que aparece em diversas de suas obras. Nada se sabe sobre desenhos, estudos preparatórios. Mas sabe-se que ninguém no século XVII utilizou, como ele, de forma tão exuberante, o pigmento que era dos mais caros na época: o lápis-lázuli, o ultramarino natural. Mas também usava os terras e ocres de forma luminosa. Podemos dizer que Vermeer pintava com a luz, seu objeto de perseguição e de desejo era a luz. Ele tinha estudado textos de Leonardo da Vinci que diziam que um objeto sempre reflete a cor do objeto adjacente e por isso nenhum objeto é visto puramente em sua cor local. Ele foi também o grande mestre da composição, empregando divisões equilibradas das superfícies e tinha domínio perfeito da perspectiva. Para ele a geometria tinha um papel importante na composição.

Talvez por nunca ter saído de sua cidade natal, Delft, Vermeer se manteve desconhecido até o século XIX. O pintor realista francês Gustave Courbet foi exatamente buscar a fonte de sua inspiração na obra dos pintores holandeses, dos mestres que mostravam o mundo, mesmo em suas cenas cotidianas, com a riqueza do tratamento da síntese que absorviam do real. Um desses mestres descobertos por ele era Johannes Vermeer.
A arte da Pintura, 1665-1666, Jan Vermeer, óleo sobre tela, 120x100 cm,
Kunsthistoriches Museum, Viena, Áustria
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